sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18304: Notas de leitura (1039): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (21) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
Não conheço documento mais demolidor do que este. Li os trabalhos de Carvalho Viegas, vários estudiosos apontam-no como figura exemplar, na sequência de Velez Caroço. O que aqui se lê não é só pouco abonatório para Carvalho Viegas, o que o gerente do BNU de Bissau informa a aquele que virá a ser ministro das colónias é que a administração da Guiné é o maior lamaçal do mundo, lavra a maior das corrupções é como se o governador tivesse agradavelmente cercado por uma alcateia de ladrões.
Na verdade, nada é definitivo na História, pensamos num homem íntegro, dotado de ousadia e bravura, com os olhos virados para o desenvolvimento, e sai-nos um cafajeste.
Cuidado com a História...

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (21)

Beja Santos

Estamos em 1938 e o gerente Virgolino Teixeira envia com o caráter de absolutamente confidencial um documento verdadeiramente explosivo ao Presidente do Conselho Administrativo do BNU, nada de mais demolidor se podia escrever sobre o Governador Luiz de Carvalho Viegas. Documento extenso, com um ponto de vista tão representativo, só se corta aquilo que não é verdadeiramente essencial. Trata-se de uma carta prometida onde o gerente envia informações que lhe parecem interessantes “para identificar os tristíssimos aspetos morais, os económicos, administrativos e políticos que a Guiné vem atravessando” e começa por apresentar o governador, mais brutal não podia ser:
“A imoralidade do seu viver particular é, positivamente, afrontosa para a vida moral da colónia, pelo reflexo que tem na sua vida pública que é também imoralíssima porque nela campeia a mentira e o embuste político, próprio de indivíduo que serve por mero interesse uma situação política mas espera ficar bem com outra que supõe poderá vir, pelo pior que seja, com tanto que ele a sirva e se sirva a si próprio”. E mais adiante diz que o governador está rodeado da pior escumalha que há na colónia e que dela se serve para todos os fins. “E ela serve-se dele para conseguir os seus fins também. Assim é o que vai por esta pobre Guiné e se conhece bem, mas contra o que não pode haver reação porque o honrado que a denunciara é esmagado pela matilha insaciável”.

Vejamos os aspetos morais denunciados por Virgolino Teixeira.

Logo o Chefe de Gabinete, Neves Ferreira, cujo estado normal é de permanente embriaguez. “Vivendo publicamente com uma meretriz, em casa do Estado, fazia falcatruas por onde podia. Dias depois de ele assumir a gerência desta agência queria um crédito de dez contos alegando que pagaria com dinheiro que o Estado lhe devia, o que era falso. É claro que não foi atendido".

Agora, o mais inconcebível atentando à moral. “No hospital de Bolama, entra a amante do senhor governador para o Dr. Eurico d’Almeida lhe fazer um aborto, conforme ordem superior que recebeu. Sai-se mal. A mulher fica em perigo. Chama-se o médico Pimentel que, com desassombro e para não ficar amarrado ao que de mal se passara grita alto e bom som que vai ali porque uma vida está em perigo e não porque tenha nada a ver com o aborto. Até à data não deixou de ser perseguido pelo Governador Viegas. Mais tarde, uma desavença entre o médico abortador e o padre de Bolama, um pobre homem de fraquíssima figura; aquele queixa-se ao senhor governador que este lhe atira à cara o aborto. O senhor governador mandou o médico esbofetear o padre e este cumpriu. O padre pediu justiça mas não a houve de parte nenhuma”.

Para o gerente, o governador é um dos homens mais vingativos do mundo, além de lúbrico. O próximo atentado à moral vem do Gabu e diz o gerente que a região dos Fulas, “raça esta que tem, segundo os entendidos, as mulheres mais esbeltas da Guiné. Passava muito por lá o senhor Governador Viegas e o administrador parece que não era esquivo a forçar indígenas a prestar vassalagem total ao seu senhor. Apareceu uma Fula, tipo estátua, e sua excelência mandou-a seguir para o palácio do governo. Pouco depois, a Fula retirava-se fazendo agravos sérios ao senhor governador e transmitindo-os ao administrador que fez deles eco. Resultado, o administrativo foi perseguido como se fosse cão danado, esteve meses e meses sem pão para a família e continua perseguido”.

A próxima história passa-se em Bolama em que há um administrador crónico que é sabedor e esperto. Obriga os indígenas da região a darem-lhe dinheiro. “É público que no tempo da campanha do arroz persegue os indígenas obrigando-os a irem vender o produto a comerciantes de quem recebe dinheiro. Ao homem que vendia pólvora aos Canhabaques e que hoje é o herói da pacificação que nunca existiu se não em informações ao senhor ministro – falsas como judas – exigiu o administrador de Bolama, só de uma vez, 13 a 14 contos para tapar um furto que tinha no cofre a seu cargo. Depois, não lhe pagou e exigiu-lhe mais dinheiro, que ele foi obrigado a passar, declarando que não lhe deve nada”.

Vem agora à baila uma figura bastante conhecida na época, Landerset Simões:
“Para os Bijagós é enviado o Chefe de Posto Landerset Simões, com ordem de mandar relatos em cima de relatos garantindo a pacificação dos Canhabaques. O homem chega lá e quase não os vê. Não tem sequer quem lhe vá buscar uma bilha de água. Não encontra respeito nem subordinação da parte dos indígenas. Castiga severamente um, mais insubmisso e atrevido. Escreve claro, a dizer que, na verdade, era mentira os Canhabaques estarem submissos. Processo feito, com andamento rápido. Conselho disciplinar formando por gentes submissas a ordens que, antes do julgamento, marcavam sentença. Reúne tal tribunal e porque um membro se insurge a sentença não podia ser a que se ordenara. Lavra-se a sentença esperada pelo ajudante do senhor governador que a leva urgentemente a Bolama e volta com ordens terminantes para que os doutos juízes lavrem imediatamente outra sentença à vontade do governador. Assim se fez”.

O rol de imoralidades continua:
“Nomeia-se chefe de posto interino um imoral de nome Ruy Moutinho Teixeira que não merecera confiança numa interinidade que fizera na alfândega. Chegado ao posto, veste-se de farda e sapato de polimento e vai participar aos sobas o seu casamento, exigindo 500 escudos a cada um, sob ameaças. Pouco depois, alia-se a um cadastrado mulato – Mário Lopes – e fazem contrabando de pólvora, do chão francês para o nosso, obrigando os indígenas a carregá-la e a distribuí-la. Um alfandegário descobre o crime – bem grave – e denuncia-o. Querem calar a denúncia mas o funcionário não retira a queixa. O criminoso é julgado por um tribunal especial – especialíssimo, cujo presidente me disse horas antes da sessão principiar: ‘Venho salvar este coitadinho, por ordem do senhor governador’. Devido a uma atitude de um dos componentes do tribunal. O homem não pode ser absolvido e foi condenado numa pena leve e ficou… preso a fingir até à extinção da pena. O registo criminal não acusa este crime porque o senhor governador intimou o tribunal a não fazer o respetivo boletim para o criminoso sair logo da colónia com um boletim limpo”.

Em tudo quanto à corrupção, Carvalho Viegas está presente, é o que diz o gerente do BNU. E vem mais uma história:
“O senhor governador é íntimo de um inspetor administrativo que veio fiscalizar os serviços da Guiné. Chama-se Capitão Salvação Barreto e eu conheço-o do tempo em que, sendo ele administrador do concelho de S. Tomé, se locupletou antecipadamente com as percentagens do imposto indígena e queria depois que eu, como gerente do banco, lhe emprestasse esse dinheiro sem garantia e sem ninguém saber (sic), por uns dias (?) a fim de se safar às malhas de um processo-crime. Este homem é uma nulidade insanável. A sua incapacidade é notória. A sua moralidade é duvidosa. Como inspetor, alojou-se na casa particular dos que vinham inspecionar, bebendo e comendo à custa deles, para que eles lhe ensinassem a fazer o serviço de inspeção. É espantoso mas é assim mesmo. Caiu num ridículo tremendo. Íntimo do senhor Governador Viegas, era-lhe tão leal que me chegou a vir avisar de propósito que aquele me andava abrir o meu correio particular desde que eu tinha chegado à colónia, porque se supunha que eu fosse um espião do Sr. Dr. Francisco Machado”.

Seguem-se mais denúncias que envolvem o Secretário da Administração de Bolama que se apropria de dinheiro à farta, ninguém se queixa, têm medo das perseguições. No dizer do gerente de Bissau até o Capitão Velez Caroço, familiar do antigo governador, Secretário dos Negócios Indígenas, vende munições e carabinas, tal como aconteceu na revolta dos Felupes. A podridão chega às obras públicas, oiçamos Virgolino Teixeira:
“Nas obras públicas é engenheiro diretor interino um celebérrimo Alambre. Rouba-se por todos os lados. O Secretário Leite de Magalhães denuncia o roubo, o ladrão é preso. Era dos mais íntimos do senhor Governador Viegas. Procede-se com todo o vigor, para dar brado. Passa o tempo, o ladrão é solto, o processo não anda. O gatuno volta à intimidade do senhor Governador Viegas. Pronunciado ainda, entregam-se-lhe as obras do Estado. As roubalheiras crescem então às culminâncias. O ladrão ganha (?) centenas de contos fazendo as maiores porcarias que pode. Na abundância de dinheiro, nasce a abundância de cerveja e uísque – é tudo para o pessoal das obras públicas. Ao denunciante Magalhães, o ladrão empresta alguns contos. Tudo se sabe mas nada se coíbe”.

É um rol extensíssimo, vamos continuar. Quem estuda Carvalho Viegas e todos os trabalhos que nos legou fica convencido que houve por ali um governador íntegro. Virgolino Teixeira tinha o cargo em jogo, caso se lhe soltasse injúria ou calúnia. É por isso que se deve atribuir muita atenção a este documento carregado de vitríolo e trotil.




(Continua)
____________

Notas do editor:

Poste anterior de 2 DE FEVEREIRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18279: Notas de leitura (1037): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (20) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 5 DE FEVEREIRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18286: Notas de leitura (1038): “Modelo Político Unificador, Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau”, por Livonildo Francisco Mendes; Chiado Editora, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antonio Rosinha disse...

Mas que "língua de oiro"a deste bancário!

De facto viver ilhado em Bolama, o melhor passatempo para não morrer de tédio, seria mesmo cortar na casaca uns dos outros.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Corro o risco de me repetir, mas continuo a considerar que estes documentos são muito valiosos porque nos dão um ideia muito completa do "imbiente" que se vivia no ultramar português pouco antes da guerra. Era bom que soubéssemos quem é quem e o que fez antes e, principalmente, depois de ali ter estado...
Era de cortar à faca. As invejas eram próprias de gente "piquena" de espírito, mas muito ambiciosa a quem a administração estava confiada e o que era pior em regime de monopólio.
Uma actuação verdadeiramente saloia!
O pior é que muitas destas afirmações eram fundadas.
É possível cruzar informação com outros depoimentos e ver a quem a administração estava confiada.
Pela descrição de alguns intervenientes vemos a quem o ultramar estava entre. No mínimo "aos bichos". Eram mesmo os melhores de todos nós os que iam gerir e desenvolver as colónias!
São os últimos anos da acção civilizadora e de desenvolvimento da administração portuguesa.
Quer se queira, quer se não queira a administração das colónias será a causa próxima da guerra 61/74.
Depois veio a guerra que não passou de "uma fuga para a frente". Todos à chegada ainda vimos a acção benfazeja da administração.
O que nos "ex-TO daquelas ex-PU" hoje sucede pouco me importa.
Um dirigente político da Guiné disse, há alguns anos, quando o acusaram de actuação viciosa na diplomacia,que a Guiné tinha tido uma boa mestra nessa área: a potência descolonizador.
E tinha uma certa razão. Infelizmente.

Um Ab. e bom fds
António J. P. Costa