sexta-feira, 4 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18602: Notas de leitura (1063): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (33) (Mário Beja Santos)

Navio Portugal, propriedade da Sociedade Comercial Ultramarina


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Entrámos na década de 1950 e socorri-me de um trabalho do investigador António Duarte Silva para procurar situar as transformações operadas na colónia-modelo, no exato momento em que se iniciam as hostilidades anticoloniais, a partir das Nações Unidas e é bem percetível que está em curso a reivindicação da União Indiana para pôr termo ao Estado Português da Índia.
É nesse contexto que a agricultura guineense dá inequívocos sinais de prosperidade e começam as experiências com a cultura do caju. Está em curso o recenseamento agrícola conduzido por Amílcar Cabral e por sua mulher. Não há uma só referência a qualquer tensão étnica e também o comércio prospera.
É nesse contexto que começa a progredir o interesse do BNU pelo domínio absoluto da Sociedade Comercial Ultramarina.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (33)

Beja Santos

Julga-se do maior interesse, agora que chegámos ao dealbar da década de 1950, situar o pano de fundo em que decorre a vida da província. Serve-nos de orientador António E. Duarte Silva e a sua obra "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Edições Almedina, 2010. Começa por nos dizer que a década de 1940 se caraterizou não só pela reorganização e expansão do aparelho administrativo como pela promoção dos assimilados e cabo-verdianos enquanto se dá, em simultâneo, o alargamento da atividade comercial e a chegada das etnias muçulmanas ao litoral povoado pelos animistas; entretanto, o crioulo ia-se impondo como língua franca. Ao tempo, começa a identificar-se uma forma social bissau-guineense, distinta das colónias fronteiras do Senegal e da Guiné Conacri. O recenseamento de 1950 procurou determinar com rigor a população, foi dirigido por António Carreira, um dos nomes incontornáveis da historiografia guineense. Atenda-se aos números apresentados:  
“As distinções fundamentais eram entre civilizados (dotados de cidadania portuguesa) e indígenas, por um lado, e entre portugueses e estrangeiros, por outro. Civilizados seriam 8320 residentes – dos quais 1501 eram originários da metrópole, 1703 provinham de Cabo Verde e os restantes 4644 da própria Guiné. Acresciam 366 estrangeiros, a maioria libaneses. A taxa de analfabetismo dos civilizados ultrapassava os 43%. Quanto à restante população, contaram-se aproximadamente meio milhão de indígenas, distribuídos por 30 grupos étnicos”.

Já se viu como Sarmento Rodrigues apostou na Guiné como colónia modelo, vinha motivado para incrementar o progresso da colónia: transportes, estradas, rios e canais, portos, aviação, assistência sanitária e águas, agropecuária, comunicações, urbanização, rede telefónica e radiodifusão, promoção missionária, cultural e desportiva. Como observa Duarte Silva, inaugurou o seu programa com dois atos emblemáticos na legitimação da colonização, a criação da “Missão de Estudo e Combate à Doença no Sono na Guiné”, as “Comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné”. Intensificaram-se as relações com o Instituto Francês da África Negra, procurava-se uma duradoura parceria nas investigações etnológicas e “inquéritos de franca utilidade prática sobre a situação biológica, alimentar, sanitária e demográfica das populações, e as suas psicologias e capacidades”. Vale a pena de novo referir a criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e a sua obra de referência o Boletim Cultural. O mandato de Sarmento Rodrigues correspondeu a um período particular de coesão e progresso na história colonial da Guiné, correspondeu também ao apogeu do sistema colonial português, o Governador manteve a política de aliança com os muçulmanos, desenvolveu o aparelho administrativo mediante o preenchimento do quadro de dirigentes com uma elite metropolitana e a entrega da administração intermédia a cabo-verdianos e mestiços. É neste quadro ascensional que irão decorrer as primeiras hostilidades e ameaças de um movimento anticolonial que tem a sua sede nas Nações Unidas.

É tempo de regressar aos relatórios do BNU em Bissau, sente-se que a mudança de gerente torna as análises mais frias e formais, tecem-se comentários dirigidos para uma apreciação de números, dá-se conta do que está a acontecer na agricultura e faz-se a análise da praça. Estamos em 1953, o relator informa que houve uma importante redução nos preços das oleaginosas, quebra essa fortemente compensada com um apreciável aumento da produção. E aparece uma observação em tom lisonjeador, para nos mostrar que os tempos são outros:  
“Este bem marcado progresso da filial no novo importante impulso recebeu – o maior, sem dúvida, desde a sua fundação, – já no início do corrente exercício, com os muitos e vultuosos créditos que, em consequência da extraordinária actividade que aqui desenvolveu, nos poucos dias que durou a sua recente visita a esta província, foram concedidos à praça pelo nosso Excelentíssimo Administrador Senhor Capitão Teófilo Duarte, visita que ficou também assinalada por um rasto de forte e geral simpatia que perdura e cimentará o ambiente favorável que criou a actuação da nossa instituição, objectivos que Vossas Excelências tiveram, como se dignaram a informar-nos, ao aproveitarem a vinda de Sua Excelência a esta província e que constituiu um verdadeiro triunfo”.

Quanto à situação da Praça, não havia praticamente nada de novo:
“Como também sucedeu no anterior, o comércio vendeu, no ano findo, muito menos do que esperava e para que se preparara, pois ao nulo comércio que se continua a registar com os territórios franceses vizinhos e da falta de ouro em pó dessas proveniências, veio juntar-se, logo no início do ano, uma redução de $20 no preço da mancarra e por outro lado o agravamento, que se diz no dobro, do imposto de capitação em que foi convertido o de palhota, diminuíram grandemente o poder de compra do indígena”.

A situação das colheitas é outra preocupação que se espelha neste relatório de 1953:
“Não é possível determinar com rigor a produção agrícola desta província, que as estimativas oficiais avaliam, em amplos limites, entre 119 mil a 143 mil toneladas dos 4 mais importantes produtos. Assim, servindo-nos dos dados respeitantes à exportação e estes com base em elementos colhidos na Filial, pois os oficiais, infelizmente, estão longe de ser coordenados, verifica-se que a produção da mancarra no ano findo foi superior em 3 mil toneladas, a do coconote foi inferior em 6800 toneladas.

Encontra-se em execução o recenseamento agrícola, trabalho que constituiu uma realização dos Serviços Agrícola e Florestais, tendo isso encarregado de planifica-lo e de dirigir a sua execução o Engenheiro Agrónomo Amílcar Cabral. Visa a obtenção de elementos essenciais, qualitativos e quantitativos, tanto a agricultura indígena como da dos não indígenas. Acha-se quase finalizado o trabalho de campo relativo ao recenseamento da agricultura indígena. É executado pelo método de amostragem, através do estudo das explorações familiares em povoações tipo. Assim, obter-se-á uma estimativa dos elementos essenciais da agricultura indígena, aliás a única informação possível nas actuais condições económicas e culturais do agricultor nativo.

O apuramento dos elementos escolhidos será levado a efeito por todo este ano. Entretanto, pode afirmar-se o seguinte:
a) De uma maneira geral as porções são boas, tanto no que se refere às culturas alimentares como às industriais.
b) No sul da província as produções unitárias são geralmente superiores às verificadas noutras regiões, em especial no que se refere ao arroz e à mancarra.
c) Devido à intensificação da cultura da mancarra, as queimadas atingem proporções alarmantes, nomeadamente as praticadas pelos Fulas e pelos Mancanhas.
d) Alguns parasitas prejudicam de maneira sensível as produções das espécies conhecidas por “milho brasil”, “milho cavalo” e “milho preto”.
e) No Quínara, principalmente a produção de arroz foi prejudicada pelas águas vivas.
f) No ano findo, esteve nesta Província o senhor Jean David Bruce, de nacionalidade holandesa, técnico de óleos, que, a convite do ministério do Ultramar, se deslocou à Guiné para estudar as possibilidades da província nos novos métodos de culturas e exportação, as espécies mais recomendáveis às condições ecológicas, com o objectivo de uma produção dirigida mais consentânea com as ricas possibilidades da Província.
g) Foi feita a cultura, em grande escala, por toda a província de sementes de caju importadas de Moçambique, que germinaram bem e em alguns pontos se desenvolveram rapidamente. Essa sementeira foi precedida da vinda a esta Província do professor do Instituto Superior de Agronomia Dr. Carlos Rebelo Marques da Silva que, em missão do Ministério do Ultramar, veio estudar as suas possibilidades económico-culturais”.


Instalações da Sociedade Comercial Ultramarina em Bafatá

Entre Maio e Junho desse ano decorre uma inspeção do BNU na Guiné e aparece um importante documento do seu responsável endereçado à administração da Sociedade Comercial Ultramarina, com a qual gradualmente o BNU vai aumentando a sua participação. Iremos seguidamente tomar nota do seu conteúdo e conhecer a situação de 1954 designadamente do que se estava a passar na agricultura.

(Continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 30 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18582: Notas de leitura (1062): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

JD disse...

Olá Mário, boa tarde!
É interessante o relatório do BNU que parece referir um largo êxito nas culturas agricolas praticadas, de que a Empresa era grande compradora, transformadora e comerciante. No seio de uma economia estruturada na agricultura, este extracto do relatório parece indicar um «superavit» nas actividades. Outra informação interessante, diz respeito ao escasso numero de europeus ali deslocados, e também faz referência ao escasso número de 4.000 assimilados, brancos incluídos. Mas estávamos nos anos 50, em que Portugal apresentava um alto défice de instrução escolar. São instrumentos como este que nos indicam sobre a grande diferença entre os termos vigentes na época, e a evolução constatada no final de 1973, sobretudo em Angola e Moçambique, onde mais se registou o desenvolvimento.
Um abraço
JD