sexta-feira, 6 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18492: Notas de leitura (1055): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (29) (Mário Beja Santos)

Imagem que encontrei no Arquivo Histórico do BNU referentes à documentação da empreitada de dois pavilhões para os trabalhadores do BNU em Bissau


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
É o mais inusitado dos relatórios, este com data de 1940, parece que se trocaram as posições, o gerente de Bissau escreve com a vibração do alto representante do Estado na colónia. Envia para o BNU de Lisboa um documento que supera as 100 páginas, falando das instituições bancárias existentes, das colheitas das obra e do movimento dos portos, da vida económica e financeira dos municípios, vias de comunicação, o preço médio local dos géneros alimentícios, quais as indústrias locais, serviços públicos, transportes, listagens das autoridades, ramos de negócio, estado da Fazenda Pública...
Por vezes mordaz e sardónico, desmistifica a pacificação dos Canhabaques, que ele classifica como farsa, lembra que há agitação para os lados do Gabu, e não contém a sua prosa moralística, isto a propósito do monumento erigido nesse ano de 1940 para glorificar a pacificação dos Canhabaques falando em indignidade e impudor, não escondendo o seu pasmo como não vão parar à cadeia estes ofensores da política de verdade que orientava o país.

Um abraço do
Mário


Ilustração de Bernardo Marques publicada no Anuário da Guiné, edição de 1946, coordenada por Fausto Duarte


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (29)

Beja Santos

Olhando para a documentação disponível no Arquivo Histórico do BNU referente a esta época, salienta-se a existência de um conflito entre os responsáveis do BNU em Bissau e Bolama, o de Bissau tem consciência dos seus poderes, o de Bolama, mesmo ciente da mudança da capital, responde grosseiramente ao funcionário mais categorizado. E temos a guerra, com as suas diferentes flutuações, as colónias francesas ao tempo do governo de Vichy e depois, em 1943 a chegada dos norte-americanos e britânicos em força ao Norte de África. Em 1941, o novo governador é Ricardo Vaz Monteiro, traz como primeira missão proceder à transferência do governo de Bolama para Bissau, seguir-se-á paulatinamente a vinda para a nova capital das outras repartições públicas. É um período atribulado, de carestia, de alta de preços e perda de poder de compra, as reclamações do funcionalismo são incessantes. Recorde-se que já o relatório de 1940 da agência de Bissau apontava para o estado calamitoso da filial de Bolama, com os seus pesados prejuízos anuais, o número de comerciantes minguava, ainda se acreditava em Bolama numa certa reanimação dada pelo transporte aéreo, será sol de pouca dura, a Pan-Am abandonará Bolama em 1945 quando os hidroaviões estiverem ultrapassados. O BNU em Bissau suspirava pela extinção da delegação de Bolama, para evitar mais prejuízos.

Este relatório de 1940 traz uma verdadeira novidade que é uma análise detalhada das instituições bancárias existentes, merece a nossa atenção:

“Desde Janeiro de 1903 em Bolama e em Junho de 1917 em Bissau que se fundou na Guiné o Banco Nacional Ultramarino, única entidade que vem exercendo o comércio bancário.
Não fica mal, hoje, a tanto ano já de distância daquelas para que o mais modesto gerente desta instituição preste, neste seu modesto trabalho, o seu preito de homenagem ao homem que teve a visão plena de estabelecer a indústria bancária portuguesas nas terras do ultramar português, prevendo o futuro enorme que as nossas colónias teriam desde que esse desenvolvimento fosse tão eficaz quanto elas careciam. Referimo-nos a Francisco de Oliveira Chamiço e não esqueço o nome ilustre também de José da Silva Mendes Leal, o estadista que promulgou a Carta de Lei de 16 de Maio de 1864.
É pois, o Banco Nacional Ultramarino o único banco estabelecido na colónia, em Bolama e em Bissau.

A existência da filial de Bolama, há anos já, encontra a sua justificação apenas em funcionar nela a “caixa do tesouro” que será transferida para Bissau logo que aqui passe a funcionar a direcção de serviços de fazenda. Tem sido esta a razão apresentada para não se fechar Bolama. Mas, na realidade, não é razão de peso. Há anos que é na agência de Bissau que entra o grosso das receitas do Estado. Basta dizer-se que, de toda a organização administrativa da colónia, apenas as administrações de Buba, dos Bijagós e a da própria Bolama, ou seja, aquelas que movimentam menos volume de dinheiro, ali fazem os seus depósitos. Os importantíssimos depósitos das administrações, Gabu, Bissau, Cacheu e Mansoa, entram todos em Bissau. E as receitas alfandegárias mais importantes da colónia são cobradas em Bissau, é na agência de Bissau que entram também.
Bissau é a vida da colónia.

Bolama, capital da colónia desde 1879, e que foi adquirida para a coroa portuguesa em 1828, por doação feita pelos gentios Bijagós (Canhabaques) ratificada em 1837, tendo tomado posse dela Honório Barreto, será, hoje, uma múmia recordativa dos tempos passados a que, por amor real, ou por interesse pessoal, ainda estão agarrados alguns velhos fanáticos – sem dúvida respeitáveis – mas cuja opinião pouco vale nem conta já para se evitar que a capital da colónia seja em Bissau.
Até há pouco tem havido quem, conscientemente, tenha feito bastante para que a capital se mantenha em Bolama e só a um ritmo de conta-gotas se têm passado para Bissau os serviços de: Justiça, Obras Públicas, Cadastro, Correios e Telégrafos, Saúde, Agronomia e Veterinária, Marinha e os Aduaneiros. As gentes de Bissau têm visto reduzidos os vastos prejuízos que resultavam de ter que andar constantemente a caminho de Bolama, para tratarem de qualquer assunto oficial, por vezes de mínimo valor”.

Infletindo o escopo das suas considerações, passa a discretear sobre a agricultura, referindo que a “Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas, Florestais e Pecuários” pesa enormemente no orçamento da colónia, mas que é uma verba insuficiente para as reais necessidades, contudo demasiada em relação ao benefício que a colónia recebe devido à péssima organização dos serviços. E espraia-se em considerações:

“A Guiné poderia ser um inesgotável reservatório dos seus naturais produtos. Mas não há modernização, são tudo actividades tradicionais, feitas pelos indígenas, estes continuam a ser os únicos agricultores e produtores sem terem a menor assistência de dinheiros, de alfaias, de sementes ou de ensinamentos. Fazem o que se fazia há centenas de anos e como sempre viram fazer.
Como não observamos nenhum fenómeno climatológico que bendizesse ou prejudicasse as culturas; como não ouvimos falar que os indígenas semeassem menos este ano, somos naturalmente levados a pensar que as colheitas de 1940 serão, pouco mais ou menos, o que foram as de 1939.

O único fiel que vem servindo de base ao cômputo da produção é a exportação. Fiel sem confiança porque, para a merecer, a ele se precisa de adicionar o que se consome na própria colónia e o que sai deduzindo-se o que, em contrabando também, entra. Anos há em que as circunstâncias de momento trazem uma invasão de centenas ou mesmo de milhares de toneladas de produtos que em contrabando do ‘chão francês’ vêm a ser acusados na exportação. Na campanha da mancarra de 1940/1941, por motivos resultantes da guerra, é natural que entre muita mancarra francesa, tanto mais que há um certo retraimento nos compradores”. E lança uma farpa: “Em Bissau continua a Casa Gouveia na altura da campanha da mancarra fazendo transferência ilícitas, como sempre tem feito”.

Entende o gerente dar agora um quadro das obras públicas, fala da ponte-cais de Bolama e da ponte-cais de Bissau, neste caso é minucioso:

“A ponte-cais de Bissau já começou a cair aos bocados, principalmente no lado sudoeste da testa. Já nem lhe é permitido o acesso de veículos e não permite a atracação de vapores. Tinha duas escadas laterais, de acesso, do mar ao piso de trânsito. Uma delas caiu quando se procedia a um desembarque de passageiros de um escaler e só a um mero acaso se ficou devendo não ter resultado uma desgraça. A outra escada, já partida, também ameaça cair. A velhíssima ponte-cais do Pidjiquiti, em Bissau, está arruinada. Parte do paredão a Este já caiu há anos. Deste cais, resto de um velho fortim colocado fora do recinto das antigas fortificações, já se dizia e escrevia em 1852 que estava abatido e rachado e que pouco tardava para que não caísse. Pois é este velho cais que em 1940 está abatido e a ameaçar cair, tudo quanto serve para o serviço geral de passageiros e de carga e descarga. Para o movimento de passageiros, uma escada velha, gasta e escorregadia, de difícil acesso nas marés baixas e uma parede de uns metros de comprimento e de uns 50 centímetros de altura, por onde se faz o vai-vém de pretos e brancos dando lugar, por vezes, a cenas de cabeça fraca e a vertigens. De admirar é que não se tenha registado algum desastre. Mesmo esta parede, durante longos meses, ostentou um enorme e profundo buraco, mesmo no meio do pavimento de trânsito. Em boa hora Sua Excelência o Governador Viegas intimou os subordinados de Bissau a fazerem uma espontânea manifestação de simpatia que ia até à entrega das chaves da cidade. À pressa, tapou-se então o enorme buraco para se evitar acidentes e para que o povo da cidade não assistisse à cómica cena de ver o seu governador a passar o buraco a quatro pés para vir receber o avantajado taco de madeira que fazia de chave de Bissau. Triste citação é esta que nos envergonha tanto a estrangeiros como a nós próprios. Como podem carregar-se e descarregar-se, num cais sem espaço nem condições, os milhares e milhares de toneladas de importação e exportação geral da colónia e muitas dessas toneladas têm que passaram em tal cais? Não só muitíssimo e acanhado espaço mas ainda a localização contribuiu para as tão grandes dificuldades do tráfego. Na maré cheia, ainda se vão safando as lanchas, mas logo que esta baixe ficam estas totalmente a seco, não se podendo portanto movimentar nem dar lugar à carga ou descarga de outras. Assim, perde-se muito tempo e muitíssimo dinheiro”.

Depois deste olhar cáustico sobre o porto de Bissau, comenta a situação geral. Começa por dizer que a situação é lamentável em todos os outros ‘portos’ e recorda que se fala em rios da colónia que não são mais do que braços de mar. E diz o seguinte: “Tirando Binta, onde os barcos atracam a uma ou duas pontes de cibes que os particulares construíram, e Farim, regra-geral os barcos encostam-se e encalham-se no lodaçal imundo e profundo, numa aberta do tarrafal das margens, e há então um caminho indígena que é tratado como a ‘estrada de acesso ao porto”!
Nada mostra a ação do Estado. Tudo trabalho do particular. Mas quem se servir do “porto” que fez tem que pagar portagem ao Estado como se fosse um castigo por se servir de semelhante porto. E enumera a legislação respeitante a este imposto de portagem, diplomas de 1924, 1933 e 1939.

Quanto a movimento dos portos, refere que não há elementos publicados e os que passa a citar foram-lhe cedidos, a título particular, pelo capitão dos portos. Por motivos da guerra, está reduzida a navegação, deixaram de vir os navios nórdicos que carregavam mancarra para os respetivos países.

Tece novos comentários ao estado das infraestruturas: as obras há tanto tempo prometidas para a construção da ponte do Ensalmá; a ponte do Corubal, há pouco tempo inaugurada, e com o nome de Ponte General Carmona, tinha caído e não se abstém de dizer que a sua construção fora um ato verdadeiramente criminoso, um particular, dono de uma serração no Xitole construíra uma jangada à sua custa e pusera-a à disposição do Estado. Sempre cortante nas suas observações comenta a tal propósito: “Mas o Estado não compra a corda necessária e a jangada vai funcionando puxada por lianas amarradas umas às outras, numa inconsciente falta de noção do perigo, e este é tanto que, da única vez que fomos forçados a aproveitar tal jangada estivemos de um dia para o outro à espera que se arranjasse um momento em que se pudesse atravessar sem haver perigo. E meses são passados e tudo assim continua”. Parece haver perigos por toda a parte. Referindo-se ao local denominado Barro, estrada de Bissorã para a fronteira com o Casamansa, atravessa-se o rio de Farim numa jangada que faz prever muitos riscos, e diz: “A passagem nas vazantes é perigosa e o rio é muito fundo dando passagem no local a navios de cinco mil toneladas. Talvez por assim ser, é costume utilizar nesta jangada corda velha que já oferece perigo nas outras”. Fala na jangada de Bafatá, na jangada do rio Contubo, na projetada ponte do Cumeré, informa que na estrada Bissorã-Canchungo foi bem reparada a ponte e diz que é ali que se situa Braia, lugar histórico onde foram trucidados pelos Balantas, uns 39 homens de cavalaria, mais o seu valente comandante.

Volta-se agora para o transporte aéreo, esclarece que têm continuado os trabalhos no aeroporto de Bolama onde fazem escala os “Clippers” da Pan-Am, que fazem as carreiras postais e de passageiros entre Lisboa e a América, mais dizendo que também se projeta uma nova linha que irá da América do Sul à África do Sul e que iria utilizar o aeroporto de Bolama. Estavam suspensas as carreiras da “Elders Colonial Airways”. No aeroporto de Bolama foi construído um edifício destinado a observatório, constava que tinha muitos defeitos. Já estavam em funcionamento no aeroporto as transmissões radiotelegráficas e em acabamento a montagem das radiogoniométricas. É minucioso no que ao aeroporto diz respeito: que os serviços meteorológicos estão a funcionar; que no porto marítimo foram montadas duas bóias para amaração dos hidroaviões; que estão montados indicadores de vento mas que no aeroporto terrestre faltam instalações para os serviços alfandegários, de correios e saúde, faltando ainda aperfeiçoar as terraplanagens das pistas e iluminar e sinalizar estas.
E continua com o seguinte discurso:

“Têm melhorado um pouco as comunicações telegráficas da colónia e esta estaria hoje bem servida se o estalar da guerra, em 1939, não tivesse interrompido a montagem da estação radioemissora de Bissau. Bissau tem uma estação de onda média, para serviço interno da colónia e tem uma estação de onda curta, apenas com a potência de um quilovátio mas que liga a colónia com a metrópole. Bolama tem uma estação de ondas longas e médias e uma pequena estação de onda curtas. Pelo interior da colónia apenas existe um pequeno posto telegráfico da ilha de Bubaque. Os serviços telegráficos e telefónicos são precisamente os mesmos que existiam há anos e apenas se estendeu mais uma linha, a de Buba a Catió, em 1940”.

(Continua)
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Notas do editor

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