quinta-feira, 20 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17261: (In)citações (106): Macau e Guiné-Bissau, dois pesos e duas medidas... Deu-se a nacionalidade portuguesa a cerca de 100 mil macaenses, a grande maioria incapaz de trocar meia dúzia de frases na língua de Camões... Em contrapartida, milhares e milhares de guineenses que lutaram (e muitos morreram ou ficaram feridos), nas fileiras do exército português durante a guerra colonial, foram votados a um destino cruel... (Manuel Amante da Rosa, cabo-verdiano, diplomata, ex-fur mil, QG/CTIG, Bissau, 1973/74)

1. Do nosso amigo, camarada e grã-tabanqueiro, 
ex-fur mil, QG/CTIG, Bissau,1973/74, Manuel Amante da Rosa, embaixador plenipotenciário da República de Cabo Verde em Itália desde 16/1/2013, e agora também em Malta [, foto, acima, de 2013; cortesia da RTC - Radiotelevisão Caboverdiana]



Data: 13 de abril de 2017 às 12:23
Assunto: Público-2017/04/13 (*)


Meus Caros,

Um desabafo estritamente pessoal, que não seja somente a de partilhar convosco esta reflexão, bem fora do âmbito de qualquer polémica ou publicação.

Há muito que venho seguindo este sistema de "dois pesos, duas medidas" usados pelas autoridades lusas ao tempo da descolonização. O diário português "Público", de hoje, trás nas suas páginas 12 e 13, no quadro do 30º Aniversário da transferência de Macau à China, o tratamento diferenciado dado aos africanos e, mais tarde, os dados aos residentes chineses daquele diminuto território asiático.

Curtos onze anos após as negociações para a Independência das Colónias africanas, foram concedidos nacionalidade portuguesa a cerca de uma centena de milhar de pessoas residentes em Macau. Por iniciativa negocial e visão acertada dos negociadores lusos em confronto directo com o estatuído na lei chinesa.

80% ou mais deste contingente que era visado nem a primeira estrofe do Hino Nacional de Portugal conheciam para não dizer cumprimentar e/ou trocar algumas frases na língua de Camões.

E ainda hoje, para aqueles que permaneceram na RAEM [ Região Autónoma Especial de Macau], este desconhecimento é total.

A língua portuguesa, apesar dos onerosos montantes alocados pelo Executivo macaense, continua como francamente residual e raramente usado fora das repartições e do núcleo da comunidade lusa.

Este assunto, da atribuição pertinente e massiva da nacionalidade portuguesa, foi seguido por mim com especial interesse e interrogações por ter sido militar do exército português, no seu último ano e meio e ter convivido com a violenta guerra, desde criança, porque tudo se relacionava a ela, ao fim e ao cabo. Não havia como se estar à margem do ambiente bélico.

De uma maneira geral, em todas as colónias havia forte contingente de nativos/indígenas, integrados em pelotões independentes e companhias, enquadrados por graduados e oficiais oriundos da metrópole. Mas para além das forças militares regulares, de recrutamento obrigatório, haviam ainda, numa base de voluntariado, os contingentes das forças especiais, das milícias locais, organizadas em unidades auxiliares nas unidades militares, outras constituídas em auto-defesa, contigentes de cipaios e forças para-militares (unidades de polícias).


Na Guiné, pela sua pequena dimensão territorial e humana, a contribuição dada ao exército português foi relevante em todas as frentes de combate, nas patrulhas e operações de grandes envergaduras, nas defesas dos quartéis, construções de estradas e outras infra-estruturas e até nas forças especiais.

Lógico que milhares sofressem ferimentos em combate e acidentes, outros encontrassem a morte ou e ainda outros milhares ficassem com sequelas de guerra, uns estropiados e outros com stress pós-traumático.

Mas que outros milhares fossem distinguidos com cruzes de guerra, louvados, condecorados, citados em ordens do dia, premiados e levados
para a ex-metrópole em gozo de férias.

É consabido (e conheço casos) que soldados africanos se tenham  sacrificado, tenham salvo a vida ou ajudado os seus camaradas brancos  nos confrontos da contra-guerrilha.E vice-versa, está claro!

Raros, muito raros, foram aqueles que não acabassem o período de 3 anos de serviço militar sem saberem entender ou se exprimir em português. Era de cariz obrigatório a alfabetização no exército, até  pelo menos a quarta classe. Pelo menos na Guiné. Assim como conhecer  rudimentos da história de Portugal e cantar o Hino Nacional.

Quando tenho a oportunidade de retornar à Guiné e encontro, em todo o lado, esses idosos e valorosos militares das forças armadas  portuguesas, abandonados à pressa e à sua sorte e me vem ainda ao  pensamento os milhares que acabaram fuzilados, após a guerra, sempre  me pergunto porque raio de circunstâncias o destino lhes traçou esse
nefasto rumo.


E, se por força do esforço pessoal e determinação, conseguem chegar a  Lisboa, para se radicarem ou tratarem da saúde e das sequelas da  guerra, vale-lhes mais a solidariedade, camaradagem e memórias dos
antigos oficiais ou camaradas para calcorrearem a via crucis… do que  qualquer outra instituição a que com garbo e sacrifício pertenceram. (**)

Abraços

Manuel Amante

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Notas do editor

(*) Vd. Bárbara Reis > Há 30 anos, Portugal surpreendeu a China nas negociações de Macau > Públicio, 13 de abril de 2017

(...) As negociações sobre a transferência de Macau duraram nove meses e, para Augusto Santos Silva, são “um marco na história diplomática de Portugal”. E ajudaram, 30 anos depois, a eleger António Guterres secretário-geral das Nações Unidas.(...)


6 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Tem toda a razão, meu caro embaixador, uns são filhos, outros são bem piores do que enteados.

Abraço,

António Graça de Abreu

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

100% de acordo. Faço minhas as palavras do Manuel Amante. Tenho vergonha, lamento profundamente e condeno aqueles, que, com grande indiferença abandonaram em situações, por vezes mais que dramáticas, populações e seus bens que, enquanto portugueses que na altura, eram, era nossa missão, como combatentes e camaradas de armas, defender.
(tenho orgulho de ter combatido ao lado do João Bakar e de até o ter recebido em minha casa num almoço, a quando de uma das suas honrosas decorações do exército português)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Manuel Amante:

É uma alegria ver-te por estas bandas... A Tabanca Grande também é tua, de há muito. Tens 26 referências no nosso blogue e as tuas intervenções são sempre bem vindas. Sei que és um homem ocupado, dadas as tuas responsabilidades como representante diplomático de Cabo Verde na Itália onde há uma importante comunidade de patrícios teus (mais de 20 mil, não?).

Não vamos mudar a História, mas podemos reparar erros. Portugal e os portuguese ainda podem dar uma mão aos nossos camaradas guineenses, hoje envelhecidos, abandonados, esquecidos, injustiçados... Há, por certo, algumas maneiras, exequíveis, de reparar esta brutal e gritante injustiça... Vamos chegar tarde para a maior parte, mas ainda podemos chegar, demonstrando a nossa solidariedade.

Um alfbravo fraterno, LG

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O nosso camarada e amigo Manuel Amante da Rsoa, que eu tenho o prazer de conhecer pessoalmente, sabe do que fale, já que foi, até há meia dúzia de anos, primeiro secretário-geral adjunto do Secretariado Permanente do Fórum Macau, em representação dos países lusófonos... Veja-se aqui uma ainda recente entrevista que ao jornal macaense "Ponto Final", em 11/10/20016. Ficam aqui alguns excertos... LG

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Gestão de Fundo de Cooperação a partir de Macau reforçaria eficácia do Fórum

por João Paulo Meneses

Ponto Final, 11/10/2016
https://pontofinalmacau.wordpress.com/2016/10/11/gestao-de-fundo-de-cooperacao-a-partir-de-macau-reforcaria-eficacia-do-forum/


(...) Na conversa que manteve com o PONTO FINAL voltou à baila o tema da falta de reciprocidade nas visitas aos países que fazem parte do Fórum. Amante da Rosa foi das primeiras vozes a suscitar a questão, que, pelos vistos, não perdeu actualidade. O diplomata continua a defender que uma visita do Chefe do Executivo da RAEM aos outros países membros do Fórum de Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa “seria de primordial importância em termos de maior aproximação, relacionamento e conhecimento pessoal das nossas realidades e dirigentes. Não gostaria de me pronunciar, como é óbvio, sobre as razões da não calendarização dessas deslocações, até porque deixei de ser Secretário Geral Adjunto do Fórum há cerca de 5 anos e muita água terá corrido, entretanto, pelo porto interior de Macau. Quero, no entanto, crer que as razões serão fortuitas e se devem essencialmente a acertos de programação entre as partes”, admite

Ainda assim, não deixa de lembrar que “em contrapartida, quase todos os governantes dos Países Membros, a vários níveis, têm feito visitas à RAEM, onde têm prevalecido a ampla abertura de relacionamento e diálogos frutuosos com os dirigentes da RAEM”.

O primeiro delegado de Cabo Verde no Fórum Macau entende ainda que “as visitas periódicas de governantes chineses, incluindo a nível do Chefe de Estado da República Popular da China, aos Países Membros do Fórum Macau, têm de certa forma preenchido essa lacuna”. (...)

Cherno Balde disse...

Caro amigo Amante da Rosa,
Obrigado pela demonstracao de solidariedade para com antigos companheiros de arm as. Juntos vamos continuar a pregar no deserto ate q a voz se nos canse.
Por outro lado o facto de o Amante da Rosa ser hoje o Embaixador de Cabo Verde eh outra demonstracao da diferenca entre a Guine_Bissau e Cabo Verde, do reconhecimento e dad possibilidades q sao Dadas a todos oo cidadaos independentemente do lado da barricada e da for da bandeira q defenderam no passado. O caso da Guine eh Como o proverbio fula q diz:"Os macacos, com tantos inimigos e, ainda assim, nao se perdoam uns aos outros".
Para si um abraco de parabens e muita coragem para o povo Caboverdiano.

Antº Rosinha disse...

Portugal e os "democratas" portugueses, contra a vontade do velho ditador, apenas copiaram com 10 anos de atraso, as grandes potências coloniais França, Inglaterra e Bélgica.

Isto é, abandonar irresponsavelmente o continente africano, com apoio da ONU.

Mas os "pretos" têm memória e vão lembrando a irresponsabilidade nas várias capitais europeias e no mediterrâneo.