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sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23837: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XI: Uma equipa inteira do Grupo de Comandos "Fantasmas", destroçada em 28/11/1964, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé - Contabane



Guiné > Brá >  Grupo de Comandos "Fantasmas" > 1964 > Desta equipa do Gr Cmds “Fantasmas” só não morreu. junto do Rio Gobige, na estrada de Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964; o segundo da esquerda. Da esquerda para a direita, o 1º cabo Ferreira, o soldado Carreira, o furriel mil. Artur Pires e os soldados Artur e Godinho.

Foto (e legenda): © João S. Parreira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


 
Guiné > Bissau > Cemitério de Bissau, talhão militar. (onde foram inumados alguns dos comandos do Grupo Fantasmas, mortos em Gobige, em 28/11/1964) , como o Manuel Couto Narciso,  soldado condutor auto comando, natural de Santa Catarina / Caldas da Rainha, ou o Ramiro de Jesus Silva, 1º cabo condutor auto comando, natural de Valongo (Colmeias) / Leiria.

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Guiné > Região de Gabu  > Madina do Boé > Imagem aérea de Madina do Boé. Na mata ao fundo fizemos o acampamento. 

Imagem: Cortesia do blogue  Luís Graça e Camaradas da Guiné com a seguinte indicação: “Presumo que a sua autoria seja de Jorge Monteiro (ex-capitão miliciano da CCAÇ 1416, Madina do Boé, 1965/67) ou de Manuel Domingues, ex-alf mil da CCS/BCAÇ 1856, Nova Lamego, 1965/66.”



Guiné > Carta geral da província > 1961 > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Madina do Boé e estrada para Gobige e Contabane., na fronteira sul com a República da Guiné.

Infografia: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné (2022)

 
1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do nosso camarada, já falecido, Amadu Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010.

A fonte continua a ser o ser o seu  livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. 

A edição, da Associação de Comandos, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está infelizmente há muito esgotada. E não é previsível  que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretantio, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria >
IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O VB e o Amadu.
Foto: LG (2010)
O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965,
 e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / 
set 1966) fez, duarnte largos meses, com enorme paciência, 
generosidade, rigor e saber, as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, 
a partir dos seus rascunhos.

Recorde-se, aqui o último poste 
desta série (*): demos um salto no tempo, de 1964 para 1970, para  acompanhar  as suas memórias da Op Mar Verde (Conacri, 22 de novembro de 1970). Um ano e tal antes, ele tinha sido selecionado 
para integrar a 1ª Companhia de Comandos Africanos (em formação), comandada pelo cap graduado 'comando' João Bacar Jaló, seu amigo de Catió, e com a supervisão do major Leal de Almeida.  
 
Hoje voltanos ao Gr Comandos "Fantasmas", da Companhia de Comandos do CTIG. O grupo, comandado pelo alf mil comando Maurício Saraiva, parte para Madina do Boé em novembro de 1964. Irá perder 9 dos seus homens..




Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.




 
Amargas recordações de Madina do Boé:  a tragédia de 28/11/1964, junto ao pontão do rio Gobige 
(pp. 94/105)

por Amadu Djaló (*)



Estávamos em Novembro de 1964. O alferes Saraiva soube,  no QG, que o PAIGC já tinha chegado à zona de Madina do Boé, no sudeste. Que tinham vindo com muitos carros carregados de material até à linha de fronteira, até uma tabanca chamada Boloi Ela, que fica no território da República da Guiné-Conakry, a pouca distância da fronteira com a Guiné Portuguesa.

O alferes ofereceu o grupo para ir para lá, enquanto não houvesse reforços para destacar para aquela zona [1].

Assim, fui a minha casa preparar a roupa interior para levar. Eu não queria despedir-me da minha mãe durante o dia, porque era dia 13 de lunar 
[2]e nós evitamos viagens nos dias 3, 13 e 23 de lunar e também na última 4ª feira de lunar. A partir do dia 21 de lunar temos que evitar as 4ªs feiras, esse espaço de tempo até à lua nova. Nos restantes dias só não devemos sair para viagens nos dias 3, 13 e 23, já que a maioria das separações, nestes dias, seriam para nunca mais, quanto mais ir para a guerra.

Quando o cabo Braima  [Seidi]. me falou da saída, não me senti muito bem. Mas se fosse de noite não fazia mal, podia sair.

Quando cheguei a Brá, encontrei os colegas europeus à nossa espera. Fui a correr pegar na arma e no equipamento e seguimos para o aeroporto, onde estavam cinco avionetas à nossa espera.

Chegámos a Madina entre as 16 e as 17 horas. Estavam todos os homens a fazer a pista para as avionetas poderem aterrar e, como o local e a clareira eram de lapas de pedra e cascalho,  não custou muito fazerem a pista num dia só. Tambor a tocar, os rapazes e homens de meia-idade trabalharam com vontade e, às 16 horas, quando chegámos, não tivemos nenhuma dificuldade em aterrar as cinco avionetas. Depois, também acompanhados com os toques dos tambores, deslocámo-nos para a entrada do aquartelamento.

Depois do alferes Saraiva explicar ao alferes [3], comandante do pelotão de Madina do Boé, sobre a nossa missão, tratámos de arranjar lugar para nós. Não ficámos dentro do “quartel”, fizemos um acampamento numa mata perto, com seis barracas, uma para cada equipa e outra para armazenar os nossos mantimentos.

A ideia era cozinhar dia sim, dia não. Um dia ração quente, outro dia ração fria. E tínhamos programado sair para o mato, também dia sim, dia não.

A população ajudou-nos a fazer as barracas, à entrada de Madina, para quem vem de Dandum. Quando era dia de descanso, dormíamos nas barracas fora do quartel e das tabancas.

Durante a semana, nas saídas que fizemos,  não vimos nem ouvimos nada. O alferes já não tinha confiança nas informações da população local. Num dia à noite, disse-me:

–  Amadu, quero ir contigo e com um guia para a tabanca de Hore Moure, na República da Guiné-Conakry.

 O que é que disse? Está bem, vamos quando quiser!

 Amanhã, Amadu. Não vamos fardados, tomamos emprestadas duas camisas grandes, vestimos como homens grandes Fulas e não vamos com as nossas armas, só levamos granadas ofensivas, duas ou três cada um.

O alferes perguntou-me em quem eu tinha confiança ali. Era a primeira vez que vinha a Madina, mas, quanto a mim, era melhor levar o chefe da tabanca. Tinha mais responsabilidades que os outros.

No outro dia, por volta das 17 horas, seguimos em duas viaturas na direcção de uma tabanca abandonada, Guileje [4] do Boé, e apeámo-nos antes de chegarmos ao local. Depois seguimos a pé até á tabanca e ficámos emboscados até às 23h00 no caminho que vem de Hore Moure.

Nessa altura o alferes comunicou a missão ao grupo. Que os três, ele, eu e Mode Hure[5], íamos fazer uma visita a uma tabanca da República da Guiné, enquanto o grupo se deveria manter emboscado naquela zona, mais ou menos a 500 metros do monte da fronteira.

Que só levávamos granadas e que se tivéssemos contacto com o PAIGC, lançávamo-las e retirávamo-nos na direcção da fronteira e o chefe da tabanca devia fugir sem se preocupar connosco. Para o grupo que ficava emboscado, o alferes disse que se aparecesse algum vulto, que atirassem, porque não seríamos nós. E, se ouvissem rebentamentos das granadas, não contassem com a nossa presença. A comandar o grupo ficou o furriel Artur.

A tabanca para onde íamos,  ficava acima do monte, no nosso idioma Hore Moure, mais ou menos a 2 kms da fronteira, dentro do território da Guiné-Conakry.

Depois de tudo esclarecido iniciámos a marcha em direcção ao sul, com destino ao nosso objectivo. Cerca de 500 metros andados chegámos ao monte de pedra [marco] de fronteira    e, agora daqui para a frente estávamos na República da Guiné-Conakry, disse-nos o chefe da tabanca.

Até aí, Mode Hure seguia à frente, eu ia a seguir e o alferes atrás. A partir dessa altura, o alferes passou à minha frente e disse-nos que se nos apanhassem deveríamos dizer que éramos árabes. Eu disse para mim, sim senhor, meu alferes, sou um árabe que não sabe falar árabe.

A tabanca estava ali à nossa frente. Deixámos o chefe ali e eu e o alferes entrámos. Vimos uma arrecadação de mantimentos, afastada das casas de habitação por causa dos incêndios. Lá dentro, com a lanterna de mão, subimos as escadas, feitas de paus e cana de bambu. Empurrei a porta, não tinha nada, estava vazia. Saímos da arrecadação, com muito cuidado, aproximámo-nos de uma casa, entrei e também não estava lá ninguém. 

Revistámos mais de dez casas, não vimos pessoas [6], só vestígios, maços de cigarro “Nô Pintcha”,  vazios, caixas de fósforos também vazias e muitos restos de cigarros. Não havia nada a fazer, só ir embora dali, sussurrou o alferes. E eu respondi, vou levar esta maca que estava na varanda. Dobrei-a e trouxe-a para eles saberem que tínhamos lá estado.

[ Imagemà esquerda: Marca de cigarros, de fabrico soviético, que eram distribuídos aos guerrilheiros do PAIGC, durante a guerra colonial / luta de libertação. "Nô pintcha", em crioulo, quer dizer Avante!... ]

Foto (e legenda): © Magalhães Ribeiro  (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Regressámos no mesmo caminho em que viemos até que já perto do local da emboscada, o alferes chamou pelo furriel Artur e mandou levantar a emboscada.

Seguimos para uma pequena tabanca, perto do local onde o grupo tinha estado emboscado. O alferes deu três tiros para o ar. Quando lá chegámos,  tinham fugido todos. O lume ainda estava a arder nas casas e, como estava frio, aquecemo-nos. Eram para aí 3 horas, mais coisa menos coisa. O chefe dessa tabanca apareceu, começámos a falar em futa-fula. Dissemos-lhe quem éramos, chamou a população, conversámos com eles e prometemos-lhes segurança.

Ao fim da primeira semana da nossa presença em Madina do Boé, tínhamos recebido uma informação de que um rapaz tinha sido preso pelo PAIGC, no local onde o nosso grupo tinha estado emboscado, Guilege do Boé. O rapaz vinha de Jarga Dongo e ia para Gobige, quando foi preso no cruzamento de estradas que vem de Madina de Boé, paralela à fronteira, até Contabane e Aldeia Formosa e passa por Gobige.

Vivia em Gobige com a irmã e o cunhado. Quando o pessoal do PAIGC lhe perguntou quem era, de onde vinha e para onde se dirigia, ele disse que vivia com a irmã e o cunhado, Jarga Bora, que, viemos a saber depois, era um colaborador clandestino do PAIGC.

Quando soubemos desta história enviámos um recado ao rapaz para ele vir falar connosco, e que viesse acompanhado pelo cunhado Jarga Bora. Passados vários dias, nem vieram nem tinham dito nada.

Contactámos o chefe da tabanca e dissemos-lhe que precisávamos de alguém que fosse a Gobige, dizer ao Jarga Bora que ainda estávamos à espera da resposta. E, que se não viesse, íamos nós lá. O chefe arranjou-nos um rapaz e quando chegámos à estrada vimos três homens de bicicleta. Como já nos conheciam, pararam e cumprimentámo-nos. Disseram que iam para Gobige. Então, já não precisávamos do rapaz, agradecemos-lhe e mandámo-lo regressar à tabanca. E aos homens que encontrámos na estrada pedimos-lhes que dessem o nosso recado ao Jarga Bora. Passados poucos minutos, chegaram as nossas viaturas e regressámos a Madina.

O dia e a noite estavam destinados ao nosso descanso, mas o alferes estava preocupado com a população de Dandum, que estava sem segurança na linha da fronteira, e disse-nos que seguíamos para lá ainda nesse dia e que regressávamos no dia seguinte.

Fomos então para Dandum e regressámos a Madina na manhã do dia seguinte [7]. Era dia de ração quente. Logo pela manhã, eu e o cabo Braima fomos a Dandum comprar quatro cabritos para o grupo, regressámos à nossa cozinha e quando começámos a tratar deles chegou o Mode Hure, o chefe da tabanca de Madina do Boé, acompanhado de Jarga Bora e do tal rapaz que tinha sido aprisionado pelo PAIGC. 

Quando o Alferes Saraiva chegou, vindo da loja do senhor Campos [8], informei-o do que o Jarga Bora me tinha acabado de contar. Que tinha encontrado uma caixa pequena que estava dentro de um buraco cavado na estrada onde passava roda de carro. O alferes disse logo, é mina, vamos lá levantar.

 Tu, Amadú, não vais, ficas a cozinhar.

Fiquei com uma equipa, os restantes foram todos. Passada uma hora, mais ou menos, vieram com a mina, todos a cantar. O alferes levantou 500 escudos, pagou a Jarga Bora e aproveitou para lhe pedir toda a colaboração.

No fim do almoço fui com o alferes no Unimog pequeno, para Dandum a casa do meu primo, Iaia Djaló, que vivia na tabanca e era o homem mais rico de toda a zona. Estivemos com ele até às 17h00, voltámos para Madina e quando estávamos a chegar, o Mode Hure, acompanhado de Jarga Bora, de Gobige, fez sinal para pararmos. Disse-nos o que o Jarga Bora nos queria pedir que o levassem a Gobige, porque tinha medo de regressar a pé. E o alferes, como ele nos tinha avisado da mina, disse a Mode Hure que ia pedir um carro maior no quartel, para levar escolta. Ficou assente que, em vez desta noite, partiríamos no dia seguinte de manhã, porque já não descansávamos há três noites.

Então, nessa manhã [9], o alferes disse ao furriel Artur que íamos dar um passeio a Gobige e que perguntasse ao pessoal quem queria ir, porque não valia a pena ir o grupo todo.nPreparámos duas viaturas. O alferes mandou o Jarga Bora e a mulher subirem para um Unimog 404 e depois distribuiu os nossos quinze homens pelas duas viaturas, quatro na viatura da frente, um Unimog 411, e onze na outra.

Saímos alegremente, vi o furriel Artur a cantar e fomos até Gobige. Quando chegámos, o homem ofereceu-nos um cesto grande cheio de laranjas. Depois de muita conversa, a certa altura, o alferes disse:

 Bem, vamos embora.

Mas o Jarga estava muito falador, não se calava. Só por volta das 13 horas arrancámos de regresso. A primeira viatura, a mais pequena, levava cinco homens e a segunda doze, contando com os condutores.

Duzentos ou trezentos metros andados ouvi um rebentamento [10] atrás de nós,
o alferes gritou “mina” e, quando saltei vi a viatura ainda no ar, colegas a cair, o depósito da gasolina a rebentar, a gasolina a sair, a arder para cima deles.

Entrámos no fogo também e arrastámos os companheiros. Não podíamos fazer muito mais.

 Amadú, toma conta disso    disse o alferes.

Enquanto ele e o condutor arrancavam no outro Unimog a toda a velocidade para Madina, a cerca de 30 e tal kms, pedir auxílio, eu, o António Kássimo e o Aquino [11], três soldados, ficámos ali a fazer o que podíamos. Passados uns minutos, o Carreira [12] despertou onde tinha caído e passámos a ser quatro, dois negros e dois brancos, a tomar conta da situação.

Jarga Bora e a população da tabanca observavam a cena. Jarga aproximou-se, perguntou-me pelo alferes e eu perguntei-lhe se ele tinha vindo ali para dar informações ao PAIGC. Foi-se embora, desapareceu com a população atrás.

Continuámos a tratar dos nossos feridos. Quatro soldados com dez companheiros deitados, dois dos quais carbonizados, o furriel Artur[13] e o cabo Ramiro [14].

O alferes tinha-me dito que se demorasse muito, devíamos recolher as armas e esconder-nos com elas no mato. Para quem vem de Gobige e vai para Madina do Boé, o capim e a montanha ficam à esquerda, do outro lado era uma mata cerrada.

Nem meia hora depois do rebentamento, o Kássimo ouviu alguém chamar pelo alferes. Entrámos no capim alto, cobria-nos, e depois de procurar encontrei o Ferreira sentado. Tinha sido projectado a mais de 10 metros. Eu não vi nada de ferimentos e perguntei-lhe o que tinha.

–  Amadu, os meus pés!

Olhei, eram esqueletos. Do joelho ao tornozelo ficou sem carne, só osso branco e do tornozelo para os pés, nada, tinha desaparecido tudo. O Aquino e o Carreira ajudaram-me a levá-lo para a beira dos outros camaradas moribundos e dos dois mortos carbonizados que, na altura, tínhamos. À nossa guarda estavam, nessa altura, dois mortos e sete feridos, todos muito graves. Continuámos a acudi-los no local. Um local de grande risco, uma autêntica terra de ninguém, horas à espera da escolta de socorro que vinha de trinta e tal kms. Estávamos sem rádio e em Madina só ficariam a saber do acontecido quando lá chegasse o alferes.

Estivemos sempre à espera que o PAIGC nos atacasse. Para mim, isso não aconteceu porque o Jarga Bora tinha muitas famílias a proteger e, se nos atacassem, com certeza as NT destruiriam a tabanca e os mantimentos para todas as famílias. Penso que foi ele, o Jarga, que pediu para não nos atacarem.

O terreno também não nos era favorável. Nós estávamos na berma da estrada, perto do local da mina. À nossa direita era uma mata cerrada, nem se via o sol, um atirador podia aproximar-se à queima-roupa sem dificuldade e eliminar-nos a todos. À nossa esquerda estava com capim muito alto, maior que a altura de um homem.

O Ferreira perguntou quando é que vinha o helicóptero. Pedi-lhe para ter calma que o alferes tinha ido tratar disso, que podia chegar a qualquer momento. Todos os feridos tinham queimaduras grandes, menos o Ferreira e nós não podíamos tirá-los do local. Até à chegada da coluna de socorro, já estava escuro, passava das 19h30, tinham morrido mais dois companheiros, o cabo Ferreira [15] e o soldado Godinho [16].

Quando o médico [17] mandou dar água a todos, o condutor morreu, mal acabou de beber. O cabo Braima Seidi, quando iniciámos a viagem de regresso, também morreu. Entrámos em Madina do Boé com quatro feridos graves [18] e oito [19] mortos, sete europeus e um guineense.

O alferes disse-me que falasse com o régulo e lhe pedisse cinco homens para me ajudarem a tomar conta do acampamento e do nosso material. Que de manhã tirávamos as nossas coisas. Passei lá a noite com esses homens. Quando, na manhã seguinte, regressei a Madina, os mortos e os feridos já tinham sido evacuados. Alguns foram para o Gabú e dali no Dakota para Bissau.

Ficámos três praças e o alferes. Uma Dornier 
 [DO-27]  foi-nos buscar e trouxe-nos para Bissau.

Nunca esquecerei o passeio a Gobige, como lhe chamou o alferes. Para nós, muçulmanos, evitamos ir de viagem nos dias 3, 13, 23 e na última quarta-feira de lunar, quanto mais ir para a guerra! São dias negros e aquela viagem realizou-se no dia treze de lunar.

Dois dias [20] depois realizou-se a cerimónia do funeral, na Sé de Bissau. Aos corpos dos Comandos, ainda se juntaram mais dois, de um furriel e de um milícia, que tinham morrido num ataque a Guilege.(***)

Não me posso esquecer do ambiente que pairou no enterro, a tristeza dos amigos e companheiros e o ar de satisfação que se via em alguns presentes na cerimónia.

A seguir descansámos uma semana.

(Continua)

___________

Notas do autor e do editor literário:

[1] Nota do editor: o Comandante do CTIG Brigadeiro Sá Carneiro tinha determinado o imediato destacamento “para Madina do Boé, em reforço do BCaç 506”, de um pelotão da CCaç 727, tendo aquele pelotão ficado instalado em Madina do Boé a partir de 18 de novembro de 1964, sob o comando do alferes miliciano António Angelino Teixeira Xavier.

[2] Diz-se 1º ou 2º dia de lunar, conforme se trata do 1º ou do 2º dia da lua, após o novilúnio. As noites não contam, só os dias.

[3] Nota do editor: alferes miliciano infantaria António Figueiredo Pinto que pertenceu à 3ª Companhia de Caçadores, em Nova Lamego, e aos BCaç 506 e 512 e BCav 705, todos sediados em Bafatá. (**)

[4] Guileje de Madina do Boé.

[5] Mode é senhor. Para nós, Futa-Fulas, quando um homem é respeitado, a partir de 20 anos de idade, ninguém o chama sem dizer Mode.

[6] Casas que estavam habitadas durante o dia. À noite, como o local era desprotegido, o PAIGC abandonava a tabanca. Esta informação foi-nos prestada, mais tarde, por um rapaz.

[7] Nota do editor: 27 de  novembro de 1964.

[8] Europeu casado com uma negra africana e que tinha uma loja onde comerciava tudo o que podia.

[9] Nota do editor: sábado, 28 de novembro de 1964.

[10] Junto a uma passagem de cascalho sobre o rio Gobige.

[11] Nota do editor: soldado António Aquino de Sousa

[12] Nota do editor: soldado António de Jesus Carreira

[13] Nota do editor: furriel miliciano Artur Pereira Pires

[14] Nota do editor: 1º cabo Ramiro de Jesus Silva

[15] Nota do editor: 1º cabo António Joaquim Vieira Ferreira.

[16] Nota do editor: soldado João Ramos Godinho.

[17] Nota do editor: Dr. Luiz Goes.  (****)

[18] Nota do editor: destes, o soldado comando Artur Mateus Martins, foi evacuado em 30 de novembro de 1964 do HM 241, Bissau, para Lisboa, HMP, onde veio a morrer em 8 de dezembro de 1964.

[19] Soldados José da Rocha Moreira, Manuel Coito Narciso, furriel mil. Artur Pereira Pires, 1ºs cabos Ramiro de Jesus Silva, António Joaquim Vieira Ferreira e Braima Seidi e soldados João Ramos Godinho, todos dos “Comandos” e o soldado condutor Eugénio Campos Ferreira, pertencente á CCS / BCaç599, que se voluntariou para levar a viatura.

[20] Nota do editor: o funeral realizou-se em 30 de novembro de 1964, na presença do Governador, tendo o cortejo fúnebre, com os féretros transportados individualmente em camiões Mercedes, saído da capela militar de Santa Luzia para o cemitério da cidade, onde ficaram sepultados.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]

____________

Notas do editor:

(**) Vd. postes de:

4 de fevereiro de  2007 > Guiné 63/74 - P1493: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (2): Eu e o Furriel Comando João Parreira

20 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

(***)  O grupo de Comandos Fantasmas perderam 9 homens na região de Madina do Boé, antes de serem extintos: 8 homens em 28 de novembro de 1964 (junto do Rio Gobije, na estrada Madina do Boé para Contabane, a oeste); 1 homem em 8 de dezembro de 1965:

António Joaquim Vieira Pereira, 1º cabo corneteiro comando, natural de Santa Leocádia / Baião, inumado no cemitério de Santa Leocádia, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Artur Pereira Pires (foto à direita), furriel miliciano comando, natural de S. Sebastião da Pedreira / Lisboa, inumado no cemitério da Ajuda em Lisboa, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Braima Seidi, 1º cabo comando,  natural de Buba / Fulacunda, inumado no Cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Eugénio Campos Ferreira (foto à esquerda), soldado condutor auto comando, natural de Vila Frescaínha (São Pedro) / Barcelos, e inumado no cemitério de Vila Frescaínha, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


João Ramos Godinho (foto à direita), soldado condutor auto comando, natural de Valverde / Coruche, e inumado no cemitério de Coruche, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

José da Rocha Moreira, soldado condutor auto comando, natural de Arcozelo / Vila Nova de Gaia, inumado no cemitério de Arcozelo, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Manuel Couto Narciso, soldado condutor auto comando, natural de Santa Catarina / Caldas da Rainha, inumado no cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Ramiro de Jesus Silva, 1º cabo condutor auto comando, natural de Valongo (Colmeias) / Leiria, inumado no cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Artur Mateus Martins (foto à direita), soldado cozinheiro comando, natural de Olhão, inumado no cemitério do Alto de S. João - Lisboa, faleceu, no Hospital Militar Principal (Lisboa), em 8 de dezembro de 1964, vítima de ferimentos recebidos em combate em 28 de novembro de 1964, no contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane.


(****) Vd. poste de 19 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10406: Evocando a trágica emboscada com mina, de 28 de novembro de 1964, em Madina do Boé, que vitimou 7 camaradas da equipa de comandos Os Fantasmas, alguns dos quais morreram nas mãos do alf mil médico Luiz Goes (1933-2012) e do alf mil António Pinto

Vd. também poste de 20 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

sábado, 12 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23777: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VII: Em Farim, com o BCAV 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro, até meados de 1964... Abatises e emboscadas no itinerário Farim-Jumbembem-Cuntima


 Guiné > Região do Oio > Cuntima > c. 1969/71 >  Edifício onde funcionou o comando e o posto de socorros, no tempo da CCav 489 /BCav 490 (1964/1965). 



 Guiné > Região do Oio > 
Cuntima > c- 1969/71 > A “avenida do Senegal”.



 Guiné > Região do Oio > Jumbembem > c- 1969/71 >  Aspecto da tabanca



 Guiné > Região do Oio > Cuntima > c- 1969/71 > Farim > Edifício do comando do Batalhão de Cavalaria 490

Fotos gentilmente cedidas pro Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71). Publicadas no livro a preto e branco.


Dispositivo do BCav 490: Farim (CCAV 487), Jumbembem (CCAV 488( e Cuntima (CCAV 489)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

 


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou em 2015, antes de completar os 75 anos. 

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" do livro do Amadu Djaló. Temos vindo a introduzir pequenas correcções toponímicas ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2ª  edição. 

Recorde-se, aqui o último poste:  o sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015) está em Farim, colocado na 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), no segundo semestre de 1963.

O excerto que hoje publcamos é referente a esse período em Farim (onde esteve cerca de um ano; em meados de 1964, pediu transferência para a CCS / QG, em Bissau).  Mantemos a ortografia original.  Chame-se  atenção para  os seguintes factos : (i) o Amadu, ainda soldado condutor autorrodas,  sofre as primeiras emboscadas e vê com humanidade o primeiro morto do PAIGC: (ii) ainda está  equipado com a velha Mauser...
  


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



Com a 1ª CCAÇ, em  Farim,  em 1963/64

(pp. 71-80)

por Amadu Bailo Djaló


(i) Com o BCav 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro,  em Farim


    Ieró Codi, Régulo da tabanca de Lambam, na fronteira com o Senegal, ao verificar que o PAIGC se estava a implantar em toda aquela zona fez uma petição ao administrador solicitando a sua intervenção no sentido de abandonar a tabanca com as suas gentes e haveres. 

O administrador dirigiu-se ao comandante do BCav 490  [1], o tenente-coronel Fernando Cavaleiro, a quem colocou o pedido do Régulo Ieró Codé. O tenente-coronel determinou o cumprimento da missão ao capitão [2], comandante da CCav 487 [3], e à 1ª CCaç, a que eu pertencia.

Preparámos as viaturas. Como não tínhamos carros suficientes, solicitou-se aos comerciantes de Farim a cedência de alguns carros, pedido que foi aceite, solicitando eles, apenas, que os seus condutores fossem dispensados, já que alguns eram idosos e outros muito jovens e sem qualquer preparação militar. Foram substituídos por condutores militares.

No meu caso, recebi a indicação de ir à Ultramarina buscar uma viatura.

–  Olha, o carro está bom. Mas tem um problema. Quando o sol está muito forte, o diafragma cola e o motor vai-se abaixo. Assim, eu costumo levar água para molhar a bomba manual e, pouco tempo depois, o motor pega. Vai parando, de vez em quando e molhando a bomba, chegas ao destino –  disse-me o condutor da Ultramarina.

Verifiquei o óleo e levei o carro para o quartel, para o atestar e fui aguardando a chegada dos outros colegas. Preparada a coluna, arrancámos. Tinha-se sentado ao meu lado um jovem, de baixa estatura, que eu nunca tinha visto, nem tão pouco sabia quem era. Imaginava que fosse algum colega da caserna.

Iniciada a marcha, com o sol a pique e o calor a queimar, a certa altura parei, lembrando-me da recomendação do motorista do comerciante. Saí do carro, molhei a bomba e reparei que o meu companheiro sorria. Novamente pus o motor em funcionamento, retomei a marcha até nova paragem para proceder a novo refrescamento da bomba. Com todas estas interrupções, a viagem até estava a ser pouco aborrecida.

À quarta paragem já me encontrava um bocado irritado e gritei para mim:

–   Porra para isto! Nem parece um carro, isto é um caco!

 –  Vamos voltar a molhar a bomba –  disse-me o tal companheiro.

Novamente molhada a bomba, minutos depois o motor voltou a pegar e retomámos a marcha. O que valia é que o caco, depois de arrefecer uns minutos acabava mesmo por voltar a pegar. E o jovem ao meu lado, sempre calado. A partir daqui, sempre que o motor ia abaixo, era o meu colega de viagem que dizia para molharmos a bomba e ocasiões houve que era ele que saía primeiro. Esta odisseia autêntica só parou, quando finalmente chegámos à tabanca de Lambam.

Começámos a carregar a viatura com caixotes, malas, alimentos, animais e, no fim, mandámos as pessoas subir. Tudo pronto, preparámo-nos para o regresso a Farim.

Voltaram as paragens, só que agora eram mais frequentes. A linguagem que eu usava, já sem paciência nenhuma, era linguagem de tropa, enquanto o meu companheiro mantinha a mesma postura, nada dizia, a não ser "vamos molhar a bomba", quando o motor parava. À última paragem, já com Farim quase à vista, eu já não podia mais, estava desesperado. E já não tinha água.

 –  Porra para esta merda! E agora? 

E o companheiro, ao lado:

 –   Vamos molhar a bomba.

 –   Como, pá? Não temos água, porra!

  –   Olha, se alguém ainda tiver um cantil com água que traga.

Apareceu um furriel europeu que passou um cantil para as mãos do meu companheiro. Naquela altura, disse para os meus botões:

  –   Quem será este gajo que vem ao meu lado? Às tantas é para aí um furriel, colega do outro do cantil!

Molhámos a bomba e logo o carro começou outra vez a funcionar.

 –   Se calhar, é melhor deixar aqui o cantil.

Chegámos finalmente à vila e começámos logo a descarregar os materiais que trazíamos. Eu estava exausto, deixei-me ficar sentado um pouco.

Entretanto, Paté, irmão do Régulo Iero, que era cipaio da administração civil, aproximou-se e começou a conversar com o meu companheiro.

 –  Amadu  –   ouvi chamar. Era o Régulo Ieró.

 –   Que é?  – perguntei.

  –  O capitão não está por aí?

Procurei com a vista e não vi nenhum capitão.

  –  Não, não está aqui capitão nenhum   –  respondi.

Paté, ao ouvir a minha resposta, perguntou:

 –   O que é que ele quer?

 – Anda à procura do capitão!

Paté, espantado com a minha resposta:

 –  Então, o capitão não está ao teu lado?

 –  Mas este é que é o capitão? Mas este é que é o capitão?

  –  Sim, esse é o capitão.

Esta conversa estava a ser trocada em fula. Até tremi, de repente assustei-me. Senti vontade de desaparecer com a vergonha. Paté, vendo-me meio desorientado, gritou para o irmão:

 –   Olha, o capitão está aqui.

O capitão não se apercebia da conversa, porque a linguagem era fula.

 –   Como sabe, nosso capitão, ficou gente e haveres ainda na tabanca. Se dormirem lá, é certo que o PAIGC vai lá buscá-las ou até destrói a tabanca.

  –   Não, não fica lá ninguém, nós vamos lá buscar tudo o que falta  – respondeu o capitão.

Formámos novamente a coluna, tendo o capitão tomado novamente o meu carro, sentando-se ao meu lado.

Durante esta segunda viagem, como o sol já não estava tão forte, o carro só parou três vezes pelo caminho. A certa altura, o capitão começou a fazer-me perguntas:

 –   Qual é a tua tribo?

 –   Futa-Fula, meu capitão.

 –  Ah, vejo pelo sinal ao canto dos olhos!...  E de onde és?

 –  De Bafatá, meu capitão.

 –  Qual era a tua ocupação na vida civil?

 –  Comerciante, meu capitão.

 –  E quando assentaste praça?

 –   1962, meu capitão.

 –   Aprendeste a conduzir na tropa, foi?

 –  Sim, senhor, meu capitão.

  –  Estás a ver como a tropa é boa?

 –  Estou, sim, meu capitão.

Chegados à tabanca, carregámos o que faltava e as pessoas que tinham ficado e iniciámos a viagem de regresso que decorreu sem problemas. Chegados a Farim, o Capitão Cidrais, assim se chamava o meu companheiro de viagem, dispensou os condutores que estivessem livres, menos a mim. Logo pensei que ia haver uma conversa sobre a linguagem que tinha usado na primeira viagem. Terminado a descarga, o capitão voltou a sentar-se a meu lado e mandou seguir para a 1ª CCaç, a que eu pertencia.

Parámos frente à porta do gabinete do capitão, comandante da 1.ª Companhia de Caçadores. Apeou-se e dirigiu-se para o gabinete, enquanto eu preenchi o boletim da viatura.

Pedi licença e entreguei o boletim ao meu comandante, que logo me perguntou:

 –   O que vais fazer agora?

 – Vou aproveitar para me deitar cedo, porque amanhã tenho que ir acarretar água muito cedo, meu capitão.

Ouvi o Capitão Cidrais dizer:

 –   Olha, gostei de andar com este condutor. Quando voltar a precisar de um, vou pedir-te que mo dispenses.

O tempo foi assim decorrendo até que iria surgir a oportunidade para pedir transferência para Bissau.

Mas antes, aconteceu novo ataque do IN, que foi mais forte e durou mais tempo que o primeiro. Nesse dia estava marcada uma sessão de cinema ambulante, era um filme de música e dança, que não era muito do meu género, eu apreciava mais filmes de acção e policiais. Vi os cartazes e não comprei bilhete. Regressei ao quartel. 

Estava já a dormir bem, quando acordei com estrondos de rebentamentos e barulho de tiros. Parecia que a vila de Farim se encontrava toda debaixo de um fogo cerrado e, quem sabe, já sob o controlo dos assaltantes. Em correria muito rápida dirigi-me para os abrigos, onde me mantive enquanto durou o ataque, que demorou cerca de duas horas.

Durante o tempo em que estive em Farim, o PAIGC efectuou três ataques à povoação, sem consequências pessoais, causando apenas alguns danos em casas da tabanca.

Terminadas as saídas para Bricama, em virtude do desaparecimento da ponte pela sabotagem pelo fogo, nunca mais patrulhámos aquela zona, só lá passávamos quando nos deslocávamos em coluna para Cuntima ou Jumbembem.

A cadeia começou a receber prisioneiros para averiguações, alguns que viemos a ter provas de serem colaboradores da guerrilha. À noite, quando saíamos, às vezes víamos pessoas a entregarem maços de cigarros para os familiares detidos. Normalmente eram raparigas, filhas, irmãs ou sobrinhas dos prisioneiros, algumas das quais andavam com alguns colegas nossos. E certamente não se iriam esquecer, quando fossem libertados de que os tratámos humanamente.

Numa ocasião dessas ocorreu uma situação que me fez sofrer. Uma manhã, no quartel, quando eu estava a encher o depósito de água, aproximou-se de mim um prisioneiro cabo-verdiano [4], jovem ainda.

– Podia levar uma carta para o meu tio?

 –  Para quem?

 –  Para meu tio.

 –  Quem é o teu tio?

 –  É Pedro Sitató.

 –  E onde está a carta?

 –  Não a tenho comigo.

 – Conforme, vamos a ver.

À hora do almoço, do mesmo dia, o rapaz cabo-verdiano entrou no refeitório, passou pelas mesas todas até chegar junto à minha.

– Está aqui a carta. 

E retirou-se, sem mais nada. O que ficou foi uma impressão nos meus colegas e no sargento de dia, que estava perto de mim, que havia qualquer coisa combinada entre mim e o prisioneiro. E ouvi colegas segredarem:

 – Para quem é a carta?

Não fiquei muito satisfeito com a ideia que ficou no ar e dirigi-me à caserna e fui ler a carta, que estava dentro de um envelope aberto. Era uma carta simples, a pedir ao tio que o tirasse da prisão, porque ia ser incorporado em janeiro próximo. Mais nada. E então dirigi-me à messe de oficiais, para a entregar ao meu capitão.

 – Meu capitão, tenho aqui uma carta que um prisioneiro me pediu para entregar ao tio.

  –  Isso é com o oficial de informações   –  respondeu-me.

O oficial de informações era o tal alferes, que me tinham dito,  meses antes, ser sobrinho do actual Governador, brigadeiro Arnaldo Schulz, e que anteriormente, não tinha revelado grande simpatia por mim.

Um pouco receoso da reacção dele, fui procurá-lo ao gabinete e, pedindo-lhe licença, disse-lhe:

– Meu alferes, é um prisioneiro que quer mandar esta carta a um tio dele.

– E quem te mandou receber a carta?

– Meu alferes, recebi a carta para alguém não a levar e poder vir aqui entregá-la.

– Põe-na aí!

No dia seguinte chamaram-me e fui ter com um furriel, que estava na parada com uma secção de soldados.

 – O teu carro ainda tem água?  – perguntou.

 – Ainda tem para aí metade.

Deu ordens à secção para retirar a água toda da minha viatura e, depois de retirados todos o bidões, mandou-nos colocar sacos de serapilheira, vazios, e ir enchê-los de areia a Morocunda, onde havia muita.

Regressámos a Farim, com a minha viatura recoberta com sacos de areia e que iriam afinal servir para abrir as colunas, como "rebenta minas".

(ii) Emboscadas entre Farim e Cuntima

Saímos do quartel da 1ª CCaç em coluna formada por quatro viaturas. A minha, cheia de sacos de areia, e as outras três para serem carregadas de géneros e militares para a necessária segurança, com destino a Jumbembem e Cuntima, mesmo na fronteira com o Senegal.

Antes de partirmos apresentámo-nos na CCav 487, que era comandada pelo capitão Cidrais, e que era o responsável pela missão de trazer o pessoal da CCav 488, do BCav 490, que estava em Cuntima e deixá-los em Jumbembem que, até à data, não tinha tropa.

Em finais de maio de 1964, em dia que já não recordo [5], arrancámos pelas 7h00 da manhã, com a minha viatura à frente. Oito ou nove quilómetros percorridos, deparei-me com uma árvore abatida para o lado oposto à estrada. Alguém a terá acarretado para ali e decidi não parar, mantendo a marcha, uma vez que podia passar. Ocorreu que podia estar ali montada uma emboscada, mas continuei em frente. Cem metros adiante, outra árvore atravessava a estrada de um lado a outro. Desta vez, tive mesmo que parar. Atrás da minha viatura seguia a viatura das transmissões, comandada por um furriel europeu, que logo me gritou:

–  Que é que se passa?

 – Árvore na estrada, meu furriel!

O capitão, depois de observar o local, mandou-me arrancar com o guincho uma árvore seca que se encontrava ali, do lado direito, para abrir uma passagem. Continuámos e cerca de uma centena de metros à frente, antes de descermos uma pequena rampa, avistámos várias árvores, quinze, contámo-las, abatidas, cortadas propositadamente para impedir a passagem.

Agora é que eu não via meio de passar. O capitão decidiu enviar as últimas viaturas a Farim, para trazerem serras mecânicas.

Esta paragem durou muito tempo. Enquanto ficámos na mata a aguardar que as viaturas chegassem com o material, fomos sobrevoados por uma Dornier, que perguntou ao capitão se havia tropa ao fim da rampa. Que não, nós estávamos ainda na parte de cima, não tínhamos ainda começado a descê-la. E avisaram:

– Então cuidado, estamos a ver movimento de pessoal perto do local onde vocês estão.

Chegadas as viaturas, procedemos ao corte das árvores. Eram enormes, as serras não davam conta do trabalho. O capitão pediu-me que tentasse abrir uma passagem através da mata, o que consegui fazer. Aberta a picada, retomámos a marcha até que chegámos a Jumbembem sem mais atrasos. Deixámos ali viaturas com géneros e um pelotão de segurança e sem perder tempo abalámos para Cuntima.

Jumbembem e Cuntima eram duas povoações ligadas entre si por uma estrada de cerca de quinze quilómetros e a paisagem era mais aberta, com poucas árvores.

Chegados a Cuntima, outra vez sem grande demora, descarregámos o que havia para descarregar. A noite era boa para as emboscadas, por isso não era conveniente demorar muito para podermos fazer o percurso de regresso, ainda durante o dia.

Embarcado o pessoal da CCav 488, que estava destacado em Cuntima, iniciámos o regresso a Jumbembem, onde deixámos os militares, que ficaram a ocupar a antiga serração, enquanto nós prosseguimos a marcha de regresso a Farim.

Entre Jumbembem e Farim, na zona da rampa, onde começava a mata cerrada, vi grande quantidade de fumo a sair de um ajuntamento de lenha.

Parei e gritei para trás:

– Fumaça!

Um pelotão saiu e foi espalhar a lenha para desfazer a fogueira. Quando entrámos na picada, começámos uma ligeira subida e, de um momento para o outro, as viaturas que me seguiam ficaram debaixo de fogo. A minha viatura, talvez por ter apenas o condutor, passou. Peguei na minha Mauser, saltei da viatura e abriguei-me. A nossa resposta foi pronta e livrámo-nos sem problemas.

Tivemos ainda mais uma flagelação até à última emboscada, esta sim, bem mais séria. Apesar de estarmos prevenidos e da nossa resposta, sofremos um ferido muito grave [6] e vários feridos. O fogo acabou da mesma forma como começou, de um momento para o outro.

Dias depois, nova saída para Cuntima, comigo e a minha viatura à frente, como “rebenta minas”. Viajámos de noite, contra o que era costume, a coberto da escuridão e com ordem para não acender as luzes. Eu ia sozinho no meu carro, tentando respeitar a ordem, o que me tornava a condução muito difícil. Ia um pouco apreensivo e a condução estava a pôr-me cansado. Nunca até então tinha conduzido em tais condições, uma situação de arrasar os nervos. Por vezes, não sabia se devia voltar para a direita se para a esquerda, conduzia à sorte, quase só com a luz dos meus olhos, ou seja, quase às cegas.

Uma vez ou outra não resisti, acendi as luzes, por breves instantes. Andámos muito devagar e chegámos a Cuntima só ao amanhecer.

Na ida, não tivemos contacto com o inimigo, mas não aconteceu o mesmo no regresso. Fomos flagelados várias vezes, ao longo do trajecto, e lá nos fomos desenrascando com mais ou menos perícia. Isto é, eu acho que foi com perícia, porque não sofremos nem mortos nem feridos, o que não aconteceu ao PAIGC que teve, pelo menos, um morto, que foi o primeiro guerrilheiro que eu vi a morrer em combate.

Era um jovem, talvez com menos de 20 anos, sem camisa, de calções e descalço, com um barrete amarrado à cabeça por uma fita de pele de carneiro. Vi-o a ser arrastado pelo soldado Paulista Solda [7], da CCAV 487. Estava morto.

Durante a minha permanência em Farim, a povoação sofreu três ataques. A abrir colunas, como “rebenta minas”, em colunas de reabastecimentos, em patrulhamento ou em simples observação, sofri várias emboscadas, algumas em que fomos apanhados em terreno aberto e sem grande possibilidade de defesa. Posso dizer que a sorte andou comigo.

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Notas do autor Amadu Djaló /ou do editor Virgínio Briote:

[1] O BCav 490, comandado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, tinha estado no Sul, na Op Tridente, o primeiro grande movimento militar na África Portuguesa, 70 e tal dias seguidos, abarracados na ilha do Como, a comer enlatados. Regressara de lá arrasado, cheio de hepatites, com os pelotões reduzidos a metade. Depois, o Batalhão foi colocado em Farim e dispôs-se em quadrícula com uma companhia, a CCav489, em Cuntima, na fronteira com o Senegal, a CCav488 em Jumbembem, a meio caminho entre Cuntima e Farim e a CCav 487 em Farim.

[2] Capitão de Cavalaria Rui Gonçalves Soeiro Cidrais

[3] Chegada a Farim em 11 Março de 1964

[4] Depois de solto, foi incorporado no Exército e cumpriu comissão em Bafatá, no esquadrão de Cavalaria. É DFA e vive em Lisboa.

[5] Em 31 Maio de 1964, conforme História do BCav 490.

[6] João Félix Pereira dos Santos, Soldado Apontador de Morteiro, da CCav 487, evacuado para o HM 241 onde morreu 7 horas depois, ou seja, em 1 junho 1964. Condecorado com a Cruz de Guerra de 2ª Classe.

[7] Participou na Op Tridente, integrado no Grupo de Comandos, tendo sido agraciado em 5 junho de 1964 com a Cruz de Guerra de 4ª Classe.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 8 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23770: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VI: os primeiros ataques a Farim, em 1963

terça-feira, 1 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23042: Pequeno resumo dos dois anos em que estive na guerra (Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616 / BCAÇ 619, Empada, 1964/66) - Parte II: 1964: O ataque ao quartel e às tabancas, na noite de 16 de julho


Joaquim Jorge, Ferrel, Peniche.
Foto: Luís Graça  (2015)




Brasão da CCAÇ 616 (Empada, 1964/66).
A divisa, em latim, "Super Omnia", quer dizer "acima de tudo".
Foto do álbum do Francisco Monteiro Galveia
(ex-1º cabo op cripto, vive em Fronteira)


CCAÇ 616 > Empada, 1964/66 > Pequeno resumo dos dois anos
em que estive na guerra (*)

por Joaquim Jorge

 
Parte II - 1964: O ataque ao quartel e às tabancas, 
na noite de 16 de julho


Estávamos há quinze dias no nosso sector de actuação,12 de Abril de 1964, quando fomos atacados pela primeira vez. O inimigo manifestou-se com tiros de pistola metralhadora, espingarda e pistola. 

No dia 20 de Abril, portanto oito dias depois, voltaram a flagelar o aquartelamento e a população, tendo sido novamente obrigados a retirar precipitadamente. 

Na noite de 30 de Maio, à qual já anteriormente me referi e descrevi, eles cercaram-nos completamente e atacaram em força e intensidade e mais uma vez conseguimos levar a melhor. Foram muito importantes para o futuro da nossa Companhia estes três primeiros êxitos. Deram-nos confiança e impusemos respeito aos nossos opositores.

Entretanto, 'Nino' Vieira, acabara de ser nomeado pelo PAIGC comandante chefe militar da região sul da Guiné dos guerrilheiros e, por informações secretas, nós sabíamos que o seu primeiro objectivo, no seu novo alto cargo, era conseguir a destruição total de Empada e da CCAÇ 616, fazendo o maior número possível de mortos e prisioneiros.

Fomos fazendo patrulhamentos diários, fomos montando emboscadas noturnas, fomo-nos preparando cuidadosamente, fomos esperando e…

Na noite de 16 para 17 de Julho de 1964, foi toda a área abrangida pelo quartel e tabancas de Empada alvo de um ataque bem urdido e em força por parte do inimigo:


Fase inicial do ataque: 

Precisamente ao soar das 22h00, foi lançado um "very-ligth"  duma posição estimada a 800 metros do quartel, na direcção leste, junto à estrada que vai para Buba e para Catió.

 Imediatamente foram ouvidas, partindo sensivelmente do mesmo local, oito detonações características de morteiro, cujas granadas, passando sobre a área do quartel e tabancas, foram explodir a cerca de 250 metros da última tabanca do lado oeste, todas perto umas das outras. 

Após essas granadas, começaram a “cantar” as metralhadoras, pistolas metralhadoras e pistolas inimigas, com uma ou outra granada de mão, fazendo um ruído ensurdecedor. Depois das referidas granadas de morteiro, este não mais se fez ouvir. Durante a primeira hora do ataque o inimigo revelou um enorme poder de fogo, que diminuiu sensivelmente nas horas seguintes até ao final do ataque.

Dispositibo e progressão do inimigo: 

O dispositivo de ataque do inimigo foi o seguinte: Cerco completo à área populacional embora tenha empregado maior número de pessoal e armas nos lados Norte e Leste. Porém também foram referenciadas pistolas metralhadoras e pistolas a sul e a oeste, denunciando a intenção inimiga de fechar todas as saídas do quartel para evitar a reacção por parte das nossas tropas e dos voluntários. Portanto, um dispositivo de cerco conjugado com ataque de forte intensidade de norte e de leste. 

O inimigo, a coberto da sua grande potência de fogo inicial, foi-se aproximando progressivamente das tabancas dos Fulas (Leste) e dos Bijagós (Nordeste). Pelas 00h00 (meia-noite), um grupo de seis inimigos tinha conseguido instalar a sua metralhadora a coberto de uma árvore (poilão) existente a cerca de 10 metros da rede de arame farpado e a 20 metros da primeira tabanca bijagó. 

Desse grupo destacaram-se dois homens que conseguiram, cortando estacas e troncos, derrubar parte do arame farpado ao mesmo tempo que, com terra, apagavam os candeeiros improvisados a petróleo que orlavam a cerca de arame farpado. E foi precisamente no momento em que esses homens, transportando a metralhadora e munições, penetraram na zona interior da tabanca dos Bijagós, que foram abatidos com uma “bazucada”, conforme descreveremos mais à frente. 

Do lado da tabanca fula, a situação, pelas 00h00 (meia-noite), era idêntica à anteriormente descrita. Uma metralhadora pesada, instalada a poucos metros da rede de arame farpado, “cantava” incessantemente. Essa metralhadora foi também calada pela nossa esquadra da “bazooka”, conforme relataremos mais à frente. 

No porto velho (Rio de Empada) atacava outra esquadra de metralhadora inimiga que foi também “calada” pela mesma nossa “bazooka” e pelos morteiros, assim como uma que se encontrava a cerca de 900 metros do quartel, junto à estrada de Buba. 

Pelas 02h00 da manhã o inimigo estava derrotado e começou a retirar-se, ouvindo-se apenas uns tiros isolados e à distância até às 03h00 da manhã, a partir do que nada mais se ouviu, a não ser os lúgubres uivos das hienas denunciando que havia mortos do lado de fora do quartel e da população.

Reacção das nossas tropas e dos voluntários:

Durante a primeira fase do ataque as nossas tropas (atiradores) pouparam inteligentemente as suas munições, tendo cumprido à letra as ordens que lhes tinham sido dadas de só fazerem tiro “ao vulto”. 

Respondemos principalmente com tiros de morteiro 60, morteiro 81 e de Lança Granadas Foguete (Bazooka) dirigidos para os locais onde se faziam ouvir as metralhadoras e os morteiros do inimigo. Com essa acção inicial conseguimos “calar” duas metralhadoras pesadas. 

Na segunda fase do ataque, que distinguirei da primeira pelo início da nossa reacção, enviámos uma esquadra de Bazooka com mais um Furriel e dois radiotelegrafistas ( 5 praças e um furriel) para a tabanca dos Bijagós donde nos tinham mandado dizer que o inimigo já se encontrava a tentar abater a rede de arame farpado. Rapidamente os 5 homens enviados se aproximaram da tabanca dos Bijagós, tendo chegado no momento preciso em que o inimigo destruía a rede e entrava na tabanca, apagando previamente a fraca luz existente no local. 

Aí juntaram-se-lhes mais dois chefes dos nossos voluntários nativos. Dando rapidamente conta da crítica situação, o furriel mandou instalar os seus homens no local mais conveniente e ordenou ao apontador da bazooka que fizesse fogo para o grupo inimigo que se encontrava apenas a cerca de 10 metros à frente. Beneficiando de uma árvore e seus ramos que se encontrava à frente entre esses homens e o grupo inimigo, o apontador e o municiador da bazooka rastejaram uns 3 ou 4 metros na direcção do inimigo, enquanto os outros nossos 5 homens os protegiam pelo fogo. 

Pondo-se rapidamente de pé, o apontador da bazooka disparou sobre o grupo inimigo que constituía uma esquadra de metralhadora pesada, matando 4 homens e capturando a metralhadora e uma pistola metralhadora, após o que veio reunir-se aos outros homens. 

Seguidamente o furriel ordenou aos seus homens que o acompanhassem à tabanca dos Fulas, no lado leste, onde se ouvia “cantar” uma metralhadora inimiga, já muito perto da rede de arame farpado. Aí chegados, o apontador da bazooka lançou mais duas granadas na direcção da metralhadora, calando-a definitivamente. Em seguida o furriel ordenou ainda aos seus homens que o acompanhassem em toda a volta do quartel e tabancas, tendo o apontador da bazooka feito fogo para vários locais suspeitos, conseguindo-se desta forma calar mais armas inimigas, com especial relevo uma metralhadora instalada no cais do porto velho, a qual também se calou definitivamente. Nesse local, ao amanhecer, foi encontrado mais um cadáver do inimigo com uma pistola que foi capturada. 

Após este raide, o inimigo começou a retirada, fazendo, no entanto, alguns tiros mais longínquos que cessaram definitivamente pelas 03h00 da manhã.

Pessoal que se distinguiu:

Toda a companhia actuou de molde a merecer elogios. Porém a acção, verdadeiramente excepcional e corajosa de um punhado de homens, transformou a situação desesperada num êxito retumbante. Foram eles:

- Furriel Miliciano Álvaro da Assunção Rodrigues Pontes   (**)

- 1º Cabo nº 2517/63 Vital Martinho (Apontador de bazooka)

- 1º Cabo nº 2514/63 Fernando das Neves Ferreira

- Soldado nº 3359/62 Eduardo Gonçalves Santos Rocha

- Soldado nº 2524/63 Luís Antunes Mendes

- Chefe Caçador Auxiliar Dauda Cassama (Beafada)

- Chefe Caçador Auxiliar Nhobo Baldé (Fula)



Guiné > Carta da província (1961) > Escala  1/500 mil  >  Pormenor: posição relativa de Empada, Bolama, Buba,  Catió e Bedanda. Bolama e Catió eram sedes de concelho ou circunscrição, as restantes localidades eram sede de posto administrativo.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

(**) Morava em Estarreja; faleceu em 9 de outubro de 2018, aos 77 anos. (Fonte: União das Freguesias de Beduído e Veiras, concelho de Estarreja)

domingo, 21 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21095: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Oio-Morés em 1963/64 (Jorge Araújo) - Parte I


Foto 1 – Bissum-Naga (Região do Óio) - Tabanca reordenada. (Foto do álbum de Aníbal Magalhães, da CCAÇ 2465, 1969/70), com a devida vénia. - P10427.
Foto 2 – Mansoa (Região do Óio) – Mulheres a lavar. (Foto do álbum de César Dias, do BCAÇ 2885, Mansoa e Mansabá, 1969/71), com a devida vénia. - P3066.

 
O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,
CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, indigitado régulo da Tabanca de Almada e da Tabanca dos Emiratos; tem 256 registos no nosso blogue.


MEMÓRIAS CRUZADAS
NAS 'MATAS' DA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS EM 1963-1964
- O CASO DE ENCHEIA -
PARTE I 
 
Mapa da região do Óio, com indicação de alguns dos locais de "memórias cruzadas".
Em todos eles, e em todas as gerações de combatentes, com início em 1963, ocorreram factos marcantes para o resto da vida… (de todas as vidas)… em que alguns não tiveram direito a "viagem" de regresso... lamentavelmente!


1.   - INTRODUÇÃO

Em teoria, e na prática, aceita-se que a documentação histórica expressa-se e manifesta-se de diferentes modos ou formas, onde a sua consulta, análise e divulgação, permitem que ela deixe de estar em silêncio nos arquivos, em vez de ficar por conta do passado, caso não seja usada ou recuperada.

Foi exactamente isso o que aconteceu a mais um documento que recuperámos dos arquivos de Amílcar Cabral (1924-1973), existentes na CasaComum, Fundação Mário Soares, este elaborado por Bebiano Policarpo Cabral d'Almada (Farim; 02.12.1915 / Senegal; 22.07.1970), datado de 15 de Fevereiro de 1964, com o título: «Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné».

As dezanove páginas que dão forma ao corpo deste relatório, na sua globalidade considerado como mais um "estilhaço" da "historiografia" do conflito armado em análise, serão cotejadas com outras fontes bibliográficas com elas relacionadas, por se "encaixarem" no primeiro objectivo da «Tabanca Grande», enquanto espaço de partilha, que é (e continuará a ser): "ajudar os ex-combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra colonial, na Guiné", daí a razão de ser do título escolhido.

Esse grande "puzzle" (ou pequenos "puzzles", se o dividirmos por marcadores) é constituído, passe a imagem metafórica, por um número indeterminado de "peças" desiguais recortadas segundo a dimensão da imagem ou do quadro (temático), onde se verifique o seu encaixe com as restantes, que no presente caso aborda a temática da «actividade operacional desenvolvida na região do Óio-Morés» (de cada um dos lados do combate), durante o período identificado abaixo.

Recordamos que não se pretende fazer o "culto do passado", nem tampouco fazê-lo reviver, pois o primeiro já não existe mais e os seus observadores e actores já não estão disponíveis para outros "ensaios". O que se pretende é, tão só, relembrar que a estrutura deste documento (de todos os documentos anteriores e os que se seguirem), consciente ou inconscientemente, é/são produto do contexto onde foi/foram elaborado/s, ainda que saibamos que não existem documentos inocentes.

2.   - A VIAGEM À REGIÃO DE CASAMANSA E ÀS BASES DO NORTE DA GUINÉ: - MISSÃO ATRIBUÍDA A BEBIANO POLICARPO CABRAL D'ALMADA, EM JANEIRO/FEVEREIRO DE 1964

Um ano depois do início da luta armada, levada à prática por um grupo de guerrilheiros do PAIGC, em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao aquartelamento de Tite, onde se encontrava estacionado o Batalhão de Caçadores 237 [BCAÇ 237], e um mês antes do início do "I Congresso", realizado entre 13 e 17 de Fevereiro de 1964, em Cassacá (Frente Sul), coube a Bebiano Cabral d'Almada cumprir uma outra "missão", esta reservada, agora, para a Frente Norte.

Bebiano Cabral d'Almada, "braço direito" de Pedro Pires na direcção do "Bureau Político" em Dakar, filial do PAIGC criada a partir de Outubro de 1960, foi incumbido de realizar esta "missão" dividia em duas partes: a 1.ª a ter lugar em território da República do Senegal, na região de Casamansa, entre 11 e 21 de Janeiro de 1964;  e a 2.ª, no interior da Guiné, entre 22 de Janeiro e 05 de Fevereiro de 1964.



Citação: (1964), "Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41387, com a devida vénia.

2.1 - PRIMEIRA PARTE: CIRCUITO NA REGIÃO DE CASAMANSA

A análise do documento referente à primeira parte da viagem será superficial, na medida em que muitos dos assuntos tratados em cada etapa (paragem nos principais locais situados na linha da fronteira Norte da Guiné, onde existiam responsáveis por grupos de militantes do partido), não são relevantes para a presente questão de partida.

Ainda assim, e como mera informação/curiosidade, daremos conta de alguns pormenores desta primeira parte da viagem, tipo "legendas de curta-metragem".

◙ 11-01-1964 (sábado) – Partida de Dakar

Sendo portador do bote que me deve servir para a viagem de deslocação no interior do País [Guiné] e levando em meu poder os respectivos documentos, referentes ao mesmo bote, passados pelo Ministério das Finanças e pela Direcção dos Serviços Aduaneiros da República do Senegal, iniciei nesta data a missão que me foi superiormente incumbida.

◙ 12-01-1964 (domingo) – Reunião em Ziguinchor

Reunião para apuramento de responsabilidades dos factos ocorridos em Ziguinchor, entre os membros do Bureau daquele Comité, com a presença de Lourenço Gomes e todos os membros do referido Bureau composto por Indjaibá Lamine, Malan Nanqui, Djau, Apolinário da Costa e Aniceto Lima da Costa, tendo assistido os camaradas, Samba Djaló, Lassemá Silá e José Évora Ramos. (…)

◙ 13-01-1964 (2.ª feira) – Viagem a Sedhiou

Acompanhado dos camaradas Lourenço Gomes e Yaya Koté, segui nesta data para Sedhiou, tendo logo após a chegada, discutidos com eles, assuntos concernentes à nossa luta e a actos que o camarada Saido Baró tem vindo a praticar, desorganizando todo o trabalho e causando perturbações entre os fulas (…).

◙ 14-01-1964 (3.ª feira) – Viagem a Kolda

Com os camaradas Yaya Koté e Duarte da Mota, segui para Kolda a fim de procurar regularizar a situação dos nossos militantes que o Saldo Baró, fomentando um racismo, tem procurado desmobilizar, incitando-os a não acatarem as instruções do Yaya Koté.

◙ 15-01-1964 (4.ª feira) – Convocação dos responsáveis

Por falta de transporte, não foi possível deslocar-me pessoalmente a Sintchã El Hadje, como era meu desejo, tendo contudo para lá seguido o camarada Yaya Koté. (…)

◙ 16-01-1964 (5.ª feira) – Reunião em Kolda

Nada se fez neste dia digno de menção, aguardando-se somente a chegada dos responsáveis.

◙ 17-01-1964 (6.ª feira) – Reunião

Com o fim de procurarmos uma solução para as divergências surgidas entre o camarada Yaya Koté e os outros responsáveis, reunimo-nos nesta data, com a presença do referido camarada Yaya Koté, e dos outros responsáveis, Maunde Embaló, Boncó e Saido Baró, tendo também ainda assistido o camarada Duarte da Mota. (…)

◙ 18-01-1964 (sábado) – Partida para Ziguinchor

Partida de Koldá para Ziguinchor, escalando Sedhiou, onde não encontrei o camarada Lourenço Gomes, que se deslocara a Samine para preparar a minha viagem a Óio, quer dizer, mandar fazer reconhecimento do caminho e do rio Farim, para efeitos de travessia.

◙ 19 e 20-01-1964 (domingo e 2.ª feira)

Aguardo em Ziguinchor a chegada do camarada Lourenço Gomes, que aqui deixou um recado pedindo para o esperar, a fim de combinarmos melhor a nossa viagem.

◙ 21-01-1964 (3.ª feira) – Partida para Samine

Partida de Ziguinchor, acompanhado dos camaradas Lourenço Gomes e Marcelino Indi, este último encontrava-se em tratamento em Ziguinchor, ferido na base do camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira). Já restabelecido,  vai regressar à base.

◙ 22-01-1964 (4.ª feira) – Em Samine - viagem a Sanú

Esperando em Samine o regresso do guia, que foi fazer o reconhecimento do caminho, aproveitei a oportunidade de deslocar-me à povoação de Sanú na fronteira de Barro, acompanhando os camaradas Lourenço Gomes e Biagué, que tinham combinado ali uma reunião para este dia, de acordo com o comerciante António Jamil Sarr, filho de pai libanês e mãe caboverdeana, que nesta fronteira tem desempenhado bons serviços em prol da nossa luta. 

No caminho e já perto daquela povoação, veio ter connosco um portador vindo de Samine, para nos comunicar que o guia já tinha vindo do interior, "trazendo nove feridos evacuados da base de Morés".

# «MC [Memóras Cruzadas]» ▼ A referência a este caso é descrita na bibliografia Oficial, nos seguintes termos: 

"Em 20Jan64, dois Grs Comb da CCAV 567 e duas Sec PCaç 857 (ambas aquarteladas em Binar) bateram a região de Umpabá, armadilhando caminhos. Tendo sido emboscados, reagiram energicamente causando baixas ao In e sofrendo 4 feridos (um dos quais veio a falecer: o fur mil Eurico de Jesus Augusto, natural de São Sebastião da Pedreira, Lisboa)" (Ceca; Vol VI, p.191).

■ Reunião em Sanú

No marco 132, que delimita a fronteira do Senegal com a Guiné, foi efectuada esta reunião, na presença do Chefe daquela povoação de nome Issife Mançal e dos grandes de morança, Dembel Djata, Quebá Mançal, Assià Mané, Beber Mançal, Kussá Djata, Adulai Mançal, Comissere Mançal, Finca Mançal e Infali Mançal, e ainda do responsável do nosso Partido, Poncinho Djata, estando ainda presente Mamadu Biai da povoação de Geba, que esteve preso em Farim, por suspeitas de colaboração com os nacionalistas. 

(…) No mesmo dia passei pela povoação de Sadjuna, onde fotografei o responsável do nosso Partido, Tombom Fati, que ali vive com a sua mulher Imbrunha Sedi, também conhecida por Salimata Sedi e que, desde Bissorã, tem vindo a trabalhar para o nosso Partido.



Foto 3 – Citação: (1963-1973), "Combatentes do PAIGC durante a refeição, base no interior da Guiné", Fundação Mário Soares / DAC – Documentos Amílcar Cabral, Disponível http:http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43222, com a devida vénia.


◙ 23-01-1964 (5.ª feira)

Vindos do interior do nosso País em fuga, passou hoje por Samine um numeroso grupo de habitantes da povoação de Bironque, no Óio, que foi incendiada pelos nossos camaradas, em virtude de ter sido lá instalada, a seu pedido, uma base de tropas coloniais. As tropas foram atacadas pelos nossos guerrilheiros e expulsas.

2.2 - SEGUNDA PARTE: CIRCUITO PELAS BASES DA REGIÃO DO ÓIO

Neste ponto, procuraremos aprofundar cada um dos eventos assinalados, cotejando-os com outras fontes bibliográficas, entre oficiais e particulares.

◙ 24-01-1964 (6.ª feira) – Viagem ao interior da Guiné

Em virtude do camarada Lourenço Gomes ter resolvido seguir para Dakar, não fixando data certa do seu regresso, resolvi arranjar um outro guia para não demorar mais a missão que me foi incumbida. Mandei chamar o Augusto Indam, que imediatamente acedeu a servir de guia, tendo sido marcada a partida para a base Central na noite desse mesmo dia, via Bigene.

Fizeram parte da caravana, além de mim e do guia Augusto Indam, um pequeno grupo de camaradas militantes, constituído por Bela Camará, Marciano Djata, Embatate Bessama, Iaia Seidi, Paulo d'Almada e Quebá Mané, que vão ficar na base. 

De Samine para o rio Farim que atravessámos, gastámos cinco horas. Em virtude da escuridão da noite o guia desorientou-se, perdemos o rumo e tivemos de passar a noite no tarrafe.

◙ 25-01-1964 (sábado)

Só hoje de manhã nos foi possível prosseguir a viagem, devido ao facto que atrás referi, o guia ter-se desorientado, tendo por isso dormido alguns camaradas numa margem e outros noutra.

Chegamos à povoação de Iador, onde fomos recebidos pelos camaradas Infamará Sedi e Imbulo Dafé, que nos conduziu a local seguro no mato, onde almoçámos e descansámos. O citado Infamará Sedi, desde há muito que tem vindo a facilitar aos nossos camaradas a travessia do rio Cacheu. 

Partimos de Iador às seis horas da tarde, altura que assim acharam por mais conveniente para prosseguirmos a viagem, evitando que viessem a surgir dificuldades pelo caminho por parte das autoridades coloniais. Chegámos à povoação de Banculém perto da meia-noite, onde pernoitámos. (…)

◙ 26-01-1964 (domingo)

De manhã e antes de partimos de Banculém, reuni-me com o Chefe e "grandes" da morança, aos quais, em nome do Secretário-Geral do nosso Partido, apresentei cumprimentos. (…) 

Finalmente às 08,30 horas, partimos de Banculém com destino a uma nova base recentemente criada pelo camarada Mamadu Indjai e que ficava no nosso caminho junto à povoação de Maqué. 

Esta base foi criada com o fim de serem defendidas as povoações de Gam-Uale, Canjogude e Maqué, situadas na estrada Bissorã-Olossato, ameaçadas de serem incendiadas pelas tropas coloniais portuguesas. Antes de chegarmos ao local onde está instalada a nova base, passámos pela povoação de Bissajar que visitámos e que fica também próxima da base. (…)

À chegada na base de Maqué, apresentaram-me guardas de honra um grupo de militantes, constituído por dois pelotões, um de raparigas e outro de rapazes, chefiados pelo camarada Quebá Mussá Seidi, que desfilaram perante mim, demonstrando o maior garbo e disciplina, tudo orientado pelo camarada responsável da base, Mamadu Indjai. (…) 

O camarada Mamadu Indjai, disse-me não puder na altura acompanhar-me pessoalmente à sua base principal, em virtude de ir partir para Iador, a fim de preparar uma emboscada a uma vedeta portuguesa que tem estado a fiscalizar ultimamente o rio Cacheu, junto ao porto de Iador, onde atravessei no início da minha vagem.

Parti pelas cinco horas da tarde, tendo chegado a Fajonquito já de noite, pernoitando ali, onde encontrei o camarada António Embaná, que dirige a mesma na ausência do camarada Mamadu Indjai.

◙ 27-01-1964 (2.ª feira)

(…) Pelas 11,45 horas, parti deste acampamento, agora interinamente e na ausência do camarada Mamadu Indjai, chefiado pelo camarada António Embaná, a caminho da base principal em Morés, aonde cheguei pelas 16,20 horas. Não fui encontrar o camarada Osvaldo Vieira, que segundo me informaram, tinha seguido para Cubajal [área de Gampará], onde foi chamado, para além do mais, transportar material para a Zona Norte, que se encontra na base do camarada Rui Djassi [onde morreu em combate em 24Abr64].

◙ 28-01-1964 (3.ª feira)

Neste mesmo dia, e já depois de se encontrar no Morés, na base Central, chegou o camarada Agostinho Silva, mais conhecido por "Gazela", vindo da base de Biambe de que é responsável, com o fim de pedir mais munições ao camarada Osvaldo Vieira, pois tem sofrido constantemente ataques das forças coloniais portuguesas, vindas de Bissorã, Bula, Bissau, Canchungo e Cacheu, escoltadas por aviões de reconhecimento, bombardeiros e jactos. 

Recebeu do Encarregado do Material [Manuel Azevedo], tudo o que requisitou excepto balas para metralhadoras "Pachangas", por não existirem em depósito na altura. Reclamou o mesmo responsável, armas anti-aéreas, em virtude dos insistentes ataques de aviação, pois quanto a ataques terrestres, embora seja sempre atacado por forças superiores às suas, isso não lhe preocupa muito. Disse-me ter trazido quatro comunicados de acções empreendidas, que foram entregues ao camarada Quintino Robalo.

Aproveitei o resto do dia para descansar.

◙ 29-01-1964 (4.ª feira)

Na madrugada deste dia, saí de Morés para Dando, a fim de visitar aquela base, de que é responsável o camarada Leandro Vaz. (…) 
Nesta base, existem 700 militantes, sendo aproximadamente 600 rapazes e 100 raparigas. Acabada a visita da base do camarada Leandro Vaz, visitei em seguida uma nova base recentemente criada, situada a poucos quilómetros de Dando e de que é responsável o camarada Augusto Pique. (…) 

Encontrei ainda naquela base, um prisioneiro de nacionalidade espanhola, de nome Benigno Gonzalez, que comprava peles de lagarto na Guiné, para a firma Samuel Amram & Filhos, que vinha de Mansoa para Bissorã, numa carrinha por ele mesmo conduzida, quando foi atacado por nacionalistas que lhe destruíram a carrinha, retirando primeiramente toda a ferramenta. O mesmo declarou que fugiu para a Guiné, por ter sido chamado para o serviço militar em Espanha, e que para aqui veio, por saber que a mãe que ele não conhecia ainda, se encontrava na nossa Guiné, onde vivera em tempos com o falecido Frederique da Policia. Diz que não quere voltar para a Terra e que prefere ficar em Conacri, se a Direcção assim o entender. Disse ter dois anos na Guiné. 

Ainda neste mesmo dia, chegaram à base Central os camaradas, enfermeiro Maximiano Gama e Irénio Nascimento Lopes, este último vindo a acompanhar o material destinado à base Central, vindo do Sul do País, notícia de que tive conhecimento, quando me encontrava ainda na base do camarada Leandro Vaz [Dando], tendo nessa altura seguido imediatamente para a base Central, o camarada Agostinho Silva "Gazela", para receber material, tendo-lhe sido fornecido dez carabinas "Mauser", algumas minas e balas de "pachanga".

# «MC» ▼ No dia seguinte ao levantamento do material requisitado pelo Cmdt "Gazela" (nome de Guerra de Agostinho Silva), responsável pela base de Biambe, encontramos referência, na bibliografia Oficial, à realização da «Operação Biambiloi» na região do Óio, onde participaram as seguintes forças: "CCAV 567 (aquartelada em Binar), 1 GC/CART 527 (aquartelada em Pelundo), 1 Pel Sap (?), 1 GC/CCAÇ 413 (aquartelada em Mansoa) e 2 GC/CCAÇ 556 (aquartelada em Porto Gole). Durante a operação foram destruídas 11 casas de mato, apreendido muito armamento e documentação". (Ceca; Vol VI, p. 195).

▬ Será que o material e documentos apreendidos se referem ao material levantado na base Central (Morés) pelo Cmdt "Gazela", referido anteriormente?
Não podemos confirmar!

◙ 30-01-1964 (5.ª feira)

Depois de descansar na tarde deste dia, contactei com alguns "grandes" das povoações em redor, que tendo sabido da minha chegada, me vieram cumprimentar e com os quais conversei demoradamente sobre assuntos concernentes à nossa Luta de Libertação Nacional. Nesta mesma data regressei à base Central.

◙ 31-01-1964 (6.ª feira)

Cerca das nove horas da manhã cheguei à base de Mansodé acompanhado do camarada Quintino Robalo. (…) 

Em seguida o camarada Inocêncio Kani agradeceu em nome de todos as palavras proferidas, passando a fazer-me a apresentação dos camaradas, entre eles a camarada responsável das mulheres, Sanú Sedi, e o responsável dos homens Cedi Seidi. Ainda fui também informado pelo camarada Inocêncio Kani, que formou um campo de instrução em Canjajá, perto do rio Cacheu, com a intenção de cortar a fiscalização da vedeta que aí faz serviço de vigilância, impedindo os nossos militantes de atravessarem o rio.

◙ 01-02-1964 (sábado)

Por iniciativa dos camaradas João da Silva e Quintino Robalo, que ficaram encarregados da base de Morés, na ausência do camarada Osvaldo Vieira e ainda do encarregado do depósito de material, munições e outros artigos, camarada Manuel Azevedo, foi-me prestada carinhosa recepção. (…) 

Ainda no período da manhã e a partir das dez horas do mesmo dia, sentimos tiros na direcção da base do camarada Corca Só, em Sansabato, saindo dois pelotões da base Central em seu reforço. 

Mais tarde ouvimos ruído de aviões que passaram por cima da base de Morés em direcção a Sansabato, verificando tratar-se de 2 jactos, 2 bombardeiros e 2 aviões de reconhecimento, que passaram a bombardear e a fazer rajadas de metralhadoras, com grande intensidade. Este combate prolongou-se até às 4,30 horas da tarde, tendo as tropas coloniais sofrido pesadas perdas [?], tendo os mortos e feridos retirados por helicópteros, sendo um deles atingido pelos nossos guerrilheiros. Da nossa parte temos somente a lamentar a morte dos camaradas António Colbert e Armando da Costa.

# «MC» ▼ Encontrámos na bibliografia Oficial uma referência, não aquela que acima é narrada, mas uma outra, relacionada com o rebentamento de uma mina anti-carro accionada por uma viatura na estrada de Bissorã, durante uma coluna da CCAÇ 413 (aquartelada em Mansoa). 

Esta ocorrência causou a explosão do depósito de gasolina da viatura, que ficou destruída, sofrendo as NT 3 feridos graves (dois vieram a falecer: Albano Ferreira Lourenço, natural de São Sebastião da Pedreira, Lisboa, e Joaquim Maria Lopes, natural de Castanheira de Pera. Os seus corpos foram inumados no cemitério de Bissau, campas 675 e 676, respectivamente. (Ceca, Vol VI, p. 195).

◙ 02-02-1964 (domingo)

Vindos do Regulado de Encheia, apresentam-se na base Central os chefes das povoações de Uenkes, Fajá Intumba; de Tinka, Imbunhe Palna; de Cumbulé, Fona Sime; de Untche, Nhatche Emboca; de Quinaqué, Bernardo Sanhá e de Tchombé, Incussa Matché, que vieram avisar que foram chamados para o pagamento do imposto de capitação dentro do prazo de 20 dias, a contar daquela data. Também pediram pelotões armados, para defenderem as populações do regulado de Encheia. 

(…) Em resposta ao pedido de pelotões armados, ficou assente pelos responsáveis interinos da base, que o assunto seria tratado, logo após a chegada do camarada Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira), que no seu regresso esperam traga material suficiente para a criação duma base em Encheia.

# «MC» ▼ Quanto ao "pagamento do imposto de capitação" trata-se de uma decisão levada à prática pelo Chefe Administrativo do Posto de Encheia, à data, José Cerqueira Leiras, ex-militar da Companhia de Caçadores 153 (1961-1963), sendo este um dos temas abordados no seu livro «Memórias de um esquecido», edição de autor, 2003… agora lembrado!

A este propósito é importante destacar o facto de José Leiras não ter embarcado com a sua CCAÇ 153, de regresso ao Continente, viagem iniciada em 24 de Julho de 1963, a bordo do N/M «Niassa», tendo passado à disponibilidade em Bissau. É nessa qualidade que decide deslocar-se ao palácio para falar com o Governador Peixoto Correia [António Augusto Peixoto Correia (1913-1988)], pois que já lhe tinha destinado o comando do Posto de Encheia.

Na qualidade de administrador local, inicia a sua missão com o recenseamento das 30 tabancas existentes, cobra impostos, manda efectuar a plantação de dezenas de mangueiros à beira da estrada principal e trata de reparar o posto sanitário. Neste âmbito escreve: 

"Com a mão-de-obra negra, orientei os trabalhos e então construiu-se uma pequena pista que lá pudesse ir uma avioneta levar correio. Pelos trabalhos efectuados, éramos muito queridos lá na terra só que o terrorismo naquela zona começava também a dar sinal de vida e em pouco tempo alastrou". (P16503).

Sobre a importância deste documento histórico, escrito na primeira pessoa pelo seu autor, natural do Alto Minho, já o camarada Beja Santos nos apresentou, no P16503 acima citado, a sua apreciação crítica. Aconselha-se, pois, a sua consulta para uma melhor compreensão do contexto da fase inicial da luta armada, ainda que tenhamos de a ela voltar na segunda parte deste trabalho.

◙ 03-02-1964 (2.ª feira)

Manhã muito cedo parti em visita à base do camarada [Mamadu] Corca Só ansioso de saber o resultado da luta ali travada no [sábado] dia 01Fev64.

Vim a saber que os portugueses pretendiam atacar aquela base de surpresa, mas que felizmente um grupo de nossos militantes, que tinham partido em serviço de ronda, avistou-os numa campada de mancarra, aproximadamente a cem metros da base, e apesar da grande desproporção numérica a nosso desfavor, procuraram a melhor posição possível e abriram fogo, enquanto mandaram um camarada avisar na base o que se passava. Isso deu tempo que se preparasse melhor a defesa, dando tempo a que dois pelotões saídos da base Central fossem em seu socorro, sendo um pelotão comandado pelo camarada António Colbert e o outro pelo camarada Domingos Catumbela, não tendo este último chegado a entrar em luta, preferindo esconder-se.

Conforme fui informado pelo camarada Corca Só, responsável da base, que lamentou vivamente emocionado a perda dos camaradas, António Colbert e Armando da Costa, que morreram como dois verdadeiros heróis, pois o primeiro tendo sido avisado por um mouro, que deveria ser gravemente ferido em combate, não se conformou e alheio a todo o perigo prontificou-se imediatamente a seguir em reforço, corajosamente se expõe à luta e tendo despejado todo um carregador da sua metralhadora, voltou-se para pedir um outro carregador ao seu municiador, mas este fugiu levando as munições, pegou então numa "Mauser" que se encontrava em poder de um outro camarada, e abrigado por detrás do tronco de uma palmeira, continuou a fazer fogo, tendo sido então infelizmente atingido por uma bala inimiga que perfurou o tronco que se encontrava podre e se foi alojar no seu ombro esquerdo, conduzido ainda com vida para a base Central veio a morrer momentos depois. 

O camarada Armando da Costa, que lançava granadas, causando enormes perdas ao inimigo [?], entusiasmado com o calor da luta, levantou-se e avançou destemidamente dando vivas ao PAIGC [?], quando foi atingido por uma bala na garganta que o matou. Morreram como dois grandes heróis, estes bravos companheiros de luta, que em todos os camaradas, deixaram uma imensa saudade e a maior admiração por seus actos de valentia.

Sinceramente emocionado pelo que ouvira, soube que os nossos guerrilheiros da base do camarada Inocêncio Kani (Mansodé) tinham apreendido a ambulância do concessionário Manuel Saad, donde retiraram as malas de correio, encomendas postais, diversas mercadorias e alguns livros de instrução primária, que vão ser distribuídos por diversas bases a fim de serem leccionados aos nossos militantes: Incendiaram em seguida o carro, prendendo quatro professores de adaptação, um auxiliar da campanha antituberculosa e um pedreiro da Administração de Bafatá, cujas guias vão anexas ao presente relatório. 

Na mesma data foi ainda apreendido o camião industrial da aguardente e comerciante, de nome Simões [, seria o Manuel Simões, de Jugudul, (1941-2014) ?], estabelecido em Cutanga, área do Posto Administrativo de Nhacra, que também foi incendiado, tendo sido preso o motorista Alberto Buássi, de raça mancanha, bem como o seu ajudante.

▬ Sobre estas últimas ocorrências, não conseguimos obter informações.

◙ 04-02-1964 (3.ª feira)

De regresso à base de Morés, tive ocasião de visitar o depósito geral de material e de diversos artigos apreendidos pelos nossos guerrilheiros, constatando a existência de muitos artigos de uso corrente, conforme o original do balanço, que me informaram ter sido enviado para a Direcção do Partido em Conacri e que se encontram bem arrumados e devidamente conservados. 

Notei também com agrado a rigorosa conservação das armas e munições, a cargo do referido encarregado do Depósito, camarada Manuel Azevedo, que no desempenho das suas funções tem todo o material muito limpo e em devida ordem, notando-se o melhor controlo e limpeza das armas também distribuídas ao pessoal. 

De tarde chegou-nos a notícia, por um camarada vindo da base de Biambe, da prisão do camarada Rafael Barbosa, que tendo vindo até Nhacra, escondeu-se ali numa casa, cujo proprietário, traiçoeiramente, o foi denunciar às tropas colonialistas. (…)

Notei que a melhor eficácia das acções dos nossos guerrilheiros, se deve à utilização de minas nas estradas, que muitas baixas têm causado aos inimigos, tanto em veículos, material e vidas, e de que resulta verificar-se ultimamente raro movimento de carros, nas estradas sob o controlo dos nossos militantes.

◙ 05-02-1964 (4.ª feira)

Iniciei nesta data a viagem de regresso, acompanhado de dois feridos, um rapaz e uma rapariga, por acidente na limpeza e manejo de armas sendo remetidos para o hospital de Ziguinchor.
Continua…
► Fontes consultadas:

Ø  CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07071.123.011. Título: Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné. Assunto: Relatório enviado a Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, por Bebiano Cabral de Almada, Membro do Bureau de Dakar, sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné Bissau. Data: Sábado, 15 de Fevereiro de 1964. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios IV 1963-1965. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001).
Ø  Outras: as referidas em cada caso.
Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde
Jorge Araújo.
21MAI2020
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