quarta-feira, 7 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17441: Os nossos seres, saberes e lazeres (216): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (5) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 20 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Se é este o desfrute que o Vale das Furnas oferece em pleno Inverno, bem se poderá dizer que São Miguel, a despeito dos imprevistos atmosféricos, oferece amenidade quanto basta. As Furnas, asseguro-vos, têm todos os ingredientes para estar calmamente aqui uma semana, entre banhos, passeios fumegantes e caminhadas nos jardins. É bem verdade o que viajantes de outras eras adjetivaram - paraíso terreal, natureza pródiga, jardins que desafiam a imaginação. E coisa curiosa, quem por ali vive e quem por ali passa sente a plenitude da distensão, como se todos agradecessem o dom de viver ou passear num lugar mágico, entre o céu e a terra.

Um abraço do
Mário


São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (5)

Beja Santos

O viandante parte para as caldeiras munido de obra adequada, O Vale das Furnas, coletânea de cronistas e viajantes que por aqui andaram entre os séculos XVI e XIX, organização por José Manuel Motta de Sousa, Edições Almedina, 2008, há para aqui um texto de um sacerdote do século XVII descrições cheias de vida, um exemplo: “Baixando já do alto e empinado monte para o inferior do vale descoberto, viram que do pé da rocha em que estavam nasciam mananciais, cinco fontes de claras, doces e abundantes águas: tão abundantes que a pouco espaço de suas correntes, se formava de cada uma delas uma ribeira, e que todas as cinco ribeiras estavam cobertas de saborosas ervas, agriões, acelgas e rabaças (…) as quais todas cinco, nascidas das cinco fontes dentro do mesmo vale se juntavam todas caminhando para o mar em uma só”.
Pois neste vale das furnas houve eremitas solitários e contemplativos, aqui vinham doentes buscar saúde sem terem medo das fumaças com estrondo nem dos fedores sulfúreos. Todos os que escreveram sobre as furnas falam em paraíso surreal, e Francisco Afonso Chaves e Melo, viveu nos séculos XVII e XVIII, refere mesmo: “Para a parte do Poente é verdadeiramente um rascunho do paraíso terreal, regado com sete ribeiras de salutíferas águas, entre as quais há uma de água quente e muito medicinal. Para a parte porém do nascente é uma verdadeira representação do Inferno, porque tem umas caldeiras de polme, água e enxofre tão horrendas, que não há outra coisa com que se comparem. O calor é tão ativo que se lançarem dentro qualquer animal, no espaço de meio quarto de hora o consumirá totalmente, não deixando dele outro sinal mais que os ossos. Nestas caldeiras há muito enxofre e caparrosa; do enxofre se tira muito, da caparrosa não, por se não saber fabricar”. É este espetáculo que alguns supunham ser a emanação do Inferno que aqui traz o viandante.




Para além do pavor suscitado, houve também quem desde muito cedo procurou aproveitar as águas quentes e frias destas nascentes, para efeitos medicinais. As águas passaram a ser orientadas para edifícios dos banhos. Felix Valois da Silva, meirinho de juízo, padeceu durante anos de uma moléstia escrofulosa, esteve na Madeira e em 1790 chega ao Vale atraído pelo renome das suas águas e cura-se com 90 banhos. Deixou um curiosíssimo documento e em dado passo observa: “O enxofre faz a base das partes constituintes da sua água, ela é diurética, desobstruente, corroborante e saponácea, o seu sabor é tolerável, o seu sedimento junto à margem é um cinzento achumbado; e em distância de tiro de espingarda depõe um musgo verde, aveludado com laivos amarelos: seus maravilhosos benefícios se experimentam contra o reumatismo, toda a qualidade de moléstia nervosa, principalmente moléstia de pele. Junto a ela tomou o autor desta 25 banhos a fim de lhe laxar as fibras e de pôr o sangue em maior movimento, e com o efeito dela alcançou as suas primeiras melhoras”. E mais adiante comenta: “A transpiração no uso dos banhos quer-se moderada, e não como muitos usam e eu observei que estavam horas esquecidas no abafo, e até nele adormeciam, pensando talvez que a copiosa transpiração os aliviava mais depressa; por este modo irritavam demasiadamente as funções principais do corpo, debilitam-se depois até desfalecer, de modo que, em lugar de lhe acharem proveito, sentem maior dano”.



O viandante passeia-se e faz o confronto entre caldeiras e meio circundante. Gosta de ouvir os estrondos que vêm o fundo da terra, o tal borbulhar fervente que ele respira em longos haustos, imagina-se a fazer tratamento. Entretanto vai lendo “O Vale das Furnas”, ao tempo em que Félix Valois da Silva de curava das escrófulas, o doutor William Gourlay, médico inglês exercia a sua profissão na Madeira, por aqui andou e salientou as vantagens dos banhos de vapor. Não resisto a esta pequena transcrição: “Em distância de quase 10 léguas ao nordeste de Ponta Delgada há uma pequena aldeia chamada As Furnas, situada num espaçoso vale cercado de altas montanhas. São estas compostas de pedra-pomes e cobertas de ervas, e de várias árvores e arbustos sempre verdes. O terreno deste vale consta principalmente de pomes pulverizada. Ainda que fraco, é cultivado, e produz trigo, milho, legumes, e nos sítios húmidos inhames. Cavando um pouco abaixo da superfície acham-se muitas cavidades, que mesmo passeando sobre a terra se percebem pelo som. No fim do vale do Sueste há uma pequena elevação a que chamam as caldeiras. Esta elevação que porventura terá uma milha quadrada consta de numerosos outeirinhos, e é aí evidente a ação do fogo. Descobrem-se várias camadas; pirites, lava, pomes, morne, greda de diferentes cores, ferro em bruto, terra calcária misturada com enxofre".
Talvez seja ilusão mas não deixa de ser boa vontade dizer o que vozes autorizadas elogiaram a este sítio de caldeiras, águas, banhos, fontes, falando mesmo em águas santas capazes de quase tudo tratar, exceto as doenças venéreas. Que outros venham a termas mas que não descurem do que a natureza oferece em flora, estamos num Fevereiro de temperatura moderada, vicejam camélias, azálias, catos em glória. Aqui finda a curtíssima estadia nas Furnas, vai seguir-se um passeio de autocarro daqui até à Povoação e depois o Nordeste, dormir na Achada. O tempo tem estado de feição, o temporal chegará esta noite. São coisas do tempo açoriano, o inesperado das correntes atlânticas, faz parte do jogo do viver e do viajar.




(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17415: Os nossos seres, saberes e lazeres (215): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (4) (Mário Beja Santos)

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