sábado, 24 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18350: (D)o outro lado do combate (20): Os fracassos assumidos pelo PAIGC no ataque a Buba, de 12 de outubro de 1969… E os outros que se seguiram (ao tempo da CCAÇ 2382 e do Pel Mort 2138) - Parte II (Jorge Araújo)


Guiné > Região de Quínara > Buba > Rebentamento de granada no Rio Grande de Buba durante um ataque IN (período 1968/1971 – CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892). Foto do ex-alf. Joaquim Rodrigues, in: http://guine6871.blogspot.pt/ (com a devida vénia).

Infografia: Jorge Araújo (2018)



Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974)


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > OS FRACASSOS ASSUMIDOS PELO PAIGC NO ATAQUE A BUBA [12OUT1969]… E OS OUTROS QUE SE SEGUIRAM (AO TEMPO DA CCAÇ 2382 E DO PEL MORT 2138) - Parte II
por Jorge Araújo


1.  INTRODUÇÃO

Este segundo fragmento relacionado com os dois ataques a Buba ocorridos no último trimestre de 1969 - o 1.º em 12 de outubro e o 2.º em 11 de dezembro - reforça o que, no entender dos responsáveis do PAIGC, foram os seus maiores fracassos registados durante o cumprimento do "plano de acções militares", elaborado para a região do Quinara e Tombali, executado com recurso a uma quantidade significativa de equipamentos de artilharia e com mobilização de um numeroso contingente de guerrilheiros de infantaria.

Esse "plano" (ou "programa"), para o qual foi concebido um calendário concreto, contemplava ataques a oito aquartelamentos das NT, que abaixo se identificam, com a primeira acção a iniciar-se em Buba e que, devido aos resultados desfavoráveis deste, foi entendido que se deveria realizar nova acção, com o segundo ataque a ser agendado para o final desta "campanha", a ter lugar no dia 10 de Dezembro de 1969.

Conforme já referido anteriormente (*), a decisão de escrever esta narrativa surge na sequência de uma investigação por nós realizada a propósito de uma foto de um «espaldão de morteiro 81», localizada no Arquivo Amílcar Cabral, existente na Casa Comum – Fundação Mário Soares. Aí tivemos acesso, também, a um relatório dactilografado, formato A/4, com um total de vinte e três páginas, sem capa e sem referência ao seu autor, elaborado no seguimento "das operações militares na Frente Sul" [http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40082 (2018-1-20)], onde se referem os aspectos mais importantes anotados antes, durante e depois de cada missão, nomeadamente: efectivos, equipamento, desenvolvimento da acção e avaliação.


2. OS FRACASSOS ASSUMIDOS PELO PAIGC EM 12OUT1969… E OS SEGUINTES…

Recorda-se que o primeiro ataque a Buba [12 de outubro de 1969] só foi concretizado depois de um longo período de minucioso reconhecimento sobre as melhores condições geográficas para a actuação da artilharia com três posições de fogo distintas. Por outro lado, esse reconhecimento previa também identificar as melhores vias de acesso para a infantaria e locais para a sua disposição, uma vez que iriam estar no terreno um universo superior a três centenas de combatentes, comandados pelo cap  Pedro Peralta [cubano] e por 'Nino' Vieira.

Entretanto, durante esse reconhecimento, um grupo de guerrilheiros foi descoberto pelas NT, em 7 de outubro de 1069, quando o sentinela do Pel Mort 2138, colocado no posto de vigia junto à pista de aviação, detectou elemento IN nas imediações da pista. No dia seguinte (dia 8), na continuação do reconhecimento supra, um grupo IN accionou uma mina A/P reforçada implantada pelas NT junto ao cruzamento das estradas de Nhala e Buba (in: História do Pel Mort 2138, p3).

"Esta operação iniciou-se com um atraso de meia hora, devido a dificuldades na instalação dos canhões. Eram 17h30 quando o ataque se iniciou com fogo dos canhões B-10, que falharam os alvos, tendo apenas dois obuses atingido o quartel. O inimigo [NT] respondeu com um nutrido fogo de morteiros [Pel Mort 2138], canhões [2.º Pelotão/BAC], metralhadoras e armas ligeiras [CCAÇ 2382 (já com as 'malas feitas' para o seu regresso à metrópole) + Pel Milícia]. Além disso, unidades inimigas [NT] de infantaria cruzaram o rio [Grande de Buba], pondo sob a ameaça de liquidação do posto de observação, os canhões, em retirada, e os morteiros.

"Nestas condições, abortou a acção da artilharia, que teve que se retirar, sempre debaixo do fogo das [NT]. Como não actuou a artilharia, tampouco actuou a infantaria. Tivemos duas baixas na operação: dois feridos, um dos quais veio a falecer mais tarde. Além disso, temos a lamentar a morte de um camarada de infantaria, por acidente."


3. O SEGUNDO ATAQUE A BUBA EM 10 EM DEZEMBRO DE 1969… QUE PASSOU PARA O DIA 11 DEVIDO A SUCESSIVAS FALHAS NA SUA ORGANIZAÇÃO,

Desenvolvimento da acção: [conclusão]

Como tivemos a oportunidade de dar conta no texto anterior [Parte I – P18346], o início do ataque deveria começar com o disparo dos foguetões das peças GRAD, seguida dos morteiros 120 para permitir o assalto por parte das forças de infantaria [10 de dezembro de 1969]. Para garantir o cumprimento dos objectivos definidos para esta acção, a comunicação entre o posto de observação e a posição de fogo das peças de artilharia far-se-ia, pela primeira vez, através dos rádios [modelo] "104". Aconteceu, porém, que estes não funcionaram no momento em que devia iniciar-se o ataque pelo que foi decido adiá-lo para o dia seguinte [11 de4 dezembro de 1969], optando-se pela substituição dos rádios por telefones.

No dia seguinte, nova decisão de suspender o ataque devido a uma série de falhas nas instalações telefónicas e, mais tarde desistir da utilização da artilharia, dada a actuação independente da infantaria, com a qual, por falta de meios de comunicação, não foi possível combinar um outro plano em substituição do que estava previsto.

Deste modo, este ataque contou, exclusivamente, com o desempenho da infantaria, que teve o seguinte desenvolvimento:

Actuação da Infantaria

"A infantaria, que não actuou no dia anterior devido à suspensão da operação, seguindo novo itinerário, ocupou as suas posições para a acção do dia 11 [Dez'69]. Duas horas depois da hora estabelecida para a actuação da artilharia (que não actuou), a infantaria atacou com todas as forças de que dispunha: 4 bi-grupos com 6 RPG-7 cada, com 5 obuses cada, tendo o 5.º bi-grupo ficado de reserva. Não obstante a pronta e dura reacção inimiga [NT = CCAÇ 2616/BCAÇ 2892, companhia "piriquita" que havia chegado a Buba em 10NOV69, ou seja, um mês antes + Pel Mort 2138, cujas esquadras eram já muito experientes], com fogo de infantaria, canhões e morteiros, a nossa infantaria permaneceu durante 45 minutos colada ao solo, realizando 5 vagas de ataque durante esse tempo.

"Desconhece-se o número de baixas sofridas pelo inimigo [NT]. Várias casernas foram destruídas. Do nosso lado houve um ferido ligeiro."



Infografia: Jorge Araújo (2018)

4. AVALIAÇÃO (CONCLUSÕES)

Impressões Finais

A páginas 19 e 20 deste "relatório" do PAIGC encontramos uma avaliação ao modo como foram acontecendo os vários ataques previstos no "plano", e os diferentes factores que influenciaram o desenrolar das "operações".

Assim, quanto ao reconhecimento dos quarteis, é referido o seguinte:

1. O reconhecimento aos quarteis inimigos (NT) demorou bastante, já que teve de ser feito completamente novo. Em quase todos os sectores, nunca se tinha levado a cabo um trabalho do género, e portanto não se dispunha de dados concretos sobre as vias de penetração nos campos inimigos (para infiltração da infantaria) e sobre possíveis posições de fogo com as respectivas distâncias (para a artilharia), já que dispomos de poucos mapas.



2. Quanto à questão do equipamento.

Fez-se sentir bastante agudamente a falta de farda e, especialmente, de botas. Para ilustrar bem este caso, basta dizer o seguinte: quando a bataria de artilharia que vinha de Cubucaré, depois do ataque a Cabedu [5.º - 6NOV69], chegou a Tombali, de 72 homens que tinha, só podemos conseguir para o ataque a Empada [7.º - 14NOV69] 5 peças de morteiros 82 (20 homens), porque grande parte dos camaradas estavam com os pés feridos por terem andado descalços e à noite.



3. Quanto à questão da alimentação.

Sujeitos a um grande esforço físico, com pouca alimentação (às vezes nenhuma), os camaradas "adoeciam" muito, dando como resultado uma grande falta de pessoal e enfraquecimento da disciplina.



4. Quanto à questão das comunicações.

Assinalamos as grandes dificuldades e por vezes a total impossibilidade em estabelecer comunicação entre o posto de observação e a posição de fogo e para uma coordenação efectiva entre a artilharia e a infantaria. Em todas as acções em que foram usados telefones ou os rádios de que dispomos actualmente, houve grandes problemas com esses equipamentos.


O "relatório" acrescenta ainda que:

1. O funcionamento do corpo de exército estava melhorando dia-a-dia, quer isoladamente, artilharia dum lado e infantaria doutro lado, quer a coordenação entre as duas armas, e, o que é importante, a infantaria já estava confiando um pouco mais na precisão da artilharia.

2. A actuação da artilharia melhorou sensivelmente. Tanto os canhões sem recuo, morteiros de 82 mm, e particularmente a arma especial (GRAD), demonstraram isso na operação de Cufar [8.º - 24NOV69] (a [pen]última que realizámos).



3. A actuação da infantaria estava melhorando também sensivelmente:

- aproximação rápida e silenciosa dos quarteis inimigos;

- disciplina de fogo;

- grande segurança na ocupação das posições e progressão durante o combate. Basta assinalar que durante todas as operações só tivemos 3 mortos, todos no primeiro ataque a Buba (a nossa primeira operação) – um por mina, durante o reconhecimento, outro por acidente com arma de fogo e o terceiro por estilhaço de morteiro na resposta inimiga [NT] ao ataque de artilharia – e oito feridos ligeiros.

4. Apesar de todas as dificuldades materiais, e do grande esforço físico exigido no transporte dos materiais pesados, o moral dos nossos combatentes esteve sempre elevado.



5. O uso das armas antiaéreas durante as operações, pelo seu peso com a respectiva munição, revelou-se uma carga demasiado pesada para as nossas unidades (para transportar com relativa facilidade uma peça DCK com a sua munição são necessários uns 10 homens). Além disso, à excepção de Cacine [4.º - 4NOV69] (1ª operação iniciada às 16h45) todas as outras operações foram desencadeadas a horas em que a aviação e os helicópteros não podem já agir com eficácia.

Iremos continuar a desenvolver este tema com a apresentação dos principais factos ocorridos em cada um dos restantes ataques.

Com forte abraço de amizade,
Jorge Araújo.
22FEV2018.
______________

Nota do editor:

9 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Notável relatório, de 23 pp....Só pode ser de um artilheiro, cabo-verdiano (c0m formação na URSS) ou cubano...


Título: Relatório das operações militares na Frente Sul

Assunto: Relatório das operações militares do PAIGC contra Buba, Bedanda, Bolama, Cacine, Cabedu, Empada, Mato Farroba, Cufar. Utilização dos foguetes. Algumas impressões sobre a utilização da arma especial (GRAD) na Frente Sul durante os meses de Outubro e Novembro de 1969.

Antº Rosinha disse...

Um bom relatório em português era canja para os estudantes do império, dos liceus ou da escola primária.

Tudo o que estudava no liceu era da mocidade portuguesa quando esta era levada a sério, onde tinham acesso a bibliotecas, ginástica, treino militar etc.

Os ultramarinos gabavam-se que eram eles que falavam e sabiam o bom português, e não "os que íamos das berças onde éramos a maioria analfabetos e trocávamos o bê pelo vê e a bola era quadrada".

Um raio que os partissem aos brancos de 2ª e mulatos de 1ª, eram uns racistas e faziam booling com a gente.

No fim acabavam por se apaixonarem por nós, que eramos patricios dos pais deles.


Não sei se alguém sabe,mas foi em Caboverde que os primeiros ensaios de alfabetização de adultos nos anos 40, com os chamados professores regentes, se iniciaram.

Gabavam-se eles e eu acreditava e acredito.

Valdemar Silva disse...

Realmente o Relatório é escrito em português por quem sabe a nossa língua muita acima da média. Mesmo com formação na URSS, não estou a ver alguém a aprender português com estes conhecimentos ortográficos-sintaxe, sem já ter deles boas habilitações de base. A não ser que este Relatório tenha sido feito por alguém bastante habilitado e que nem sequer estaria no mato, antes numa 'central de secretariado' que registaria os acontecimentos, posteriormente, por informações recebidas.
Faz-me confusão como é que na transcrição do primeiro excerto do Relatório, em que aparece o texto rasurado, se transcrever o que é que lá estava escrito antes.
Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

Ainda sobre o Relatório.
Julgo que este Relatório e, com certeza, outros eram escritos por um alto Quadro do Secretariado do PAIGC, muito provavelmente, como diz o Rosinha, antigo estudante do império, que ficariam registados como de uma 'Acta' se tratasse.

A minha confusão é na rasura 'operação' transcrita como 'acção' que não se lê.

Valdemar Queiroz

Cherno AB disse...

Caros amigos,

Ainda podem rever as palavras do Cadogo Pai, no texto de biografia apresentado na TG, onde ele afirma claramente que eles (Assimilados Guineenses, Caboverdianos e outros de descendencia Lusofona), eram sistematicamente marginalizados diante dos Metropolitanos que, muitas vezes, nem sabiam escrever uma linha em Portugues.

E que, este facto, estaria na base da sua revolta nacionalista e no despoletar da insurreicao armada, na Guine. Ele mesmo, nao tendo ido para o mato, era considerado como antigo combatente das fileiras do PAIGC.

No primeiro Poste, o Jose Araujo referiu-se ao Irenio de Nascimento Lopes, Guineense, e que esteve envolvido na formacao dos artilheiros.

Os filhos dos Comerciantes e da pequena burguesia na Guine que, mais tarde, foram para a luta, nao tinham nada a dever aos seus colegas Caboverdianos e nao vejo porque eh que tinha de ser, necessariamente, um Caboverdiano a redigir o tal relatorio.

Antº Rosinha disse...

O Cherno e o velho Cadogo pai ou mesmo o Cadogo filho ou mesmo Amilcar Cabral, ou em Angola os Van Dunem os Boavida tinham e têm razão ao dizer que eram preteridos profissionalmente, ou em benesses ou primazias por quem chegava da Metrópole.

Mas o que se estranhava mesmo pelos metropolitanos que tinham emigrado por conta própria para as colónias, era ver chegar governadores, secretários do governo (equivalente a ministros) directores de serviços etc. em comissões ou em missões técnicas:geológicas, agrícolas, geográficas militares, etc. com bons tachos, quando a malta que lá vivia, competente para esses lugares era preterida e com isso ficava revoltada.

Mas será sempre assim, quem manda quer gente da sua confiança, mesmo que seja menos competente que outros.

Hoje, na Guiné e em Angola, os técnicos africanos continuam a queixar-se que vêm os estrangeiros (europeus, brasileiros, espanhóis, italianos) com bons tachos para actividades que eles podiam desempenhar.

Eu já estive na Guiné em Angola e no Brasil e na Madeira,sempre em trabalhos umas vezes trabalhos quase forçados e mal pagos,outras vezes autênticas férias e bem pagos...e tenho umas explicações bem sacanas que não vêm para aqui, agora.

Dizia-se e alguns hoje ainda pensam que se Salazar tivesse nomeado Cabral como Secretário da Agricultura para Angola ou para a Guiné ou Cabo verde ou Moçambique, tinha resolvido a questão.

Seria? Difícil de prever.

Havia milhares de Cabrais e não havia tachos para todos.

Manuel Luís Lomba disse...

Pelo estilo e objectividade, a autoria desse relatório pertencerá ao comandante Osvaldo Lopes da Silva, o comandante da artilharia do PAIGC na Frente sul, nesse ano (vide post 14 150).
Manuel Luís Lomba

Anónimo disse...

Antes de mais, um agradecimento aos camaradas que tomaram a iniciativa de dar achegas ao meu texto, em particular sobre a possível identificação do(s) autor(es) do "relatório" citado.

Com efeito, considero a informação do camarada Manuel Luís Lomba relevante e fiável, pelos documentos que tenho vindo a consultar e que a seu tempo divulgarei.

Quanto ao comandante Osvaldo Lopes da Silva eis uma pequena biografia:

Nasceu em 1936 na ilha de S. Nicolau, em Cabo Verde. Fez os estudos primários na cidade da Praia e os secundários na cidade do Mindelo e em Sá da Bandeira (Lubango), em Angola, onde a dada altura foi residir com o seu pai. Tendo sido estudante de Engenharia na Universidade de Coimbra, integrou em 1961 o grande grupo de estudantes africanos que fugiu para Acra, via Paris. Em 1966 licenciou-se em Economia na antiga URSS e assumiu vários cargos políticos e militares de responsabilidade no PAIGC, nomeadamente, na Artilharia. Em 1977 foi eleito para o Conselho Executivo da Luta e durante o regime de partido único em Cabo Verde foi ministro da Coordenação Económica. (In, 4 - "A inportância da experiência migratória nas trajectórias dos dirigentes cabo-verdianos do P.A.I.G.C. (1956-1980)".
COUTINHO, Ângela (2005) - "Os dirigentes do P.A.I.G.C. (Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde) da fundação à ruptura - estudo de trajectórias individuais, de estratégias familiares e de ideologias". Universidade de Paris I - Panthéon - Sorbonne.

https://pascal.iseg.utl.pt/~cesa/images/files/diaspora2016_texto4.pdf

Jorge Araújo.


Anónimo disse...

Faltou referir que o título da obra supra corresponde à tese de doutoramento da autora.

Que tenham uma boa noite.

Jorge Araújo.