sábado, 23 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18128: Bibliografia (45): “Os Papéis do Inglês”, por Ruy Duarte de Carvallho; Círculo de Leitores, 2002 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Luandino Vieira foi o primeiro facho luminoso a anunciar uma nova literatura escrita em português e de coloração africana, genuinamente enraizada nos assuntos da terra.
Lembro nomes como Manuel Rui ou Pepetela e os fenómenos moçambicanos de Mia Couto ou João Paulo Borges Coelho, mas a lista, para felicidade da lusofonia, alonga-se cada vez mais.
Ruy Duarte de Carvalho é mais lembrado como poeta, mas como se pode ver aqui é um prosador exemplar. Temos depois outros fenómenos como a literatura luso-guineense, onde se impõe o nome de Abdulai Silá. Devemos ter orgulho que as independências africanas tenham assegurado este manancial de bela literatura.

Um abraço do
Mário


Os Papéis do Inglês, por Ruy Duarte de Carvalho (2)

Beja Santos

Ruy Duarte de Carvalho, angolano de origem portuguesa, nasceu em 1941 em Santarém. Viveu parte da infância e da adolescência em Moçâmedes. Temporariamente, viveu em Lourenço Marques e em Londres, no início dos anos de 1970. Regente agrícola, antropólogo, realizador de televisão, cineasta, artista plástico, poeta e ficcionista.

“Os Papéis do Inglês”, Círculo de Leitores, 2002, é um livro de difícil classificação, talvez uma novela às avessas, relato de viagens com dormências e reminiscências, páginas de um diário onde se imiscuem a polivalência e o autorretrato. Como nas bonecas russas, vão-se sucedendo figuras atrás de figuras, misturam-se figuras históricas, recorda-se um texto de Henrique Galvão a propósito do suicídio do inglês e de um assassinato por este praticado, embrenhamo-nos num fundo de África, as narrativas orais são um verdadeiro conto suspenso. E essas figuras surgem por bizarria ou extravagância, caso do inglês que toca violino ao cair da tarde, no acampamento. “Uma importante alteração ao programa viria a dar-se quando, na estação seguinte, o inglês passou a vir acompanhar, na sanzala, os solos de quiçanje do ganguela, surdina morosa em noites de lua e frias, e nos intervalos de alguns trechos mais sentidos era o lancinante contraponto do Stradivarius”. Surge uma americana e há um despertar de sensualidade, de pouca dura, Archibald (é este o nome do inglês) nunca esqueceu uma infidelidade do pai que ele acompanhou de perto, este pai que conhecia um segredo de um tesouro, assim descrito: “Consta agora que o célebre potentado negro Lobengula, depois da derrota que sofreu ao cabo de tanto serviço dado às tropas inglesas, se refugiou em Angola, para lá do Cuando, seguido de mais de 500 carregadores para poder levar consigo um fabuloso tesouro de marfim, pedras e ouro no valor de mais de 500 milhões de libras. Teria subido pelas margens do Luiana até encontrar uma floresta impenetrável onde enterrou o tesouro e se refugiou depois de envenenar todo o séquito”.

Não se esqueça que toda a trama do livro se organiza num diário de alguns dias que avançam para o fim do ano de 1999. Prossegue a viagem, o autor tem uma sensação premonitória do que o destino lhe prepara uma surpresa, entram novos personagens como o primo Kaluter, viagem difícil, esvoaçam muitas memórias e então abre-se em todo o seu fulgor um tempo africano: “Chegámos à Pedra do Tambor, onde pernoitaríamos antes de atravessar o Curoca e entrar no parque na manhã seguinte, já a noite vinha vindo. Com ela a aragem fria de uma brisa rasteira. É aquela hora que arrepanha a alma. E hora que estrangula a digestão das horas, o programa das rotas, a ordem das tarefas, o compromisso, a lei. A incidência derradeira daquela luz direta recolhia costas para o poente, a ver estender-se a sombra da pedra a quem encostava, a da margem de espinheiras que acompanhava o decurso de um declive”. Fez-se acampamento numa gruta e dá-se pormenores sobre a morte do rego: “Deve sem dúvida ter havido alguma altercação a preceder o trágico desfecho. Achibald Perkings não pode ter deixado de procurar induzir o grego a revelar-lhe detalhes que dessem sentido àquilo tudo. E o grego pode ter respondido de maneira a exasperá-lo”.

A narrativa anda à deriva, Archibald é a figura central, faz-se viagem para levar o corpo do grego, a trama é um misto de memórias e um olhar sobre aquele cortejo que avança quase ao Deus dará. Num dado passo, ouvimos uma reflexão sobre o estado de Angola: “Por toda a Angola se consome e vive como se o mundo fosse acabar amanhã, se calhar vai mesmo, e não há que reservar seja o que for para um improvável mais tarde. Ou não tirar o rendimento imediato possível do que se tem à mão Angola é grande e enganosa até inscrever no panorama geral da sua crise expressões de sofreguidão que afinal são antes de cultura e de sistema”. Reatam-se conversas, há imensos esclarecimentos antropológicos. Assim chegamos a 31 de Dezembro, é o momento azado para decifrar os papéis do inglês: “O caderno de terreno de Archibald Perkings andara muito tempo sem ser usado, tinha uma nota ou duas que remetiam a 1910, a seguir duas páginas com desenhos, uma a reproduzir a hidrografia da região e outra com o croquis e os alçados do sítios das pedras, e depois de repente registava tudo o que se tinha passado desde que fora pela primeira vez ao posto apresentar-se aos autoridades portuguesas e dentro do caderno, dobrado em três e ao comprido, havia o papel solto de uma carta. Depois, na primeira página vazia após os assentos de Archibald, escrita a lápis azul e grosso e em letras garrafais e toscas, encontrei uma só frase devida a outro punho”.

Este livro é não só inclassificável como permite dizer tudo e o seu contrário sobre este mistério supremo da vinda de um Archibald que vem à procura de um tesouro que nada tem de espetacular: “Angola está cheia de tesouros desses, enterrados não pela natureza, mas pela mão dos homens. Só no planalto do Huambo consta que existem pelo menos três: um de um rei egípcio, outro de pré-nacionalistas brasileiros que, na esperança de poder voltar um dia, tinham escondido o seu garimpo quando após muitos anos de deportação em Caconda lhes impuseram o regresso ao Brasil, e outro de um tal Pedro Cota, português, todo em ouro e guardado em gamelas de cera”.

E assim chegamos ao primeiro dia do novo século e toca a rebate o poeta Ruy Duarte de Carvalho no seu texto último de despedida depois de termos sido esclarecidos sobre o conteúdo dos papéis do inglês: “Todo este tempo sido de chuva e fui aferindo daqui, todas as tardes, os caminhos da água que inexoravelmente nos iam envolvendo umas vezes pelo Sul e depois a rodar para Leste, outras pelo Norte, uma massa pesada e compacta de céu muto escuro que do Oriente se estendia até muito longe, uma barreira azul-cobalto por detrás das nuvens mais próximas e das suas bordaduras, dos seus debruns, brancos e explosivos. Só o longínquo Ocidente preservava uma faixa de céu limpo, que o sol atingiu quando ia a pôr-se e de onde irrompeu então essa luz verde, rasante e limpíssima, que acontece às vezes e incandesce mais do que ilumina. De costas para o Ocidente, era o espetáculo destas fontes de inverosímil luz contra a barreira da chuva a Leste, painel total. A envolver o acampamento todo, o jipe de um lado, a tenda do outro, duas árvores no meio e entre e para além delas as pedras que nos servem de cozinha e as pessoas nelas, havia não apenas um, mas dois arco-íris, altos no céu, concêntricos e assentes no perfil do verde da mata próxima. E tudo exatamente no centro dos dois arcos. Uma coisa assim perfeita, concertada, determinada, irreal, e tão completamente ordenada em função daquele local, eclodia perfeita, qual aparição, e seria puro vício de prevenção não lhe conferir um estatuto de sinal”.

Obra inclassificável ou não, Ruy Duarte de Carvalho é nome cimeiro da língua portuguesa falada em africano.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18093: Bibliografia (44): “Os Papéis do Inglês”, por Ruy Duarte de Carvallho; Círculo de Leitores, 2002 (1) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

Havia muitos "brancos" verdadeiramente conhecedores e apaixonados por Angola, e outras ex-colónias, evidentemente, como este autor.

Alguns já falavam e escreviam com sotaque africano.

O caso mais flagrante foi Luandino Vieira.

Mas no fim, se sobrar alguma coisa, que não sejam apenas aquelas fronteiras.

Que sobre mais alguma coisa!

Fernando de Sousa Ribeiro disse...

Confesso que (ainda) não li "Os Papéis do Inglês" e, por isso, não posso falar do que não conheço. Mas li vários outros livros de Ruy Duarte de Carvalho, assim como de Luandino Vieira, Manuel Rui Monteiro, Mia Couto, João Paulo Borges Coelho, etc.

Luandino Vieira foi, de facto, o primeiro autor angolano a anunciar uma nova literatura escrita em português e de coloração africana, como o Mário Beja Santos escreve, não só nos temas (a vida nos subúrbios de Luanda, povoados por negros, mestiços e brancos pobres, sempre com uma resistência anticolonial como pano de fundo, mesmo quando ela não é explícita), mas também na forma. Luandino foi o primeiro autor a assumir, como sendo sua própria, a fala popular de Luanda (e não só, pois ele também inventou bastante), dando a essa fala uma dignidade que ela não tinha recebido até então da parte de outros escritores, para os quais ela era apenas pitoresca. Digamos que Luandino escreve numa espécie de "crioulo", em parte real e em parte inventado, que é assumidamente seu.

Ruy Duarte de Carvalho não fez nada disto. Fosse em prosa, fosse em poesia, Ruy Duarte de Carvalho sempre se exprimiu no português rigoroso de Portugal, que era o seu próprio. Não concordo, portanto, com o Mário Beja Santos, quando diz que «Ruy Duarte de Carvalho é nome cimeiro da língua portuguesa falada em africano». Que Ruy Duarte de Carvalho seja um nome cimeiro da língua portuguesa, é indiscutível, mas não o é da língua falada em africano. Não a falou em africano nem tentou falar, ao contrário do que fez Luandino Vieira.

Uma outra diferença existente entre Ruy Duarte de Carvalho e Luandino Vieira reside no local e no ambiente onde decorre grande parte das respetivas obras literárias. Luandino mostra-nos uma Angola suburbana, de Luanda (mas que poderia ser também de Benguela), enquanto Ruy Duarte de Carvalho nos mostra uma Angola essencialmente rural, do Sul, fruto das suas extensas e intensas vivências entre os povos agropastoris do Namibe, com destaque para os Mucubais (ou Kuvales, como ele preferiu chamar-lhes), o mais altivo e orgulhoso de todos os povos angolanos. Luandino e Ruy Duarte são duas faces complementares da mesma moeda, uma moeda chamada Angola, uma Angola onde nenhum deles nasceu, aliás.

José Luandino Vieira (pseudónimo literário de José Mateus Vieira da Graça) nasceu em Ourém e Ruy Duarte de Carvalho nasceu em Santarém. Mas não há ninguém que tenha coragem para pôr em causa a profunda angolanidade de um e do outro.


Fernando de Sousa Ribeiro


P.S. - Fiz acima referência a um povo do Namibe chamando-lhe Mucubais, acrescentando que Ruy Duarte de Carvalho preferia chamar-lhe Kuvales. A diferença entre uma e outra designação não é tão grande como possa parecer. As línguas bantus, como o são a quase totalidade das línguas angolanas, são extraordinariamente lógicas. Os nomes, verbos, adjetivos, etc. contêm um núcleo fundamental, chamado radical, ao qual são acrescentados prefixos e sufixos (estes só nos verbos), de modo a que a palavra resultante exprima com rigor aquilo que se quer dizer. Neste caso concreto há um radical, que é "Kuvale", que se refere a um povo e a tudo o que lhe diga respeito. Um homem ou mulher pertencente a este povo é chamado "Omukuvale", com o acrescentamento do prefixo "Omu-". A palavra "Omukuvale" passou para a língua portuguesa como "Mucubal". Ruy Duarte de Carvalho, porém, preferiu ater-se ao radical apenas, que é "Kuvale".

Antonio Rosinha disse...

Mas como sabe coisas de Angola, Fernando Sousa Ribeiro.
As coisas que sabe não é de quem passou lá 24 meses de camuflado a escrever cartas para as madrinhas de guerra.
Nem outros tantos a levantar pesos e alteres no baleizão ou no bar américa.

Fernando de Sousa Ribeiro disse...

Antonio Rosinha, garanto-lhe que "só" passei 27 meses de camuflado (e já foi muito), nas densíssimas e profundas matas dos Dembos e na fronteira Norte de Angola. Fui alferes miliciano e contei, entre os meus magníficos subordinados, com 13 não menos magníficos angolanos, que estavam a cumprir o serviço militar obrigatório tal e qual como os seus camaradas da Metrópole, incluindo eu próprio. Tenho imensas saudades daqueles jovens puros, espontâneos e generosos, que eram oriundos de diversas partes de Angola e que me ensinaram montões e montões de coisas. Regressei em 1974 com o "bichinho" de Angola cá dentro e continuei a informar-me sobre o país e a sua gente até hoje.