sábado, 13 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16385: Manuscrito(s) (Luís Graça) (89): O exército de reserva de mão de obra infantil...


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > O Umaru Baldé, soldado da CCAÇ 12 (1969/71)... Depois da independência, veio para Portugal. Morreu há uns anos, de doença... Vários antigos camaradas, tugas, ajudaram-no a sobreviver... Dizem-me que trabalhou na construção civil...

Para mim, que o cheguei a comandar, várias vezes, em operações, era uma criança na guerra... Não teria mais do que 16 anos quando fez a recruta e a especialidade (em Contuboel, nç 1º semestre de 1969)... Um belo efebo, com o seu inseparável cachimbo... Dizia-se, erradamente, que era filho do régulo de Badora, Mamadu Bonco Sanhá, tenente de 2ª linha... Era um bravo combatente e um temível apontador de Mort 60. Fula, pertencia ao 4º Gr Comb, 2ª Secção (comandada pelo nosso querido camarigo António Fernando R. Marques). (LG)

Foto: © Benjamim Durães (2010) /Blogue Luís Graça & Camaradas daa Guiné. Todos os direitos reservados



1. Ainda hoje me interrogo como foi possível as nossas autoridadesa (administrativas e militares) deixarem alistar nas nossas fileiras "crianças" como o Umaru Baldé (*)... 

Ninguém, ao que eu saiba, se indignou com o facto, em 1969, em Contuboel no Centro de Instrução Militar de Contuboel, onde fizeram a recruta e tiraram a especialidade pelo menos 200 mancebos guineenses que foram formar mais tarde a CCAÇ 11 e a CCAÇ 12...

Os guineenses não tinham "certidão de nascimento", é a desculpa que te davam... Dezasseis anos, o Umaru ? Era o que toda a gente achava que ele tinha... Mas havia mais "putos", menores, que não tinham idade para ir para a tropa, muito menos para a guerra... E, no entanto, passaram todos os "testes"... E tipos muito mais velhos, com idade de serem pais destes "putos"...

Como foi possível um médico metropolitano (se calhar nem houve inspeção médica!), para não falar no resto dos "burocratas" da junta médica,  que deu o Umaru e outros putos, fulas dos regulados de Badora e do Cossé, como "aptos para todo o serviço militar"!... Que importava, se eram todos "voluntários" (?), e sobretudo  "carne para canhão" ?


O recruta Umaru Baldé, Contuboel, 1969.
Foto de Valdemar Queiroz  (2014)
Eu sei que hoje temos "outra sensibilidade" para os problemas das crianças e adolescentes, o trabalho infantil, o abuso de menores, a pedofilia... Na época, na metrópole, as crianças começavam a trabalhar cedo, nos campos, nas fábricas do calçado, vestuário e têxtil... mas, bolas, as Forças Armadas Portuguesas tinham valores, tinham pudor, e cumpriam a lei... Tanto quanto julgo saber os voluntários da Força Aérea tinham que ter, no mínimo, 18 anos (?)...

O Umaru Baldé e outros putos da CCAÇ 12 teriam (?) 16 anos!... O Capitão Inf QP, formado na Academia Militar (ou melhor, Escola do Exército, que a antecedeu a Academia Militar), católico, Carlos Machado Brito, comandante da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, e os 3 sargentos QP,  o com-chefe gen Spínola, bolas, e todos nós, oficiais e sargentos milicianos da CCAÇ 12, aceitámos esse facto como algo de "muito natural"... "Na Guiné faz como os guineenses", que isto não é a tua terra, nem são os teus usos e costumes...

Que profundo cinismo, que degradação dos nossos valores, humanos, portugueses, cristãos... Não me consola saber que, do lado do PAIGC e do grande lider revolucionário africano Amílcar Cabral, que se dizia ser tão português como os melhores portugueses (!), também não havia quaisquer pruridos em põr nas mãos de um criança uma Kalash!...

Quando comecei a viajar pelo norte de Portugal, a partir do "verão quente" de 1975, ainda era vulgar ouvir, da boca dos adultos, a justificação (ideológica) do trabalho infantil: "O trabalho do menino é pouco, mas quem não o aproveita é louco".... Spínola e Amílcar Cabral deviam conhecer bem o provérbio popular...

Só mais tarde, ao fazer um estudo de sociologia rural, é que percebi (melhor) que, no norte dos camponeses e rendeiros pobres, pai era "pai e patrão"... e que a família camponesa era, antes de mais, uma unidade económica, uma empresa...

Bom fim de semana, camaradas, de norte a sul do país, e se possível sem os fogos florestais que nos tiram o sono e estão a dar cabo do que resta da nossa terra... (Ouvi há dias um senhor professor catedrático de geografia lá do norte dizer, ex-cathedra, na televisão, que o nosso problema era ter terra a mais...Sugiro que a vendam aos chineses, que têm terra a menos...). (**)

PS1 - Tiro o quico aos nossos bravos "soldados da paz", e sou solidário com todos as vítimas destes brutais fogos de agosto de 2016.

PS2 - Segundo o meu querido amigo, camarada e vítima de infortúnio António Fernando Marques,  o Umaru Baldé chegou a Portugal a 15 de abril de 1999 e aqui viveu e trabalhou até falecer,  por doença, "indo só à Guiné em 2001, para estar algum tempo com a família". O António correspondeu-se muito com ele , e outros camaradas guineenses da CCAÇ 12 (como o José Carlos Suleimane Baldé), nomeadamente entre 1971 e 1973.  Gostaria de ter tempo para um dia poder ler e analisar essa correspondência que o António tem em arquivo e que já manifestou interesse e vontade em pôr à minha disposição.

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sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16384: Blogoterapia (279): A odisseia da minha prótese (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), com data de 11 de Agosto de 2016, relatando a sua experiência de ser submetido a uma artroscopia da anca, que lhe vai proporcionar dias mais confortáveis, temos a certeza.


A odisseia da minha prótese

Fugi dela como o diabo foge da cruz, durante uns dez anos. Meu medo era poder ir parar a uma cadeira de rodas. Estou a vê-lo: "você tem esta anca destroçada"... me disse o médico ao ver a radiografia, com aquela frontalidade estranha que caracteriza a classe, ao dar a má notícia aos seus doentes...

As dores já eram muitas. - alternativa à operação? - perguntei. - ir aguentando com comprimidos. Basta um de 50mg por dia. Mas o fígado...

E assim fiquei todo este tempo, em queda lenta. Voltaren foi a minha prótese. Até que, um dia, o testemunho duma pessoa amiga me abriu o caminho e empurrou para a frente. Fora um bom médico que o libertou e repôs normal.

Fui consultá-lo. E voltei lá com uma radiografia. - oh! como isto está!... Quando quer ser operado? Uns exames e vamos pôr uma prótese. - pois sim. Só que tenho de voltar para a Alemanha e permanecer lá uns três meses. Estávamos em Março. - bom. Vamos esperar por Agosto. Quando eu vier de férias.

Assim foi. Nova consulta de preparação. Novos exames. - quando quer ser operado? - perguntou. - já!- respondi. Olhou-me fixo. Quer ser amanhã? Surgiu uma vaga. - Eh pa!... E quando voltará a ser possível? - só em Outubro. - então é já.

Minha mulher que me esperava, muito programática nos seus planos, cá fora no carro, com a canita ao sol, ar condicionado ligado, ficou desorientada. Mas rendeu-se. - então, vamos fazer por o operar amanhã, pelas 19 horas. Venha às 16 horas.

E assim foi. Pouco depois estava a entrar no meu quarto, voltado para o Tejo. Muito agradável. Vesti uma opa branca sobre o corpo nu. Pelas 18h e 30m chegou a equipa para me levar para a "forca".

Corredores e mais corredores, para a esquerda e para a direita. Por aquele cenário de camas e cadeiras espalhados, muito animadores. Sentia-me calmo e seguro.

Finalmente, aquela sala cheia de luzes no tecto. Transferiram-me para a mesa da operação. Um a um se me apresentaram os artífices da patifaria que me iam fazer... - eu sou o anestesista. um rapazote, com barba rala, olhos azulados e cabelos quase rapados, já com abertas. Depois as enfermeiras. Joviais. Muito descontraídas irradiando simpatia. - que tempo irá durar?- perguntei - umas duas horas. Passam depressa. Nem vai dar fé. Uma epidural. Só sente da cintura para cima. E um comprimido para adormecer.

Daí a pouco, ouvi a voz grave do médico operador. - Bem disposto? perguntou. - Estou tranquilo. Faça como se fosse ao seu pai. Ele sorriu. Ajeitaram-me o corpo para a melhor posição e passei-me, calmamente, para o outro lado.

Quando acordei, senti marteladas fortes, no meu osso da perna, como um pedreiro a abrir um furo numa laje de pedra. - que é isto? Dor não sentia... Só tinha de contrariar as pancadas. - pronto, já está!... me disse o médico, sorridente, levantando o lençol que me cobria a cabeça. Nem precisou de sangue alheio!... - agora vai para os cuidados intensivos, por precaução e depois, para o seu quarto. - Sim, senhor.

Artroscopia da Anca
Foto: The Porto Hip Unit - Unidade da Anca, com a devida vénia

De novo a cama de rodas e aí vou. Um salão amplo. Várias camas com recém-operados, separadas, lado a lado, por cortinas. À frente a legião de pessoal, enfermeiro e não, atendendo, registando e controlando quem chegava e saía, conforme as instruções médicas. Curvo-me perante a abnegação heróica e dedicação, com que estes iguais atendem os indefesos. Horas e horas sem fim, dia e noite. Só gente nova. Só com um clima de boa disposição a dominar aquele ambiente se pode aguentar. Tudo ouvi. Porque dormir não havia meio.

Só pelas 18 horas do dia seguinte entrei no quarto. Não o mesmo. Tinha ido à vida para outro. Receei perder as vistas. Mas não. Foi-me atribuído um semelhante.

Lentamente as pernas foram acordando da forçada hibernação. Tudo me era impossível de alcançar por mim. Fiquei reduzido ao zero. Que maravilha ver como aquelas enfermeiras nos cuidavam! Minha alma rejubilava por constatar que, afinal, neste mundo cruel há muito bem em acção...

No 5.º dia, o médico, sem qualquer dúvida, deu-me alta. Os resultados estavam todos muito positivos.

E aqui estou em casa. Canadianas. Subindo e descendo escadas, já com vontade de carregar no pedal do meu carro que ali me espera saudoso.

Mafra, 11 de Agosto de 2016
14h11m
Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16263: Blogoterapia (278): A minha casa (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381)

Guiné 63/74 - P16383: Notas de leitura (869): "Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
Quando surgiram "Memória de Elefante" e "Os Cus de Judas" houve a clara perceção de que se tratava de uma nova arremetida literária. Primeiro, a autobiografia cáustica, mas também poética, os sofrimentos pelo amor perdido, a crítica acerada ao pindérico do funcionamento da instituição psiquiátrica: "A sala de consultas compunha-se de um armário em ruína roubado ao sótão de um ferro-velho desiludido, de dois ou três maples precários com o forro a surgir dos rasgões dos assentos com cabelos por buracos de boina, de uma marquesa contemporânea da época heróica e tísica do Dr. Sousa Martins".
É no seu romance de estreia que Lobo Antunes convoca recordações da sua vivência angolana e testemunha com irrecusável frontalidade o que pensa sobre guerra que travámos em África.

Um abraço do
Mário


"Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes

Beja Santos

“Memória de Elefante” é o primeiro romance de António Lobo Antunes, obra marcadamente autobiográfica, temos aqui o olhar do psiquiatra pelos seus doentes, pela instituição onde trabalha, acompanhamos o seu sofrimento no processo da sua separação conjugal. Obra por vezes dilacerante, acompanhamos uma quase via-sacra de quem anda ao abandono à procura de pistas para o futuro, e depois de muitas ínvias incursões e deambulações culminará num processo da redescoberta, numa autêntica profissão de fé, assim: “Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas”.

Será na obra seguinte “Os Cus de Judas”, também publicado no final da década de 1970, que Lobo Antunes revelará, com absoluta crueza, e com aspetos pícaros e burlescos, a sua experiência como médico em Angola. A seu tempo, procuraremos glosar o fundamental deste romance, agora é só para destacar as referências que ele faz à guerra em “Memória de Elefante”.

Tudo começa com uma conversa entre colegas, um médico pergunta-lhe se ele se vê a comer à mesa com um carpinteiro, ele responde: “Porque não?”, o que desaustina o outro, que o apoda de anarquista, de marginal, de alguém que aprova a entrega do Ultramar aos pretos. Segue-se uma tremenda catilinária de Lobo Antunes:  
“Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro, padeira de Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos indignados prometendo reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este caramelo de 50 anos da guerra de África onde não morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no ânus dos negros que lhes desagradavam, que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razão, que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas grávias espancadas pela Pide, das minas a florirem sob as rodas da camionetas em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão, do desespero? Com sempre que se recordava de Angola um roldão de lembranças em desordem subiu-lhe das tripas à cabeça na veemência das lágrimas contidas: o nascimento da filha mais velha silabado pela rádio para o destacamento onde se achava, primeira maçãzinha de oiro do seu esperma, longas vigílias na enfermaria improvisada debruçado para a agonia dos feridos, saíra exausto a porta deixando o furriel acabar de coser os tecidos e encontrar cá fora uma repentina amplidão de estrelas desconhecidas, com a sua voz a repetir-lhe dentro – Este não é o meu país, este não é o meu país, este não é o meu país, a chegada às quartas-feiras do avião do correio e da comida fresca, a subtil e infinitamente sábia paciência dos luchazes, o suor do paludismo a vestir os rins de cintas de humidade pegajosa, a mulher vinda de Lisboa com o bebé de surpreendentes íris verdes para viajar com ele para o mato, sua boca quase mulata a sorrir comestível na almofada (…) durante vinte sete meses morei na angústia do arame-farpado por conta das multinacionais, vi a minha mulher a quase morrer do falciparum, assistir ao vagaroso fluir do Dondo, fiz uma filha na Malanje dos diamantes, contornei os morros nus de Dala-Samba povoados no topo pelos tufos de palmeiras dos túmulos dos reis Gingas, parti e regressei com a casca de um uniforme imposta no corpo, que sei eu de África?”.

E o romance segue o seu curso, Angola agora está longe, a memória deambula pela infância, mas a vivência angolana, o profundo afeto reacende-se, fulminante:
“Como em África, pensou ele, exatamente como em África, aguardando a chegada miraculosa do crepúsculo do jango da Marimba, enquanto as nuvens escureciam o Cambo e a Baixa do Cassanje se povoava do eco dos trovões. A chegada do crepúsculo e a do correio que a coluna trazia, as tuas compridas cartas húmidas de amor. Tu doente em Luanda, a miúda longe de ambos, e o soldado que se suicidou em Mangando, deitou-se na camarata, encostou a arma ao queixo, disse Boa-noite e havia pedações de dentes e de osso cravados no zinco do teto, manchas de sangue, carne, cartilagens, a metade inferior da cara transformada num buraco horrível, agonizou quatro horas em sobressaltos de rã, estendido na marquesa da enfermaria, o cabo segurava o petromax que lançava nas paredes grandes sombras confusas. Mangando e os latidos dos cabíris nas trevas, cães esqueléticos de orelhas de morcego, madrugadas de estrelas desconhecidas, a soba de Dala e os seus gémeos doentes, o povo para a consulta nos degraus do posto a tiritar paludismo, picadas destruídas pela violência da chuva. Uma ocasião estávamos sentados a seguir ao almoço perto do arame, naquela espécie de lápide funerária com os escudos dos batalhões pintados, e eis que surgiu na estrada da Chiquita um espampanante carro americano coberto de pó com um senhor careca dentro, um civil sozinho, nem Pide, nem administrativo, nem caçador nem brigada da lepra, mas um fotógrafo, um fotógrafo munido dessas máquinas de tripé das praias e das feiras, inverosímil de arcaica, propondo-se tirar o retrato a todos, isolados ou em grupo, presentes para enviar carta à família, recordações da guerra, sorrisos desbotadas do exílio. Não havia comida para bebés em Malanje e a nossa filha tornou a Portugal magra e pálida, com a cor amarelada dos brancos em Angola, ferrugenta de febre, um ano a dormir em cama de bordão de palmeira junto das nossas camas de quartel, estava a fazer uma autópsia ao ar livre, por via do cheiro quando me chamaram porque desmaiaras, encontrei-te exausta numa cadeira feita de tábuas de barrica, fechei a porta, acocorei-me a chorar ao pé de ti repetindo Até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, certo da certeza de que nada nos podia separar, como uma onda para a praia na tua direção vai o meu corpo, exclamou o Neruda e era assim connosco, e é assim comigo só que não sou capaz de to dizer ou digo-to se não estás, digo-to sozinho tonto do amor que te tenho, demais nos ferimos, nos magoámos, nos tentámos matar dentro de cada um, e apesar disso, subterrânea e imensa, a onda continua e como para a praia na tua direção o trigo do meu corpo se inclina, espigas de dedos que te buscam, tentam tocar-te, se prendem na tua pele com força de unhas, as tuas pernas estreitas apertam-me a cintura, subo a escada, bato ao trinco, entro, o colchão conhece ainda o jeito do meu sonho, penduro a roupa na cadeira, como uma onda para a praia, como uma onda para a praia, como uma onda para a praia, na tua direção vai o meu corpo”.

Tratava-se de uma escrita que anunciava uma rutura em formas e conteúdos, como se veio a comprovar nas dezenas de livros que se seguiram a esta auspiciosa estreia.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...

Guiné 63/74 - P16382: Álbum fotográfico de Fernando Andrade Sousa (ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 12, 1969/71) - Parte III: Lembrando, com saudade, o "puto" Umaru Baldé


Foto nº 1 A


 Foto nº 1


Foto nº 2

Fotos: © Fernando Andrade Sousa (2016). Todos os direitos reservados.



1. Continuação da publicação do álbum de Fernando Andadrade Sousa que foi 1º cabo aux enf, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, entre maio de 1969 e março de 1971), e mora na Trofa. Era seu superior hieráquico o fur mil enf João Carreiro Martins, membro, também ele, da nossa Tabanca Grande.

Na foto nº 1  vê-se o Fernando, ao meio, com dois antigos camaradas guineenses da CCAÇ 12. O mais alto era então o Umaru Baldé, o "nosso puto" Umaru que se terá alistado (e foi aceite) no exército portuiguês com... 16 anos. (Teria, portanto, nascido por volta de 1953), Na altura era ainda um adolescente, com menos  um metro e setentes... Aqui em Resende, em 1999 /(num dos convívios do pessoal de Bambadinca, de 1968/71),  e já 46 anos....parece ter mais de um metro e noventa...
O outro camarada não é possível identificá-lo. 

Na foto nº 2, vê-se o Fernando (em véspera de ir passar umas férias à Tunísia...) mais o Umaru Baldé, já doente, no Hospital do Barro, nas imediações de Torres Vedras, em agosto de 2007. se não erro. Foi a última vez que o Fernando esteve com ele.

O Umaru, que vivia na Amadora, em situação de pobreza, morreu no "terminal da morte" dos doentes de HIV/Sida e tuberculose que era então o hospital do Barro... Alguns camaradas da CCAÇ 12 ajudaram-no em vida. (O antigo sanatório do Barro, depois Hospital, integrado no Centro Hospitalar Oeste, foi recentemente encerrado).



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno, Sori e Umarau (que irão depois para a CCAÇ 2590/CCAÇ 12).

Foto: © Valdemar Queiroz  (2014). Todos os direitos reservados.


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Regulado do Cuor > Finete > 1969 > CCAÇ 12 (1969/71) > Eu, Henriques, a comandar interinamente uma das secções do 4º Gr Comb, a aqui na foto com o 1º cabo José Carlos Suleimane Baldé e o sold Umaru Baldé, excelente e espetacular apontador de morteiro 60, da 2ª secção.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > O Umaru Baldé, soldado da CCAÇ 12 (1969/71)... Depois da independência, veio para Portugal. Morreu há uns anos, de doença... Vários antigos camaradas, tugas, ajudaram-no a sobreviver... Dizem-me que trabalhou na construção civil...

Para mim, que o cheguei a comandar, várias vezes, em operações, era uma criança na guerra... Não teria mais do que 16 anos quando fez a recruta e a especialidade (em Contuboel, 1º semestre de 1969)... Um belo efebo, com o seu inseparável cachimbo... Dizia-se, erradamente,  que era filho do régulo de Badora, Mamadu Bonco Sanhá, tenente de 2ª linha... Era um bravo combatente e um temível apontador de Mort 60. Fula, pertencia ao 4º Gr Comb, 2ª Secção (comandada pelo nosso querido camarigo António Fernando R. Marques).

Foto: © Benjamim Durães (2010) /Blogue Luís Graça & Camaradas daa Guiné. Todos os direitos reservados

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho

1. Deliciosa história de amor, enviada pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com todos os ingredientes: amores, desamores, violência conjugal e o inevitável perdão.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

4 - Nunca na vida te deixarei sozinho

Nunca na vida te deixarei sozinho, disse a Isabel ao seu marido joãozinho, na véspera de meter outro homem na sua cama.

A Isabel não andou na Faculdade, para assim falar tão bem nas traseiras do sentimento, mas foi criada de servir em Bissau, o que, numa aldeia do mato, era um curso superior. Isabel era uma mulher muito bonita, daquelas que são sempre futuro, ainda que a pele se engelhe. As suas formas afeiçoavam-se aos olhos, mais despindo a existência do que o corpo. Uma espécie de mulher à flor da pele, bem calculada por dentro. Mulheres paridas de si mesmas, sem vida nos outros. Mulheres de além-desejo, voo de ave, caminhando fora dos passos. Isabel, o torvelinho das tonturas do Joãozinho.

Joãozinho, servente da messe, sabia a mulher que tinha e todo se babava quando a gente dizia que ela era mais linda que surucucu empinada, mais pura que fruto de caju. Todo ele era uma viagem por dentro da Isabel, adivinhando-lhe o mundo no contar das coisas. Manhã levantada era sol de todo o dia, noite deitada era sonho que não morria.

Um dia…

Encontrava-me eu frente à palhota da Isabel, limpando com uma compressa embebida em permanganato de potássio, as feridas do dorso das vacas, verdadeiros buracos abertos pelos estilhaços das granadas e pelos pássaros pica-sangue, impiedoso tormento dos animais, quando ouvi atrás de mim uma voz de asas, leve de tempo, onde não havia destino, medida por lonjuras de sonho.
- Sr. Doutor, Sr. Doutor.

Do peito me nasceu um soluço que só anos mais tarde se escapou.
- Olá Isabel, que bela surpresa!
- Doutor, tenho galinha que consegui arranjar e vou fazer frango à cafreal para Doutor e nosso Capitão.
- Isabel, tu és um anjo, e nosso capitão, todo católico, vai pensar que é dádiva do céu, quando eu lhe contar.

Todos somos fingimento quando o sangue não se entorna no desaconchego da solidão. O provisório serve o regresso da alma, o fogo de outros calores invade os olhos através de janelas que há muito se não abriam. O capitão não mediu a fome nem a galinha, esqueceu a comunhão do Padre Gama, sonhou o despir da Isabel até à nudez pecaminosa e espetou os olhos no cair da noite.

Ao cair da noite, lá fomos os dois à palhota da Isabel, enquanto o Joãozinho lavava a loiça na messe. A Isabel estava no último acto da confecção do delicioso cafreal da tabanca. Primeiramente refogado, apenas em sumo de limão e piri-piri, depois grelhado na brasa e em seguida frito com cebola.
Notei que os olhos do capitão se cruzavam constantemente com os meus, não na galinha mas nas ancas da Isabel. Seguiam a luz sensual do petromax, que penetrava abusivamente na malha de tule até às roupas que vinham de dentro. Senhora de reflexos e de encontros, Isabel não prestava menos atenção à sedução do que à galinha.

- Doutor, nosso Capitão, tenho gira-disco e morna, mim dançar para doutor e nosso capitão.

Não nos empenhámos em perceber como é que uma pequena caixa e um disco de madeira giravam música. O esvoaçar do tule era o centro do mundo, o arder da fogueira de todo o nosso frio. Toda a força daquele colo maternal, toda a ternura da silhueta envolta em cabelos penosamente desfrisados durante longos anos, toda a firmeza das carnes subtis, todo o trigo desse abrigo adormecido, toda a tempestade recolhida nesse pedaço de noite tombaram sobre nós quando a Isabel iniciou o strip-tease.

Não me lembro do sabor da galinha. Recordo apenas uma espécie de vento fustigando as entranhas, reduzindo-me a um calção e uma camisa, ardendo dentro de mim com sabor a cinza.
Olhámos um para o outro, sorrimos, assumindo o que sempre estivera assumido, antes de darmos ao espírito a momentânea liberdade de um passeio pelo sonho que morre ao pé dos coqueiros.

Aconteceu nessa noite ou na noite seguinte. O Joãozinho entrou em casa e deu com alguém a fugir da cama da Isabel. Pobre do Joãozinho, sofreu mais com a sova que deu na mulher do que com a traição. Sofreu mais pelo avesso do que ela dissera na véspera, nunca na vida te deixarei sozinho, do que em todas as noites que passara enterrado na bolanha à espera de turra.
Doeu muito mais do que picada de escorpião.

Isabel apresentou queixa no Chefe de Posto. Argumentava e provava com as equimoses, dificilmente visíveis na sua pele de negra. Dolorosas como as equimoses em pele de branca. Afastara bondades de Joãozinho, denegrindo sua violência, grande de mais para coisa de momento. Não ser vontade de ela, mas força de imaginação que vem de dentro. Destino de todo fogo que acende rápido.

Foi constituído o tribunal. Perante o Chefe de Posto, Capitão e eu, compareceram queixosa e réu. O Joãozinho estava disposto a perdoar, a despeito de um sonoro desabafo, bengala de toda a sua alma, letra de toda a sua filosofia, resguardo de toda a sua defesa.
- Boca de ela ser boca de mim, olho de ela ser olho de eu ver, dor de ela corpo de mim qui dói, vida de ela valer morte de mim, mim ca pude pensar que Zabel durme cum gajo na cama de mim, dibaxo di memo tecto… inda si foi sinhô dôtô ou nosso capeton…!

NOTA: O capitão, personagem desta história, foi o capitão Brito e Faro, grande amigo, residente no Porto, há pouco tempo falecido.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (3): Os prisioneiros

Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...


Guiné > Região controlada pelo PAIGC, possivelmente no sul > Visita de uma delegação escandinava às "regiões libertadas" > Novembro de 1970 > Foto nº 25 > Progressão, na savana arbustiva, por meio do capim alto, de um grupo de guerrilheiros. Presume-se que as colunas logísticas do PAIGC tivessem segurança por parte da milícia ou do exército populares...

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI. As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda. Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


Sexta parte, enviada a 7 do corrente, das "notas de leitura"  (*) coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue,


1. INTRODUÇÃO

Caros tertulianos: no P16357 (**) iniciámos a publicação da segunda de três entrevistas realizadas pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch a médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência.

Seguimos agora com a segunda de quatro partes em que o entrevistado continua a ser o dr. Amado Alfonso Delgado, médico de clínica geral mas com experiência em cirurgia. O seu depoimento global pode ser consultado no livro, escrito em castelhano, com o título «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. Disponível "on line"em formato pdf, numa versão de pré-publicação].

Nesta obra encontramos uma panóplia de outros relatos e experiências vividas exclusivamente por médicos cubanos em diferentes missões africanas como foram os casos passados na Argélia, no Congo Leopoldville, no Congo Brazzaville ou em Angola.

Porque se trata de uma tradução (com adaptação livre e fixação do texto em português, da minha responsabilidade), não farei juízos de valor sobre o conteúdo desta e das outras entrevistas: apenas coloquei entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento sócio-histórico ao que foi transmitido, com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos do nosso blogue.


Foto acima: O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


2.  O CASO DO MÉDICO AMADO ALFONSO DELGADO [II]

Sumariando as primeiras cinco questões abordadas pelo médico Amado Alfonso Delgado no poste anterior, é de relevar que foi por ter iniciado o Serviço Médico Rural em Realengo 18, em Guantánamo, e pela prática clínica desenvolvida no Hospital de Gran Tierra de Baracoa, para onde fora transferido em janeiro de 1967, que surge a oportunidade de cumprir uma "missão internacionalista", que ele desejava que fosse no Vietname mas que acabou por ter outro destino: a Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau).

Com vinte e sete anos de idade inicia a sua missão africana na véspera de Natal de 1967, na companhia de outro médico, voando de Havana até Conacri, com escala em Gander [Canadá], Praga, Paris e Senegal (, quase meia volta ao mundo!). Durante o primeiro trimestre de 1968 presta serviço médico no Hospital de Boké, na Guiné-Conacri (e uma das bases do PAIGC) na companhia de mais quatro clínicos cubanos: o cirurgião militar Almenares, um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X.

Em abril de 1968 segue para a frente Leste, substituindo o seu companheiro Daniel Salgado, na base de Kandiafra, por este se encontrar doente com uma forte crise palúdica. Nesta base encontravam-se vinte combatentes cubanos. Entre maio de 1968 e setembro de 1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal Ina região de Tombali) e Fiofioli [Sector L1 - Bambadinca], com destaque para esta última frente, onde pensou não sobreviver, tantas foram as dificuldades por que passou.

Eis o relato de outros apontamentos revelados pelo doutor Amado Alfonso Delgado tendo por base o guião da sua entrevista.

A entrevista tem com 25 questões. Hoje apresentamos a resposta (em itálico) às  questões de 6 a 11 com a devida vénia ao autor, conhecido jornalista cubano Hedelberto López Blanch (n. 1947).


“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” 
(Cap XI, pp. 136 e ss)


Entrevista com 25 questões [Parte 2 > da 6.ª à 11.ª]

(vi) Quando chegou 
à zona da guerrilha?

Em Conacri estive cerca de uma semana [em janeiro de 1968]. Levaram-me a uns armazéns do PAIGC e aí distribuíram-me roupas, dois pares de botas, arma, granadas e outras coisas. Os companheiros que iam deixar aquela terra africana perguntaram-me para onde ia com aquele carregamento, explicando-me que deveria levar ténis uma vez que era o mais adequado, pois que no interior da Guiné-Bissau iria ter de caminhar muito e quanto mais pesado pior. De qualquer modo, levei uma mochila bem carregada.

Num dia de semana fui transportado num camião que me levou, não sei durante quanto tempo, passando por várias aldeias até chegar a uma povoação de nome Boké, onde havia um hospital de rectaguarda do PAIGC, perto da fronteira com a Guiné-Bissau [, a sul]. Ali permaneci três meses [até meados de abril de 1968], na companhia de vários cubanos.

Aí conheci o [comandante] Victor Dreke (chefe da missão militar cubana) e o [tenente] Erasmo Vidiaux [Robles],  outro importante combatente cubano, quando ambos circulavam naquela zona. [Estes dois oficiais participaram, anteriormente, na missão cubana no Congo-Leopoldville (Belga), em 1965, comandada por Ernesto “Che” Guevara (1928-1967)].

Com permanência fixa em Boké, estavam [quatro técnicos de saúde]: o dr. Almenares (cirurgião militar de Santiago de Cuba que morreu alguns anos depois em Cuba com cancro da próstata), um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X. Eu ia como médico de clínica geral, mas como tinha experiência de cirurgia ajudei o Almenares em várias operações, particularmente feridos de guerra.

(vii) Porquê e quando lhe destinaram 
a zona de guerra?

Um dia disseram-me que teria de ir para a frente Leste, pois havia que substituir o médico [Daniel] Salgado (morreu em 2000 de um cancro no fígado),  que tinha contraído paludismo e não se sentia bem. Saí em abril de 1968 num camião e depois de várias horas chegámos à fronteira entre as duas Guinés. Cruzámos um rio e chegámos a um acampamento denominado Kandiafara. Aí estavam vinte cubanos e onde passei vários dias até que chegou a ordem para avançar.

Designaram vários guerrilheiros guineenses para me levarem a um determinado lugar. recordo que andámos durante sete ou oito dias, em etapas de muitas horas. Foi muito duro, nunca tinha caminhado tanto mas sentia-me bem. Iam também algumas raparigas guerrilheiras que de vezes em quando ajudavam no transporte dos meus bens, colocando a minha mochila às suas cabeças.

Num desses dias entrámos numa lagoa [ou bolanha?] e nela caminhámos durante horas. Não sei como o podiam fazer mas conheciam perfeitamente o itinerário e o terreno, e em várias situações a água chegava-nos ao peito. A lagoa estava cheia de sanguessugas,  aconselhando-me a amarrar bem as calças e a levantar os braços bem alto para que não entrassem. Numa porção de terra, cercada de água, parámos para descansar e onde passámos a noite. Tinha um capote grosso e através deste os mosquitos picavam-me. Tive de me tapar completamente com uma manta. Pela manhã voltámos à caminhada.


Mapa da região de Cumbijã, no sul,  com a posição relativa de Unal. Infogravura de António Murta


(viii) De que se alimentavam?

Durante este trajecto comemos pequenas quantidades de arroz e em duas ou três ocasiões parámos em aldeias [tabancas] onde nos deram um pouco de farinha e carne. Comíamos pouco e, por isso, nos fomos habituando. Depois não me preocupava em alimentar-me, o mesmo não aconteceu no princípio, quando passava fome.

Volvidos quatro dias entrámos num lugar que me disseram ser a Mata de Unal, muito perigosa e onde o tiroteio era abundante. A menos de um quilómetro as tropas portuguesas batiam a zona com a sua artilharia. 

Continuámos a marcha até chegar a um rio grande que tinha cerca de dois quilómetros de largura. Era a junção dos rios Corubal e Geba [Xime] que iam desaguar no Atlântico. Nesse braço de mar existiam tubarões [?], hipopótamos e crocodilos, onde me disseram para ter muito cuidado porque um homem que havia caído aí recentemente nunca mais apareceu.

Fizemo-lo em canoas de troncos de árvores e informaram-me de que deveria tirar tudo do corpo caso a embarcação se virasse. Às vezes as canoas [pirogas] levavam umas trinta pessoas. Tentei chegar à embarcação mas não pude, porque era de estatura baixa. Os nativos eram altos, experimentados e podiam/sabiam andar no lodo, mas eu ao quarto ou quinto dia me enterrei até aos joelhos e não podia continuar. Naquele momento tiveram que me puxar com o meu equipamento: a arma e mais três carregadores, e me levaram até à canoa. A travessia foi feita durante a noite, uma vez que aí não existiam lanchas de patrulhamento nem aviação para nos atacar.

Disseram-me, ainda, que ali havia um problema grave, mais perigoso que a tropa [portuguesa], que era o “macaréu”. No princípio não entendi e deduzi que fosse um animal, até que um dia vi o dito macaréu, que era uma maré que entrava e subia, não sei quantas vezes no dia. Uma onda de vários metros procedente do mar e se apanhasse algo pela frente era certo que o virava e o fazia desaparecer. Eles sabiam quando podiam passar.


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Xime > 1972 >  Imagem do “macaréu” no Rio Geba por onde circulou o dr. Alfonso Delgado no ano de 1969. Três anos depois, em 10 de agosto de 1972, a CART 3494 perdeu neste mesmo local, estupidamente, três elementos do seu contingente (faz quarenta e quatro anos): Abraão Moreira Rosa, da Póvoa de Varzim; Manuel Salgado Antunes, de Quimbres, Coimbra; e José Maria da Silva e Sousa, de São Tiago de Bougado, Santo Tirso (história deste naufrágio nos P10246, P13482 e P13493).


(ix) Como comunicava 
com eles?

Uma vez que os cubanos haviam chegado já há algum tempo, os guineenses tinham facilidade de aprender vários idiomas. Alguns deles falavam português, que era parecido com o espanhol, e ao fim de um mês eu já falava com eles. Durante a viagem de canoa, onde iam vinte guerrilheiros, seguia ainda outro cubano, que era um técnico de raio X, de apelido Pupo, e apesar de ser muito mais forte do que eu, era com dificuldade que resistia aquela caminhada.


(x) Nessa região encontrou-se 

com o médico que iria substituir?

Quando chegámos à outra margem [, direita, do Rio Corubal], encontrei um homem branco em calções, com gorro na cabeça e uma camisa. Olhou-me com alguma indiferença, perguntando-me: "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”. Perguntei-lhe porquê? Ao que me respondeu: “Tu verás como isto é”[No original: "¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses».]

Este homem era de facto Daniel Salgado, médico militar que também esteve na segunda Frente e a quem eu ia substituir. O que aconteceu depois foi que ele passou a ser o meu melhor amigo que tive e cuja amizade se prolongou em Cuba durante muitos anos até que faleceu. Como já sabia que eu vinha, preparou um macaco para o almoço. Ali esteve mais cinco dias até que partiu de regresso. Nesse lugar soube da existência de um hospitalito [enfermaria de colmo] na frente Leste, na região de Bafatá [Sector L1], que me disseram ser na Mata de Fiofioli [mapas abaixo].


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Localização da mata do Fiofioli, zona de floresta galeria, situada na margem direita do Rio Corubal, entre Mangai e Concodea Beafada [P9080].


O "hospital de campanha" ["hospitalito"] onde esteve o dr. Delgado foi destruído pelas NT no decurso da grande Op Lança Afiada, que envolveu mais de 1300 homens entre militares e carregdores civis: vd. poste de 3 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11665: Op Lança Afiada (Setor L1, Bambadinca, 8 a 19 de Março de 1969): III Parte: Dias D+4, D+5, D+6, D+7: Pânico entre os carregadores devido aos ataques de abelhas, muitas helievacuações por desidratação e esgotamento, muitas toneladas de arroz destruído, muitas centenas de animais apanhados e consumidos, várias grandes tabancas (como Mangai, Ponta Luís Dias e Fiofioli), escolas, dois hospitais de campanha e outras instalações queimadas...

Essa zona do hospitalito [enfermaria] tinha quatro palhotas: uma para os feridos, com dois pequenos bancos de madeira, duas camas construídas com estacas e palha por cima; a cozinha; o depósito de géneros e a do médico, que se encontrava um pouco mais distante. Estava situado na confluência de dois rios [Corubal + Buruntoni?] surgindo depois um grande espaço de terra que ia ter ao mar [?].

Era nessa ponta onde nos encontrávamos, num plano mais alto, bastante fechado e com muitos animais [seria entre a Ponta Luís Dias e a Ponta do Inglês? De referir que o destacamento da Ponta do Inglês foi desativado em 7/8 de outubro de 1968, com a evacuação do pelotão aí instalado da CART 1746, regressando este à sua Unidade aquartelada no Xime, comandada pelo nosso saudoso amigo e camarada ex-Cap Mil António Vaz (1936-2015). A decisão da sua evacuação é atribuída a António de Spínola (1910-1996), então Brigadeiro, contemplada no plano de redistribuição das NT no terreno, iniciado após a sua chegada, em maio de 1968, ao CTIG - P10009].

O responsável pelo hospitalito [enfermaria] era um cabo-verdiano, enfermeiro, ao qual lhe pedi autorização para caçar. Primeiro, disse-me que não se podia gastar munições, mas depois indicou-me que só o poderia fazer um pouco mais distante por forma a não sinalizar a sua posição.

Levantava-me às cinco da madrugada, cozinhava o arroz, que era o pequeno-almoço, e depois fazia a visita, pois quase sempre tinha algum ferido. Operava quando havia combates, uma vez que dava a ideia de ser uma guerra planificada. Aconteciam emboscadas pré-estabelecidas, onde estavam os guerrilheiros com mulheres e filhos. Eles tinham muitas vezes critérios rigorosos na guerra. Em certas ocasiões ficavam num acampamento, apesar do opositor [o inimigo] saber da sua localização, e quando este bombardeava morriam alguns.


(xi) Como tratava os guerrilheiros 
no mato?

As estações do ano na Guiné-Bissau são duas: a época seca [, de novembro a abril] e a da chuvas [,de maio a outubro]. Durante a época seca passavam meses [seis] e não caía uma gota de água, na outra, em determinadas ocasiões, a chuva caía durante dias. 

Os guerrilheiros faziam a sua vida normal, debaixo de água [à chuva], e pela noite reuniam-se à volta de uma fogueira para se aquecerem. Nesta época a vegetação crescia e tapava todo o hospitalito [enfermaria]. Era uma época má para a caça e a única que se conseguia apanhar era algum macaco, embora se considerasse ser uma época boa para a guerra, pois os aviões não nos detectavam.

As avionetas de reconhecimento [DO 27] passavam com frequência e quando o faziam várias vezes seguidas, mudávamos o acampamento, porque a seguir acontecia, quase sempre, um ataque. 

Por outro lado, a época seca era boa porque tínhamos abundante comida, muita carne, mas o opositor te atacava muito mais, bombardeando a partir dos helicópteros [Alouette III – Heli Canhão, de fabrico francês, utilizados pelas NT nos três TO (imagem abaixo]. 


DO 27

Heli canhão

Os helis desarmados  realizavam essencialmente operações de transporte geral, reconhecimento, heli-assaltos e evacuações sanitárias. Os armados, chamados de “helicanhões”, tinham o nome de código “Lobos Maus”, estavam equipados com canhão lateral Mauser MG-151/20 (20 mm). O artilheiro estava sentado de lado e disparava o canhão pela abertura do portão esquerdo. (http://neloolen-modelismo.no.comunidades.net/alouette-iii-52-anos-na-fap, com a devida vénia)].

Continua…
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 8 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16370: Notas de leitura (865): O ensino da literatura da Guiné nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16379; Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (47): todas as colonizações são más, até aquelas que os portugueses começaram... e outros, "brancos, amarelos e negros" estão continuando... E vivam os guaranis do Brasil que se recusam a ir aos Jogos Olímpicos do Rio 2016


 Capa de publicação conjunta do IBDE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e a FUNAI - Fundação Naciobnal do Índio, com dados sonbre o censo Demográfico de 2010. Disponível aqui em formato pdf


["O Censo Demográfico 2010 contabilizou a população indígena com base nas pessoas que se declararam indígenas no quesito cor ou raça e para os residentes em Terras Indígenas que não se declararam, mas se consideraram indígenas. O Censo 2010 revelou que, das 896 mil pessoas que se declaravam ou se consideravam indígenas, 572 mil ou 63,8 %, viviam na área rural e 517 mil, ou 57,5 %, moravam em Terras Indígenas oficialmente reconhecidas"].


Mensagem: António Rosinha  | Data: 9 de agosto de 2016 às 23:40

Assunto: Todas as colonizações são más, até aquelas que os portugueses começaram... e outros, "brancos, amarelos e negros" estão continuando,.,



Talvez as colonizações entre os povos, sejam inevitáveis, ontem hoje e  amanhã, talvez seja um "mal necessário", mas que são um mal isso são.

Os homens apenas deviam colonizar (dominar, explorar) terras  desabitadas, isto é, nunca dominar nem explorar ninguém,

Por exemplo, o caso daquilo que geograficamente é Portugal  Continental, que foi colonizado por Romanos, Mussulmanos e hoje nem se sabe que idiomas se falavam por aqui, não há direito que alguns homens  estranhos nos obriguem a ser igual a eles, na fé, na fala, no vestir,  no casar e no habitar, quando estamos na nossa terra e não na terra  deles e em que a própria cultura e história passada desaparece, isso tudo vai acontecer em imensos territórios colonizados onde também vai
desaparecer a história e a língua actual, apesar dos conhecimentos  técnicos modernos.

Colonizar é sempre um conflito entre quem o pratica e quem o suporta.

O caso da Guiné, é um exemplo (suave) daquilo em que África colonizada  se vem «metamorfoseando», com muitas inadaptações.

Embora a Guiné seja vítima do trauma da colonização e consequentemente  do trauma da descolonização e se lhe atribua internacionalmente uma  imagem de ingovernabilidade (Estado falhado) talvez haja países ainda  mais complicados em África e mesmo na América latina.

No caso da Guiné, houve a colonização portuguesa, seguida de uma  autêntica «reciclagem colonial» protagonizada por inúmeros países, com  especial protagonismo da Suécia e União Soviética, até estes  desistirem e sobressaírem outros países e organismos vários não  governamentais com o mesmo entusiasmo a "ajudar" na reciclagem  colonial, mas com outros nomes.

Pelo menos tal como fizemos nós, os Portugueses e Caboverdeanos,  na  Guiné Bissau, e a seguir vieram muitos outros (Suécia, Rússia,  França, EUA, etc.=, que segundo essa gente foram ensinar os Guineenses,  aquilo que os Portugueses não ensinaram em 500 anos, como diz toda a  gente aos guineenses durante os últimos 40 anos, tudo foi errado e  até criminoso, mas pior, quando é ensinar à pressão e à pressa  obrigar a aceitar religiões políticas e usos e costumes, totalmente  estranhos às pessoas atingidas, aí a violência é ainda maior..

Também no caso da colonização cristã e árabe na África subsariana,  (ou mesmo nas Américas com os índios) foi tudo muito mau, e a nossa  geração ainda testemunhou ou participou em alguma dessa colonização,  pelo menos 13 dos 500 anos que os portugueses andaram pelo além-mar.

Foi tudo tão mau nas colonizações, que ainda hoje, que se disputam no  Rio de Janeiro os jogos olímpicos (gregos)e até hoje ainda não vimos  nenhum atleta Guarani,  dono do "tchon" do Maracanã, candidato a  medalhas.  no entanto já não se pode dizer o mesmo de imensos  afro-americanos e africanos, que assimiliraram e se submeteram a toda  a cultura greco-romana que portugueses e outros europeus inculcaram  nesse povo.

Os Guaranis preferiram morrer do que ser brasileiros, correr os 100  metros em 10 segundos, morar numa favela, ou dançar o samba no  carnaval nem falar Carioca

Os homens, no mundo inteiro, deviam poder viajar, comunicar entre si,  aceitar a presença do outro, mas nunca impôr a própria vida à vida  dos outros, quer seja à força com guerra, ou na conversa e na
corrupção, que foram sempre os processos mais usados.

Se os Guaranis quisessem correr no Maracanã, em Jacarepaguá ou em  Itaguaí, à caça ou fazer canoagem à pesca na baia da Guanabara, porquê  aquela confusão dos jogos olímpicos de betão armado, com o mundo  inteiro a poluir um dos lugares mais belos do mundo?

O mundo cristão querer impôr aos africanos subsarianos e índios, que  nem sabiam quem era Cristo, leis e hábitos que já nem os cristãos  respeitam hoje, foi demais.

Vejamos, proibir a poligamia, obrigar a cobrir o corpo com roupas,  substituir as palhotas por casas de pedra, abandonar feitiçarias e  muitas outros hábitos que os próprios cristãos hoje, até adoptam para
eles próprios, todas essas imposições foi muito violento  psicologicamente, quando não fisicamente, com castigos corporais.

Apesar de hoje, certas maneiras europeias e árabes modernas queiram  ser impostas "como sendo direitos humanos" em África, e muitos velhos  régulos africanos não gostem nem compreendam, e vão ter que adoptar como foi com as religiões da idade média, isso também é colonialismo
imposto.

Agora o moderno são a burka e a homossexualidade e outras novidades a  chegar a África ainda a viver em palhotas, mas já com telemóveis e TV  a explicar, isso também é colonialismo.

Pior do que explorar as riquezas naturais das terras dos africanos ou  dos índios das Américas, ou mesmo das tribos do Médio Oriente é querer  convencer esses povos que a civilização deles é inferior à de outros  povos e convencê-los a trocar os valores da sua cultura pela cultura do outro, seja ele colono, benemérito, doador, cooperante ou dador, é  tudo colonizar.

Existe um complexo de inferioridade encaixado na memória de alguns  povos de ex-colónias lusófonas, que praticamente não se dá nas  ex-colónias francófonas e anglófonas.
É-lhe dito aos Guineenses, Angolanos e todos os outros, que além de  terem suportado a colonização imposta pelos portugueses, ainda têm que  sofrer a tal espécie de «reciclagem colonial» imposta por outros que  vêm « ajudar» a completar o desenvolvimento que a "incapacidade  colonial" portuguesa não conseguiu fazer em condições nas antigas colónias.

É um fenómeno que se dá também no Brasil, em que o povão chega (hoje  2000 DC) a levar uma ensaboadela cerebral de tal ordem, em que  suportando toda a espécie de exploração económica e de corrupção  governativa e toda a violência de um capitalismo internacional e  levados a aceitar tudo como uma fatalidade porque:

Tiveram o azar de "ser colonizados pelos atrasados portugas que  roubaram todo o ouro, mataram os indíos, amancebaram-se com mulatas e  negas" e deixaram o país cair nesta desgraça, que até tinha
potencialidades para ser mais importante que a América do Norte (EUA)

No Brasil, o termo de comparação preferido são sempre os EUA, faz  parte da ensaboadela cerebral.

Isto também é uma reciclagem colonial.

Haverá sempre povos a quererem sobreporem-se a outros, e nem sempre  haverá "alguém que diz não".

Como também fui colonialista, (funcionário da Administração colonial  em Angola), gostei de ser um portuga, fraco colonialista e também  participei na reciclagem colonial juntamente com alemães, franceses e  suecos e italianos na Guiné Bissau, assino aquilo que escrevo e a que  assisti, até no Maracanã vi o Pélé, e nem um Guarani vi naquele  estádio cheio.

Cumprimentos e só publiquem se não escandalizar ninguém

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Nota do editor:

Último poste da série  > 25 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16331: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (46): Quando Bismarck, Leopoldo II e as outras potências, Inglaterra e França (Cecil Rodhes e outros) dividiram África em Berlim, estavam-se nas tintas para os africanos... Ensaiaram depois o neocolonialismo a que chamaram independência

Guine 63/74 - P16378: Álbum fotográfico de Adelaide Barata Carrêlo, a filha do ten SGE Barata (CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71): um regresso emocionado - Parte IV: o BU [um chimpanzé, ou "dari", em crioulo, que ] vivia em cativeiro numa reserva natural em Buba



Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 2015 >  No dia 23 de outubro conheci uma das terras mais bonitas da Guiné - Buba.  Este é o BU [um chimpanzé, ou "dari", em crioulo, que ] vivia em cativeiro numa reserva natural em Buba. (*)

Fotos (e legenda): © Adelaide Carrêlo (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Guiné 63/74 - P16377: Os nossos seres, saberes e lazeres (168): Visita à Igreja do Convento de Jesus, de Setúbal (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Tudo começou por um bate-papo com um desses fotógrafos de revistas, falou-se no Convento de Jesus em Setúbal e ele discreteou sobre luz, hora e estação do ano, para interessados em captar a verdadeira cor da brecha da Arrábida, fora da norma as cores desbotam-se, são fingimento.
Consultou-se a meteorologia e o viajante pôs-se ao caminho na mira do sucesso. Viajou por outras paragens mas a sua grande consolação foi encontrar-se com aquele gótico-manuelino como não há outro em Portugal, até porque foi o primeiro.
Em podendo, confirmem o que vem nestas imagens.

Um abraço do
Mário


O gótico-manuelino da Igreja do Convento de Jesus

Beja Santos

O viajante consulta a meteorologia, para captar a verdadeira cor da brecha da Arrábida precisa de determinada luz no interior e um céu pouco brilhante, foi o que um fotógrafo especializado em monumentos lhe propusera. À cautela, para fazer horas, visitou em primeiro lugar a Galeria Municipal de Setúbal para ver o famoso retábulo da capela-mor, e agradou-lhe o belíssimo restauro e a forma como está exposto. Deu uma saltada para visitar a coleção de arte e muito lhe agradou confrontar-se com obras de Álvaro Perdigão e Celestino Alves, dois setubalenses.



Nunca entendi a injustiça à volta do relativo silêncio sobre a obra de Álvaro Perdigão, engenhoso no tratamento das formas, contido nas cores, inclassificável na modernidade. Celestino Alves nunca abjurou o modernismo, há quem lhe atribua semelhanças com a pintura de Cézanne, tal a delicadeza entre volumes e a delicadeza na ocupação da tela. Visita que se recomenda, o tempo mudou, ala que se faz tarde, o viajante ruma para o Convento de Jesus, nem vem à procura do local onde se ratificou o Tratado de Tordesilhas, para o caso não interessa.



O Convento de Jesus é uma das marcas do património europeu, há sobejas razões para assim o classificar. Veja-se a elegâncias das colunas, o tom afogueado da pedra, a forma como Diogo Boitaca estudou a correspondência entre o tempo, o espaço do coro, o altar e as capelas. Há também a ter em conta o aformoseamento dado pela arte azulejar, num dia assim respira-se claridade, nem é necessário a música de fundo para a concentração espiritual, acresce o dado determinante de que tudo saiu da oficina de Boitaca antes do século XV expirar, os Jerónimos muito depois. Não faço analogias, seriam absurdas, o que para o caso interessa é que é percetível o ponto de partida neste templo de arquitetura ascendente.




Estou a lutar contra o tempo porque o tempo está a mudar, o céu embaciou-se, sem aquela luminosidade perco o prodígio da cor da brecha da Arrábida. O coro baixo é elegantíssimo, percebe-se bem como a humidade é o grande inimigo oculto, aliás o Convento, mesmo ao lado anda num restauro que custa uns bons milhões, barrar o caminho a esta humidade tem muito que se diga. Veja-se um pormenor da beleza azulejar, é uma cercadura de volta inteira e que qualidade a da oficina que por aqui andou. O viajante deteve-se diante do púlpito, cirandou e voltou a cirandar, não que o púlpito tenha uma pedra trabalhada que corte o fôlego, é a intensidade da brecha, a sua explosão mineral e a singularidade da cor, inacreditável, é preciso mesmo ver.



Estamos agora na zona portuária, há um belo passeio pedestre à beira mar, o sol voltou a brilhar e é no cruzamento de olhares com Tróia ao fundo, as embarcações de um lado para o outro, os namorados nos bancos, que o viajante foi confrontado com uma árvore rastejante, desconhece-lhe o nome, bem perguntou a quem passava, recebeu indiferença, até o olharam como um tolo ou como pedinte a fazer aproximação. Entusiasmou-o o restauro de um edifício que talvez tenha servido para sala de espera, tudo leva a querer que podia ser uma estação, o que verdadeiramente gostou foi do atrevimento de Arte Deco, ressalvem-se as distâncias e até parece que andou por aqui o Siza Vieira ou um seu ancestral.


Quem vem a Setúbal e não contempla pormenores da Arrábida é como ir a Roma e não ver o Papa. Chegou-se a uma praia, a neblina desce suavemente, podia estar um pintor naturalista que agarraria a oportunidade para tentar pincelar este céu de bruma, uma rocha à vista, seca e árida, e a outra ao fundo, até parece que vai navegar sobre o oceano, segue atrás de um porta-contentores. Aqui finda a viagem, melhor dito, esta nunca acaba o viajante é que percebeu que é impossível continuar a fotografar. Mais haverá que venha entusiasmo para regressar em breve.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16373: Os nossos seres, saberes e lazeres (167): Rapazes (e raparigas), bebam vinho português, comam pêra rocha portugesa e cantem o fado português, porque no céu... não há disto!

Guiné 63/74 - P16376: Memória dos lugares (342): Galomaro e as suas lavadeiras (António Tavares, ex-Fur Mil SAM do BCAÇ 2912)

Quartel de Galomaro em construção, em Maio de 1970


1. Mensagem do nosso camarada António Tavares (ex-Fur Mil SAM da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), datada de 3 de Agosto de 2016:


A BELA E O SENÃO

Camarigos,

A minha lavadeira de nome Mariana era alta, esbelta, de cor negra clara e de etnia Fula.
Tratava razoavelmente da roupa a troco de 80 pesos (escrevia-se: 80$00) mensais.
Os preços do serviço de lavagem eram diferentes para cada uma das classes de militares.
A Mariana era casada com um Djila que viajava muito à Gâmbia para contrabandear vários artigos vendáveis nos dois países. Diziam que recebia na sua morança tropas quando o seu homem estava ausente. Não sei se era verdade ou não. Comigo tratou somente da roupa. Com pouco mais de 21 anos com certeza vontade não me faltasse de outros serviços.

A minha primeira lavadeira que tive era anciã e andava sempre a mascar coca que trazia numa bolsa pendurada à cintura da vestimenta. Parece-me que estou a vê-la a mascar e depois a cuspir a coca. Era mais cuidadosa com o tratamento dado à roupa. A idade aparente já pesava bastante na sua frágil estrutura física, especialmente na pele enrugada da cara.

Ao fim da tarde era uma romaria de lavadeiras junto ao arame farpado para entregar ou receber a roupa. O chamamento de cada um dos militares por vezes transformava-se num coro desafinado mas engraçado. Quando chamavam pelo nome “TAVARÁS” muito se riam. Nunca descobri qual o motivo de tanto riso.
Os Oficiais tinham o privilégio de receberem as lavadeiras dentro do quartel de Galomaro.

Por razões óbvias não publico fotografias das duas mulheres que trataram da minha roupa durante os 23 meses que permaneci nas matas do Leste do CTIGuiné. História que fez parte da vida de um jovem deslocado numa terra tão longínqua e diferente em usos e costumes da sua terra Natal.

Recordar é Viver!

Tabuleta de recepção aos “piriquitos” do BCaç 3872 colocada (em 1972) na estrada principal de Galomaro. O 1.º Edifício à direita tinha sido uma caserna da CCaç 2405. Em 1970 era a casa do Chefe de Posto. A habitação e o Café - Restaurante do comerciante Francisco Regalla ficava uns metros aquém desta habitação.


Mulheres Fula a lavar roupa numa bolanha de Galomaro, em 15 de Julho de 1970. Nesse dia o BCaç 2912 já conhecia o chão guinéu há 76 dias.

Fotografia de Lavadeiras no seu trabalho quotidiano, em Galomaro.


Visita a uma Morança da Tabanca de Galomaro, em Outubro de 1970.

Abraço,
António Tavares
Foz do Douro, Quarta-feira 03 de Agosto de 2016
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16360: Memória dos lugares (341): UDIB, Bissau, II Jogos Florais, Programa, 28 de junho de 1974 (Augusto Mota)

Guiné 63/74 - P16375: Parabéns a você (1117): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63) e Tomás Carneiro, ex- 1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16372: Parabéns a você (1116): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCÇ 2315 (Guiné, 1968)

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16374: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (25): Relatório de Operações do último almoço-convívio da CART 1689

1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos o Relatório de Operações do último almoço-convívio da sua Unidade para integrar as suas "Outras Memórias da Minha Guerra".


Outras memórias da minha guerra

24 - “O nosso fim está próximo”

(… assim, a modos de “Relatório de Operações” do último almoço-convívio da CART 1689)

Por incrível que pareça, os militares da nossa CART 1689 assinalam, em convívio almoçarado, não a data do seu regresso da guerra, mas o da partida. Mas ninguém sabe porquê ou de quem foi a ideia.

Lá, todos os dias 26 eram motivo de satisfação, de alegria e de bebedeira. Isto justificava-se porque a contagem era implacável e só a sua soma, mês a mês, nos daria o descanso, o regresso e a libertação. Cada mês que passava parecia mais uma senha de uma lotaria que nos ajudaria a obter o prémio final. Era por isso que a importância festiva se acentuava mais e mais à medida que os meses passavam.
Saturados de guerra, deixámos passar uns onze anos sem nos termos reencontrado. Excepcionalmente, os que eram vizinhos, iam-se encontrando mas sem qualquer tipo de manifestação festiva ou com carácter de regularidade. Porém, chegou-se à conclusão que havia muitas saudades daquelas amizades de excepção que se havia criado. Foi o falecido Mariz que juntou, o “núcleo duro” dos graduados, no Restaurante D. Sancho, perto da Curia. A partir dali, procuraram-se contactos, através do “passa a palavra” e de anúncios em jornais (JN e Bola). Então, reunimos em Crestuma 2 ou 3 vezes, mas o número de presenças não evoluía. A malta havia seguido a sua vida, após a chegada da guerra e dispersou-se, inclusive pelo estrangeiro.

Alguns camaradas, chegados da África do Sul, da Alemanha e da França, procuraram os amigos que nunca mais viram. Nessa altura, destacámos o entusiasmo do Sá, do Peixoto e do Netinho que, apoiados pelo Miranda, conseguiram aumentar significativamente o número de participantes nesses encontros anuais. Depois entrou em cena o “Póvoa” (José Ribeiro) que, graças à sua dedicação e capacidade organizativa, atingiu-se um grau de excelência, nesses eventos.

Como a malta da CART 1689 é, quase na sua totalidade, oriunda do norte, não admira que os encontros se tenham feito cá para cima. Todavia, devemos realçar o grupo de “Lisboetas” que tem sido verdadeiramente exemplar. E foi por isso que organizámos um encontro na Cova da Piedade, para onde fomos de autocarro. Por influência do Borges das Transmissões (aquele “técnico” que se propôs recuperar o barco ”Tolan”, virado no Tejo), fomos à sua terra, lá nos arredores de Seia. Também já fomos à Guarda por “exigência” do Saraiva, grande entusiasta destes encontros. Cabe aqui realçar os nomes de Seixas, Mendes, Ferreira, Vilela e Azevedo que têm assegurado a continuidade destes convívios. Estou a lembrar-me de encontros em Amarante, Esmoriz, Maia, Famalicão, Ermesinde, Gaia, Póvoa de Varzim, Felgueiras, Braga,

Assim, pelo menos uma vez por ano, por altura do 26 de Abril, voltamos a ver-nos e… voltamos a afastar-nos. Sim, a afastar-nos. É que o número de participantes vai diminuído, seja por incapacidade física, menos interesse ou por ausência forçada devida a… mobilização definitiva para as bandas do Além.

Na igreja da Falperra. Valente e Miranda em primeiro plano - Foto de Dália Carneiro 

Na concentração deste ano de 2016, beneficiámos de uma óptima organização do Ferreira de Braga. Fomos à missa à Igreja da Falperra, passámos pelo Sameiro e pelo Bom Jesus. Fomos participar num verdadeiro banquete lá para os lados de Póvoa de Lanhoso. O convívio decorreu maravilhosamente(!). Deu para falar com toda a gente, fossem camaradas ou seus familiares. E deu para recordar/estender/repetir/adulterar (involuntariamente, devido à degradação dos neurónios – ou pelo decurso do tempo ou pelo álcool ingerido) as histórias do costume. Tirando uma ou outra discussão provocatória de (pretensos) divisionistas da Pátria (entre Norte e Sul) ou alimentadores da eterna rivalidade futeboleira, tudo funcionou em ambiente cada vez mais tolerante e mais amistoso.

Silva e Miranda juntos da bandeira d”Os Ciganos” - Foto de Dália Carneiro 

Durante esses relatos, notei que muitos já andam muito longe da verdade dos factos guerreiros ocorridos, deturpam-nos (involuntariamente), inventam histórias e outros… não se lembram de nada. É a vida!

Entre outras conversas, ouvi quem afirmasse que num ataque a Cabedu, se disparam umas cento e tal granadas de morteiro 81. (Será que havia assim tantas granadas no quartel?) Outro disse que vira um Furriel a tentar fazer fogo com um outro morteiro, apoiando-o nas costas de outro Furriel. E, como lamento da morte de um Alferes (que morreu devido a ferimentos nesse ataque, atingido dentro do abrigo mais seguro – o das transmissões), lembrou a sua bravura por ter vindo para a parada expondo-se ao fogo IN, apoiando a resposta ao ataque.

Também assisti às dúvidas de um Furriel, afirmando que a viagem do Norte para Lisboa não podia ter sido feita numa só noite, porque o comboio, naquele tempo, andava muito devagar. Portanto, segundo ele, a saída de Viana do Castelo fora no dia 25 de Abril e não na madrugada do próprio dia 26, dia do embarque no Uíge.



Desta vez, nem o Capitão Maia, nem o Alfero Branquinho apareceram. Foi a vez de alguns Furriéis botarem palavra.

Cheguei a ouvir um Furriel afirmar que o seu Alferes não estivera na OP da implantação do novo quartel de Gandembel, quando, afinal, esteve todo o tempo. E que, ele mesmo, em dado momento, chegara a comandar o Batalhão.

Enfim, um exemplo de afirmações que nunca ouvira antes. Não sei se a malta já está afectada por problemas de saúde ou é consequência de… medicação. A verdade é que se nota, cada vez mais, que alguns já acusam muito esquecimento, muita deturpação e muito cansaço cerebral.

De repente, como se estivesse ao espelho, sinto um calafrio e pensei:
- Será que eu também já estou afectado? Não, não pode ser.

A certa altura, abeirei-me do Valente, que eu havia ido buscar a Oliveira de Azeméis e que já não pode conduzir viaturas em virtude de um acidente sofrido numa pescaria na Barragem de Castelo de Bode, e perguntei-lhe:
- Está tudo bem? Porque estás tão calado?
- Olha, Silva, desta vez estou para aqui a observar a malta e verifico que o nosso fim está próximo. Lembras-te de quantos homens tinha a nossa Companhia? 153! - Sabes quantos estão aqui? 19! A maioria são familiares e a gente nem repara. Cada vez vêm mais familiares a acompanhar-nos, e sabes porquê? Porque nos vêm trazer e amparar. Andam a dar-nos as últimas alegrias.

Logo o tentei animar:
- Deixa-te de merdas, a malta está contente, vê se pensas em coisas boas e se tratas do “isco especial”, para voltarmos a pescar.

O Grande Valente, numa “bolanha do vale do Mondego” prepara-se para dar mais uma aula de bem pescar ao colega/amigo/vizinho Silva, companheiros de grandes lutas pela honra e dignidade dos militares da Cart 1689. 

Com o Valente nas pescarias do Douro - Porto Antigo

Durante a sobremesa, o (político) experimentado Cepa, como sempre, manifestou a sua preocupação quanto ao “sacrificado” para a organização do próximo encontro. Para isso, fala-se com o “Póvoa”, para dar o seu habitual apoio e a sua prestimosa opinião. Seguem-se algumas trocas de palavras e “democraticamente” chega-se à conclusão de que o Seixas nos quer de novo em Felgueiras. Ninguém o contraria, nem as razões históricas do meio século da nossa saída de Viana do Castelo, alteraram a decisão. O Cepa acrescentou algumas palavras de afecto aos resultados do escrutínio. Felicitou os camaradas da guerra e, mais uma vez, desejou o melhor para todos os presentes.

De seguida falou o Miranda. Logo um sinal de que já estava “tocado”. (Pudera, sem sua Mulher Maria José a travá-lo e com a Filha Dália a fazer de condutora privativa, estava em roda livre). Quis exteriorizar toda a sua amizade ao grupo mas, sempre polémico e, em tom de brincadeira, claro, acabou lançando as mesmas farpas que tanto ocupavam os velhos tempos de caserna. E já gritava:
- “Abaixo os benfiquistas”, “morte aos mouros”, “o culpado foi Afonso que não tinha nada que ir conquistar Lisboa”…

Para que a coisa não aquecesse mais, tentei que ele mudasse o discurso de impropérios divisionistas e logo me acusou:
- Tu, cala-te que também és meio mouro, porque Crestuma fica do lado de lá do Rio Douro.

O que valeu foi que os incomodados da Cova da Piedade, de Massamá e de Loures atiraram-se a ele e levaram-no para junto do Bar.

Tive então a oportunidade de dizer alguma coisa. As palavras do Valente encaixaram na minha mente e parecia que não fugiam. É que também me vieram à cabeça as dificuldades que passei este inverno, com a deficiência respiratória que me tem atacado e com o AIT que sofri.
Pedi a intervenção e logo me emocionei. Assaltou-me essa ideia pavorosa de que me poderia estar a despedir. E, por outro lado, olhava para todos e pensava: Quem dentre eles poderá não estar cá no próximo ano? 

Dominada a comoção, cuja razão não poderia exprimir, corri com os olhos todos os presentes naquele salão.

“Caros camaradas, 
É com grande prazer que reunimos hoje mais uma vez. Já o fazemos há uns anitos. Convivemos abertamente, sentindo-nos regressados àqueles tempos da nossa juventude. Até parece que voltamos a ter os tais vinte e tal anos. 
Tempos em que fomos espremidos e postos à prova extrema de todas as nossas capacidades. 
Tempos em que cimentámos a nossa solidariedade e a nossa amizade. 
Reparo que continuamos a olhar lá para longe, onde irmanados, vivemos os anos mais importantes das nossas vidas. São essas as sensações que ainda nos unem e que nos levarão até à morte. 
Reparo também que já somos poucos, e que, possivelmente, não nos iremos encontrar muitas mais vezes. 
Por isso, caros amigos, se me permitem um conselho de um dos mais velhos, vamos olhar mais para quem vive ao nosso lado. Olhar mais para quem sempre olhou por nós. Quem sempre nos acompanhou, nos tolerou e nos amou. 
Julgo que ainda poderemos retribuir o amor e a atenção a esses entes mais queridos. 
Eles bem o merecem!” 

Brindámos, comemos o último pedaço de bolo e abraçámo-nos, mais que nunca. Notei que havia lágrimas naqueles sorrisos de alegria. Alguns abeiraram-se de mim e incentivaram:
- Força Silva, para o ano cá estaremos!

Mas houve quem me segredasse:
- Ó Silva, sei bem onde você queria chegar. O nosso fim está próximo.

Pensei, falando comigo mesmo: "Pode ser. Mas, depois, depois, tudo continua… nas cenas dos próximos capítulos".

Silva da Cart 1689
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 Nota do editor

Último poste da série de 23 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16125: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (24): Memórias de guerra ou guerra de memórias?