segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16937: Memórias de Gabú (José Saúde) (66): Noratlas


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem, desta sua série.

As minhas memórias de Gabu

Noratlas

Os estridentes sons que rompiam no horizonte

O Noratlas é um avião de transporte militar de construção francesa, sendo que o asa delta foi um bimotor construído pela Nord-Aviation na década de 1940. Ao que se sabe o número de exemplares iniciais terão rondado os cerca de 400 exemplares e o concurso público lançado pela Força Aérea Portuguesa para a sua aquisição registou-se em 1947, encomendando-se então dois protótipos os quais foram construídos no ano seguinte.

Conhece-se, porque é real, que a aeronave foi substancialmente utilizada pela Força Aérea na guerra colonial, ou guerra do Ultramar, como muitos dos camaradas preferem chamar-lhe. Não vamos pois entrar pelo campo do pormenor, tão-pouco alimentar opiniões que cada um perfilha e que muito respeitamos.

Em Gabu passei horas infinitas a fazer proteção avançada ao dito cujo. Os estridentes sons dos motores do Noratlas perdiam-se nos azulados céus guineenses e na imensidade de um horizonte sempre infindável.

Se o aterrar e o levantar voo na pista nova de Gabu era por vezes muito rápida, outras ocasiões havia em que todo o processo se protelava no tempo. Logo, a duração da visita, em chão fula, obedecia a desconhecimentos de causa horária que levava o pessoal da proteção avançada nunca consumir informações plausíveis sobre uma previsível inconstância temporária entretanto deparada. Sentíamos, sim, que situações houve em que os ponteiros do relógio, embora rolando de mansinho, atiravam o pessoal para o desespero.

O Noratlas era um aparelho possante e que servia para transportar as tropas e outros bens que as hostes militares sediados no mato muito bem acolhiam. Mantimentos frescos, entre outros, ou ainda correio, proveitos religiosamente sempre esperados com ansiedade.

Voei no Noratlas quando se deu a nossa retirada de Gabu. Creio que no dia 5 de setembro de 1974, se a memória não me falha e após a entrega do aquartelamento ao PAIGC. O seu interior era substancialmente amplo. Os bancos eram colocados nas laterais, sendo o barulho dos motores ensurdecedores.

Mas como a viagem se pautava pela alegria do regresso a Lisboa, sendo que pelo meio ficou uma breve estadia no Cumeré, os sons vindos dos ditos motores era matéria de somenos importância.

Sei que o trajeto entre Gabu e Bissau deixou-me saudades. Foi a primeira vez que experimentei viajar a bordo do Noratlas. Claro que o desconforto da aeronave foi coisa de menor importância.

O meu registo do avião passava pelas muitas horas em que me aprontei com o meu grupo a defender a sua segurança. Ou, noutras ocasiões em vê-lo, por fora, para recolher o material transportado para a região de Gabu, sob o controlo do BART 6523. 

E foi precisamente numa dessas tarefas que morreu o soldado Damásio. Eis um pequeno texto que retirei do meu livro “GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”, que relata o fatídico fim:

“Em parte incerta da obra “AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”, tive o cuidado em expressar, com enfâse, que houve mortes que nada tiveram a ver com o conflito. Sou testemunha de uma morte estúpida, e única, de um soldado da CCS do meu Batalhão na pista de aviação, numa situação considerada aparentemente normal e quando nada o fizesse prever. Mas infelizmente aconteceu.

Coube-me a tarefa para tratar o assunto de perto. Chamava-se simplesmente Damásio e era um dos soldados do meu grupo. Numa manhã, perfeitamente vulgar, o soldado Damásio integrou um grupo cujo objetivo único passava por descarregar bens alimentícios originários de Bissau e que vinham a bordo de um avião. Fez-se o habitual cordão para facilitar o serviço, sendo que o Damásio se colocou entre as duas viaturas destinadas ao carregamento.

Num ápice, uma das viaturas tentou a aproximação a outra que se encontrava estacionada por perto e numa manobra arriscada – marcha atrás – embateu na traseira da outra, sendo que o embate ficou marcado, infelizmente, pela morte imediata do Damásio que naquele momento se encontrava entre as duas viaturas. Foi horrível. Morreu esmagado.

Como um dos líderes do grupo, tive a missão de organizar o espólio do infeliz Damásio e enviá-lo depois para a família. Não foi fácil lidar com toda a situação. O Damásio era um moço educado. Fazia amigos, facilmente. E eu fui um deles. Sei que guardei durante vários anos um documento onde tinha descriminado todas as suas pertenças pessoais que na altura mandei para os seus familiares. Nada faltou. Lembro-me do derradeiro adeus. As lágrimas dos camaradas que viram partir para a eternidade – a tal viagem sem regresso – um jovem que vivia, certamente, um mundo de sonhos.  

Senti, na altura, o vazio nas almas que se abateu sobre os seus familiares. Como explicar-lhes tamanha fatalidade! E nós, homens que convivíamos com ele diariamente, lá longe sem nada podermos transmitir aos seus entes queridos. Impunha-se aconchegar o seu profundo desespero, todavia a distância ditava, apenas, o carpir mágoas pelo seu infeliz último adeus. Ficavam as amarras do silêncio. 

O Damásio ficou-me eternamente na memória.  Até sempre, camarada!"


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________ 
Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

7 DE NOVEMBRO DE 2016 > Guiné 63/74 - P16696: Memórias de Gabú (José Saúde) (65): Ramos, Furriel Miliciano/Ranger que desertou para o PAIGC



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