sábado, 10 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18398: Os nossos seres, saberes e lazeres (256): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 14 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Há quem fuja de viajar no Outono e no Inverno no Norte da Europa. É um equívoco, sendo facto que a temperatura esfria, o céu se apresenta nublado e os dias encurtem, é tudo uma questão de programar o melhor aproveitamento possível das horas de luz, uma cidade como Bruxelas franqueia as portas de esplêndidos museus, tem jardins e parques soberbos, nos bairros típicos aguarda o visitante a traquitana mais diversa e o turista endinheirado tem galerias de arte, lojas de antiguidades e ourivesarias soberbas, Antuérpia é ali ao lado, continua a ser um dos centros de lapidação de pedras preciosas sem rival. O viandante vinha com propósitos de estadia low-cost e foi bem-sucedido, como, com toda a sinceridade, se está a contar.

Um abraço do
Mário


Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (6)

Beja Santos

O viandante procura ser meticuloso, mete num bloco de notas o que vai fazendo ao longo do dia. Ora, como se escreveu anteriormente, andou-se por Namur e passou-se por raspão pela exposição “Shakespeare Romântico”, no museu Félicien Rops, artista que o viandante cultiva pela crueza, ferocidade dos seus desenhos e telas, quebrou com convencionalismos e foi sempre controverso com uma sensualidade inaudita para a época, como a capa desse folheto ilustra. A exposição de Shakespeare permitia uma leitura paralela entre as obras do autor de Hamlet e a visão pictórica dos artistas do meado do século XIX, sempre à procura das grandes epopeias amorosas, e daí este quadro de Paul Steck, a Ofélia dos amores hamletianos. Pede-se desculpa de não ter ido no noticiário da viagem a Namur, como convinha.



Tem sido dito com insistência que a chamada Bruxelas Capital dispõe de uma folgada cintura arbórea/florestal que permite aos amantes da natureza, na maior parte das comunas, sair de casa e entrar rapidamente num bosque, num parque ou num determinado troço da floresta de Soignes. O viandante sugerira na véspera ao seu anfitrião, caso houvesse luz e não o habitual céu de chumbo que fosse calcorrear o bosque de Cambre, de uma extraordinária beleza. Houve mesmo luz, pode-se ver o extraordinário cromatismo deste bosque em pleno Outono.




À volta dos lagos, havia uma questão intrigante: por que diabo as águas estavam completamente esverdeadas, tratar-se-ia do fenómeno da eutrofização? Não se encontrou resposta, no regresso perdeu-se a inquietação sobre aquela água verde. Mas que dá uma visão espetacular, dá, ainda por cima, gera equilíbrio e harmonia com o matizado do arvoredo circundante.



Para onde quer que se volte, o viandante deslumbra-se com a paleta de cores, esta desagregação de amarelos, verdes e castanhos, por vezes emaranhados, em muitos casos com o seu perfil autónomo. Abençoada manhã, uma enorme tranquilidade, gente a correr, gente a namorar, um completo folguedo com a nesga de sol e estes poderosos revérberos que tornam os bosques fascinantes, numa última acalmia que prenuncia o Inverno.



A tarde está pardacenta, o viandante apanha um autocarro e lança-se no centro da cidade. Hoje é que é, vai em adoração a essa monumentalidade que dá pelo nome de Palácio da Justiça. No livro “Bruxelas Percursos”, que serve de guia, diz-se claramente: “O Palácio de Justiça de Bruxelas não deixa ninguém indiferente. O seu financiador, o rei Leopoldo I e ministros escolheram, em 1861, Joseph Poelaert para seu arquiteto. Metáfora de uma justiça temível e invencível, o edifício devia ser uma obra excecional, símbolo de uma jovem nação em formação. Durante 17 anos, Poelaert, glorificado e depois repudiado, enfrentou esta construção desmesurada. Um monte de colunas, arcos babilónicos, escadarias e vestíbulos monumentais criam uma silhueta enigmática diante da qual passamos amiúde mas onde é raro entrar-se”. O viandante leva 40 anos de andanças por esta terra, viu sempre andaimes, reparações, pinturas, da cúpula ao piso térreo. O clima também não ajuda, a pedra enegrece facilmente. E o gigantismo do edifício é esmagador. Aqui estamos em contemplação.




O preito de homenagem aos mortos da guerra é constante em todo o país. Os exércitos do Kaiser por aqui entraram de roldão, deram pretexto à Grã-Bretanha em enfronhar-se na terra. O rei Alberto I não partiu para o exílio, confinou-se numa nesga de terra, junto à França, ali esteve em permanência a animar os seus homens, ficou por isso conhecido como o rei soldado. Os exércitos de Hitler esmagaram a resistência das tropas de Leopoldo III, assenhorearam-se do país, levaram os judeus belgas para os campos de concentração. A Bélgica sabe o que é ocupação, daí a difusão destes memoriais para que as novas gerações reconheçam que a paz é o bem supremo da humanidade.


É sem dúvida alguma um dos mais belos miradouros da cidade, mesmo por baixo está o reino do bricabraque, o bairro de Marolles e o seu velho mercado cheio de tradições, por aqui, no século XIX, andaram judeus da Europa de Leste a vender tudo e mais alguma coisa. Até onde a vista alcança temos o centro da cidade, quando os reis eram donos do Congo pretenderam ombrear, ressalvadas as distâncias, com Paris, remexeram na cidade de alto a baixo, fizeram avenidas desafogadas, refizeram igrejas, as novas riquezas mostraram a sua magnificência em palácios, Bruxelas acolhia a expressão de vanguarda das belas artes, a gastronomia fina, os pratos típicos de mexilhão e os chocolates que fazem furor no mundo. Dentro em breve vai chover, é uma boa ocasião para o viandante se lançar nas lojas de livros e cd’s usados. Amanhã, é certo e seguro, há experiências novas.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18375: Os nossos seres, saberes e lazeres (255): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (5) (Mário Beja Santos)

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