segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18356: Notas de leitura (1044): “Paralelo 75 ou O segredo de um coração traído”, por Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira; Oficina do Livro, 2006 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Em 1984, mestre Eduardo Lourenço sublinhava o silêncio que parecia ter-se abatido sobre a experiência da descolonização, parecia sintomático de um desinteresse pelo fenómeno do colonialismo português, escrevia-se pouco sobre tudo o drama africano.
Em rigor, as coisas não se passavam assim. Por um lado, aflorava uma literatura da guerra e impunham-se nomes; mas a chamada literatura dos regressos, pujante de melancolia, de crítica virulenta à descolonização e memórias em conflito emergia nessa década e nunca mais parou. O livro "Paralelo 75" é uma bela metáfora de um retornado que irá regressar a África, é uma tessitura lírica muito arriscada, já que os autores primam pela absoluta e despretensiosa simplicidade.
É nesse retorno e nesse regresso que os autores abrem espaço para uma história muitíssimo bem contada da reconciliação com a vida.

Um abraço do
Mário


Paralelo 75 ou o segredo de um coração traído

Beja Santos

Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira venceram em 2003 o Prémio Literatura Gulbenkian com o livro Comandante Hussi, uma história enternecida de um jovem durante o conflito político-militar de 1998-1999, na Guiné-Bissau, um jovem herói que não esquecia os ferros da sua bicicleta, algures em perigo. “Paralelo 75 ou O segredo de um coração traído”, Oficina do Livro, 2006, marca o regresso desta dupla, desta feita uma história quase mágica de um colono regressado em 1975 e que 30 anos depois se põe a caminho da sua fazenda onde o espera a definitiva reconciliação com um amor traído. A memória da descolonização perfila-se com um género literário estuante, é uma literatura de regressos atravessada por nostalgia, traumatismos que ainda não sararam, testemunhos da derrocada imperial e até representações que podem albergar ressentimentos, ilusões e mistificações. Há os profundamente ressentidos, aqueles que escrevem memórias coloniais para dizer que queimaram, sabotaram e destruíram o que não puderam trazer, trata-se de uma raiva que não se apagou; há aqueles que reelaboram cenários políticos-ideológicos para justificar que houve traição e abandono; há aqueles que recordam o que era a vida das fazendas em África, o que era o doce viver naqueles anos 1950, 1960 e 1970 e que foram brutalmente interrompidos, e daí uma incompreensão tão amarga; há também quem testemunhe nas suas memórias coloniais o que era o racismo, a relação do colono com o colonizado, do colono com a família, do retornado com a metrópole. Como escreve Mário Machaqueiro em “O Adeus ao Império”, Nova Vega, 2015, a propósito das memórias em conflito: “A recente erupção editorial de memórias de África corresponde ao retorno do recalcado na nossa sociedade: o reenvio à presença, esquecida mas não dissolvida, dos ‘retornados’, simultaneamente emissores e recetores deste género de literatura memorialística”.
Relatos sob o trauma da pedra, associados à descolonização, uma onda revivalista que está longe de se esgotar.

Que trama urdem os autores de Paralelo 75? A um fazendeiro de café, retornado em 1975, é diagnosticado que tem um cancro, é o arranque do livro em grande estilo: “Um belo dia, assim, sem mais nem porquê, recebeu a notícia. Recebeu a notícia que ninguém quer receber. Sentiu o chão esconder por baixo dos pés, ficou soterrado pela revolta, esmagado pela angústia. Foi como se tivesse levado um soco no estômago, tão violento, que o deixou com as costas a arder. E caiu redondo na sua insignificância”.
O senhor engenheiro vive numa pensão na Praça da Alegria e o pouco que vai mudando ao longo das décadas foi a televisão que passou de preto e branco a cores. A notícia do médico é coincidente de um sofrimento físico incontornável, são vómitos em ondas sucessivas, acaba por se alimentar de iogurtes. Informa o médico que vai regressar a África, este repreende-o, é uma rematada loucura, fica exposto a várias doenças agora que o seu organismo está irremediavelmente débil. Mas o senhor engenheiro tomara uma decisão inabalável. Escreve então ao filho, Carlos, com quem cortou relações há 30 anos e anuncia-lhe o regresso. Carlos fica atónito quando lê que o pai pretende regressar às Terras do Mundo Perdido. De um reencontro difícil, as penosas circunstâncias da saúde do senhor engenheiro leva a que se reinstale a solicitude e o carinho. Lá vão, em viagem arriscada até à Fazenda das Terras do Mundo Perdido, está tudo num escombro, é então que aparece um leal colaborador do senhor engenheiro, o capataz Orelhas, “um tronco de ébano, fino mais possante, olhar felino em pose de aristocrata, cabelos cor de cinza, rosto enrugado mas rosado”, lá vão de carroça até à casa de caça de fazenda, deteriorada mas com o conforto necessário. Os revolucionários há muito que partiram, os cafezeiros morreram uns atrás dos outros. E ficou o agoiro de que aquela terra estava assombrada. Assistimos ao entretecimento da relação entre estes três homens e é nesta atmosfera que vamos conhecer a história da mulher do senhor engenheiro que abandonou a família devido a uma paixão por um norte-americano, um engenheiro de minas. É naquela casa de caça que além de recordações se alberga o segredo de um coração traído que nos vai ser desvelado, ponto por ponto. A saúde o fazendeiro deteriora-se, há um médico cubano que lhe procura mitigar as dores. Com o desenlace fatal, Carlos abre um baú que encerra o grande mistério da vida do senhor engenheiro. “Carlos compreendeu tudo. O amor, a mágoa, a dor do velho. Perdoou tudo. A indiferença, o rancor, o desejo de vingança do velho. O senhor engenheiro não tinha morrido ontem mas no dia em que a mulher fugiu com o cowboy americano. Não morreu, deixou-se morrer. Aquele amor era um eucalipto, nada nem ninguém podia sobreviver à sua volta. Nem mesmo as raízes que unem um pai e um filho”.

Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira abrem um veio nesta literatura memorialista de retornos e regressos, de paixões em lugares de conflito que deixaram memórias indeléveis. Assumem um estilo de grande risco, numa escrita de uma hábil simplicidade roçam o fácil, e conseguem ganhar sempre mantendo o leitor fixado na obstinação do senhor engenheiro que regressa à sua fazenda em África para regularizar uma estranhíssima contabilidade que decorria de um coração traído e até de um filho rejeitado. Porque é simples o modo da sua fábrica de escrita e sempre galvanizante, basta este exemplo: “Chorou naquele dia e nos dias seguintes. Chorou nos dias dos anos seguintes sempre que se lembrava daquele dia. Mesmo assim, não queria apagar aquela imagem do pensamento. Era a dose de ódio que lhe permitia continuar a caminhar, a injeção de rancor que lhe dava energia, a lufada de ressentimento que alimentava a ilusão.
A ilusão de que, um dia, ela regressaria, arrependida, e ele a faria pagar pelo dia, os dias de todos os anos, em que sofreu por ela”.

Bela metáfora nesta história bem contada, a reconciliação com a vida, tendo como pretexto e pano de fundo um retorno e um regresso.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18344: Notas de leitura (1043): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (23) (Mário Beja Santos)

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