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quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25108: O segredo de...(42): Patrício Ribeiro, "filho da escola", fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre... Numa canoa nhominca, em Varela, pelo mar dentro mar, com os útimos 10 portugueses e outros estrangeiros fugidos da guerra civil de 7 de junho de 1998


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 > Praia sul >  A minha cana de pesca


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 > Praia sul > Quilómetros de praia, que continua a ser bela e aprazível, apesar das alterações climáticas e da erosão.


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Tabanca de Iale >  Maio de 2021 > A minha casa ao entardecer, às 6h30

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Não é fácil arrancar "segredos" aos antigos combatentes que passaram pelo TO da Guiné entre 1961 e 1974. Esta série, "O segredo de..." (*), não pretende ser sensacionalista ou voyeurista. Tem apenas como objetivo facilitar a partilha de memórias, mais recalcadas, mais distantes ou já esquecidas, nalguns casos, ou mais difíceis de contar em público, com receio de censura social ou de grupo, noutros casos... Achamos, por outro lado, que devemos também dar visibilidade e  pu
blicidade a ações relevantes, praticadas por amigos e camaradas nossos, cuja modéstia os inibe de falar delas...

Um dos exemplos é o  Patrício Ribeiro que cultiva o "low profile", é discreto, vivendo há quatro décadas na Guiné-Bissau, onde é empresário e... estrangeiro. 

Na guerra civil de 1998/99 ele  estava lá. E teve um comportamento de grande coragem e nobreza, tendo socorrido e ajudado alguns compatriotas e outros estrangeiros, que lá viviam ou foram apanhados pelos acontecimentos.

Recorde-se que ele nasceu em Águeda, em 1947, foi levado pequeno para Angola, cresceu em Nova Lisboa (hoje Huambo). Aqui casou, viveu e trabalhou. Fez a tropa como fuzileiro (1969/72). 

Veio depois para Portugal na véspera da independência, na 23.ª hora (**); mas nunca gostou da sua condição de "retornado":  em 1984, decidiu ir viver e trabalhar, na Guiné-Bissau, primeiro como cooperante, e depois estabecendo-se como empresário: fundou uma empresa ligada à energia, a Impar Lda...  Agora, aos  76 anos, recusa-se a reformar-se, está cá e lá (sobretudo quando cá faz frio, e chuva, e é inverno). 

Vai dando, por outro lado, uma mãozinha ao filho que lhe sucedeu nos negócios, continua a gostar de viajar pelo interior da Guiné  (e nomeadamente de canoa nhominca, pelos Bijagós)... E, quando cá vem, dedica-se também à sua agricultura em Águeda.   

Membro da nossa Tabanca Grande desde 2/1/2006, é  autor da série "Bom dia desde Bissau" mostrando-nos pontos desconhecidos ou já esquecidos daquela terra verde-rubra...  

É nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau; tem já cerca de 150 referências no blogue...

Ainda não "abriu o livro todo" das memórias de Angola e da Guiné-Bissau. Mas já nos contou aqui um dos seus "segredos" (*). 

De um outro viemos a sabê-lo, há uns largos anos,  por intermédio de um amigo comum, infelizmente já falecido, o eng. agrónomo  Carlos Schwarz da Silva, mais conhecido por "Pepito"  (1949-2012).

Esse "segredo", em boa verdade já não o é, foi divulgado há anos no blogue (***), merece todavia figurar nesta série... para "memória futura"


O segredo de...(41): Patrício Ribeiro, "filho da escola", fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre... Numa canoa nhominca,  em Varela, pelo mar dentro, com os útimos 10 portugueses  e outros estrangeiros fugidos da guerra civil de 7 de junho de 1998, até ao NRP Vasco da Gama

Tenho aqui perto, em Varela, uma pequena palhota para passar alguns fins de semana (vd. fotos acima). Há 20 anos estava a mais de 250 metros do mar, agora o mar já está muito mais perto; dentro de algum tempo, já posso pescar com a cana, a partir da minha varanda…

Neste mesmo local, numa clareira, aterraram os helicópteros da fragata Vasco da Gama, para recolher os Portugueses que aqui estavam encurralados na guerra de 1998.  Foi num destes helis que o nosso saudoso Pepito, saiu.

Eu também aqui estava… Mas tinha por missão ajudar a sair outros Portugueses que se encontravam no interior, em Canchungo (antiga Teixeira Pinto) e Cacheu. Como não apareceram às horas combinadas, estive em S. Domingos e depois em Ingoré (sem combustível e em situação de guerra),  à procura deles… E de onde, a partir dos rádios da Missão Católica, comuniquei com a fragata a informar que estavam atrasados para a sua evacuação…

Ao fim do dia, também saí desta praia de Varela, numa canoa nhominca, acompanhando os últimos 10 portugueses que quiseram sair, assim como de outras nacionalidades, a quem a fragata autorizou o embarque… 

Como destino, “o pôr do sol”, o poente… Passados 18 milhas, mar adentro, lá encontramos a nossa frota com 3 navios dos “filhos da escola” que na parte final nos vierem cumprimentar nos botes e mandar subir pela escada de corda, para a fragata Vasco da Gama.

Já não foi possível os helis da fragata Vasco da Gama voltarem a aterrar na praia, havia quem os quisesse deitar abaixo… mas fomos acompanhados pelo ar, de onde recebíamos ordens, por vezes mandavam-nos, à nossa canoa, desviar de alguns obstáculos, que havia no mar …

Gosto de falar da minha praia de Varela de que adoro; dos banhos na água quente a 30º, das minhas pescarias diretamente para o grelhador, acompanhadas por umas bacias de ostras, etc…

O que escrevi,  num comentário, é um pequeno resumo dos diversos capítulos vividos naquela época, mas muitos deles ainda os considero 'classificados'.

Quando nos voluntariamos a ajudar os outros, quando pessoas a chorar nos pedem para não os deixar para trás..., a “formação militar não o permite", vem ao de cima...

E, por força das circunstâncias, passamos a ser o elo de ligação entre o resto do mundo e o interior de um país em guerra, de onde não é possível informar os familiares: onde estamos, que estamos vivos…  E, repara, não havia telefones e as fronteiras estavam fechadas, quer internamente, quer com os países vizinhos e estas últimas estavam a ser bombardeadas. Bissau ficava longe e não se sabia o que se passava no interior.

E quando do exterior… nos pedem a colaboração, através do nosso “bombolom”, para encontrar esta e aquela pessoa de quem não se tem notícias há muitas semanas, certamente qualquer um de nós ajudaria, se tivesse condições...

Os restantes capítulos vão saindo, quando alguém tocar na "ferida".

Luís, depois de ter saído na canoa nhominca, que, no regresso, na minha presença, carregou da fragata Vasco da Gama a primeira ajuda humanitária para a Guiné, destinada à Missão Católica de Suzana, eu voltei para Portugal. Não, não fiquei lá...

Mas, passados 2 meses regressei à Guiné, via Dakar e táxi aéreo para Bubaque, dali para Bissau em vedeta de guerra, que foi construída no Alfeite e que estava na mão dos militares senegaleses.

De Bissau por vezes saía para Varela, quando recebia um 'papelinho',  avisando que era melhor ir dar uma volta… Pegava na minha mochila com uma lata de atum, atravessava a pé as bolanhas e lá ia eu para banhos.

O aeroporto de Bissau esteve fechado quase um ano… Quando da morte do 'Nino', tinha ido passar o fim de semana à ilha de  Orango…

Na morte do Ansumane Mané, estava fora de Bissau... Ao reentrar em Bissau encontrei quase uma centena de milhares de pessoas, a saírem a pé. Algumas já iam para lá de Nhacra. Fiz um apelo na rádio RTP África, para mandarem transporte, a fim de apanharem as pessoas que estavam a dormir à beira da estrada, sem quaisquer condições.

Ao mínimo problema, a estrada principal era fechada a viaturas, em Safim.

Assim, como da morte dos restantes altos dirigentes do país..., estava fora, por Varela, Contuboel, etc.  

( Excertos  de vários textos e comentários, revisão / fixação de texto / negritos:  LG)


2. Comentário do nosso editor LG:
 
Patrício Ribeiro, português,
nascido em Águeda, em 1947,
criadoe casado em Angola,
com família no Huambo,
ex-fuzileiro em Angola de 1969
a 1972, a viver na Guiné-Bssau
desde 1984,
fundador, sócio-gerente
e director técnico
da firma Impar, Lda-


Patrício,  não é por acaso que eras conhecido em Bissau, ainda até há pouco tempo, como o "pai dos tugas"... Os jovens, cooperantes, rapazes e raparigas, tinham por ti um enorme respeito e admiração na altura em que o meu filho, João Graça, te conheceu em dezembro de 2009, em Bissau...

Esta história do resgaste de diversos portugueses e 
outros, em plena guerra civil (que começou com o golpe de  Estado de 7 de junho de 1998), perdidos em Varela, Canchungo  e Cacheu, devia merecer honras de título de caixa alta nos jornais da época e nas parangonas dos telejornais... Não me dei conta que isso tenha acontecido... Mas é uma verdadeira história de heroísmo que te honra e nos honra a todos nós, portugueses, teus amigos e camaradas!...

Deixa-me recordar, para os nossos leitores mais recentes, que na sequência daquele conflito, foi  montada pelo Governo Português uma operação de resgaste de cidadãos portugueses e de outras nacionalidades. 

Essa operação, com o nome de código Crocodilo, envolveu uma força conjunta dos três ramos das Forças Armadas. A componente naval foi  constituída pela fragata Vasco da Gama, com dois helicópteros Lynx Mk95 embarcados, pelas corvetas Honório Barreto e João Coutinho e o navio reabastecedor Bérrio

A atuação dos dois helicópteros foi fundamental para o êxito da missão. A força naval foi comandada pelo capitão-de-mar e guerra Melo Gomes. 

(Vd. P. Conceição Lopes, CFR: Operação Crocodilo. "Revista da Armada", julho de 2013, pág. 20).

A história do resgate, efectuado por tua conta e risco, em Varela, já a tinha ouvido contar, na tabanca de São Martinho do Porto, há uns largos anos atrás, talvez em 2012, da boca do nosso saudoso Pepito (1949-2012), um dos "encurralados", em junho de 1998, em Varela, onde também tinha casa de praia, já do tempo dos pais, e que era portanto teu vizinho.

Conseguiste metê-lo, a ele e à família, e a mais cidadãos, num dos helis da fragata Vasco da Gama, ancorada ao largo, a 18 milhas, fora das águas territoriais do país, com mais os dois ou três avios de apoio...

Eu já sabia, além disso, que, na impossibilidade de voltar o heli a Varela, tu já te havias metido na tua canoa nhominca, levando mais um grupo (10 pessoas, de nacionalidade portuguesa, e outros estrangerios...) ao fim da tarde, pelo mar fora, até à fragata salvadora!...

Camaradas e amigos, 18 milhas náuticas numa canoa nhominca (embarcação em que tu és perito e que muito admiras!), são mais do que 33 km pelo mar adentro... Não é para todos, é para quem aprendeu a amar e respeitar o mar, como tu, que foste "filho da escola" da Armada... Afinal, fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre!

Volto a escrever o que já repeti aqui: esta tua história incrível merece ser contada uma e outra vez. Sei que és um homem discreto e modesto, mas ainda espero ir ao 10 de junho, se não for longe, para te ver ser condecoradao por este feito de grande coragem, altruísmo e patriotismo!...

Patrício, se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores!

Registo, para mais, este facto: durante o conflito político-militar, sangrento, de 1998/99, tu foste incapaz de estar longe da tua/nossa Guiné mais do que dois meses... Ao fim de dois meses, voltaste a entrar no país via Dacar, Senegal.


Carlos Schwarz da Silva, "Pepito",
 Lisboa, campus
da ENSP/NOVA. 6/9/2007.
Foto de Luís Graça
O Pepito e a família, cuja casa no bairro do Quelélé, em Bissau, foi pilhada e destruída pela 
soldadesca senegalesa, que apoiava o 'Nino' Vieira, estiveram refugiados em Cabo Verde, à volta de um ano (se bem me lembro)... 

O Pepito tinha nacionalidade guineense, e este foi um dos acontecimentos mais marcantes (e traumatizantes) da sua vida (segundo me confidenciou em São Martinho do Porto)... Voltou à Guiné, para recomeçar a sua vida, uma vida nova, nunca escondendo a sua gratidão para contigo. 

Tu, por sua vez, eras/és português, aliás o português mais guineense da Guiné-Bissau que eu conheço... e a Guiné-Bissau está-te grata pelo trabalho que lá tens feito, levando a energia elétrica a muitas tabancas mas também hotéis, escolas, hospitais....

És um homem que sabe muito da história recente da Guiné-Bissau, saberás até demais, pelos círculos em que te moves, o que te torna também um pessoa cautelosa, discreta, diplomática, sem deixares de ser fiável, afável, prestável, solidário e generoso.

Quem está há 40 anos na Guiné-Bissau, não se imaginando já capaz de viver e trabalhar noutro sítio do planeta, é um sobrevivente nato, capaz de enfrentar e resistir a tudo o que apoquenta, chateia e mata naquela terra (a sida, o paludismo, a cólera, as infecções nosocomiais, as canoas inhomincas, as armas, o tráfico de droga, a violência, a droga de vida, os golpes de Estado, a ausência de Estado, as picadas mal alcatroadas, o tempo seco, o tempo das chuvas, a pobreza, etc....).

Felizmente Águeda não está longe: tu também sabes que tens aqui uma retaguarda segura, à entrada da velha Europa, onde podes 'carregar baterias', revisitar família e amigos, fazer as teus exames de saúde, as tuas consultas médicas... É bom ter uma retaguarda segura, é bom ter uma Pátria, senão mesmo 
duas ou três... 

Tiro-te chapéu pela tua longevidade na Guiné, pela tua história de vida, pela tua sabedoria de verdadeiro africanista. 

Que Deus, Alá e os bons irãs te continuem a proteger  sempre!...
LG

PS1- Espero que no relatório da Op Crocodilo também apareça o teu nome e as tuas boas ações. Nunca chegarás a almirante, mas foste um bravo fuzileiro. 

PS2 - A RPT1, na"Sociedade Civil", ainda recentemente, dedicou a esta operação dois programas num total de cerca de 2 horas e meia. Os vídeos estão disponíves em RTP Play:

24 de julho de 2023 > Operação Crocodilo / Falcão (Parte 1) (1h 12m 08s)
25 de julho de 2023 > Operação Crocodilo / Falcão (Parte 2) (1h 20m 31s)

  

NRP Vasco da Gama (F330) na sua visita a Tallinn, capital da Estónia, entre 27 e 31 de março de 2008. Pormenor, imagem editada pelo nosso Blogue, da autoria de Ivo Kruusamägi da Wikipedia estoniana (2008) (Com a devia vénia ao autor e à Wikimedia Commons)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 18 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25083: O segredo de... (41): António Rosinha (ex-fur mil, Angola, 1961/62; topógrafo da TECNIL, Bissau, 1987/1993): Luís Cabral, a camarada Milanka, eu e o 'mau agoiro' do meu patrão

(***) Vd. poste de 18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23090: (In)citações (198): a atuação de Patrício Ribeiro, durante a guerra civil de 1998/99, e nomeadamente em Varela, em articulação com o NRP Vasco da Gama..."Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores" (Luís Graça)

Ver ainda postes de:

31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: Histórias de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)




18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23088: (In)citações (197): Mais recordações do conflito político-militar de 1998-1999, por parte de quem o viveu por perto, o Cherno Baldé e o Patrício Ribeiro

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24669: Notas de leitura (1617): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (3) (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Não hesito em classificar este trabalho como incontornável para o estudo do que tem sido a tentativa de democratização na Guiné-Bissau. Álvaro Nóbrega prima pelo rigor e a independência de juízos, dá-nos um quadro minucioso do funcionamento do Estado e dos avanços e recuos democráticos, é muito cuidadoso a avaliar as questões étnicas e as ligações à terra, disseca a elite política da Guiné-Bissau, o papel político dos militares, a questão fulcral do semipresidencialismo que acaba sempre em presidencialismo, a personalização na vida partidária, a permanente atmosfera de intimidação onde não faltam os espancamentos e até as ameaças veladas. Espera-se que o investigador, que nos dá uma visão em ecrã gigante do que se passou na Guiné entre 1998 e 2008 continue os seus trabalhos, reconhecidamente de grande qualidade.

Um abraço do
Mário



Uma soberba investigação sobre uma Guiné-Bissau que viveu a guerra civil, dilacerante (3)

Mário Beja Santos


Álvaro Nóbrega, Doutor em Ciências Sociais e professor universitário, é autor de uma obra de referência "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau (2003)", e na sequência desse primoroso trabalho produziu Guiné-Bissau: "Um caso de democratização difícil (1998-2008)", Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015. Este ensaio, de leitura obrigatória, desvela o itinerário ziguezagueante das instituições democráticas e pluralistas na Guiné-Bissau; o investigador reflete a fundo sobre as condições do nascimento do Estado, após uma prolongada luta armada de libertação nacional, elenca sobre as fragilidades, os erros, a vertigem dos cargos, o nepotismo, a tentação tribal, a Nação firme, mas o Estado volátil; enfim, importa esclarecer se faz vencimento aludirmos a um Estado frágil ou falhado ou supor que haverá outros itinerários, que seguramente requerem imensa coragem, a trilhar para consolidar a democracia e o respeito pelas instituições.

Faz todo o sentido tratar de forma linear o presidencialismo e a personalização do poder. O chefe de Estado africano, de um modo geral, é tentado pela autoridade absoluta, não distingue a independência das instituições, assenta o seu poder em redes de relações pessoais, é um tutor paternal, gere um sistema de recompensas e de punições. Mesmo quando é eleito em eleições vincadamente democráticas é visto como um patriarca, não se vê obrigado em manter os poderes separados, e daí o sem número de dificuldades na coexistência entre presidentes e primeiros-ministros mesmos nos sistemas semipresidenciais. Como já se fez referência, no início do novo Estado da Guiné-Bissau pretendeu-se desvalorizar o papel das autoridades tradicionais e mostrou-se como o tempo se encarregou de tornar os representantes do PAIGC perfeitamente inócuos ao nível da vida das tabancas. E a legitimidade desses régulos foi retomada, até porque há um vazio no Estado na generalidade dos povoados. Não nos esqueçamos que esta obra foi editada em 2015, é só um aviso prévio para se entender o valor da narrativa.

Álvaro Nóbrega recorda os oito presidentes que até então exerceram funções na Guiné-Bissau: Luís Cabral, deposto em 1980, Bacai Sanhá, em 1999, Henrique Pereira Rosa e Raimundo Pereira foram presidentes interinos. Até 2009, apenas dois tinham sido democraticamente eleitos: João Bernardo Vieira (Nino) e Kumba Yalá. Estes dois últimos, se bem que separados pelas gerações e pelo percurso da vida, tinham afinidades no que respeita ao seu carisma pessoal e ao modo personalizado como exercera o poder. Nunca se conformaram ao papel moderador e arbitral constitucionalmente definido, muito fizeram para submeter todas as esferas do poder, ingeriram-se mesmo na vida partidária. Não se resignaram a viver em sistema semipresidencialista, contrapuseram a sua versão do presidencialismo. E aqui vem a necessidade de refletir sobre a legitimidade, tão difícil de resolver num país tão seccionado, étnica e culturalmente. Nino Vieira procurava jogar com o seu passado militar e o mito de grande guerreiro; Kumba não tinha pergaminhos guerreiros, pretendeu valer-se dos seus dotes intelectuais, falava várias línguas, evitava os seus pensamentos alegadamente filosóficos, com um certo espetáculo converteu-se ao Islamismo. Foi sempre patente a difícil coexistência entre presidentes e primeiros-ministros, rapidamente os primeiros invadiam o campo dos segundos. O autor refere entrevistas havidas com políticos guineenses sobre as vantagens deste sistema semipresidencial, face ao mostruário existente há sérias dúvidas do que é mais eficaz, o presidencialismo ou o semipresidencialismo.

Inicialmente o PAIGC apresentava-se como um partido de unidade, com a vida multipartidária surgiram problemas aparentemente adormecidos como as linhagens e os sistemas de clã. E o autor recorda que há dois partidos antigos, o PAIGC e a FLING, a RGB nasceu no exílio como o movimento de resistência ao PAIGC, na contagem que o autor fez em 2008 o número dos partidos ultrapassava os 30, o chefe é o elemento primário, é ele que agrega à sua volta os seus seguidores pessoais. Daí a conceção rigidamente hierárquica do poder, o que se pode traduzir em que um Presidente da República ponha e disponha da nomeação do Primeiro-Ministro ao arrepio das instituições e dos resultados eleitorais ou temendo o primeiro a visibilidade do segundo. Exemplos não faltam como o autor transcreve: No PRS, devido a um clima de suspeição, o seu congresso de 2002 decorreu com as portas cerradas por correntes e cadeados, para que ninguém saísse e ninguém entrasse. À vista de todos há partidos que se lançam no confronto interno, caso do RGB.

Recorda igualmente a exoneração de Carlos Gomes por Nino, as rivalidades no PRS entre os Balantas, partido em que se trabalhou para depor o presidente Kumba Yalá. E Álvaro Nóbrega dá mais exemplos. Há vários temas complexos em cima da mesa, desde a ausência de diferenciação dos programas partidários, as diferenças ideológicas mínimas, a inexistência de discussões sobre as políticas públicas, enfim, quer-se deter o poder como uma volúpia, um sistema de prémios e punições, pelo que se passa rapidamente de euforia ao pleno descontentamento. E há que ter em conta que se analisa um dos países mais pobres do mundo, os cargos do Estado são vistos como a solução para os problemas financeiros de cada um. E quando se é forçado a abandonar o poder há mesmo recusas em perder regalias, que podem ser casas ou carros, Kumba Ialá foi acusado de ter vendido o Bissau Hotel, na Líbia, pouco antes de ser deposto, por dois milhões de dólares.

E Álvaro Nóbrega dirige agora o olhar para uma matéria que lhe é muito cara, a luta pelo poder, como ele observa:
“A luta decorre em múltiplas instâncias. Joga-se na presidência, no governo, no parlamento, nos quartéis, nos tribunais, na própria sociedade civil e ainda numa outra que não é deste mundo cuja influência não se menospreza porque é respeitada a sua ação. A cosmologia africana contempla um mundo povoado por entidades sobrenaturais e pelos espíritos dos antepassados, em que os vivos constituem uma minoria perante a imensidão de mortos que os observam (…) Na política, como nas mais diversas áreas da vivência africana, a magia tem um papel central. A classe política culturalmente ambivalente tende a levar muito a sério as questões do poder dos espíritos. A magia joga um papel importante na política e na luta pelo poder”.

E são elencados alguns exemplos. O tema da justiça e dos direitos humanos é de tratamento obrigatório, há que ter em conta os relatórios da Liga Guineense de Direitos Humanos para perceber que a Guiné é um país de detenções arbitrárias, espancamento de jornalistas, tentativas de assassinato, a intimidação está sempre presente. A sociedade civil é observada, é pequena, o que é para lastimar dado que ela é considerada um dos principais pré-requisitos da democracia e o autor faz um diagnóstico:
“A maioria das associações não tem sustentabilidade para sobreviver fora do quadro dos financiamentos internacionais. Consequentemente, o que determina a sua ação não é o fim social que estabeleceram, mas a disponibilidade de fundos, o que faz com que seja um tipo de associativismo que não existe sem um fluxo continuado de financiamento internacional”.

Álvaro Nóbrega irá ainda fazer referência à liberdade de expressão e de imprensa e à africanização do voto.

Conclui o seu importante estudo relembrando o baixo grau de comprometimento político das elites com a democracia, um Estado com falta de soberania, os exacerbamentos étnicos, a personalização do poder, a colagem dos militares ao poder, e algo mais que acaba de se ver neste texto. A sua investigação termina quando se encetava a eleição do José Maria Vaz, o único Presidente da República que começou e concluiu o seu mandato em conformidade com o ato eleitoral. Nóbrega dirá no final que parecia estar reunido um conjunto de condições favoráveis para a estabilização e desenvolvimento, os doadores tinham voltado. Mas não cabe neste trabalho as novas disfuncionalidades enquanto Estado e democracia.

Oxalá Álvaro Nóbrega continue a trabalhar sobre a difícil democratização da Guiné-Bissau, tal o apuro e o rigor que ele põe nas suas investigações.


Kumba Yalá
O general António Indjai, líder dos militares no golpe de estado de 2012
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Nota do editor

Último poste da série de > 15 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24653: Notas de leitura (1616): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (2) (Beja Santos)

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24653: Notas de leitura (1616): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (2) (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Publicada em finais de 2015, este trabalho de Álvaro Nóbrega facilita-nos, pela abrangência do estudo, a tomar o pulso à realidade política e social da Guiné-Bissau através da sua complexidade sociocultural, como emergiram as elites, como houve um processo etiológico durante a chamada luta de libertação que acabou por desaparecer dando lugar a formas por vezes amalgamadas de gente de diferentes partidos, até com formação superior, com valores tradicionais, vive-se a perene tensão entre os políticos e os militares, estes às vezes também se juntam para fazerem negócios que dão pelo nome de exportação de madeiras exóticas, tráfico de armas ou narcotráfico. Álvaro Nóbrega compulsa com rigor estes elementos do Estado, disseca a orgânica das elites e expõe os diferentes aspetos que têm vindo a contribuir para dificultar a construção de uma democracia na Guiné-Bissau. É um livro de referência, facilita o debate para entender e procurar superar as disfuncionalidades de um Estado a quem chamam de frágil ou falhado.

Um abraço do
Mário



Uma soberba investigação sobre uma Guiné-Bissau que viveu a guerra civil, dilacerante (2)

Mário Beja Santos

Álvaro Nóbrega, Doutor em Ciências Sociais e professor universitário, é autor de uma obra de referência "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau" (2003), e na sequência desse primoroso trabalho produziu Guiné-Bissau: "Um caso de democratização difícil (1998-2008)", Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015. Este ensaio, de leitura obrigatória, desvela o itinerário ziguezagueante das instituições democráticas e pluralistas na Guiné-Bissau; o investigador reflete a fundo sobre as condições do nascimento do Estado, após uma prolongada luta armada de libertação nacional, elenca sobre as fragilidades, os erros, a vertigem dos cargos, o nepotismo, a tentação tribal, a Nação firme, mas o Estado volátil; enfim, importa esclarecer se faz vencimento aludirmos a um Estado frágil ou falhado ou supor que haverá outros itinerários, que seguramente requerem imensa coragem, a trilhar para consolidar a democracia e o respeito pelas instituições.

Já se passou em revista o nascimento do Estado independente, subsequente a um período de luta, e revelaram-se equívocos e falhas em todo o processo da transição entre um Estado monopartidário para uma democracia pluralista. Agora Álvaro Nóbrega procura saber quem é a elite política da Guiné-Bissau, quem se pauta por princípios da modernidade e quem mantém valores tradicionais. E ajustadamente lembra-nos que o último estudo sério data do período colonial, intitulou-se Mudança sociocultural na Guiné Portuguesa, e foi o seu autor José Manuel de Braga Dias, 1974. Recorda os autores que estudaram o processo histórico da formação das elites, como os princípios por que se regia Cabral foram rapidamente pervertidos e voltaram a ganhar peso a ligação ao chão, a ligação patrilinear ao clã, a utilização de linguagem ofensiva para quem tem família fora da Guiné, invetivando-se a origem sírio-libanesa, cabo-verdiana ou são-tomense.

Como escreve:
“O Movimento Reajustador de 1980 espoletou uma reação popular e hostil aos mestiços, levando a que muita gente da praça, crioula portanto, fosse à procura da sua genealogia de referências étnicas que porventura já estavam algo esquecidas e as recuperasse. Outras optaram contrariados pelo exílio, dando início a um movimento migratória crioulo ou não-crioulo para o exterior. A crioulidade é expansiva e integra indivíduos sem quaisquer ligações biológicas europeias, cabo-verdianas, levantinas e até goesas. Tornaram-se eles próprios gente da praça, sendo vistos como brancos (por se considerar terem adotado os seus costumes) quando visitam as aldeias dos seus pais e avós. A este grupo pertencem, também, alguns islamizados que, pela educação de matriz portuguesa, alcançaram cargos administrativos importantes ainda no período colonial”.

O peso crioulo vai até aos bairros periféricos e aqui a elite moderna interseta-se com as tradicionais. Mas há um momento determinante que mudou a abrangência e a forma das elites: a chegada de novos grupos por via eleitoral. O conflito político-militar iniciado em 7 de junho de 1998 trouxe exacerbamento étnico, começou a falar-se do aparelho de Estado dominado pelos Balantas, do seu conflito permanente com os Mandingas, ganharam influência as elites religiosas, com as mudanças constantes de governos cresceu o apetite pela distribuição de lugares governamentais, lutas internas dentro dos próprios núcleos da elite governante, os interesses grupais, a avidez pela ascensão ao mando e controlo da ajuda internacional ou de fazer parte de um qualquer projeto prometedor de exportações ou até ligação ao negócio de armas ou droga, foi ganhando projeção. O autor não deixa de chamar a atenção para a presença feminina em atividades que ajudam a complementar o rendimento familiar e não deixa de ser curioso analisar os quadros que ele apresenta de distribuição dos deputados por profissão e partido, tendo também em conta a ligação ao funcionalismo público, o nível de escolaridade, onde estudaram, a pertença étnica.

Outra matéria que Nóbrega equaciona é a legitimidade histórica tradicional, isto é, as práticas políticas modernas precisam de se legitimar, em muitos casos, no primado das tradições, e dá exemplos que têm a ver com a retoma do fanado.

O peso político dos militares ganha expressão com o conflito político-militar iniciado em 1998, até aí Nino Vieira tinha mão de ferro sobre a conduta militar, sabia pagar lealdades e distribuir mordomias, isto para sublinhar que não havia uma separação efetiva entre a política e as armas.

A figura da Junta Militar espevitou violências, ressentimentos, descontentamentos, ajustes de contas, rivalidades, servir-se da tropa para conduzir negócios mais do que duvidosos: o abate ilegal de madeiras exóticas, o tráfico de armas, o narcotráfico. Estas Forças Armadas representam um pesado encargo que impediu, impede e impedirá qualquer saúde orçamental. Atenda-se ao que o autor escreve num livro publicado em 2015:
“É um exército de 1869 oficiais (42%), 1218 sargentos (27%) e 1371 soldados. Esta é a razão pela qual o Chefe da Missão Europeia de Apoio à Reforma das Forças Armadas da Guiné-Bissau, entretanto suspensa, declarou que a pirâmide invertida deveria ser normalizada, reduzindo o número anormal de oficiais e suboficiais fazendo aumentar o número de soldados. O problema é de natureza patrimonial. Como os salários são melhores em postos mais altos, há muita pressão dos homens para serem promovidos. A fim de os manter satisfeitos, de assegurar a sua lealdade e incumprimento das obrigações de parentesco, os chefes militares, que não estão condicionados ao controlo civil, são facilmente tentados a dar promoções. Soma-se a este problema a situação não resolvida pelos combatentes da Liberdade da Pátria”.

Todas as iniciativas para reduzir o número de efetivos não têm sucesso, cada vez que há um conflito reintegram-se militares desmobilizados juntamente com novas laivas de combatentes, a resistência dos militares à desmobilização tem a ver com uma vida civil que pouco lhes oferece, sentem que perdem estatuto social e rendimento. E igualmente o autor lembra que contrariamente à maioria dos funcionários públicos cujos salários são pagos com meses e meses de atraso, os salários militares são uma questão mais delicada.

Outro aspeto que se pode considerar relevante para as dificuldades da construção democrática na Guiné-Bissau tem a ver com o papel político das Forças Armadas, aí estão os golpes de Estado para o evidenciar. E o autor desdobra-se em exemplos: em 1999, Ansumane Mané vetou a candidatura de Saturnino da Costa para presidente do PAIGC, proibindo-o de participar no congresso; em 2004 o general Veríssimo Seabra vetou Aristides Gomes para Ministro da Defesa ou dos Negócios Estrangeiros; em 2007, Tagma Na Wai vetou a nomeação de Baciro Dabó para conselheiro presidencial, depois de ter pressionado para a sua exoneração de Ministro da Administração Interna.

São tudo menos pacíficas as relações entre políticos e militares. Atenda-se ao que escreve Nóbrega:
“O respeito pelo guerreiro, o sistema de recompensas e punições, as promoções e as depurações ajudaram a conter os descontentes, até ao dia 7 de junho de 1998. Os amadores, como diria Sori Djaló, passaram a profissionais e o poder político passou a estar refém de umas Forças Armadas que se autonomizaram. O sistema baseia-se na desconfiança e a nomeação de chefias militares próximas, bem como a incorporação de mancebos pertencentes à etnia governante, esta procura minimizar riscos, mas não os eliminam, daí a importância dos serviços de segurança, que vigiam militares e civis, e do sistema de defesa paralelo assente em forças paramilitares com capacidade de combate”. Tudo somado, temos um poder fraco que não controla o poder militar, dele é refém, o único poder temido é o externo. “Os militares estão conscientes de que há algures um limite que, se ultrapassado, pode acarretar a punição da comunidade internacional. É esse o único limite que temem”.

Vejamos agora o presidencialismo e a personalização do poder.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24641: Notas de leitura (1615): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (1) (Beja Santos)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24083: Notas de leitura (1557): "Reportagem, uma antologia", por Jorge Araújo; Assírio & Alvim, 2001 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
O sucesso obtido em sucessivas edições do "Comandante Hussi" que começou por ser uma reportagem do conhecido jornalista cabo-verdiano Jorge Araújo acerca de uma criança que foi envolvida no conflito político-militar de 1998-1999, um estafeta-mascote que recusou abandonar o campo de batalha para ficar ao lado do pai, antigo combatente que aderiu à causa de Ansumane Mané. António Hussi vai viver em cheio a guerra desde junho de 1998 a maio de 1999, e enquanto em Bissau e um pouco por todo o país se sente o vento libertador do fim de uma tirania, Hussi veio a correr a casa à procura do seu tesouro, uma bicicleta desconjuntada, comoveu-se ao ver que o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. "Pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcer-se de dor. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta". Metáfora de uma criança contente com a simplicidade do seu tesouro, e temos aqui algumas das páginas esmaltadas da literatura da lusofonia.

Um abraço do
Mário



Comandante Hussi: uma reportagem que deu brado, inesquecível

Mário Beja Santos

Comandante Hussi[*], uma das obras mais dramáticas e ternas do que se pode designar por literatura de guerra, antes de aparecer sob a forma de livro foi editado como reportagem num jornal, e por tal razão, atendendo à altíssima qualidade do texto, José Vegar [foto à direita], selecionador, prefaciador e anotador do livro "Reportagem", uma antologia, Assírio & Alvim, 2001, deu primazia ao trabalho de Jorge Araújo, experiente em cenários de guerra. Como Vegar escreve: 

“No caso do conflito na Guiné-Bissau, Jorge Araújo – profissional desde 1986, na Televisão de Cabo Verde, BBC, Já e O Independente – foi particularmente feliz. Quis o acaso que nas ruas de Bissau alguém lhe indicasse o miúdo António Hussi, o mais jovem guerrilheiro de Ansumane Mané. O repórter deixou-se ficar junto dele, ouviu-lhe confidências e narrações dos episódios da guerra. Através dele, contou a Batalha de Bissau e revelou ao leitor o desejo de um miúdo recuperar a sua bicicleta”

Mas antes de se falar das aventuras de António Hussi, retorne-se ao prefácio de Vegar:

“Das vinte reportagens reunidas nesta antologia, seis são sobre a guerra, uma, a de Timor, sobre uma operação militar contra um povo indefeso, oito sobre problemas ou acontecimentos sociais importantes, duas sobre personagens ou factos na nossa História contemporânea, uma sobre um tycoon dos media, outra é puro jornalismo de viagem e uma última sobre política”

Elogia o papel que a reportagem tem no jornalismo, deplora cada vez menos espaço que a reportagem tem na substância dos jornais, mas também recrimina o jornalista, assim: 

“A restante parte da culpa pertence aos próprios jornalistas portugueses, à sua cultura profissional. Por não considerarem o jornalismo como uma Arte, que tem história, estilos, períodos, ruturas e mestres, que importa conhecer. Por ignorarem que nenhuma história se faz sem alma, essa entidade imaterial que gera curiosidade, paciência e o supremo gozo de encontrar os factos e as pessoas a escrever sobre eles”.

Jorge Araújo [foto à esquerda] publicou "Comandante Hussi" no jornal “O Independente”, em fevereiro de 1999, e arranca com um parágrafo que captura imediatamente o leitor:

“Era uma vez um menino. Pobre mas feliz. Feliz porque tinha um tesouro. Não era um vistoso boneco do Rambo – daqueles que se transformam em carro de combate e em avião supersónico –, nem mesmo uma sofisticada metralhadora de brincadeira, que acende uma luzinha irritante e faz mais barulho do que qualquer arma de verdade. Muito menos um computador capaz de navegar pela Internet e com jogos que desafiam até as madrugadas mais longas. Era um tesouro que só uma criança pobre pode ter”.

E descreve esse tesouro, uma bicicleta reduzida a um escombro, pintada de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcer-se de dor. Mas um tesouro, era o único presente que o pai algum dia pôde oferecer-lhe. “Porque era tudo o que dinheiro de pobre pode comprar”.

Segue-se o contexto familiar e um acontecimento inopinado, o princípio da guerra, as famílias em fuga, naquele dia 7 de junho rapidamente a população de Bissau se apercebeu que o inferno lhes batera à porta. Acompanhou a família, choroso por deixar a sua bicicleta, mas chegado a Nhacra, justificando saudades do pai, Ablei Sissé, um dos muitos antigos combatentes da liberdade da Pátria que se juntaram ao brigadeiro Ansumane Mané, deu meia volta, fugiu, fintou bombas e tiros e chegado a Bissau perguntou pelo pai, deu-se o reencontro, o pai furioso, sovou-o, aquilo não era lugar para uma criança, mas António Hussi insistiu em ficar, o pai cedeu. 

“Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante de cozinheiro. Aprendeu a cozinhar arroz de todas as maneiras e feitios, mas durante quase 11 meses o principal prato do dia era uma mão-cheia de nada. Não matou mas viu morrer. E conviveu com o cheiro nauseabundo dos cadáveres em decomposição”.

Assistiu à humilhação dos milhares de soldados do Senegal e da Guiné Conacri que morreram ou fugiram sem honra nem glória. Tentou-se a paz. Até que no dia 6 de maio de 1999, a Junta Militar lançou-se no ataque final, as tropas de Ansumane Mané puseram todos os apoiantes de Nino Vieira em debandada. Nino, considerado o maior herói da luta de libertação vivo, vencido, humilhado, procurou refúgio na Embaixada de Portugal.

O estado de Bissau era calamitoso, o Hotel Hotti e o Mercado de Bandim num perfeito abandono. Hussi estava exultante. 

“Durante toda a noite, deliciou-se com o fogo de artifício da artilharia. Quando a madrugada acordou, o menino-soldado pedalou com as suas sandálias de plástico até à Praça Che Guevara. Assistiu à confusão em frente ao Centro Cultural Francês, com a população a gritar por vingança e a querer reduzir o edifício a cinzas. Viu os civis franceses a abandonarem o local amedrontados e as tropas especiais de Paris encurraladas na sua arrogância a sair com o rabinho entre as pernas. Uns e outros refugiaram-se na Embaixada de Portugal. Viu também os livros, que nunca teve, serem consumidos pelas chamas assassinas. E a pilhagem que se seguiu. E apanhou uma fitinha tricolor, que agora coloca à volta da testa. É o seu único troféu de guerra”.

E depois do triunfo veio a redenção ou melhor o reencontro com a bicicleta, o seu tesouro, e se até agora acompanhámos as ditas e as desditas de uma criança que prestou serviço na guerra, uma mascote dos vitoriosos, tudo culmina quando António Hussi saiu daquela guerra e partiu para a guerra da sua vida:

“Uma das primeiras coisas que Hussi fez mal a guerra terminou foi dar um salto até à sua casa ali para os lados do Bairro de Santa Luzia. Foi uma viagem-relâmpago, que nem deu para abraçar os amigos ou participar num animado jogo de futebol. Como no início dos confrontos, todos os seus pensamentos continuavam amarrados a uma única coisa. Hussi quase chorou de alegria quando se apercebeu que o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. Pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta”

Texto prodigioso que veio a dar edições ilustradas, e não menos comoventes. Aquela guerra de 1998-1999 deu azo a diferentes textos e relatos, mas nenhum deles possui a luminosidade e o prodígio de encantar como Comandante Hussi, estão ali, com marca-de-água, algumas das mais belas páginas da literatura lusófona, convém acarinhá-las e dá-las a saber às mais novas gerações para que não esqueçam o que a guerra custa e como uma criança, naqueles lugares de caos, de desespero, guarda como maior triunfo o escombro de uma bicicleta. Que texto maravilhoso, oxalá que circule na memória das novas gerações guineenses.
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Notas do editor:

[*] - Vd. poste de 6 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23236: Notas de leitura (1443): Comandante Hussi, por Jorge Araújo e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a história do menino-soldado que não perdeu a capacidade de sonhar, é edição do Clube do Autor, 2011 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 17 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24075: Notas de leitura (1556): O Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau: Imagens Para Uma História (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23557: Notas de leitura (1479): "A Guerra de Bissau, 7 de Junho de 98", por Samba Bari, um guineense diplomado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada; Sinapis Editores, 2018 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a esta reportagem sobre os desafortunados onze meses de conflito político-militar que abanou a Guiné pelos alicerces. Há qualquer coisa de drama shakespeariano neste presidente Nino que vai sendo gradualmente deixado só, obrigado a recrutar uma tropa de choque de gente desempregada, os "Aguentas", e que na hora da capitulação, em maio de 1999, é trazido pelo embaixador português que o foi encontrar transido de medo numa instituição da Igreja Católica. Samba Bari, há que reconhecer, escreve meticulosamente todo este rol de eventos, de entendimentos e acordos ruidosamente celebrados e rasgados no dia seguinte, isto enquanto a Junta Militar se vai apoderando do país e recebendo cada vez mais apoio popular. Há pontos da historiografia guineense em aberto e nenhuma investigação até hoje explicou como este tirano odiado em 1999, exilado em Portugal, regressa em 2005 e é espetacularmente recebido, desarvorando uma nova fase belicista, com um corolário de assassinatos, de que ele próprio será vítima. E dentro do nevoeiro continuam as estruturas do PAIGC, estes quadros indecifráveis que se odeiam uns aos outros e querem alcandorar-se a postos que lhes sirvam a ganância, e o mistério ainda fica mais completo porque o povo lhes dá o voto.

Um abraço do
Mário



Um guineense usa a reportagem para contar o conflito político-militar de 1998-99 (2)

Beja Santos

O conflito despoletado em 7 de junho de 1998, na sequência da demissão imposta por Nino a Ansumane Mané, ainda por cima com a grave acusação de que o lendário Bric-Brac contrabandeava armas para os sublevados do Casamansa iria estender-se por penosos onze meses, com ondas de terror, populações em fuga, movimentações diplomáticas em catadupa, acordos celebrados e rapidamente violados. Samba Bari, um guineense que vivia no estrangeiro na época deste conflito político-militar que deixou sequelas até ao presente, elaborou em jeito de reportagem A Guerra de Bissau, Sinapis Editores, 2018. Não esconde que a leitura de todos estes acontecimentos relacionados com devastação e gradual empobrecimento da Guiné-Bissau pode contribuir para que mentes abertas saibam extrair ensinamentos positivos para uma retoma que obedeça a reconciliação, perdão e sentido de um desenvolvimento a pensar nos mais carenciados.

Das razões antigas e próximas do conflito, Samba Bari dá-nos uma síntese. Há uma omissão no seu olhar que não é incomum aos guineenses, até hoje, que eu saiba, não se analisou a fundo a natureza social do PAIGC e dos seus quadros após o golpe de Estado de novembro de 1980. Uma liderança despótica, onde pululam favoritos e o receio de políticos concorrentes, recheada de casos de corrupção, com a destruição a frio de todos os projetos e muitas das infraestruturas provindas da era de Luís Cabral, obrigatoriamente que leva à constituição de fações e projetos com largas diferenças. Nesta nova classe política não há estudos efetuados, os quadros do PAIGC e a sua visão do Estado permanecem no nevoeiro.

O autor passa em revista as primeiras hostilidades, as tentativas de mediação, os tiros de artilharia que vão arrasando embaixadas e hospitais, as iniciativas para criar corredores humanitários, fica bem claro que Nino Vieira ainda manda na península de Bissau, está cercado pela Junta Militar, angariou ódios com o pedido da intervenção estrangeira, até os velhos combatentes da luta armada voltaram a pegar em armas. As fidelidades a Nino vão-se quebrando e pelo passar dos meses a Junta Militar vai-se assenhoreando do resto do país.

Elencam-se as negociações diplomáticas e os compromissos que ninguém irá respeitar. Ansumane Mané torna-se mediático, recebe jornalistas estrangeiros a escassos quilómetros do Palácio Presidencial, circula livremente entre Bissalanca e o Cumeré. Os senegaleses tornam-se odiados, pelos crimes praticados, pela violência das suas destruições, numa atitude bárbara devastaram cerca de dois terços do património histórico da Guiné-Bissau, guardado e conservado no INEP. Em agosto, falhado o memorando de entendimento assinado pelo governo guineense com a Junta Militar, sob os auspícios, entre outros, da CPLP, a CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) consegue obter temporariamente tréguas, toda a sociedade civil guineense se movimenta a reclamar paz. A hostilidade ao Senegal passa para a França. Vem a lume a notícia de que o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês possuía um relatório exclusivo sobre o regime de Bissau, com informações incendiárias: a situação caótica da administração pública; a fraude nas eleições presidenciais e legislativas de 1994; o estado de penúria em que se encontravam as Forças Armadas; o desvio de muitos milhões de dólares durante o processo da troca do peso para o franco CFA; os assassinatos políticos (com os nomes das vítimas e dos seus carrascos); a corrupção generalizada dos membros do governo em ligação com o mundo dos negócios; o tráfico da droga, a venda de passaportes a grupos do crime organizado internacional… Há desmentidos, mas para a opinião pública não há fumo sem fogo.

Sucedem-se os precários cessar-fogos, viaja-se para Banjul, Abidjan, Sal, Abuja, assinam-se papéis que são rasgados no dia seguinte. Nino não quer perder poder mas toma consciência que o seu mando é precário e circunscrito, aceita em Abuja que se forme um governo de unidade nacional, contrafeito aceita o nome de Francisco Fadul para primeiro-ministro. Novas peripécias, de novo a violação do acordo. E no último dia de janeiro de 1999 os canhões voltam a despejar metralha sobre Bissau, o Hospital Simão Mendes foi severamente atingido, falta material médico, marcam-se tréguas para que mais habitantes abandonem a cidade. As duas únicas emissoras ativas na Guiné, a Rádio Nacional e a Rádio Bombolom clamam pela guerra, é preciso aniquilar a parte contrária. A comissária europeia Emma Bonnino viaja até à Guiné e na sua presença Nino e Ansumane Mané prometem voltar à paz. O governo de unidade nacional toma posse, insiste-se na saída dos senegaleses, apela-se a que a CEDEAO nomeie outra força de interposição.

Fadul vem à Europa, pede apoios, à volta da Guiné as tensões não param: é o Senegal e o Casamansa, são os receios de Dacar de ver denunciado o acordo de partilha da zona comum de exploração petrolífera, em que Nino se rendera claramente aos interesses do Senegal; são os interesses da França em intervir em Bissau, quer proteger a Elf na Guiné; a própria Guiné Conacri saíra totalmente humilhada no assalto a Fulacunda quando a população pôs o contingente do país vizinho em fuga. Nino, cada vez mais isolado, recruta gente desempregada como tropa de choque, são os “Aguentas”. A 6 de maio, a Junta Militar exige a redução desta guarda pessoal de Nino, ele rejeita categoricamente, reforça-a e reequipa-a. Foi a última gota de água, as tropas da Junta Militar investem sobre Bissau, em menos de 24 horas assumem o controlo da cidade e todo o território guineense. Escreve o autor que num derradeiro ato de desespero das tropas fiéis a Nino Vieira, um bombardeamento criminoso e indiscriminado fez trinta vítimas, as quais se haviam refugiado num centro de formação profissional mantido pela Igreja Católica no Alto Bandim.

Infelizmente, o resto é história bem conhecida, pilhagens, incêndios, mais humilhações para os franceses, Nino refugia-se na embaixada de Portugal, a Junta Militar triunfa. Segue-se o seu reconhecimento, há o gesto de pacificação, os “Aguentas” não serão perseguidos; Malam Bacai Sanhá, Presidente da Assembleia Nacional Popular, é empossado como Presidente da República interino, Francisco Fadul recusa perseguições a Nino, este recebe asilo político em Portugal. Mas os sobressaltos irão continuar e os episódios mais recentes não são verdadeiramente abonatórios. Kumba Yalá ganhará as eleições presidenciais, novo desastre; Ansumane Mané confronta-se com novo poder, acabará executado a sangue-frio. Indo por aí fora, em 2005, Nino regressa à Guiné e será reeleito, seguem-se assassinatos em cadeia até chegar a hora do seu, em 2009. Verdadeiramente, a normalização democrática só chegará em 2014 com a eleição de Jomav, se bem que o seu mandato tenha tido um final um tanto turbulento, é um tempo de paz, em que se irá revelar a heterogeneidade de tendências dentro do PAIGC, o tal mistério sobre o qual não há nenhuma investigação que permita dizer quais as tendências dominantes dentro desse partido político que continua errático e sempre com conflitos internos ininteligíveis para os estudiosos e para o povo guineense.

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Notas do editor:

Vd. poste de 22 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23544: Notas de leitura (1477): "A Guerra de Bissau, 7 de Junho de 98", por Samba Bari, um guineense diplomado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada; Sinapis Editores, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23553: Notas de leitura (1478): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): as aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte I: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos."

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23544: Notas de leitura (1477): "A Guerra de Bissau, 7 de Junho de 98", por Samba Bari, um guineense diplomado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada; Sinapis Editores, 2018 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É meritória a iniciativa de Samba Bari, coligindo e tratando de notícias que ele guardou, vivia no estrangeiro quando eclodiu o conflito político-militar. Claro que a bibliografia do conflito é hoje apreciável, mas é sempre estimulante acolher novos olhares. Pode haver poucas novidades, mas toda esta reportagem tem um fundo de melancolia, um anúncio de desaire, era inevitável que toda aquela destruição, o reacender de ódios entre velhos camaradas iria forçosamente apresentar uma dolorosa fatura que se chama de trauma. E não houve uma personalidade política capaz de conclamar a reconciliação e o andar para a frente, dentro de um estado de sincero perdão. Samba Bari fez bem em também socorrer-se da história oral, atenda-se ao depoimento que colheu a Hélder Vaz, hoje embaixador da Guiné-Bissau em Portugal, pleno de patriotismo e apegado ao bom relacionamento luso-guineense.

Um abraço do
Mário



Um guineense usa a reportagem para contar o conflito político-militar de 1998-99 (1)

Beja Santos

A obra intitula-se "A Guerra de Bissau, 7 de Junho de 98", o seu autor é Samba Bari, um guineense diplomado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada que vive em Manchester, Sinapis Editores, 2018. Trata-se de mais um contributo sobre o conflito político-militar que devastou a Guiné-Bissau por cerca de onze meses. Sobre este conflito, Samba Bari entendeu socorrer-se dos órgãos de comunicação social, e baseado em todo este acervo noticiarista escreve um livro que é uma autêntica reportagem. Para o leitor interessado, lembramos que há obras literárias sobre o conflito, caso do esplêndido relato "Comandante Hussi", por Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira, Clube do Autor, 2011, Jardim Botânico, um romance de Luís Naves, Quetzal Editores, 2011 e vários relatos como "Bissau em chamas", de Alexandre Reis Rodrigues e Américo Silva Santos, Casa das Letras, Lisboa, 2007, "Crónica dos (des)Feitos da Guiné", por Francisco Henriques da Silva, Almedina, 2012, o "Conflito Político-militar na Guiné Bissau", por Guilherme Rodrigues Zeferino, IPAD, 2003, "Guiné – 24 anos de Independência, 1974-1988", por José Zamora Induta, Hugin Editores, 2001 e o estudo científico "Colapso e Reconstrução Política na Guiné-Bissau (1998-2000)", Lars Rudebeck, Uppsala, 2011 (versão portuguesa), isto para não esquecer "História(s) da Guiné-Bissau", de que sou autor, Edições Húmus, 2016.

O pretexto da reportagem tem a ver com o facto de Samba Bari ter vivido no estrangeiro esta guerra de pendor fratricida, pegou nos textos dos jornais guardados, recorreu à história oral e dá-nos o seu ponto de vista, sem alardes. Até 7 de junho de 1998, a Guiné-Bissau podia orgulhar-se, a despeito de se poder considerar ter um regime despótico, não ter sofrido de uma guerra devastadora, tudo ficara circunscrito, em 1980, a um golpe de Estado que afastou um conjunto de cabo-verdianos da cúspide do PAIGC, acontecimento que conduziu à separação da Guiné de Cabo Verde. O que começou em 7 de junho terminou em 7 de maio do ano seguinte, quando a Junta Militar, dirigida por Ansumane Mané chegou a Bissau e Nino Vieira, após se ter refugiado na embaixada portuguesa, partiu para o exílio. Conflito devastador do princípio ao fim, na derradeira batalha viam-se dezenas de corpos caídos por terra enquanto o palácio presidencial foi saqueado e incendiado. A violência não acabou nesse dia, Ansumane Mané terá sido executado em novembro de 2000, a cerca de trinta quilómetros de Bissau, outros elementos da Junta irão ser mortos, posteriormente.

Samba Bari elenca algumas das causas remotas e próximas que conduziram a um conflito que teve caraterísticas muito especiais: iniciados os tiroteios que marcaram a revolta, consciente de que à volta de Ansumane Mané estava a nata de todos aqueles que tinham lutado pela independência, Nino Vieira pediu apoio internacional ao Senegal e à Guiné-Conacri, jamais terá pensado que o armamento destes países e os respetivos militares irão personificar a sua derrota. O presidente, outrora carismático, ficou circunscrito a Bissau; a Junta Militar só lhe deixou saída para o mar e as principais estradas foram bloqueadas e o aeroporto tomado. Em poucos dias a capital esvaziou-se, o corpo diplomático fugiu, com exceção do embaixador português, os tiroteios iam destruindo infraestruturas, os hospitais não escaparam.

Samba Bari procura dar-nos o retrato do ditador, do seu círculo de fiéis, da ganância dos seus negócios, dos seus ódios de estimação, do trauma que provocou quando mandou executar Paulo Correia, 1.º Vice-Presidente do Conselho de Estado, Viriato Pã, Procurador-Geral da República, à frente de um rol de mais 44 acusados. A política externa de Nino era completamente errática, umas vezes do lado da China Popular, outras da Formosa, umas vezes com Israel e a Indonésia, o que criava mal-estar no seio da Organização da Unidade Africana e Portugal, no caso da Indonésia era inaceitável este estreitamento de relações quando Timor estava ocupado. Ao longo dos últimos anos o relacionamento com a chefia das Forças Armadas deteriorara-se. A causa próxima tinha a ver com o tráfico de armas para o Casamansa, uma região em permanente conflito com Dacar, um conflito étnico aparentemente insolúvel. Nino acusava Ansumane de ser o responsável pela venda clandestina de armas aos revoltosos, Ansumane dizia literalmente o oposto. E não havia grandes dúvidas de que nas primeiras eleições democráticas de 1994 a vitória de Nino sobre o seu adversário Kumba Yalá estava envolta de bastante batota. Ao destituir Ansumane Mané do cargo de Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Nino incendiou as Forças Armadas. No início desse dia 7 de junho, a casa do brigadeiro Ansumane Mané foi atacada a tiro, o brigadeiro Bric-Brac (seu nome de guerra) não estava lá, tinha ido convocar os seus fiéis homens de armas. Horas depois três fiéis de Nino caíram numa emboscada na estrada que liga o aeroporto ao centro da capital. Começaram os tiroteios, Nino desistiu de uma viagem ao estrangeiro, barricou-se no Palácio Presidencial.

O descontentamento nas Forças Armadas não podia ser maior, com salários em atraso, tinha havido o abandono das fileiras de centenas de militares, Ansumane foi à procura dos mais resistentes e operacionais. No interior, a população militar era flutuante. Por exemplo, o quartel de Gabú, poucos dias antes da guerra, tinha apenas um militar e o de Bafatá três. A Junta Militar recrutou todos os descontentes, muitos deles esperavam uma oportunidade para obterem o estatuto semelhante aos designados “Combatentes da Liberdade da Pátria”, que eram todos aqueles que tinham combatido o colonialismo português.

Samba Bari recorda o procedimento de António Guterres, da CPLP, do Comandante Hélder Costa, do “Ponta de Sagres”, que correndo os maiores riscos atracou no cais de Bissau para recolher os fugitivos; o comportamento do embaixador português que se recusou a partir e que se revelará um destacado chefe de missão, tentando que as conversações diplomáticas chegassem a bom porto; a tentativa da Gâmbia para um cessar-fogo, que falhou; uma entrevista a Hélder Vaz, então presidente do grupo parlamentar do Movimento Bâ-fata (e hoje embaixador da Guiné-Bissau em Portugal) sobre as razões da crise; o estado calamitoso das multidões em fuga, a criação de fundos humanitários, a propaganda de um lado e do outro, a tentativa do bispo de Bissau, D. Artur Septímio Ferrazzeta, que tentou improficuamente o diálogo entre as partes; a raiva que se ia apoderando dos revoltosos com a duplicidade da política francesa; a tentativa de mediação da CPLP que conduziu ao memorando de entendimento que foi rubricado em 23 de julho de 1998 a bordo da Fragata “Corte Real” e a desilusão posterior; e a oposição guineense a querer ver os senegaleses fora da Guiné. Entretanto, prosseguiram outras conversações, há a esperança de se ter chegado a um cessar-fogo. Esperança de pouca dura.

(continua)

Tanque abandonado, imagem da guerra civil de 1998-99
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23539: Notas de leitura (1476): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23236: Notas de leitura (1443): Comandante Hussi, por Jorge Araújo e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a história do menino-soldado que não perdeu a capacidade de sonhar, é edição do Clube do Autor, 2011 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Há livros que merecem uma regular revisitação, não só por terem consagração pública, por constituírem peças literárias do melhor cristal, mas porque nos transportam a vivências que guardamos para toda a vida, nós, que conhecemos os malefícios da guerra a par de uma camaradagem partilhada como em nenhum outro cenário da vida. Jorge Araújo maquinou com base num acontecimento real, o menino Hussi, um menino-estafeta que correu todos os riscos naquele demencial conflito político-militar que abanou pelos alicerces a Guiné entre 1998 e 1999, uma história de encantar em que um objeto, uma bicicleta, ocupa um lugar central, pois é uma bicicleta que fala, pintada de lama e com os raios das rodas a contorcerem-se de dor. Mensagem de ternura num mundo em que coisas tão simples fascinam uma criança incansável por reencontrar aquela bicicleta com que irá pedalar até à eternidade. Pois se convida o leitor a tonificar-se com este perdurável "Comandante Hussi".

Um abraço do
Mário


Revisitar uma obra-prima da literatura luso-guineense: Comandante Hussi[1]

Beja Santos

O jornalista José Vegar, no posfácio desta obra prodigiosa, questiona se o leitor se deslumbrou com uma história para crianças que é uma crónica de guerra para leitura dos adultos de hoje, ou uma crónica adulta de guerra esmagada por uma luminosidade só para crianças. A máquina literária de Jorge Araújo, reforçada pelas belas ilustrações de Pedro Sousa Pereira, é de um tratamento alegórico em torno de uma bicicleta que conversa com o seu dono, bicicleta temida por um feiticeiro que influi numa terrível decisão de um tirano que é o Comandante Trovão que manda destruir todas as bicicletas do país tal como Herodes mandou matar as crianças.

É tudo alegoria naquela Guiné-Bissau que vai viver um conflito sangrento que se prolongou de 1998 a 1999, deixando o país mais comatoso. Hussi é um membro da família Sissé, a residir em Porto dos Batuquinhos, na margem de um rio que a seca engoliu. É tudo pobre, mais do que elementar, mas muito rico em convivência. Pobre porque a casa tem paredes de cartão, uma alcatifa de terra batida, as camas são esteiras, a cozinha não passava de meia dúzia de pedras calcinadas e a casa de banho um buraco aberto no quintal. A única mobília era o calendário de Nossa Senhora de Fátima. Tudo paupérrimo, mas tudo nobre na vida de relação, ali vive Hussi com Abdelei Sissé, o pai herói, Dona Geca, os três irmãos de nome Totonito, Tuasab e Doskas. “Viviam felizes, porque a felicidade também se faz de pequenos nadas. Um sorriso, uma palavra de conforto, uma mão de arroz para embalar o estômago, um pedaço de pano para embrulhar o corpo”. Convém que o leitor não se esqueça que está a ler um livro único, aquela petizada adora jogar à bola, o senhor do apito era o brigadeiro Raio de Sol, um velho militar na reserva.

Naquele dia não apareceu, todos estranharam. Como tudo decorre sob o manto diáfano da fantasia, temos que adivinhar quem era o brigadeiro Raio de Sol, diz o autor que era mais alto do que uma girafa, mais magro do que um antílope. “Porte altivo, olhar intenso, sorriso discreto, carnes secas e barba cor de marfim”. Homem recatado, como Catão, entregue à semeadura e às leituras. Viu tanto despotismo, tanta criança com a barriga em forma de balão, tanto desemprego, tanta falência quanto aos ideais por que tinha lutado, que um dia se lançou na Guerra do Balão. Instalou-se o caos, caia ferro e fogo sobre a cidade do asfalto, o pai de Hussi mandou a família para a terra dos antepassados, ele foi combater com a gente do brigadeiro Raio de Sol, a Hussi foi recusado levar a bicicleta, ele teve que a esconder, enterrou-a, mas antes encetou com ela uma certa conversa:
- Mal a guerra acabar, venho buscar-te.
- Prometes?
- Prometo – respondeu Hussi, enquanto deitava mais uma pazada de terra e cruzava os dedos atrás das costas, para dar sorte.
A bicicleta podia finalmente hibernar descansada. Sabia que Hussi era um menino de palavra. Que não ficaria enterrada até ao final dos tempos.
- Vai com Deus – disse com a voz empoeirada de emoção.


Está na altura de dizer ao leitor que Hussi é de carne e osso, será a mascote dos rebeldes capitaneados pelo brigadeiro Ansumane Mané, foi descoberto pelos jornalistas, exatamente com aquela faixa tricolor com as cores da França, que ele apanhou no rescaldo da derrota do Comandante Trovão, quando todos os mercenários, os aguentas e os adeptos do tirano deram às de vila Diogo. Hussi foge da aldeia dos antepassados, põe-se ao serviço da rebelião. Como não há história para crianças sem passos de mágica e clarões de fantasia, o Comandante Trovão não é somente um déspota sanguinário que mata a torto e a direito os seus próprios sequazes, é supersticioso, acredita piamente nos vaticínios e predições do professor Bambara, “uma criatura minúscula, roliça, óculos de lentes espessas que nem fundo de garrafa, colar de conchas à volta do pescoço”. É ele quem faz saber que os revoltosos possuem uma arma secreta, uma bicicleta mágica, furioso, o tirano exige ver essa bicicleta viva ou morta, à cautela arranjou-se uma bicicleta qualquer e levou-se o selim ao Comandante Trovão, sobre uma bandeja de prata. Em boa hora, a feitiçaria entrou neste conto de fadas cheio de gente de carne e osso. Hussi teve notícia da morte de uma bicicleta, pediu ajuda a uma força expedicionária, encontrou a casa destruída e nem rasto da bicicleta, chorou amargamente. É nisto que vai ocorrer o dia do assalto final. O Comandante Trovão pediu ao professor Bambara que o transformasse em mosca-tsé-tsé. O professor preparou umas mezinhas à base de asas de morcego e olhos de cobra, o Comandante Trovão nunca mais foi visto em carne e osso. Dá-se o assalto final, Hussi anda feliz entre os vencedores. Hussi só sonha em voltar a ver a sua bicicleta.

E toda esta história ternurenta com tantos adultos em conflito, levam a que este menino, que gosta do Luís Figo, volte às ruínas da sua casa. É um momento de encanto, para adultos e crianças:
“Foi então que teve uma visão. O talismã – que colocara sobre as cinzas, para proteger a bicicleta na altura da fuga, e que desaparecera quando regressou a Porto dos Batuquinhos com Capacete de Ferro, a fim de confirmar o infortúnio – repousava por ali. Lágrimas de esperança iluminaram-lhe o rosto. Desatou a cavar, as mãos entranhadas na terra avermelhada, desatou a cavar, as mãos à procura do seu tesouro valioso, desatou a cavar, o buraco cada vez mais profundo, desatou a cavar, e nada, nada de bicicleta, nem mesmo um parafuso de consolação.
- Está frio. – Uma voz ecoou das profundezas da terra.
Hussi não prestou muita atenção, estava demasiado concentrado na sua tarefa.
- Agora está morno. – O mesmo ruído de fundo, só que mais audível.
Hussi continuou a busca. A cavar com as mãos cada vez mais avermelhadas, as entranhas da terra cada vez mais esburacadas.
- Está quente, a arder.
Os dedos tropeçaram num objeto metálico, de contornos indefinidos. Bastou, porém, um pequeno movimento do polegar para compreender que o seu tesouro mais valioso estava são e salvo. Todo pintado de lama, os pedais amputados, o selim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de alegria. A sua bicicleta estava suja e abandonada. Mas era a sua bicicleta.”


É conto de fadas, é máquina literária ternurenta, de água cristalina, só podia acabar assim:
“Hussi e a sua bicicleta ainda tinham muito que falar. Era toda uma guerra para partilhar. Algumas coisas boas, muito más. À luz do dia, olhos nos olhos, sem transmissão de pensamento. Hussi limpou o retrovisor com o seu velho lenço amarelado, sacudiu o pó que asfixiava o cachecol do Barcelona, colocou a fitinha tricolor do outro lado do guiador, ajustou os pedais com a sola das sandálias. Quando se sentou no selim, sentiu-se outra vez dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternidade”.

Comandante Hussi, por Jorge Araújo e ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a história do menino-soldado que não perdeu a capacidade de sonhar, é edição do Clube do Autor, 2011. De leitura obrigatória.


Fotografia de João Francisco Vilhena no semanário “O Independente”, maio de 1999.
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 24 DE SETEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10428: Notas de leitura (409): "Comandante Hussi", de Jorge Araújo (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23220: Notas de leitura (1442): "Pedaços de Vidas", por Angelino Santos Silva; Mosaico de Palavras, 2010 (Mário Beja Santos)