sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17978: Notas de leitura (1015): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (9) (Mário Beja Santos)

Bissau velho


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,

Folheando toda esta documentação que o Arquivo Histórico do BNU me está a disponibilizar, dou conta da inusitada franqueza com que o gerente observa não só o poder político, como os servidores do Estado, as práticas comerciais, destilando por vezes críticas brutais, mencionando os boatos que correm, os desacertos protocolares, neste caso peço a vossa atenção para a primorosa descrição da chegada dos aviadores e a organização dos festejos, não falta ali o picante dos humoristas da época como André Brun ou Gervásio Lobato, reproduzíamos no espaço colonial as mesmas farroncas que usávamos na capital.

São páginas que revelam o outro lado da presença portuguesa ao tempo em que se falava de pacificação mas eram frequentes os sobressaltos de revoltosos.

E, por último, uma chamada de atenção para aqueles aviadores que lançavam granadas sobre tabancas que não estavam em revolta...

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (9)

Beja Santos

Em 21 de Maio de 1925, o gerente da filial de Bolama envia um extenso ofício para Lisboa, o assunto mencionado diz: Revolta indígena. Pela sua importância, vale a pena destacar alguns extratos significativos:  

“Desde fins de Março, princípios de Abril, que começou a constar aqui que os indígenas da ilha de Canhabaque estavam revoltados. Eram desencontradas as informações que corriam sobre a origem dessa revolta, diziam uns que ela era motivada por os indígenas se querem recusar ao pagamento do imposto, outros diziam que era devida à teimosia do governo em estabelecer postos militares em sítios que, eles indígenas, consideram como chão sagrado.

Começou depois correndo o boato de que a situação se ia agravando; o mutismo oficial continuou até que, em certo dia, começaram armando com artilharia e tropa dois vapores que o governo aqui tem e que são os únicos que estão em poder navegar. Acompanhava essa expedição um tenente do exército, o qual por ter bastantes anos de permanência na Guiné dizia conhecer bem o terreno e costumes dos Bijagós e exercer sobre eles grande influência. Ia esse tenente incumbido de diplomaticamente conseguir que os revoltosos voltassem à ordem. Poucos dias depois, regressou a essa expedição, mas continuou a nada se dizer sobre o assunto. Pouco tempo depois, porém, começaram novamente a correr boatos de agravamento da situação, de novo tornaram a armar os referidos vapores, chegaram vários grupos indígenas, na maioria Fulas, acompanhados dos seus régulos, a quem começaram a distribuir armamento para formarem uma coluna militar.
Aproveitando a estada aqui dos aviadores que fizeram o raide Lisboa-Guiné, foram estes com o seu aparelho lançar sobre os revoltosos algumas granadas; como, porém, não houve o bom senso de fazer acompanhar os aviadores por alguém que conhecesse bem a topografia das ilhas, isso deu em resultado que lançassem algumas dessas granadas sobre tabancas que não estavam em revolta. Isso deu em resultado que esses indígenas se irritassem e se unissem aos revoltosos.

Finalmente, em 18 de Abril, resolveu-se o governo a quebrar o seu silêncio, publicando em suplemento ao Boletim, uma portaria declarando estado de sítio em várias ilhas do arquipélago. Partiu então para ali o governador acompanhado do seu Estado-Maior, e durante muitos dias nada mais se soube. Em 5 ou 6 do corrente começou a correr o boato de que as operações estavam terminadas e que a coluna ia regressar. Todos se admiram disso, pois que até a essa data ainda aqui não tinham aparecido nenhuns prisioneiros nem mesmo feridos ou mortos. Em 7 do corrente, quebrou o governo o silêncio publicando outro suplementos ao Boletim em que se declara que as operações estavam quase concluídas e que a ilha onde a revolta mais intensamente se tinha manifestado fora completamente batida. Nesse mesmo dia, apareceu aqui de regresso uma força acompanhando vinte e tal prisioneiros, na sua maioria mulheres e crianças. Publicado este suplemento e talvez para desfazer a má impressão causada pelo diminuto número e qualidade dos prisioneiros, fez-se constar que uma parte da coluna comandada pelo tal tenente se dirigira par a Ilha das Galinhas onde supunham que os revoltosos se tinham refugiado. Essa parte da coluna já aqui regressou mas não consta que tenha trazido mais prisioneiros. Em 3 do corrente, regressou o governador com o seu Estado-Maior. Corre o boato de que as ilhas revoltadas ficaram ocupadas pelos Balantas. Se assim é, segundo a opinião de pessoas conhecedoras, esses Balantas a pouco e pouco irão sendo disseminados pelo arquipélago.

Em resumo, as conclusões a tirar do resultado das operações são as seguintes: como certo, um desfalque nas finanças da província; um grande e duplo abalo na influência da nossa soberania visto que não se chegou a dar o devido corretivo aos revoltosos. Dizemos duplo porque essa nossa soberania perdeu muito. Como provável: dentro de um prazo mais ou menos curto, nova revolta ou provocada pelos mesmos Bijagós que se encontrão em melhores condições de armamento, visto terem-se certamente apoderado das armas que os mortos e feridos deixaram no campo, e ainda daquelas com que ficaram os Balantas ocupantes das ilhas. Se essa revolta não for promovida pelos Bijagós será, então pelos mesmos Balantas que, com a força moral que lhes deram fazendo-os ocupantes das Ilhas, e com as armas que lhes deixaram, se sentiram fortes para ela”.

No mês anterior, o gerente da filial do BNU dava conhecimento a Lisboa da chegada dos aviadores Capitão Pinheiro Corrêa e do Tenente Sérgio da Silva como do Sargento Mecânico Manuel António. Veja-se o que há de desconcertante no ofício:

“Apesar do campo da viação estar repleto de gente, a receção feitas aos mesmos foi bastante fria, por falta de iniciativa das entidades oficiais pois que, nem sequer o governador teve a lembrança de, ao receber as cartas que o Presidente da República e o General Inspetor da Aeronáutica Militar enviaram em mão do Capitão Corrêa, as ler perante o público que ali se encontrava, o que certamente daria lugar em manifestações bem merecidas. No dia seguinte teve-se conhecimento que as festas oficiais se resumiam a uma soirée na residência do governo no dia 4 e a um projetado piquenique a promover pela câmara municipal com o auxílio do comércio, no dia 6, na Ilha das Cobras”.

Bem à portuguesa, uns espontâneos quiseram organizar um baile e pediram as instalações ao BNU, diz-se no ofício que a soirée foi bastante animada, o gerente não quis participar porque tinha pouco gosto em andar em festas, mas lá compareceu por insistência do governador. Segue-se outro acontecimento à portuguesa:

“O presidente da câmara também nos tinha procurado para subscrevermos para o piquenique. Como na ocasião a Casa Gouveia ainda não tivesse indicada quantia que subscrevia, dissemos ao presidente que só depois daquela Casa indicar a sua quota nós indicaríamos a nossa. Recebemos depois convite para o piquenique mas estranhado que o presidente da câmara não voltasse a procurar-nos para saber qual a verba com que subscrevíamos, tratámos de averiguar o que havia e soubemos então que, tendo um comerciante dos mais importantes da praça concorrido apenas com 80 escudos, o governador descontente com isso ordenara à câmara para restituir os dinheiros recebidos e que custeasse do seu cofre as despesas a fazer. Constou-nos logo que o comércio melindrado pela atitude do governador resolvera não comparecer ao piquenique e, para que não se julgasse que nós nos solidarizávamos com o comércio neste protesto resolvemos, embora bastante contrariados, ir assistir ao mesmo, dando também feriado ao nosso pessoal para ele também poder ir. Correu tudo muito bem e com muito entusiasmo, tiraram-se várias fotografias e a pedido dos nossos empregados tirámos um grupo especial em que apenas figuramos nós, os aviadores e os empregados da Filial; já vimos uma prova dessa fotografia que não ficou muito boa devido a ser tirada quando a luz já era escassa, e logo que o fotógrafo a reproduza enviaremos uma V. Exas.”.


O relatório de 1925 alude categoricamente a que a Fazenda tem falta de fundos para resolver os seus compromissos, havia penúria nos cofres do governo, despesas com as comunicações e com os vencimentos do servidor de Estado. Falando destes últimos, o gerente entendeu por bem citar o padre António Vieira: “Quando mais comem e consomem, tanto menos se fartam”.

Casa Gouveia



Quanto à situação da praça, é referida uma relativa crise. E o gerente entendeu por bem dirigir uma catilinária ao comércio:  

“A forma como aqui se comercia é de ocasião e absolutamente primitiva. Aproveitando-se grosseiramente da falta de navegação, elevam com o mais alvar descaramento, os preços, quando determinada mercadoria escasseia na praça. É positivamente um comércio de assalto. Na sua maioria, comerciantes aqui desembarcados de saca e socos muito deixam a desejar. Orgulham-se, tolamente, de não precisarem do banco, mendigando-nos depois, miseravelmente, transferências. Apenas aqui existe uma casa comercial digna desse nome: é a Casa Gouveia! Não obstante, esta não deixa de enfermar de todos os vícios gananciosos do pequeno comércio, cultivando-os até com requintes de exagero”.

(Continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 13 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17965: Notas de leitura (1014): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (3) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas
Estamos em 1924/25 e pelas minhas contas esta deve ter sido a última revoltados povos da Guiné contra o domínio português. Pelas suas características a revolta que ali houve em sintonia com a Revolta da Madeira não conta.
Do escrito, é possível concluir o estado calamitoso daquela colónia e não PU como foi mais tarde.
Estado calamitoso em todos os aspectos que se considerem.
Quase podemos dizer, saque das autoridades e dos particulares, que se degladiavam entre si para obter proventos, mas todos estavam de acordo quanto à repressão a exercer sobre os indígenas.
Claro que os tempos eram outros que os outros países fizeram(?) muito pior, mas este texto é livre se censura e exame prévio, logo merecedor de toda a aceitação para quem queira conhecer a história da Guiné e os antecedentes da guerra.

Um Ab. e bom fds.
António J. P. Costa