quarta-feira, 10 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17339: Os nossos seres, saberes e lazeres (211): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (1) (Mário Beja Santos)




1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 10 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Aqui vivi de Outubro de 1967 a Março de 1968, e prontamente me enfeiticei pelas hidrângeas, a bagacina, a marginal de Ponta Delgada.
No regresso da Guiné, aqui se fez escala e presenciei um dos episódios mais emocionantes que me foi dado viver: o porto pejado de mulheres de preto que esperavam filhos, maridos ou irmãos, uma cantata que a todos pôs a chorar.
Por aqui cirando de vez em quando, razões profissionais não faltaram, cresceram amizades e não escondo o frenesim em regressar a estas paisagens de verde, aos cones vulcânicos, passear na Lagoa das Furnas, avistar a Lagoa do Fogo, são cenários que se entremeiam no meu coração.
Aqui fica uma viagem de saudade, o princípio da festa do cinquentenário.

Um abraço do
Mário


São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (1)

Beja Santos

Cheguei a Ponta Delgada a bordo do "Carvalho Araújo", que me levou seis meses depois de regresso a Lisboa, o mesmo "Carvalho Araújo" que me trouxe de Bissau em Agosto de 1970. Anoitecera, todos os outros aspirantes a oficial miliciano tinham destino certo, eram da terra. Desembarquei e um amigo do meu cunhado, Eugénio Sales da Câmara, estava à minha espera e levou-me para os Arrifes, dormi no quarto do oficial de dia, com uma bruma que chegava aos cobertores. Ao primeiro toque do corneteiro, levantei-me, preparei-me e procurei desesperadamente comer. É nisto que olho para os montes circundantes, oiço o badalo das vacas, o seu mugido intermitente, um céu plúmbeo por onde esvoaçam nuvens dá a paleta de tons esverdeados que se tornarão inesquecíveis, pela vida fora. Assim começou o meu feitiço açoriano, estávamos em Outubro de 1967. Decidi comemorar com pompa e circunstância, mesmo antes de tempo, precisava desesperadamente de ver as azálias, os metrosíderos, as criptomérias, pisar a bagacina, respirar o enxofre das caldeiras.
Primeiro dia, degustação da terra, aceitei a sugestão do meu amigo Mário Reis, partimos de Ponta Delgada para o porto da Lagoa, almoço com boca negra grelhado, batata cozida e legumes, repasto delicioso, não tivesse dele partido a sugestão atirava-me à albacora ou aos filetes de abrótea. E começava o nosso passeio pela costa Sul, Livramento, São Roque, Relva, Feteiras, Candelária, Ginetes, aproveita-se o céu limpo para ver o miradouro do Escalvado, paragem no alto da Ferraria, as imagens desfolham-se.



Quem não sabe é como quem não vê, na primeira imagem temos uma caldeira seca, não sei se foi há milhões de anos quando por aqui rebentaram vulcões, uns ficaram adormecidos, expelem fumarolas, desfazem-se em lamas sulfúreas, outros secaram. É este o caso, não mete medo e dá pasto. Temos depois o farol da Ferraria, olha-se lá para baixo, para a imensidão do oceano que se atira em cachão sobre as rodas aqui as ondas são bravíssimas, volto a câmara para o outro lado, lá ao fundo estão os Mosteiros, para lá caminharemos, os seus ilhéus atraem turistas e poetas.




O Duque de Viseu, Administrador da Ordem de Cristo, conhecido por Infante D. Henrique, que andou à espadeirada em Ceuta, sonhava em chegar a outras terras para lá do mar, montou um projeto que envolvia expedições oceânicas. Quando aqui se chegou, um outro seu irmão, de nome D. Pedro, o das sete partidas, pediu-lhe para que o nome da ilha fosse S. Miguel, seu patrono. E assim nasceu a fama desta ilha de lagoas, de ventos ciclónicos, onde se pescou baleia, onde combateram liberais contra miguelistas, onde se planta chá e há estufas de ananases e onde quem parte vive em saudade, basta pensar em Natália Correia que se despediu deste mundo com os seus prodigiosos Sonetos Românticos, daqui se partiu e parte muito para Califórnias e Canadás, é a terra do visionário Antero de Quental, de Hintze Ribeiro, do derradeiro poeta do Orpheu, Armando Cortes Rodrigues, e ficamos por aqui. Estamos nos Mosteiros, o maior porto da costa Norte está em Rabo de Peixe, vou evitar palavras, acredito piamente que as imagens falem por si. João de Melo, que nasceu não muito longe daqui, na Achadinha, chama a S. Miguel uma doce melancolia: Aquilo que se avista lá de cima é como um tombadilho gigantesco, todo verde e quase plano (…) A palavra melancolia vê-se também no próprio espanto que em nós estranha e não explica o verde-azul-amarelo da terramar, corpo lânguido e feminino da paisagem, trecho da costa norte fendido ao meio pela Ponta do Cintrão, baixa, e até maneirinha, à esquerda; alta e muito recortada para as bandas de Porto Formoso. Os tons esmeralda da pradaria e das matas de incenso e criptoméria parecem a um tempo colidir e complementar-se entre si; ao longe e em baixo, a brancura das casas – que se perfilam ao longo das ruazitas desertas, tortuosas, com as suas barrinhas de basalto em volta das portas e janelas – resplandece-se acima dos verdes múltiplos da terra como numa marcação a giz dessa cor.




Continuou a jornada para os lados da Bretanha, Remédios, Santa Bárbara e perto das Capelas chegou o negrume da noite, regresso a Ponta Delgada. Mário Reis vai levar-me na manhã seguinte até ao Vale das Furnas, um lugar mágico, asseguro-vos. E assim foi, com as novas estradas vai-se rapidamente a outros pontos da costa Norte, caso do miradouro de Santa Iria, ali perto deu-se a batalha da Ladeira Velha, lê-se a lápide explicativa que é omissa na crueldade com se trataram os vencidos, atirando-os para o abismo. E assim se chega a um local por onde, há perto de 50 anos, passei de revés, o Hotel Terra Nostra, tem um jardim magnífico e um polo de atração irrecusável, a piscina onde a temperatura ronda os 40 graus. Pode ser que a ilha tenha muita melancolia, mas eu tenho a alma em júbilo.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17314: Os nossos seres, saberes e lazeres (210): Tavira fenícia, árabe, portuguesa; a cidade e a água (3) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: