domingo, 24 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17794: Bibliografia de uma guerra (81): “A Guerra Civil em Angola - 1975-2002”, por Justin Pearce; Tinta da China, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Em mensagem do dia 18 de Setembro de 2017, o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), fala-nos do livro "A Guerra Civil em Angola", um período conturbado que aquele país viveu entre 1975 e 2002.


A guerra civil em Angola, por Justin Pearce

Beja Santos

Como soe hoje dizer-se, é muito provavelmente o livro mais rigoroso, mais documentado e que melhor retrata algo que até agora a historiografia da guerra civil não considerava como matéria essencial: como viveu a população angolana a guerra civil, como definiu a sua identidade política com os dois poderosos contendores, o MPLA e a UNITA?

Até agora as investigações partiam do entendimento de que o conflito angolano não passava de um produto da Guerra Fria, os acordos de Bicesse não tinham surgido por iniciativa da sociedade angolana, era uma solução desenhada por atores políticos exteriores a Angola. Logo em 1993 a guerra civil eclodiu com um fragor mais destrutivo do que nunca, os estudos minimizam as continuidades ideológicas e de identidade em que passou a contextualizar-se um MPLA entendido como um partido urbano e a UNITA olhada como o partido das matas. Eram duas forças frontalmente antagónicas, o MPLA liderado por intelectuais, a UNITA comandada por um chefe absoluto e indiscutível. O investigador britânico preambula o seu trabalho falando sobre Angola e a natureza da pretensa política e aborda a questão da identidade. Será um trabalho permanentemente atravessado por depoimentos de pessoas que viveram os transes da guerra civil.

A intervenção externa foi o gatilho que levou à declaração do conflito, os contendores escolheram apoios declarados: a UNITA recebeu algum armamento de África do Sul, vieram depois instrutores; o MPLA recebeu apoio cubano e soviético. “A supremacia da UNITA na região do Planalto Central, em Agosto de 1975, e o controlo de Luanda por parte do MPLA, na mesma data, ficaram sobretudo a dever-se à mobilização local apoiada pela aprovação ativa ou tácita do Estado português. Em Agosto de 1975, estava definido o caráter territorial do conflito angolano”. A FNLA, terceiro movimento, foi sol de pouca dura, rapidamente esmagado pelas tropas do MPLA. Onde o MPLA controlava era violento e procurava a imagem de ser o único grupo de libertação capaz de coordenar um governo; a UNITA, nos territórios onde era preponderante, sem se subtrair a que vivia em guerrilha contínua e sempre dominada por uma ideologia flutuante, onde não estava excluída uma certa simpatia maoísta, privilegiava a educação e a saúde, eram estes os eixos das respetivas propagandas. Liquefeito o diálogo, Agostinho Neto a independência em Luanda e Savimbi anunciava a criação da República Democrática de Angola no Huambo.

Com detalhe, o investigador debruça-se sobre a UNITA, como esta se vai retirando das cidades e lança-se no novo tipo de guerrilha, assentava o seu poder em comunidade camponeses, muitas vezes sujeitas a uma vida ditatorial. O MPLA assentou raízes na construção de um estado urbano e dentro de uma certa lógica: “Consolidou o seu poder nas zonas de Angola por si controladas durante a guerra civil através da instauração de uma visão de desenvolvimento orientada pelo Estado, e da definição do discurso público sobre o papel do Estado e do partido na concretização dessa visão”. A questão da identidade e do sentido de pertença a um movimento é escalpelizada no importante capítulo sobre a migração e identidade, ilumina-se ao pormenor as complexidades da identidade política e a sua relação com o controlo político, no contexto de uma estratégia governamental assente na deslocação de populações como forma de cortar o fornecimento de apoio material à UNITA. Analisa-se, em sequência o desempenho da UNITA no Planalto Central, entre 1976 e 1991. É tempo de responder ao modo como o povo interpretou e reagiu à disputa pelo poder, nos anos que se seguiram às eleições de 1992, são fatores interligados: as anteriores filiações no plano individual; a proximidade ou envolvimento das populações no processo de construção do Estado liderado pelo MPLA; o grau de dependência dessas populações em relação à economia urbana; a dicotomia entre cidade e campo, que se exprimia na ideia do partido urbano ou do partido das matas. “Os entrevistados quando se referiram a questões de legitimidade política e filiação depois de 1992, as considerações ideológicas estavam praticamente ausentes do seu discurso, já que todos avaliaram o MPLA e a UNITA com base no tipo de condições de vida proporcionadas por cada um”.

E no rescaldo da morte de Savimbi, primou o discurso dos vendedores. Como lembra o autor, o MPLA mantém uma ideologia que dificilmente se coaduna com as ideias de reconciliação. No 20.º aniversário da batalha de Cuíto Cuanavale, José Eduardo dos Santos apelou à propaganda, dizendo que a batalha dera origem a mudança profundas na África Austral, abrindo perspetivas para a queda do regime Apartheid, é um discurso que não menciona a existência de angolanos nos dois campos do conflito e a importância decisiva do apoio militar cubano ao MPLA. Este partido, sempre que necessário, convoca as memórias da luta anticolonial e repudia as diferentes oposições dizendo-se do lado da paz e da tranquilidade e que os críticos mais não oferecem que desacato, destruição e desordem. Quando se chegou à paz, depois da morte de Savimbi, desarticularam-se os núcleos populacionais da UNITA, o Estado/MPLA arvorou-se na legitimidade política sem limites. Sobre a trajetória e a organização do seu trabalho, Justin Pearce também dá explicações: “O que estava em causa era saber qual das duas elites era a herdeira legítima da autoridade conferida pelo conceito de Estado, uma questão que foi elidida por outra: qual das duas elites estava mais habilitada a transformar o Estado enquanto conceito teórico numa realidade. A melhor forma de compreender as mudanças verificadas na adesão política ao longo da guerra é vê-las como uma reação a circunstâncias e realidades em constante mudança. Embora durante a guerra, o controlo do território pendesse ora para o MPLA ora para a UNITA, no que diz respeito à identidade política o movimento foi, em larga medida, unidirecional”. E a concluir: “O MPLA venceu a guerra graças ao seu poderia militar. O fim da guerra, porém, foi o culminar de um processo no qual o potencial de fogo, o derramamento de sangue e a fome foram utilizados para transformar as possibilidades do que era imaginável”.

De leitura obrigatória.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17789: Bibliografia de uma guerra (80): “Changing the history of Africa”, por Gabriel García Marquéz, Jorge Risquet e Fidel Castro; Ocean Press, Austrália, 1989 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

Gostei de ver os aplausos/assobios do povão angolano ao nosso presidente Marcelo na TV.
Assisti em 1969 a uma recepção ao padrinho Caetano que jamais tantos angolanos se unirão em qualquer aplauso (sincero)a presidentes do MPLA, UNITA ou FNLA.
Deve ser a sina dos Marcelos em África.
Em 1969 a multidão compacta de africanos ia desde o aeroporto até ao palácio, mais de 3 quilómetros.
Marcelo Rebelo de Souza mergulhou nas praias da Ilha e via-se dois enormes petroleiros ao largo.
Em 1969 a maior riqueza natural exportada era o café robusta, Angola, o maior produtor deste café a nível mundial.
Pequenas/enormes diferenças.

armando pires disse...

Uma visão unilateral do que se passou em Angola.
Redutora e ideologicamente comprometida.
Começando pelo fim, poderia debruçar-se sobre a morte de Savimbi.
Dado à morte ao MPLA pelos seus próprios homens.