sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16816: Notas de leitura (909): “Conhecimento do Inferno", por António Lobo Antunes, Editorial Vega - O Chão da Palavra, 1980 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Outubro de 2015:

Queridos amigos,

Entrei na loja daquele vendedor de livros em segunda mão, imaginem, à procura de uma certa história de África, nisto vi várias pilhas de livros com a indicação de dois euros e meio cada. Sentei-me num banquinho, é habito de pesquisador, sem esperanças prévias, se coisa boa aparecer é dádiva dos céus. E dádiva houve, uma das primeiras edições deste terrível 
"Conhecimento do Inferno", li-o com um misto de prazer e de náusea, nunca fui curioso da doença mental, neste romance é fantasia que não se esgota.

Trata-se de um simulacro de viagem de um médico que regressa à casa dos pais, é mais uma peregrinação que uma viagem, peregrinação à guerra em Angola, às coisas da infância, inapagáveis.
Ao findar esta trilogia de obras que abarcam uma vida de médico que teve infância, que amou perdidamente e tudo se esvaiu, volta-se à guerra e fica-se com a ideia de que tudo aquilo se passou é uma dor no limbo, um compasso de espera em que os atores estão adormecidos a aguardar sinal para a última viagem. Escrevi um dia que esta literatura de guerra se finará só quando o último combatente exalar o suspiro derradeiro. Até lá, é certo e seguro, podemos esperar grandes surpresas como este "Conhecimento do Inferno".

Um abraço do
Mário


"Conhecimento do Inferno", por António Lobo Antunes

Beja Santos

“Memória de Elefante”, “Os Cus de Judas” e “Conhecimento do Inferno” aparecem como uma trilogia, a primeira grande viagem de um escritor à volta de amores perdidos, das recordações familiares, da vivência de um tenente-médico na guerra colonial e a experiência do psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda, um antes, um durante e um depois, rememorados em puzzle, em pungentes monólogos, em viagens aturdidas, numa duríssima crítica a certa prática psiquiátrica: mesmo no inferno dos loucos, a África da guerra colonial é omnipresente, é termo de comparação, é sempre um grito de revolta.

O autor, neste ciclo da sua vida, aparecia acampado em Angola. Logo uma descrição do país dos Luchazes, no arranque de “Conhecimento do Inferno”:

“O país dos Luchazes é um planalto vermelho, mil e duzentos metros acima do mar, em que o pó cor de tijolo atravessa a roupa para nos aderir à pele, se nos enredar nos cabelos, nos obstruir as narinas do seu odor da terra, próximo do odor ácido e seco dos mortos. O país dos Luchazes, quase despovoado de árvores, é um país de leprosos e trevas, um país de vultos inquietos, de rumorosos fantasmas, de gigantescas borboletas emergindo dos seus casulos do escuro para cambalearem, em busca das lâmpadas. É o país onde os defuntos assistem sentados aos batuques. É um país magro de mandioca e de caça”.

A guerra está muito próximo, é incontornável entre o presente e o futuro:

“Em 1973, eu regressei da guerra e sabia de feridos, do latir de gemidos na picada, de explosões, de tiros, de minas, de ventres esquartejados pela explosão das armadilhas, sabia de prisioneiros e de bebés assassinados, sabia do sangue derramado e da saudade, mas fora-me poupado o conhecimento do inferno”.

Dentro da carpintaria do romance, tudo se passa ao volante numa viagem entre o Algarve e a Praia das Maças. É nesta longa e tortuosa deambulação que vamos enfrentar o local onde funciona o inferno dos loucos:

“O Hospital Miguel Bombarda, ex-convento, ex-colégio militar, ex-Manicómio Rilhafoles do Marechal Saldanha, é um velho edifício decrépito perto do Campo Santana, das árvores escuras e dos cisnes de plástico do Campo Santana, perto do casarão húmido da Morgue, onde, em estudante, retalhara ventres em mesas de pedra num nojo imenso”.

A memória viaja em ziguezague, há um recuo até ao tempo em que num Alentejo de calor insuportável, o médico veio examinar os mancebos apresentados nas sortes, isto passava-se num ginásio, em que desfilavam os ditos mancebos “que o Exército convocara, arregimentara para defenderem em África os fazendeiros do café, as prostitutas e os negociantes de explosivos, os que mandavam no país em nome de ideais confusos de opressão, sentado à secretária, desfilar em diante de mim os rapazes de Elvas no ginásio fechado, que o fedor das virilhas, do excesso de pessoas e das roupas abandonadas no chão empestava como o um de curro trágico e triste”.

Há como que um remoço permanente para este ofício de médico-psiquiatra obrigado, de acordo com o diagnóstico, enjaular certos pacientes:

“Crescia em mim uma espécie de vergonha, ou de aflição, ou de remorso, sempre que preenchia um boletim de internamento e aferrolhava no manicómio as íris surpreendidas e tímidas que me fitavam. Ninguém tem culpa e eu preciso de comer, obtive este emprego do Estado, procedi a exames, concursos, testes de cruzinhas, provas públicas, pago renda de casa e justifico os vinte contos que ganho aprisionando pessoas no asilo, escutando desatento as suas inquietações e as suas queixas”.
Em dado passo, ouvimos psicanalistas conversarem entre si, falam no seio materno, na pré-genitalidade, no desejo consciente de união com a mãe, mamilo ameaçador, a fúria do escritor não tem limites, não sei se alguma vez alguém desancou nestes profissionais de saúde como o faz Lobo Antunes:

“De todos os médicos que conheci, os psicanalistas, congregação de padres laicos com bíblia, ofícios e fiéis, formam a mais sinistra, a mais ridícula, mais doentia das espécies. Enquanto os psiquiatras da pílula são pessoas simples, sem veredas, meros carrascos ingénuos reduzidos à guilhotina esquemática do eletrochoque, os outros surgem armados de uma religião complexa com divãs por altares, uma religião rigidamente hierarquizada, com os seus cardeais, os seus bispos, os seus cónegos, os seus seminaristas já precocemente graves e velhos, ensaiando nos conventos dos institutos um latim canhestro de aprendizes”.

É neste fundo dos fundos, a dar consultas ou a visitar enfermarias que o assaltam recordações devastadoras, as passadas em África:

“Recebeu o estetoscópio do enfermeiro, introduziu as olivas nos ouvidos, experimentou o diafragma raspando-o com a unha do indicador, e ao aplica-lo no peito do doente veio-lhe de súbito à memória o dia 13 de Outubro de 1972, em Marimba, na Baixa do Cassanje, Angola, quando os oficiais empurraram os três negros para o posto de socorros e os obrigaram a estender-se no chão. Eram os três negros que roubavam a roupa, o dinheiro, os objetos pessoais dos alferes ao longo desse comprido segundo ano de guerra. Os relâmpagos estalavam de contínuo num fedor acre de enxofre. Os três negros levavam porrada desde há horas por roubarem a roupa, o dinheiro, os objetos pessoais dos alferes, murros, chibatadas, insultos da companhia inteira, exausta por muitos meses de guerra, dos soldados a quem se haviam tirados as armas para que se não assassinassem uns aos outros na caserna, depois das últimas cervejas. Faltava dinheiro, faltavam calças, faltavam camisas, apodrecíamos de parasitas, de paludismo, de água choca, de medo, e os três negros, com as feições irreconhecíveis pelos inchaços das pauladas, eram os culpados dos tiros, da angústia, da estupidez da guerra, e como tal desatamos a deixar tombar sobre os seus peitos, sobre os ventres, sobre as coxas, pontas acesas de cigarro, fósforo a arder, morrões de cinza, que pregueavam a pele de bolhas translúcidas que se elevavam e estalavam”.

Quando a viagem caminha para o fim, outra memória traiçoeira o assalta, desta vez o quartel de Mangando:

“- Porque é que as pessoas se matam? – perguntou o alferes.

Estávamos no quartel de Mangando, junto à fronteira com o Congo: mais alguns quilómetros e via-se sobre o rio o acampamento do MPLA do outro lado. Mangando é uma pequena povoação sem importância, tão sem importância que nenhum mapa, nenhuma carta a refere, composta por uma sanzala miserável, um renque de palmeiras desdentadas e calvas, a casa onde o chefe de posto escondia a sua amante negra, e o círculo de arame farpado em torno das barracas de madeira da tropa, onde um pelotão seminu, trémulo de sezões, apodrecia. Eram cinco horas da manhã e o suicida acabara de morrer depois de muitas e desesperadas convulsões diante dos nossos olhos espantados. O suicida acabara de morrer e jazia, tapado com um lençol, num cubículo vizinho”.

Mas havia mais lugares de desespero naquela latitude de Angola, como ele recorda:

“Eu conhecia o Mussuma, a dez quilómetros da Zâmbia. Fora lá muitas vezes, de avioneta, levar comida fresca e medicamentos a um grupo de homens maltrapilhos, de espingarda, metidos num buraco como ratos. De longe, os telhados de zinco cintilavam ao sol: era uma cova de caixão do tamanho de um corpo inerte, de um corpo fatigado. Entrava-se no arame e a boca enchia-se de terra como a dos defuntos, que se mastigam a si próprios no silêncio de mogno dos caixões”.

É uma das recordações mais dramáticas e mais pungentes, à volta de um suicídio de quem não se conhecem os porquês. É assim o espanto da vida, da profissão de médico, dos sulcos vincados que perduram no ex-combatente, que perduram até no conhecimento do inferno.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16801: Notas de leitura (908): “Ten General Alípio Tomé Pinto, O Capitão do Quadrado”, pela jornalista Sarah Adamopoulos e pelo biografado, Editora: Ler Devagar, 2016 (Mário Beja Santos)

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