quarta-feira, 5 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17547: Os nossos seres, saberes e lazeres (220): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (9) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 15 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Foi o último dia de viagem, comecei cedo pelos jardins de Ponta Delgada, segui para a Lagoa do Fogo, daí para a Caldeira Velha, por fim a Ribeira Grande e depois o aeroporto.
O jovem aspirante a oficial miliciano que fui nestas paragens jamais esqueceu do que aprendeu, as estimas com que foi cumulado e até aquele misterioso princípio dos vasos comunicantes que assegura encontros imprevisíveis, o médico oftalmologista que me tratou dos olhos depois de uma mina anticarro deu-me o privilégio de uma amizade feita de telefonemas constantes e abraços sempre que chegava à Ilha Verde. Foi a notícia triste que colhi nesta viagem: um brutal AVC derrubou-o, articula uns sons pouco compreensíveis, vive agitado. Faltou-me coragem para o ver, ele era a imagem viva da alegria de viver. Mais uma razão para regressar, para lhe confidenciar o bem que ele me fez aos olhos que conservo.

Um abraço do
Mário


São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (9)

Beja Santos

A viagem está praticamente no fim, cumpriu-se o sonho de voltar àquela ilha que logo provocou fascínio ao viandante, era a primeira vez que alugava casa e vivia distante do seu meio de criação. Duas experiências foram mais que enriquecedoras: deu recrutas a jovens de todas as ilhas, ou quase, descobriu em si capacidade de liderança, será fundamental quando chegar à guerra que irá travar na Guiné, à frente de soldados nativos; e descobriu, mais ou menos deslumbrado, a capacidade de fazer amizades que o tempo se encarregará de consolidar. Cinquenta anos antes, percorreu troços de São Miguel ao fins-de-semana, e os arredores de Ponta Delgada ao fim da tarde. Ali viveu de Outubro a Março, conheceu todos os céus nublados, brumas, rugidos dos vagalhões oceânicos, subiu a cumeeiras, atravessou canadas, conheceu plantas exóticas, aí teve como guia um sueco botânico altamente preparado, gostou da bagacina, do metrosídero, das araucárias, das longas fileiras de hidrângeas, das coloridas azálias, de pétalas fosfóreas. Era o princípio do enamoramento. E que nunca mais se quebrou.




Deu vazão a um programa previamente esboçado e contou com ajudas do seu amigo Mário Reis, andou de Ponta Delgada até à Lagoa, percorreu as Fajãs, a Relva, as Feteiras, os Ginetes, deu a volta à costa Sul até aos Fenais da Luz. Deliciou-se com a estadia no Vale das Furnas, não só a magia da lagoa nem das caldeiras mas com as encostas floridas, magnólias e azálias. Foram dias de intensa luz, só interrompidos pelas chuvas diluvianas que caíram quando estava na Achada, e tinha havido o achado de conhecer o Nordeste, a extraordinária revelação desta viagem, ficou cliente da Serra da Tronqueira e daquelas pontas que dão pelo nome de Madrugada e Sossego. Aliás, os nomes das localidades e dos relevos são poderosos pela sonoridade, pela espessura telúrica e a singularidade insular: Ribeira Quente, Faial da Terra, Pico da Vara, Lomba da Fazenda, S. António de Nordestinho, Rabo de Peixe, S. Vicente de Ferreira, Ajuda da Bretanha.


Tinha saudades da Ribeira Grande, foi segundo ou terceiro passeio que fiz fora de Ponta Delgada. Impressionou-me a Ermida do Espírito Santo com a sua fachada barroca, nunca tinha visto uma coisa assim, delicada e imponente. Mais tarde, por diligência amiga de José Medeiros Ferreira e Melo Bento, aqui fiz uma conferência no salão magnífico da câmara municipal. O tempo corre, é só mais itinerância por estes espaços íntimos, por essas árvores tão bem tratadas, esta digna sobriedade de jardins, áleas, recantos. Houvesse tempo ia ver o mar, iria até Rabo de Peixe, numa das recrutas tinha três soldados daqui provenientes, falavam com um acento cerrado, precisei sempre de intérprete. Vim visitá-los no Natal de 1967, foi uma emoção. E é com outra emoção que parto, já com imensa vontade de regressar, logo que se aprouver, ficou muitíssimo para ver e rever, não faz diferença pois o viandante despede-se com um até já.




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Nota do editor

Último poste da série de 28 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17519: Os nossos seres, saberes e lazeres (219): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (8)(Mário Beja Santos)

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