domingo, 5 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17106: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (24): o alferes "periquito" que escoltei até Buruntuma num domingo de agosto de 1964 e que nesse mesmo dia atravessou a fronteira e desapareceu... (Alcídio Marinho, ex-fur mil, CCAÇ 412, Bafatá, 1963/65)


Guiné > Região de Gabu > Buruntuma > c. 1961/62 > Reunião de homens grandes para aplicação da justiça tribal. O cavalo era já raro na Guiné, devido à peste equina africana rndémica... Foto de Jorge Ferreira, com a devida vénia, vd. sítio do fotógrafo Jorge da Silva Ferreira e o seu  livro  "Buruntuma: algum, dia serás grande!... Guine, Gabu, 1961-63  (Lisboa, Programa Fim do Império, Liga dos Combatentes, 2016, p. 87).


1. Comentário de Alcídio [José Gonçalves] Marinho, ex-fur mil inf, CCAÇ 412 (Bafatá, 1963/65), ao poste P17104(*)


Fui duas vezes a Buruntuma.

A primeira vez foi com o nosso 3º pelotão na 1º ou 2ª semana de maio, cerca de um mês depois de chegarmos á Guiné (Bafatá). A área de Buruntuma ainda pertencia ao BCAÇ 238, comandado pelo sr. coronel Sá Cardoso.

A outra vez foi assim:

Era um domingo de agosto/1964, estava em Bafatá, pois no destacamento de Cantacunda tinha apanhado um ataque de paludismo, que levou à minha evacuação.

Cerca das 9 horas da manhã, o oficial de dia da 412, foi chamado ao Comandante do Batalhão 506, sr. tenente-coronel Liiz Nascimento de Matos. Informação do comando:
− Vai chegar uma Dornier com um sr. oficial, que é urgente fazer chegar a Nova Lamego, e depois a Buruntuma. Precisa-se duma escolta simples, basta um jeep, com um vosso oficial e dois soldados.

O oficial de dia, disse que não havia nenhum oficial disponível a não ser ele próprio. Resposta do sr. teneent-coronel:
− Então mande um sargento.

O alferes Baltazar chegou ao nosso quartel e toca a chamar-me:
- Marinho, manda preparar um jeep com respectivos condutor e operador rádio, mais dois soldados. Depois vais para a pista de aviação,  pois vai chegar um alferes "periquito" e vais levá-lo a Nova Lamego e depois a Buruntuma.

Requisitei um jeep, os militares necessários e ala para a pista de aviação, esperar o maçarico. Cerca das onze horas chegou o maçarico que cumprimentei e logo vi que o alferes era muito pouco comunicativo e taciturno. Vinha à civil, com uma malinha pequena.

Expliquei para onde íamos e como.  Não perguntou nada, nem disse nada. Nós olhamos uns para os outros, admirados e muito desconfiados. Lá seguimos para Nova Lamego. Aí chegados, o Alferes foi apresentar-se ao oficial dia  do BCAÇ 512.

Seguimos de seguida para Buruntuma. Chegamos, mesmo na hora do almoço. O destacamento era ao nível de pelotão. Fomos convidados para almoçar pelo furriel que substituía o alferes, agora chegado.
Conversa puxa conversa e lá ficamos cerca de três horas.

Entretanto, alguns militares do pelotão, deslocaram-se para o campo de futebol, para jogar. Nós, os da CCAÇ 412 também fomos ver o jogo. Decorria o jogo e alguns de nós,  furrieis,  trocavámos impressões do sr. alferes.

De repente, alguém começa berrar muito alto:
− Olha, o alferes vai para a fronteira!

A malta toda começa a gritar para chamar o alferes, que transporta a sua malinha. Ao ouvir os berros da malta, ele apressa o passo na estrada que segue para a fronteira. E desaparece.

Um furriel com alguns militares, foram de jipão, perseguir o alferes, mas dele já não havia
vestígios.

Então parti para Nova Lamego, onde comuniquei ao oficial de dia, os factos ocorridos. Claro que ele não acreditava, mas,  recebida a informação Rádio, comunicou ao sr. ten-cor Figueiredo Cardoso. Que ficou espantado.

O qlferes que no mesmo dia chega e parte. Mais tarde ouviram-o na Rádio Argel. Entretanto, dizia-se que ele em Bissau, havia afirmado que não ficaria muito tempo na Guiné. (**)

Alcidio Marinho

CCAC  412
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3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Ó Alcídio, essa história é uma coisa do arco da velho!... Um alferes "periquito" (ou "maçarico", como vocês ainda diziam na época...) que escolhe Buruntuma, no "cu de Judas", para desertar!...

Há gente, provavelmente ainda viva, que pode confirmar a tua história que, de resto, me parece verosímil: na realidade, era mais fácil desertar em Buruntuma, povoação fronteiriça, do que em Bissau, Xime, Bambadinca, Bafatá ou Nova Lamego... Já havia PIDE, um agente da PIDE, em Buruntuma, desde pelo menos 1961...mas não havia "posto fronteiriço", com controlo de entradas e saídas... O próprio marco que lá estava foi o Jorge Ferreira que o lá pôs, entre novembro de 1961 e outubro de 1962...

Mas não acredito que o oficial português tenha agido sozinho... Deve ter havido alguém a ajudá-lo a atrevessar a fronteira... Sabemos, pela exploração do Arquivo Amílcar Cabral, que havia em Buruntuma, simpatizantes pou militantes do PAIGC, em 1961, pelo menos o enfermeiro Cirilo e o professor Timóteo da Costa... O professor da escola primária, em 1961, era cabo-verdiano, segundo o testemunho do Jorge Ferreira... e a malta da tropa colaborou com ele, através de abertura de um "posto escolar militar", que era frequentado por p+raças metropolitanas (CCAV 252) e guineenses (3ª CCAÇ), o que permitiu a muitos deles tirarem a carta de condução!...

Gostava de saber mais pormenores sobre este caso de deserção... O caso deve ter continuado a ser falado nesse ano (1964) e no seguinte (1965)... Quem lá esteve nessa altura, deve ter a sua versão da história..., mesmo sabemo que "quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto".

Obrigado, Alcídio, por mais esta história em primeira mão!

Manuel Luís Lomba disse...

Salve, Camaradas!
Nomadizamos um ano em Buruntuma (Maio de 65 a Maio de 66), cumprido cerca de um ano de "intervenção" às ordens do Comando-chefe (general Arnaldo Shultz).
Precedera-nos um pelotão europeu comandado pelo alferes Vinhas, cuja unidade desconheço, que deixou marcas de desempenho e boas recordações no seio da população - metade mandinga e metade fula.
Contava-se duas deserções - a que conta o Alcides Marinho e outra, de um alferes de uma Companhia de Transportes, talvez anterior.
Buruntuma, como posto fronteiriço, tinha uma delegação da PIDE (quando éramos emboscados pedíamos-lhe o "visto" dos passaportes dos turras...) e um posto alfandegário, que eu e o furriel Simas escolhemos para residência, por ser o mais exposto...
Abraço e votos de saúde.
Manuel Luís Lomba

Antº Rosinha disse...

Estas duas deserções de alferes milicianos, num ermo daqueles, (aquilo é um autêntico cú de Judas aos olhos de qualquer europeu piriquito), só pode ter uma explicação simples, demasiado simples, para não nos parecer absurdo.

É que aquilo é mesmo um lugar nada convidativo, quer do lado de cá da fronteira ou do outro lado, Conacry, para dar passeios ou para fazer corta- matos ou maratonas.

Qual seria o "menino" metropolitano de 20 anos saído de Coimbra, Lisboa ou uma qualquer cidade com liceu ou universidade, que se metia por aquele mato inóspito a dentro?

Se ao menos tivesse sido 20 anos pastor ou contrabandista, mas estudante de capa e batina ou mesmo sem uma coisa nem outra?

Para mim, e lá estou a meter-me novamente, (um dos meus hobys)só aceito uma explicação, eram simplesmente "estudantes do império" esses dois alferes, ou seja, estavam devidamente coordenados com os estudantes do império do PAIGC, ou mesmo do MPLA ou Frelimo, que se entendiam na perfeição em Lisboa e em Luanda e Lourenço Marques. (Só não se entenderam depois de Amílcar e Luís Cabral desaparecerem).

Se de facto a maioria dos estudantes do império estiveram do lado do "colon", havia essa minoria que nem a PIDE nem os nossos comandantes sabiam distinguir muito bem.

Ditinguiamos facilmente se fossem pretos, mas as outras várias cores (difusas) nem sempre eram perceptíveis, porque não ficavam corados.

No Brasil, alguns luso-descendentes estão a mandar os filhos para a praia, nas vésperas de exames para ingresso à Universidade, para beneficiarem das cotas para "escurinhos".

É uma explicação para a minha cabeça, a tal fuga nas barbas da PIDE, e de uma companhia metropolitana inteira, tudo mais ou menos à espera que o tempo corresse rápido.

Cumprimentos