quinta-feira, 1 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18369: Manuscritos(s) (Luís Graça) (139): Um triste tuga entre três tristes fulas... Elegia para as vítimas da "justum bellum" do comandante Mamadu Indjai

Um triste tuga entre três tristes fulas

Elegia para as vítimas da "justum bellum" de Mamadu Indjai (*)
 

por Luís Graça
 

E de repente
tudo te é estranho,
o muro que corta, rente,
a brisa da manhã,
a fonte onde ainda ontem
os
djubis tomavam banho,
o portentoso poilão aonde ias rezar,
à tua maneira, ao teu irã,
ponta onde colhias a manga, a papaia, o abacaxi,
o macaco-cão que chora e que ri…

De repente
não sabes donde vens,
não sabes o que és,
aqui de camuflado e de G-3,
dois cantis de água,
oito cartucheiras e quatro granadas à cintura,
nem a verdadeira razão para matar e morrer,
não sabes o que fazes neste lugar,
muito longe da tua terra,
abaixo do Trópico de Câncer,
a 11 graus e tal de latitude norte.

Mal reconheces, pobre periquito,
os sinais da guerra,
o combate em noite de luar,
o cavalo de frisa esventrado,
os pássaros de morte,
os jagudis no alto da árvore descarnada,
a terra revolta, ensanguentada,
o arame farpado,  aqui e acolá cortado,
o colmo das moranças,  carbonizado,
o medo que não se vê mas se pressente,
num olhar de relance, breve,
sobre a tabanca que quiseram riscar do mapa,
as cápsulas de 12.7 da metralhadora pesada Degtyarev,
um par de chinelos,
os caracteres chineses dos invólucros, amarelos,
das granadas de RPG…

Um triste cão, famélico, vadio e louco, ladra
ao cacimbo fumegante
e o seu latido lancinante
ecoa pela bolanha fora.
A seu lado, a única velha,
que não se foi embora,
com a sua máscara impassível
de séculos de dor,
de seu nome, Satu.

Mais tarde, saberás tu,
saberão de cor,
os jovens pioneiros,  os blufos, do PAIGC,
que por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível,
hoje valoroso, amanhã insidioso,
combatente da liberdade da pátria,
hoje herói,  amanhã traidor,
que nunca conhecerá a glória nem a honra
do Forte da Amura,
transformado em Panteão Nacional.

Diz-me tu, Satu, mãe e pitonisa,
onde estão as mulheres da tua tabanca,
com os balaios à cabeça
e os seus filhotes às costas ?
Onde estão as tuas gentis bajudas, de mama firme,
cujo sorriso climatizava os nossos pesadelos ?
Onde estão o régulo e os suas valentes milícias ?
Para que lado corre o Rio Corubal
e donde vêm aqueles sons, ambivalentes, de bombolon?

Diz-me tu, homem grande,
onde fica o Futa Djalon ?
E de que ponto cardeal
sopram os ventos da história, afinal ?

Dis-me, mauro,  onde fica Meca ?

E a quem e para onde é que eu hei-de rezar ?
E, no seu conciliábulo, meu irmão,
os nossos deuses, o meu e o teu,
o que sobre nós
, cinicamente, decidirão ?

Diz-me onde está o velho cego,  mandinga,
a quem demos boleia, até Mansambo,
que tocava kora
e nos contava a história
de velhos e altivos senhores do Mali e do Gabu,
agora servos no seu chão ?

Passei na madrugada
de um final de mês de julho de 1969,
pela tua tabanca, abandonada,
do triste regulado do Corubal,
de que já não guardo o nome,  na memória:
Sinchã qualquer coisa,
Sinchã-a-ferro-e-fogo,
Afiá ou Candamã...
Que importa, de resto, minha irmã,
o topónimo para a história?!...

Venho apenas em teu socorro, meu irmãozinho,
quando as cinzas ainda estão quentes
no forno da tua morança,
da morança que fora também minha…

Raiva, sim, meu camarada,
Abibo Jau, meu bom gigante,
que serás mais tarde fuzilado em Madina Colhido
com o teu comandante Jamanca,
como eu te compreendo!…
Mas vingança, para quê ?

Do teu justum bellum ao justum bellum do teu inimigo,
de guerra em guerra se chega ao nada!

A um espelho partido me estou vendo,
e a mim mesmo me pergunto  quem sou eu,
um triste tuga entre três tristes fulas, ai!,
para te dar lições de história ?!

Saberei apenas,  muito anos depois,
que, julgado e condenado em Conacri,
fuzilaram o Mamadu Indjai, no Boé,
que diziam ser região libertada da Guiné…

O mesmo Mamadu Indjai,
fero e bravo comandante,

que fazia a sua justum bellum,
que os tugas de Mansambo irão ferir gravemente
em emboscada no decurso da operação Nada Consta,
o mesmo Mamadu Indjai,
que, três anos e meio depois, chefe das secretas,

será um dos carrascos de Amílcar Cabral.

Versão 12 (**), 
Alfragide, 1 de março de 2018 (***)
____________

Notas do editor:

(*) Muitos dos nossos camaradas nunca viram o rosto do IN, nem vivo nem morto... Durante a minha comissão, na CCAÇ 12 (1969/71), fizemos diversos prisioneiros, entre guerrilheiros e população civil... Mas o Mamadu Indjai, o Bobo Keita ou Mário Mendes, nunca lhes pus a vista em cima...  Destes três, Mamadu Indjai foi fuzilado pelos seus antigos camaradas, Bobo Keita morreu de morte natural, em Lisboa, e Mário Mendes foi abatido pela minha antiga CCAÇ 12...

O nosso blogue tem feito luz sobre estes homens que nos combateram... Temos vindo a juntar as peças do puzzle... E sabemos hoje um pouco mais sobre quem foram estes homens que lutaram por um ideal,  uma causa que consideravam justa ("justum bellum"), mas também espalharam a morte, o terror, a miséria e a dor no setor L1 ou setor 2 (para o PAIGC)... As populações civis foram as vítimas da violência, de parte a parte...

Durante anos Amílcar Cabral (e o seu partido, o PAIGC) foi glorificado e levado ao céu dos mitos... , foi para o  olimpo dos deuses e dos heróis... Hoje voltamos à terra, e a realidade é muito mais "mesquinha", ou seja, "humana"...

A PIDE/DGS (e seguramente outras polícias secretas, desde a do Sekou Touré, às francesa, russa, sueca e outras) tinham os seus "olhos e ouvidos" no próprio seio do PAIGC...  Não sei se Mamadu Indjai foi agente da PIDE/DGS, e se vendeu por 30 dinheiros como Judas, tal como sugere o historiador e nosso grã-tabanqueiro Leopoldo Amado... Seja como for, mais de meio século depois, temos dificuldade em perceber  como é que um homem inteligente e experiente como Amílcar Cabral (, mas também egocêntrico, vaidoso e ingénuo, como outro líderes revolucionários) se "deixou cair na armadilha" que o levou à morte: ao que parece, toda a gente sabia, menos ele, da traição que se estava a preparar debaixo da sua janela...

O que leva um "herói da liberdade da Pátria", como Mamadu Indjai, a tornar-se um "vilão" e um miserável "traidor"? Bom, isso é outra história... Infelizmente, a história está cheia de vilões e traidores...

Temos 21 referências no blogue sobre este homem... que pôs o lado meridional do chão fula a ferro e fogo nos  primeiros meses da época das chuvas de 1969.

(**) Vd. poste de 4 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16444: Manuscrito(s) (Luís Graça) (95): Por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível

(***)  Vd. poste de 14 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18316: Manuscrito(s) (Luís Graça) (138): a vida são dois dias e o carnaval são três

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Meu caro Luís Graça

Neste post dizes que Amílcar Cabral era "egocêntrico, vaidoso e ingénuo".
Alguém irá referir estas qualidades do líder, no Congresso em apreço, noticiado uns cinco ou sei postes mais abaixo? Creio que, como de costume, estarão quase todos no endeusamento político do revolucionário Amílcar Cabral, o Amílcar Cabral que,Luís, consideras "egocêntrico, vaidoso e ingénuo." Eu, que nada sei de revoluções, mas atento à complexidade dos homens, subscrevo as tuas palavras. E não vou ao tal Congresso.

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Mandela só houve um em África, foi pena, pena mais pelos guineenses do que pelos outros palop.
Mas se o Injai é suspeito de traição, traidores seriam mais outros 500, talvez Pedro Pires que ainda está vivo e bem de saúde saiba quantos foram dizimados, pois estava em Conacry.
Será que a PIDE tinha comprado aquela gente toda?
Sabemos muito bem o lado que patrocina a teoria da PIDE e de Spínola como mandantes.
Esse «boato» não ecoa em Bissau.