sábado, 14 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17861: Notas de leitura (1004): “Casa dos Estudantes do Império, Subsídios para a História do seu período mais decisivo (1953 a 1961)”, por Hélder Martins; Editorial Caminho, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Hélder Martins, fundador da FRELIMO, foi um estudante ultramarino que chegou a Lisboa em 1953 e a partir dessa data e até 1961 teve um papel ativíssimo na Casa dos Estudantes do Império (CEI).

Em seu entendimento, muito do que está escrito sobre a CEI mostra imprecisões e muito pouco rigor, em certos casos. Levou por diante, com vários apoios, ao levantamento da legislação, ouviu inúmeros participantes, recorreu a ajudas que passaram pela pesquisa dos boletins do Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, e algo mais. O resultado é um testemunho resoluto, amável e desmistificador, porque numa associação de jovens há de tudo e tratar a CEI como uma casa de heróis é desumanizar-nos, protesta ele.

Obra indispensável para quem pretenda saber como é que a CEI foi uma grande escola do nacionalismo africano e serviu para consolidar a consciência anticolonial em muitos estudantes ultramarinos.

Um abraço do
Mário


A Casa dos Estudantes do Império

Beja Santos

De forma irregular mas persistente, estudantes ultramarinos, investigadores e jornalistas, recordam a importância e o significado que teve a Casa dos Estudantes do Império (CEI) na formação anticolonial e na forja das lutas de libertação, pois por aquele edifício passaram figuras como Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Agostinho Neto, Lúcio Lara, Hélder Martins, Tomás Medeiros e Alda Espírito Santo.

Acaba de aparecer o testemunho de uma das figuras mais relevantes desse período Hélder Martins com “Casa dos Estudantes do Império, Subsídios para a História do seu período mais decisivo (1953 a 1961)”, Editorial Caminho, 2017.

Hélder Martins nasceu em Maputo, formou-se em Medicina em Lisboa em 1961. Foi um ativista estudantil na Comissão Pró-Associação da Faculdade de Medicina e na Casa dos Estudantes do Império. Incorporado no serviço militar obrigatório, na Marinha, desertou em Novembro de 1961, tendo ido para Tanganica, onde foi aceite na UDENAMO. Foi fundador da FRELIMO e participou na luta de libertação do seu país. No imediato pós-independência foi Ministro da Saúde durante cinco anos. Foi também funcionário sénior da OMS, docente em saúde pública em vários países.

Segundo o título, o seu testemunho centra-se no período que ele viveu intensamente e teve uma participação ativa. Observa que, salvo honrosas exceções, a grande maioria dos testemunhos e trabalhos de investigação histórica e jornalística que existem sobre a CEI, têm pouca informação factual e nem sempre as referências às fontes são rigorosas, têm sido detetadas grandes falhas. Escreve que o seu testemunho procurou incorporar o máximo de informação sobre esse período da vida da CEI, cingindo-se a factos e pondo de lado a fantasia e alguma carga mitológica sobre a convivência havida ao longo dos anos pelos estudantes das colónias.

Em primeiro lugar, refere que há claramente duas fases da vida estudantil colonial, a primeira que se estende dos anos 1940 até aos anos 1950 em que a maioria dos estudantes eram brancos, de um modo geral ligados ao Estado Novo, portanto alinhados com a ideologia política dominante. Basta ver as fotografias desde 1943 em diante. Dizia-se mesmo num boletim da Mocidade Portuguesa que a CEI era filha da Mocidade Portuguesa.

Ainda nos anos de 1940, e depois com maior preponderância nos anos 1950, começam a chegar estudantes negros e mulatos de Angola, S. Tomé, Cabo Verde e Guiné, tudo tinha a ver com o desenvolvimento económico angolano, com bolsas de estudo, etc. Naquele pós-guerra foi-se criando a consciência nacionalista, a PIDE desde 1946 que estava atenta às atividades políticas dos sócios da CEI, havia informações sobre Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Alda Lara, Vasco Cabral, Alda e Julieta Espírito Santo, Francisco José Tenreiro, Hugo Azancot de Menezes, Marcelino dos Santos, entre outros.

Eduardo Mondlane teve uma curta passagem pela CEI, de Junho de 1950 a Junho de 1951, estava à espera de uma bolsa de estudo para os Estados Unidos, o que aliás veio a acontecer. Nos anos 1950, há prisões como a de Vasco Cabral, Lúcio Lara, Mário Pinto de Andrade e Marcelino dos Santos conseguem escapar à prisão, irão abandonar Portugal para o exílio. Neste período entra em funcionamento um Centro de Estudos Africanos, ali se reuniam num prédio da Rua Actor Vale Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro e Amílcar Cabral.

Quem chegava, encontrava o bálsamo do acolhimento e os que gostavam de fazer desporto eram incentivados a continuar. Mário Wilson e Juca foram duas importantes figuras de acolhimento. Formou-se a equipa de futebol de CEI onde jogaram, entre outros, Fernando Vaz, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral.

Uma das maiores lutas entre os estudantes e as entidades governamentais era a permanente exigência para que não houvesse comissões administrativas. Os estudantes ultramarinos juntaram-se aos metropolitanos na luta contra o Decreto-Lei n.º 40.900, de 12 de Dezembro de 1956, destinado a regulamentar o associativismo juvenil, o governo recuou, a CEI passou a ter uma comissão de estudantes, elegeu-se uma direção e a CEI foi reconhecida para a proteção e defesa dos interesses ultramarinos e para o estreitamento dos laços de solidariedade e camaradagem entre os estudantes ultramarinos e metropolitanos, Em ondas, chegam estudantes às revoadas, convivem na cantina da CEI, fazem reuniões, dispõem de uma farta biblioteca, publicam livros.

Hélder Martins é minucioso na composição dos corpos diretivos, no trabalho desenvolvido, na vida cultural que abarcava conferência sobre música e arte, espetáculos de teatro, saía regularmente um boletim, a vida participativa era enorme. A qualidade dos conferencistas era de primeira água: João de Freitas Branco, José-Augusto França, Jorge de Sena, Keil do Amaral, José Palla Carmo, Alexandre O’Neill.

Procura desfazer mitos: nunca se registara qualquer luta pelo poder dentro da CEI, soubera-se operar um espírito de solidariedade inquebrantável; e que era um puro mito dizer-se que a CEI era sinónimo de uma geração de heróis. Descreve taxativamente: “Houve de tudo: bons e maus estudantes, uns que tiraram os seus canudos no tempo mínimo e com boas notas, outros que conseguiram atingir o almejado canudo com notas menos boas e num tempo mais dilatado e ainda os que nunca tiraram curso nenhum. Não fomos diferentes dos outros. Na CEI houve sócios dedicados mas houve também sócios que participavam pouco. Há provas que havia muitos estudantes que tinham fraca participação. Isto faz parte da natureza humana”.

O que o autor mais exalta foi a CEI como centro de convívio salutar.

Em 1961, tudo vai mudar substancialmente, fogem às dezenas os estudantes e com o início da luta armada em Angola apertou-se mais a vigilância à CEI. Outro ponto que o autor destaca é a CEI como escola de nacionalismo africano e de consciência anticolonial bem como a influência que exerceram nas lutas de libertação nacional da diversas ex-colónias.

É uma obra que toca pela serenidade, pelo extremo cuidado na citação dos factos e na busca da legislação certa. Não sendo um mito da geração de heróis, o facto é que pela CEI passaram figuras determinantes de nacionalistas africanos e aquele espaço foi indispensável para consolidar a consciência anticolonial entre muitos daqueles estudantes ultramarinos.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17858: Notas de leitura (1003): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (4) (Mário Beja Santos)

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