sexta-feira, 24 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17175: Notas de leitura (940): “Capital Mueda”, de Jorge Ribeiro, Campo das Letras, 2003 (Mário Beja Santos)



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
Deste poderoso relato, escreveu Luandino Vieira: "Capital Mueda é excelente e merecia um desenvolvimento em romance, tão boa matéria e tanto necessária sobre esses anos e factos que se incrustaram no imaginário português sem que os escritores lhe tenham dado - até à data - o tratamento que os Zurara, Couto e Mendes Pinto deram à outra época dramática da vossa nacionalidade".
Uma coluna desloca-se entre Mueda e Nangololo, a viagem é um calvário que um repórter de guerra capta em cheio, as conversas ciciadas, os comentários desbragados, as angústias e os pesadelos, os estrondos e as evacuações, uma via-sacra de centenas de homens que levam à carga os materiais para o telhado da Igreja de Nangololo.
É impensável que alguém fique indiferente a esta pequena tragédia que um grande repórter transforma na imagem perfeita daquela viagem absurda.

Um abraço do
Mário


Capital Mueda, por Jorge Ribeiro

Beja Santos

Asseguro que este relato não deixará ninguém indiferente, mergulhamos na coluna entre Mueda-Nangololo, e vamos fazer parte daquela viagem alucinante de uns escassos quilómetros que demoram penosos dias a percorrer. “Capital Mueda”, de Jorge Ribeiro, Campo das Letras, 2003, é mesmo uma viagem de alucinação descrita com grande mestria por um repórter de guerra (Jorge Ribeiro chefiou a Secção de Reportagem do Destacamento Fotocine).

Mergulhamos logo no sábado, 3 de Fevereiro, a coluna está quase pronta para sair de Mueda:  
“Uma companhia com dez secções de combate, três pelotões de sapadores, doze Berliets, quatro baterias de morteiros, dois granadeiros, duas Panhard, uma Fox, dez Unimogs, dois Caterpilars, outra companhia completa de atiradores para rendição, e um número calculado em cerca de 30 camiões civis, estão alinhados ao longo de dois quilómetros”.

Quem comanda é um capitão de ar de aterrado, anda por ali um coronel a vistoriar a partida da coluna. Os fotocines vão no camião dos sapadores:  
“Ponho um pé no pneu da Berliet, as mãos no taipal e subo. O camião está repleto, mas cabe sempre mais um. Por entre cunhetes de balas e morteiros 60 e 81, consigo encaixar o meu material de guerra – as bobinas de Gevapan, os canhões das objetivas, a utilíssima Pan-Cinor”.
Os militares vão conversando, estima-se a duração da viagem, não há ninguém que desconheça as minas, as antipessoais e anticarro. “No primeiro dia não nos devemos ter afastado de Mueda mais de três quilómetros”. Por ali se andou a desbastar mato, a cortar árvores, a afastar troncos da picada, as silvas resistem à catana. Ao escurecer, toda a gente desceu das viaturas e escavaram trincheiras. As conversas prosseguem, ciciadas, com o habitual jargão de caserna. Já estamos em 5 de Janeiro, a coluna avançou 500 metros, o calor abrasa, a malta começa a despir os camuflados, de um aparelho de cassetes saem sons estridentes solos de Jimi Hendrix. A coluna começa a subir o lendário Vale Miteda. Súbito, ergue-se uma espessa bola de fogo por entre a folhagem, ouvem-se gritos lancinantes, uma mina antipessoal apanhou José Pinto, 23 anos, minhoto de Barcelos, pede-se evacuação. Alguém vocifera:  
“O Hospital de Mueda é mais do que um hospital. É uma verdadeira escola e um local de prática cirúrgica como nunca mais haverá nenhum. Os médicos que vêm para aqui saem imberbes das faculdades, sem saber fazer um curativo. Eu bem os vejo os primeiros tempos a desmaiar, quando olham para umas tripas de fora, ou sacodem miolos da mão, parece ranho…”.

Começam os preparativos para mais uma noite, a coluna não sai do sítio, tudo se está a complicar ao terceiro dia de mato. Estamos a 6 de Fevereiro, ao acordar, o autor espreita para fora e vê o pessoal todo empoleirado e desnudado, estão a sacudir a roupa e a catar qualquer coisa, então ele apercebe-se que alguns deles imploram para que alguém lhes arranque da pele as cabeças de talaca. “Talaca é a designação local de uma formiga gigantesca, que possui a particularidade de nunca mais largar a presa onde uma vez enterrou as mandíbulas, quando se lhes puxa pelo corpo deixam lá ficar a cabeça”. É tratada uma mina anticarro. Um sapador observa:
“Eles agora põem três ou quatro num correr. Só que a primeira é de efeito retardado; para além de serem anticarro. Pode regular-se para o segundo, terceiro ou quatro rodado que lhes passar por cima”.
Fazem explodir a mina. É então que se ouve o estampido de uma bazucada contra o focinho do rebenta minas, responde-se à emboscada. Foi sol de pouca dura, quem vai na coluna sabe que está a ser vigiado. A 7 de Fevereiro, a meio do caminho, a coluna volta a encravar. Apareceu uma bomba dos nossos Fiats que não deflagrou e que os guerrilheiros aproveitaram encostando-lhe apenas uma mina anticarro. Novo rebentamento. Chega um helicóptero para recolher feridos, rajadas de metralhadora deixam picotado um “vidro” do heli. Há guerrilheiros dos dois lados. “São duas horas da tarde. Até às quatro não há tempo para cortar troncos, abrir terreno e voltar à picada. Vamos tratar dos feridos, comer, e preparar o arranque para amanhã”. Os do helicóptero foram generosos, trouxeram um saco de pão e algum correio. Estamos a 8 de Fevereiro, o motor do Caterpilar lá vai procurando limpar a estrada, a motosserra vai cortando as árvores, a coluna move-se, os flanqueadores parecem verdes de agonia, homens possantes parecem-se agora como velas a estiolar. Há picadores feridos. Quando o rebenta minas regressa à picada, ouve-se um estrondoso rebentamento de uma mina anticarro, mais feridos, a coluna está agora muito perto da Base Miteda.

Estamos a 9 de Fevereiro, a coluna avança mas para quando rebenta intenso tiroteio. Os de Nangololo captaram os pedidos de socorro e prometem vir em auxílio. Pelas três da tarde, chegam os de Nangololo. Sábado, 10 de Fevereiro, a coluna prossegue, dois T-6 andam lá no alto, vem um helicóptero buscar feridos. Pelo meio-dia, avista-se a Igreja de Nangololo, o clima de emoção é extraordinário, as tensões acumulados descarregam-se. É então que o autor descobre a razão desta coluna: todas aquelas viaturas transportam materiais para o telhado da igreja, cimento, vigas de ferro, tijolos, tudo para construir a cobertura anti-morteirada da igreja. “Sento-me, lentamente, na terra. Estendo a vista e o pensamento para longe, muito longe daqui. Fixo para sempre na rotina o admirável matiz de um porto sol no planalto. Amanhã, regressamos a Mueda”.

Um conjunto de personalidades irá pronunciar-se sobre este livro: Luandino Vieira, José Emílio-Nelson, João Paulo Borges Coelho, Pezarat Correia. Jorge Ribeiro fez reportagem de guerra durante 27 meses em Moçambique. No regresso, selecionou a coluna Mueda-Nangololo como um dos trabalhos que mais o marcaram – acima de tudo pela importância dimensão, significado e resultados da operação, desencadeada na mítica capital da guerra em Moçambique, Mueda, e este relato é hoje uma das referências na literatura da guerra colonial.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17159: Notas de leitura (939): "Irmãos de Armas", por António Brito, Clube de Autor, 2016 (Mário Beja Santos)

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