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sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24633: Notas de leitura (1614): "Uma História do Mundo em 100 Objetos", por Neil MacGregor; Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Esta História do mundo em 100 objetos ocupa-se, de uma maneira totalmente original, de abordar 100 objetos que nos conduzem numa viagem no tempo e no espaço, dando-nos a conhecer como a Humanidade moldou o mundo, desde a Pré-História a este emergente século XXI. Se começamos em África de há dois milhões de anos a ele regressamos no início do presente século para ver uma escultura patente no Museu Britânico feita de armas que nos falam da Guerra Fria, da luta de libertação, de choques interétnicos, da incapacidade dos países recém-independentes terem sabido reconciliarem-se e caminharem juntos, pacificamente, para uma via de progresso, de equidade e bem-estar.
Dos 100 objetos escolhemos o Trono de Armas como marcante de um projeto de reconciliação que fizesse retirar milhões de armas do meio familiar, fazer desaparecer as crianças-soldados, remover as minas, dando como contrapartida a todos aqueles que entravam neste projeto-paz e restituiam as armas, enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material de construção civil. Esta escultura feita de pedaços de armas forçosamente que nos perturba, de uma peça de destruição fez-se alegoricamente um trono, a tecnologia tem destes prodígios, de uma hora para a outra a fábrica de eletrodomésticos pode transformar-se numa construtora de armas sofisticadas. É o estupor desta fragilidade de que este trono também fala.

Um abraço do
Mário



Um registo da guerra que dá pelo nome de trono de armas, tragédia e triunfo humanos

Mário Beja Santos

Uma História do Mundo em 100 Objetos, por Neil MacGregor, Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014, é uma estimulante aventura em que os objetos ajudam a compreender a história mundial. Neil MacGregor usou da faculdade de Diretor do Museu Britânico para fazer palestras na BBC e dar à estampa esta admirável viagem encetada na Pré-História e que vem ao quase presente, permitindo ao leitor olhares sobre a hominização, o que aconteceu depois da Idade do Gelo, como tudo mudou com as primeiras cidades e estados, a alvorada da Ciência e da Literatura, os pensadores orientais, os construtores de impérios, os primeiros protocolos e formas de distinção, a ascensão das religiões mundiais… Um itinerário que nos leva até à sociedade de consumo, a emergência de guerras étnicas depois da descolonização, a importância que tem hoje o cartão de crédito e os mais prementes desafios energéticos.

Este Trono de Armas é inquietante e avassalador, é uma cadeira feita com partes de armas produzidas em todo o mundo e exportadas para África. Temos procurado muitas definições abrangentes para todo o século XX, é verdade que prepondera a ideia de que foi o século da mulher, mas não escapa a algumas interpretações a matança em massa que se praticou em duas guerras mundiais, nas purgas estalinistas, no Holocausto, nos arrasamentos nucleares, nos campos de morte do Camboja, nos massacres do Ruanda, é uma lista praticamente infindável. Este trono é um monumento a todas as vítimas da guerra civil moçambicana. Desapareceram os impérios, pareciam prosperar ideologias globais e afinal tudo caiu em disputas sangrentas. Faltou previsão aos dirigentes dos movimentos nacionalistas e mesmo aos líderes coloniais para com tempo criarem competência para as novas experiências governativas, EUA e URSS, os Aliados eram manifestamente indiferentes a este desafio de organização do Estado que gerasse soberania e fizesse calar as etnicidades exacerbadas. A guerra civil em Moçambique foi uma das mais sangrentas e parece que ainda não estancou.

As armas que dão forma a esta cadeira traçam a história do século XX moçambicano. As mais antigas, no espaldar, são duas velhas G3 portuguesas. A FRELIMO era apoiada pela URSS, e isso explica que todos os outros elementos da cadeira sejam armas desmembradas produzidas pelos comunistas: os braços são da AK-47 soviética, o assento de espingardas polacas e checas, e uma das pernas da frente é um cano de uma AKM norte-coreana. Como enfatiza Neil MacGregor: “Trata-se da Guerra Fria em forma de peça de mobiliário, o Bloco de Leste em ação, lutando pelo comunismo em África e em todo o mundo”. Em 1975, o novo Moçambique apresentava-se como um Estado marxista-leninista, em resposta, os rodesianos e os sul-africanos criaram e apoiaram um grupo oposicionista, a Renamo, com o intuito de destabilizar completamente o país, as primeiras décadas da independência moçambicana foram tempos de derrocada económica e sangrenta guerra civil. Isto para sublinhar que as armas do trono participaram na guerra civil: um milhão de mortos, milhões de refugiados e 300 mil órfãos de guerra. A paz só veio em 1992, mas embora a guerra tivesse acabado, havia armas por todo o lado. O maior desafio que se pôs a Moçambique foi a destruição de milhões de armas e refazer a vida dos antigos soldados e das suas famílias.

O Trono de Armas tornou-se um elemento inspirador neste processo de recuperação. Fez parte de um projeto de paz chamado “transformar armas em ferramentas”, e no qual as armas usadas pelos dois lados eram entregues em troca de amnistia e ferramentas úteis, como enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material para telhados. Entregar as armas era um ato de verdadeira bravura por parte destes antigos combatentes e teve projeção em todo o país, pois ajudou a romper o apego pelas armas e pela cultura de violência que atingira Moçambique durante tantos anos. Desde o início do projeto, mais de 600 mil armas foram entregues e transformadas em algumas esculturas. Graça Machel patrocinou o projeto que tinha o objetivo de “retirar os instrumentos de morte das mãos dos jovens e dar-lhes uma oportunidade de desenvolverem uma vida produtiva”.

Este trono, patente no Museu Britânico, foi criado por um artista moçambicano de nome Kester. Escolheu fazer uma cadeira e chamou-lhe trono, são raras nas sociedades tradicionais africanas, estão reservadas aos chefes tribais, príncipes e reis. O peso alegórico é inequívoco: é um trono em que ninguém se vai sentar, não está destinado a uma realeza ou a um senhor do mando, é a expressão de um espírito do novo Moçambique, é um marco da reconciliação. Como escreve MacGregor, há algo de particularmente perturbador numa cadeira feita com armas concebidas especificamente para matar, mutilar, anular. Kester deu uma explicação: “Não fui afetado diretamente pela guerra civil, mas tenho dois parentes que perderam as pernas. Um pisou uma mina e perdeu a perna, e o outro, um primo, perdeu uma perna a lutar pela FRELIMO”.

Kester fez deste trono uma mensagem de esperança. “Dois canos de espingarda formam as costas da cadeira. Se olharmos com atenção parecem ter caras, dois orifícios de parafusos para os olhos e uma ranhura para a boca. Até parecem estar a sorrir". Foi um acidente visual que Kester aproveitou e decidiu incorporar na peça, negando às armas o seu propósito primário e dando à obra de arte um forte sentido: “Não esculpi o sorriso, faz parte da coronha da espingarda. Aproveitei os orifícios de parafuso e a ranhura onde se fixava a bandoleira. Escolhi as armas mais expressivas. No cimo podemos ver uma cara sorridente. E há outra cara sorridente: a outra coronha. Parecem estar a sorrir uma para a outra felizes para paz e liberdade que chegou”.

No seu todo, este original livro que nos conduz da África de há dois milhões de anos para a aurora do século XXI, dotado de uma escrita admirável e estimulante, é verdadeiramente uma História do mundo. Uma leitura imperdível, onde um Trono de Armas põe um antigo combatente, como eu, a pensar como devemos contribuir para recordar os horrores da guerra ao serviço da reconciliação dos homens, naquelas parcelas africanas onde combatemos.


Neil MacGregor
Imagens de cadeira feita com peças de armas, Maputo, Moçambique, peça no Museu Britânico
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24618: Notas de leitura (1612): Guiné, Operação Irã (maio de 1965) e Operação Hermínia (março de 1966), no fascículo 2 de "As Grandes Operações da Guerra Colonial", textos de Manuel Catarino; edição Presselivre, Imprensa Livre S.A. (Mário Beja Santos)

sábado, 27 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7349: Kalashnikovmania (6): Eu tive três amores, a G3, a HK21 e AK47 (J. Casimiro Carvalho)

1. Comentário do J. Casimiro Carvalho ao poste P7334:

Ó Torcato e Graça :

Ele há coisas que não têm explicação.

Uma delas  são as armas.
Eu, em Lamego, adorava a G3.
Na Guiné adorava a HK 21 
e falava com ela
e ela compreendia-me,
pois eu conhecia.
Comigo a gaja não encravava.

Posteriormente, já em Gadamael, 
apaixonei-me por aquela outra gaja, a AK 47.
E foi amor duradouro, caramba,
mas a gaja era mesmo boa,
que me perdoe a minha querida G3, 
pois não sou gajo de  traições.

Portanto, temos três gajas,
todas elas boas,
com as suas particularidades,
convenhamos.
Como as mulheres, né ?!

Um abraço deste vosso camarigo,
J. Carvalho







O José Casimiro Carvalho foi Fur Mil Op Esp da CCAV 8350, Piratas de Guileje, e da CCAÇ 11,  Lacraus de Paunca, tendo passado por Guileje, Gadamael, Guileje, Nhacra e Paúnca,entre outros sítios, entre 1972 e 1974. Nas três fotos, vemo-lo "afagando" a G3 (em Lamego), a HK21 (em Guileje) e AK47 (em Gadamael ?)... LG

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Todos os direitos reservados.
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Nota de L.G.:

Ultimo poste da série > 25 de Novembro de 2010

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6801: O Nosso Livro de Visitas (96): António Inverno, ex-Alf Mil Cav Op Esp, S. Domingos, 1973, amante da "bela" Kalash



1. Foto e mensagem, de hoje,  do nosso leitor António Inverno:


 António Inverno, Alferes miliciano de operações especiais, num afluente do rio Cacheu, em S. Domingos,  1973, eu e a minha inseparável Kalash.

António Inverno
Sumol + Compal
Fábrica de Almeirim
Técnico de service desk local
Estrada Nacional nº 1182080-023 Almeirim

Tel: 243 5944654 Fax: 243 594650

http://www.sumolcompal.pt

2. Comentário de L.G.:

É lacónico este nosso camarada (*). Não nos diz, por exemplo, a que unidade ou subunidade pertenceu e por onde andou... Através do blogue do nosso querido co-editor Eduardo MR, ficamos a saber que o António Inverno pertenceu ao 2º curso de Op Esp de 1972, esteve na Guiné entre 72 e 74, e gostaria de publicar aí uma fotografia,  no blogue Coisas do MR. "Estou aí a vêr fotos de gajos do meu curso, como o Casimiro e o Martins"...

Vejo, pela foto, que o António pertencia à arma de cavalaria, além de ser "ranger"... Fica convidado a ingressar no nosso blogue e a explicar as razões do seu amor pela "bela" Kalash... pondo os c... à "fiel" G3, um tema já aqui polemizado  (**).

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Notas de L.G.:

(*) Último poste desta série > 7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6794: O Nosso Livro de Visitas (96): Quem se lembra do Dr. Noronha (de Bafatá), Toscano de Almeida, madeireiro, do Dias Saboeiro, figuras que povoam a minha infância ? (Maria Augusta Antunes, que cresceu no Xitole, na década de 1950)

(**) Vd. poste de

17 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2445: Em louvor da G3, no duelo com a AK47 (Mário Dias)

Sobre a Kalash, vd. os seguintes postes publicados no nosso blogue, I Série:

17 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XX: "Foi você que pediu uma kalash?" (David Guimarães)

Vd. também o descritor AK47

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Guiné 64/74 - P4833: Armamento do PAIGC (4): Mikail Kalashnikov e a AK-47 (Avtomatni Kalashnikova – 1947) (Magalhães Ribeiro)


Mikhail Kalashnikov (foto, à esquerda)


1. Do arquivo pessoal, do Eduardo José Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp (Ranger) da CCS do BCAÇ 4612/74, Cumeré, Mansoa e Brá, 1974 [, foto à direita]:




Camaradas,O artigo é da autoria de Nick Paton Walsh e foi publicado na Pública, em 3 de Novembro de 2003, e aqui reproduzido com a devida vénia...

Apesar dos cerca de seis anos entretanto decorridos, mantêm-se completamente actualizados os factos descritos, visto que a citada arma continua a liderar a tenebrosa tabela do lamentável, infeliz e actual mercado da morte, pelo mundo fora, nomeadamente, em África e no Médio Oriente.

Um abraço Amigo,
Magalhães Ribeiro
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Mikhail Kalashnikov

Para um homem cujo nome está tão inextricavelmente ligado à morte, Mikhail Kalashnikov não podia ter aspirado por um fim de vida mais calmo. Ele passa os seus dias de verão numa casa de campo na margem de um lago cristalino, no coração da planície sul dos Urais, a algumas milhas do coração industrial de Izhevsk. Aqui, entre pinheiros que tocam o céu e mosquitos do tamanho de pombos, ele e a sua endiabrada neta de sete anos, Ilona, brincam juntos nas clareiras do bosque, inspirando o ar puro e rico.

No entanto, para aqueles que rodeiam Mikhail a vida não é assim tão pacífica. Anos de testes de tiro das armas automáticas que têm o seu nome deixaram este velho, de 83 anos praticamente surdo. Se se quiser que ele nos ouça, tem que se colocar a boca a escassa distância da sua orelha e falar muito alto.




Essencialmente para todos aqueles que gostam de conhecer a história e origem de armas de fogo, trago neste poste ao vosso conhecimento, a estória do homem que idealizou a mortífera e eficaz Kalashnikov A-47, que à mais de 60 anos é a arma mais produzida, conhecida e vendida em todo o mundo.


Foi, sem dúvida nenhuma também, a arma mais usada contra as nossas tropas pelo PAIGC na Guiné.

Em 1947, a "Avtomatni Kalashnikova" ganhou um concurso soviético para a concepção da mais moderna metralhadora para o vitorioso Exército Vermelho. Cinquenta e seis anos, mais de 100 milhões de armas e muitos milhões de mortes mais tarde, ela permanece a mais prolífica máquina de morte do mundo. Mas Kalashnikov não mostra qualquer reticência em mostrar o amor e orgulho que ainda sente pela sua criação.

"Com [o desenho] das armas, passa-se o mesmo do que com uma mulher que cria um filho", explica. " Durante meses ele transporta o bebé e pensa nele. Um 'designer' faz quase o mesmo com um protótipo. Sinto-me como uma mãe - sempre orgulhoso. É um sentimento especial, como se tivesse recebido um prémio especial. Fartei-me de disparar. Ainda o faço. É por isso que sou duro de ouvido".

Segundo Aaron Karp, consultor da Base de Pequenas Armas, sediada em Genebra, os sucedâneos da Kalashnikov "poderão ter causado mais de 300 mil baixas anuais em combate nas guerras da década de 90. Elas são as armas principais de um ou de mais lados em praticamente todas as mais de 40 guerras registadas na última década". Foi talvez a principal exportação da União Soviética: existem agora 10 vezes mais AK-47 no mundo do que M16, a sua rival americana, já que os soviéticos as deram quase de borla a qualquer movimento por que sentissem empatia ou que pudesse ter uso para elas.

A chave para o seu sucesso reside num desenho simples, destinado a assegurar que mesmo as mulheres e crianças sem experiência que encheram as fábricas soviéticas durante o período de guerra as podiam produzir em massa e assim abastecer os seus pais e filhos deslocados na frente. É tão simples que versões rústicas têm sido produzidas em oficinas de aldeia no Paquistão. "Comparadas com outras espingardas automáticas, a sua produção, uso e manutenção é muito simples. Tem oito partes móveis. Desta simplicidade resulta que mesmo um soldado mal treinado a pode desmontar em cinco segundos e limpá-la facilmente".

Mas Kalashnikov parece ter encontrado uma forma de se absolver a si próprio de qualquer culpa ou responsabilidade pelo seu brinquedo de morte. Ele apresenta uma simples, mas aguçada defesa de modo a convencer-se tanto a a si próprio, como aos que o interpelam, da sua inocência: "Fiz isto para proteger a pátria mãe. E depois eles espalharam a arma (pelo mundo) não porque eu o quis. Não foi escolha minha. Foi como um génio que saísse da garrafa e começasse a andar pelos seus próprios pés e em direcções que eu não queria".

Mesmo assim "o lado positivo ultrapassou o negativo", insiste, "porque muitos países usam-na para se defender. O lado negativo é que por vezes fica fora de controlo. Os terroristas também querem usar armas simples e fáceis. Mas eu durmo descansado. O facto de haver pessoas que morrem por causa de uma AK-47 não é culpa de quem a concebeu, mas sim por causa dos políticos".

Para perceber este orgulho perene, tem que se perceber a forma de pensar caracteristicamente soviética que ainda é a de Mikhail. Antes, Kalashnikohv tinha-nos contado jovialmente como, nessa tarde, ele e Ilona se dedicaram a substituir pedaços de floresta morta. A sua alegria deixa a claro a adoração soviética pelo "trud"- um misto de trabalho e produtividade, que, em 1976, o levou a ganhar a medalha de Herói Socialista do Trabalho pelas suas invenções, e que alimenta as suas ideias. Para ele, é apenas o seu trabalho, sendo este uma pequena peça na grande engrenagem soviética.

Foi apenas quando ele viu como o grande projecto comunista eventualmente perverteu o objectivo original do seu "bebé" que Kalashnikov começou a sentir algum desconforto. Ele e a sua filha referem os dois momentos principais em que tal aconteceu. O primeiro ocorreu quando, em 1992, centenas de azerbeijanis foram massacrados em Nagorno-Karabakh pelos arménios, que contavam com o apoio do regimento 366 do exército russo.

Kalashnikov admite que ver as imagens do massacre na televisão foi "obviamente desagradável". O segundo foi quando, em 1993, Boris Ieltsin ordenou às tropas que atacassem a sede do parlamento russo.

A vida tranquila de Kalashnikov nos bosques da periferia de Izhevsk pode ser vista como uma tentativa para se distanciar daquilo em que a sua invenção se transformou. A sua calorosa e carismática filha olha por ele desveladamente. Elena organiza entrevistas, adora traduzir - ou gritar – as minhas perguntas, irradiando atenção, entusiasmo e orgulho. Nos olhos da neta Ilona brilha uma centelha.

Entretanto, a alguma milhas deste santuário, a arma continua a sua carreira Izhevsk, profusamente anunciada no site da empresa Izhmash. Num hotel, um turista americano enverga uma t-shirt com um "Roteiro de Destruição no Mundo" da AK-47. É um roteiro onde figuram a Chechénia, o Afeganistão, a faixa de Gaza, o Congo, Nagorno-Karabakh, etc. Mais abaixo na rua, num das lojas de venda de armas da cidade, Lilya, 12 anos, e um seu amigo, olham atemorizados para a exposição de Ak-47. "Foi a primeira vez que aqui viemos", conta ela. "Apenas queríamos ver".

A história de como esta ideia original apareceu está profundamente misturada com a história da vida de Kalashnikov. Nascido numa família de camponeses pobres em Novembro de 1919, pouco depois da revolução de Outubro, Mikhail Yefimiyevich Kalashnikov viu a sua família obrigada a sair da região do Altai para o exílio na Sibéria, onde arrastaram uma dura existência de camponeses. Mas foi o exílio - a vergonha de ter a família proscrita do sonho da Rússia soviética - que empurrou Kalashnikov para dar o seu melhor. "Tentei que o meu desempenho fosse o melhor possível. Era um rapaz na altura, mas trabalhava bem com os doentes".

Ele inventaria qualquer coisa pata tornar mais fácil a vida da sua família, e dos trabalhadores comunistas. "Tínhamos trigo, mas não moinhos, por isso inventei uma espécie um moinho de madeira para que pudéssemos fazer farinha. Provavelmente nasci com alguns talentos para desenho". Cedo foi enviado para trabalhar nos caminhos-de-ferro, como amanuense. Aqui as suas ambições criativas começaram a florescer. "Queria inventar uma máquina que pudesse correr para sempre. Podia ter desenvolvido um novo comboio, se tivesse continuado nos caminhos-de-ferro. Teria sido parecido com a Ak-47", brinca.

Com 19 anos de idade, foi incorporado no exército para combater na II Guerra Mundial. Integrado numa divisão de tanques, depressa descobriu uso para os seus talentos de 'designer'. Primeiro foi uma máquina para contar o número de projécteis disparado pela metralhadora do tanque - "para que soubéssemos quantos restavam". Depois foi uma engenhoca que permitia que as pistolas disparassem através das aberturas dos tanques; depois ainda um método para calcular a distância percorrida por estes.

A vida da AK-47 começou quando Kalashnikov se viu num hospital de guerra a recuperar de ferimentos e do choque nervoso provocado pelas explosões, cismando como era injusto que os alemães tivessem armas automáticas, e os seus colegas russos apenas espingardas de um só tiro. "Experimentei uma dúzia de modificações que foram rejeitadas, mas todas elas abriram caminho ao esboço final. Tinha que adquirir experiência porque não tinha preparação técnica". O processo foi longo e competitivo, com Kalashnikov a trabalhar numa série de institutos e as ideias alvo de críticas desde que nasciam e à medida que iam sendo desenvolvidas. "O departamento de artilharia forneceu esboços para uma nova arma. Tínhamos que os melhorar ou então éramos eliminados da corrida".

Em 1946, nasceu o o protótipo AK-46. Um ano, a arma verdadeira foi aprovada. Ele atribui o seu sucesso à "sorte que teve em encontrar pessoas simpáticas e prestáveis" durante toda a sua vida. Teve um bom manager, o capitão Vladimir Daikin, um encorajador chefe de departamento, Vladimir Glukhov, e um mentor, Anatoly Blagonravov, que foi o primeiro a informar os seus superiores, em 1941, da "excepcional capacidade de Kalashnikov em resolver problemas técnicos complicados".

Mikhail apresenta o produto final como se de uma verdadeira conquista comunista se tratasse - um triunfo colectivo que salvou a pátria mãe. Para ele, a arma quase que surgiu de um processo equivalente à selecção natural, fruto da necessidade e para garantir a sobrevivência - o empurrão de um jovem homem à guerra em curso. "O homem continua sempre a inventar coisas", diz. " A vida é feita de diferentes invenções. Continuei a trabalhar em diferentes coisas, reconstrui toda a minha casa. Fi-lo pela satisfação de fazer alguma coisa. Fi-lo porque aconteceu estar onde estava". Acima de tudo, ele parece orgulhoso de ter sido capaz de fazer algo, independentemente do que esse algo possa fazer: "A vida pode levar-nos a fazer muitas coisas. Até a beijar um homem com o nariz a pingar".

Nick Paton Walsh


Fonte: Pública, 3 de Novembro de 2003 (Com a devida vénia...)

Fotos: © http://images.google.pt (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


sábado, 19 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2458: Os sulcos... e as estrias da G3 (Mário Dias / Virgínio Briote)



Em S. Vicente, no regresso a Bissau, depois da Op Atraca, no corredor de Canja. Setembro de 1966. Ou como não se devia transportar a G3, como ensinou vezes sem conta, o nosso Furriel Mário Dias.

Foto: Virgínio Briote (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem do Mário Dias sobre a G3, a propósito dos sulcos que eu, quarenta anos depois e ainda instruendo, confundi com as estrias. Assim se vai fazendo a história dos aprendizes (*). Claro que pensei duas vezes, antes de perguntar ao Mário se ele estava a falar das estrias da G3. Tal como o conheci, fiel a ele próprio, minucioso e delicado como naqueles tempos, o Mário passa por cima. Grato, meu Furriel, por mais esta lição.

Caro Briote

Obrigado pelo reparo que fizeste sobre as estrias da G3 que são realmente 4, helicoidais, e enrolam no sentido dextorsum. (Ainda me recordo deste palavrão).

Mas, no meu texto, não me refiro às estrias propriamente ditas que se situam no cano. Falo de uns sulcos em linha recta, longitudinais, existentes na câmara da arma e que se destinam a fazer com que o cartucho não fique totalmente "colado" às paredes da dita câmara.

Esses sulcos, ao receberem os gases da explosão, permitem que o invólucro do cartucho seja extraído com maior facilidade. Se esses sulcos ou ranhuras estiverem obstruidos com qualquer sujidade a extracção pode não se realizar. Deves estar recordado que era um dos pontos que nós fazíamos questão de inspeccionar introduzindo o dedo mínimo na dita câmra para ver se o retiravámos limpo ou sujo. Alguns, eu por exemplo, até brincavamos com isso dizendo que era uma operação semelhante à que se faz para ver se as galinhas estão ou não prestes a pôr um ovo. Continuo com a dúvida se esses sulcos ou ranhuras era ou não 6. Creio que eram. No entanto, peço ajuda aos camaradas da Tabanca com a memória mais fresca que esclareçam esta dúvida.

Um grande abraço para toda a Tabanca, especialmente aos editores.

Mário Dias


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Nota de vb:

(*) O cano da minha G3

"As reclamações do costume, uma das mulheres do Tomás Camará à porta de armas, que marido, não dava dinheiro há que tempos, tinha que pagar arroz, ele não dá dinheiro, nosso alfero!



Tomás Camará. Na estrada Ingoré-Barro em Set 1966.

E porque vens falar comigo, eu não sou teu marido, fala com o Camará! Mas, nosso alfero, ele não vai a casa, meninos não têm que comer, eu não tem que dar! Como te chamas, qual é teu nome? Binta? Nome lindo, quantos pesos bó precisa?

Um dia igual a tantos outros. Aplicação militar de manhã, banho, carreira de tiro, almoço, uma sorna a seguir. Lá para as quatro, frente a Brá, exercícios com as equipas, progressão das parelhas por lances, projécteis nos troncos das palmeiras quando mostravam o quico, eles outra vez aos ziguezagues, granadas para cima, reunir as equipas para o regresso. No caminho em direcção ao aquartelamento, alguns mais descontraídos, já relaxados, a conversa a alargar-se, uma granada ofensiva para cima, para lhes lembrar que nas guerras não há descansos. E nove deles para o hospital, dar trabalho ao pessoal de enfermagem, como se eles já não tivessem que chegasse, para retirar-lhe um a um, os pequenos estilhaços que lhes tinham calhado na brincadeira.

À noite, cross até à entrada de Bissau, pelas margens da estrada, a cantarem, eu vi a BB na avenida marginal, a andar de lambreta, mas que lasca bestial…toda nua, nua, nua, toda nua…volta à rotunda, para trás até Brá. Para o quarto de banho, para o chuveiro, para onde há-de ser? E depois, tens alguma ideia? Ideias, não me fales em ideias, Vilaça, às vezes são tantas que até atrapalham.

Um dia, curso terminado nem há uma semana, tinha tido uma que, passados meses, ainda o moía. Fora até uma carreira de tiro que tinham improvisado, dois ou três kms para lá da base aérea. Pegara na G3, um cunhete ainda fechado, jeep na esgalha, como de costume. Mirara os alvos, garrafas de cerveja, de uísque, latas e mais latas, umas pelo chão, outras penduradas nos arames, umas atrás das outras. Do cunhete sobrara a caixa de madeira, pisava cápsulas, pelo chão mais de cinco mil de certeza, as que tinha gasto mais as que por lá tinham ficado de sessões anteriores. Depois, mais calmo, com o final da tarde a aproximar-se, sentara-se no jeep, arma com o cano a deitar fumo no banco de trás, ouvidos a zunirem, de regresso a Brá, uma brisa a dar-lhes.

Arma no quarteleiro, para limpeza completa. No dia seguinte, acordara com a voz esganiçada do Sany, nosso alfero, capitão Saraiva quer falar com o senhor.

Encontrou o capitão no gabinete às voltas com um relatório. Os bons dias amigáveis que dera não tiveram resposta, se calhar não ouviu, embrulhado com a papelada, nada que fosse da especialidade do Sariava.


Cap Maurício Saraiva, idolatrado e odiado. Um mal amado em Brá.1965

Viu-o levantar-se, o olhar de poucos amigos, e o que ele tinha para lhe dizer. Uma G3 na mão, o capitão disparou, quem foi o asno que fez esta merda?

Olhei para a arma, era a minha. Um pequeno lanho na ponta do cano, sem tapa chamas. Não foi um asno, fui eu, a arma é a minha, não, não há dúvida, é mesmo a minha, admitiu depois de ter passado os dedos pela racha.

Ora bem, os olhos do cap dentro dos óculos, como é que o alferes quer resolver isto?

Vou pagar, tem que ser, olhos nos óculos. Pagar vai, isso está fora de dúvidas, agora vamos ver como quer pagar, não é? Claro que há, aqui há sempre alternativas, responde o capitão.

A expulsão ou um par de chapadas, a escolha é sua!

Chapadas, expulsão?"



Guiné > Brá > 1965 > Os 4 Grupos de Comandos, sob o comando do Cap Nuno Rubim.

A expulsão é pública, sabia-o bem, já a fizera a um cabo. Os grupos formados em sentido, o clarim, o cabo em frente a tremer todo, escolta ao lado, a nota de expulsão em voz alta, o chefe de equipa a arrancar-lhe o crachá, os distintivos, o lenço, a entrega da guia de marcha para o QG, a escolta a conduzi-lo à porta de armas, esta a fechar-se, tudo seguido.
O par de chapadas devia ser em privado, mas mesmo assim, chapadas? Na cara?

Não sabia o que fazer, as alternativas não eram fantásticas. Vou pensar, meu capitão. Boa ideia, mas aqui e agora, alferes. Ficamos aqui os dois, até se decidir.

Ao lembrar-se como tudo terminara saiu-lhe uma gargalhada. O nariz a ferver, um abraço e o convite para jantar no Grande Hotel." (...)


Texto e fotos: Tantas Vidas, Blogue de Virgínio Briote, Lisboa

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2445: Em louvor da G3, no duelo com a AK47 (Mário Dias)

1. Mensagem de Mário Dias, recebida na terça-feira, 15 de Janeiro de 2008, com o título: Em louvor da G3

Caro Luís:

Por ser tão comum enaltecer a vantagem do PAIGC sobre as NT a propósito da AK47 versus G3, o que não considero verdadeiro, junto em anexo a minha opinião mais ou menos fundamentada sobre o assunto.

Aproveito para anunciar que, contrariamente ao meu desejo, não me vai ser possível estar presente no lançamento do livro do Beja Santos que profundamente admiro. Daqui lhe envio um grande abraço e continue a escrever. Que nunca as mãos lhe doam.

Boa viagem até Guiledje e votos que o Simpósio venha a constituir-se numa mais profunda amizade e compreensão entre todos nós.

Um grande abraço.
Mário Dias
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2. Resposta do VB:
Meu Caro Furriel Mário Dias,

Não é o Luís, sou eu, o Briote que assumo o encargo de publicar a tua (minha também) defesa da G3, essa namorada que, tanto quanto me lembre, me foi fiel durante a minha comissão na Guiné.

Não dei muitos tiros em combate. Ainda hoje me lembro que foram 22, em toda a comissão. Só que de uma vez, logo no início da comissão, quando me encontrava ainda em Cuntima, na CCAV 489, despejei o carregador até ao fim numa emboscada entre Faquina Fula e Faquina Mandinga.

Depois nos Comandos, a minha história com a G3 quase dava um romance. Na carreira de tiro que havia lá para os lados do aeroporto (lembras-te?), esvaziei um cunhete. Há quem diga que foram cinco, não acredito. Certo é que o cano, sem tapa-chamas, rachou. E o Saraiva obrigou-me a pagar a asneira.
Achei, na altura, que ela me tinha sido ingrata, pela vergonha que me fez passar. E que o cap Saraiva era um exagerado. Troquei-a por uma FN, também sem tapa-chamas (ainda estou para saber porque é que eu as preferia assim).

Meses depois, reconciliámos-nos, fizemos as pazes e foi a minha namorada até ao fim. Custou-me tanto a liquidação da dívida que, a partir daí, passei a ser eu a tratar dela. Como tu dizes, com as mãos na massa.

Mário,

Foste um dos instrutores que me ensinaste a pegar nela. A pôr os meus olhos no cano, a usá-la o estritamente necessário, a trazê-la no colo, com meiguice.

Não vou aqui falar de outras coisas que me ensinaste, que a hora é de honrar a G3. Mas é sempre tempo para publicamente reconhecer que foste um instrutor que nos deixou marcas muito positivas, nomeadamente pelo teu saber e conhecimento daquela terra e daquelas gentes que, eu sei, tanto apreciavas.

vb
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3. Texto de Mário Dias:
Em louvor da G3.

É muito vulgar e frequente tecerem-se comentários depreciativos à espingarda G3, quando comparada à AK47. Em minha opinião, nada mais errado. Analisemos, à luz das características de cada uma e da sua utilização prática, os prós e contras verificados durante a guerra em que estivemos empenhados em África:

Comprimento: G3 - 1020mm; AK47 - 870mm
Peso com o carregador municiado: G3 - 5,010Kg; AK 47 – 4,8Kg
Capacidade dos carregadores: G3 – 20 cartuchos; AK47 – 30 cartuchos
Alcance máximo: G3 – 4.000m; AK47 – 1.000m
Alcance eficaz (distância em que pode pôr um homem fora de combate se for atingido):
G3 – 1.700m; AK47 – 600m
Alcance prático: G3 – 400m; AK 47 – 400m

Passemos então a comparar.

No comprimento e peso a AK47 leva alguma vantagem. A capacidade dos carregadores, mais 10 cartuchos na AK47 que na G3, será realmente uma vantagem?

Se, por um lado, temos mais tiros para dar sem mudar o carregador, por outro lado esse mesmo facto leva-nos facilmente, por uma questão psicológica, a desperdiçar munições. E todos sabemos como o desperdício de munições era vulgar da nossa parte apesar de os carregadores da G3 serem de 20 cartuchos.

O usual era, infelizmente, “despejar à balda” sem saber para onde nem contra que alvo. Sem pretender criticar a maneira de actuar de cada um perante situações concretas, eu, durante todas as acções de combate em que participei ao longo de 4 comissões, o máximo que gastei foi um carregador e meio (cerca de 30 cartuchos). Por tal facto, em minha opinião, a dotação e capacidade dos carregadores da G3 é mais que suficiente, além de que os próprios carregadores são mais maneirinhos e fáceis de transportar que os compridos e curvos carregadores da AK47.

Também quanto ao poder balístico, a G3 leva vantagem pois, embora na guerra em matas e florestas seja difícil visar alvos para além dos 100/200 metros, tem maior potência de impacto e perfuração sendo a propagação da onda sonora da explosão do cartucho muito mais potente na G3, o que traz uma maior confiança a quem dispara e muito mais medo a quem é visado. A G3 a disparar impõe muito mais respeito.

Porém, os principais motivos que me levam a preferir a G3 à AK47 (creio que a fama desta última é mais uma questão de moda) são as que a seguir vou referir ilustradas, dentro das possibilidades, com gravuras:



G3


AK47

Deixem-me, então, começar a vender o meu peixe em louvor da G3. Todos sabemos a importância do silêncio e da rapidez de reacção numa guerra de guerrilha e de como o primeiro a disparar leva vantagem.

Normalmente o combatente numa situação de contacto possível em qualquer lado e a qualquer momento leva geralmente a arma com um cartucho introduzido na câmara e em posição de segurança. Eu e o meu grupo tínhamos bala na câmara e arma em posição de fogo desde a saída à porta de armas do aquartelamento até ao regresso e nunca houve um único disparo acidental. Mas, partindo do princípio que nem todos teriam o treino necessário para assim procederem, a arma iria então com bala na câmara e na posição de segurança.

Quando dois combatentes se confrontam, o mais rápido e silencioso tem mais possibilidades de êxito e, nesse aspecto, a G3 tem uma enorme vantagem sobre a AK47. Talvez poucos se tivessem dado conta dos pequenos pormenores que muitas vezes são a diferença entre a vida e a morte.

Um caso concreto:

Vou por um trilho no meio do mato e surge-me de repente um guerrilheiro. Levo a arma em segurança e tenho rapidamente de a colocar em posição de fogo. Do outro lado o guerrilheiro terá de fazer o mesmo. Em qual das armas esta operação é mais rápida e fácil? Sem dúvida alguma na G3.

Se olharmos para as gravuras observamos que na G3, levando a arma em posição de combate, à altura da anca com a mão direita segurando o punho dedo no guarda mato pronto a deslizar para o gatilho, utilizando o polegar sem tirar a mão do punho com toda a facilidade e de forma silenciosa passo a patilha de segurança para a posição de fogo e disparo.

E o portador de AK47? Sendo a alavanca de comutação de tiro do lado direito da arma e longe do alcance da mão terá que, das duas uma: ou larga a mão do punho para assim alcançar a alavanca de segurança ou então tem que ir com a mão esquerda efectuar essa manobra. Em qualquer das soluções, quando a tiver concluído já o operador da G3 terá disparado sobre ele.

Suponhamos agora que o homem da G3 vê um guerrilheiro e não é por este detectado. A passagem da posição de segurança à posição de fogo, além de rápida, é silenciosa pois a patilha de segurança é leve a não faz qualquer ruído ao ser manobrada. O guerrilheiro não se apercebe de qualquer ruído suspeito e mais facilmente será surpreendido. Ao contrário, um guerrilheiro que me veja sem que eu o veja a ele e tenha que colocar a sua AK47 em posição de fogo para me atingir, de imediato me alerta para a sua presença pois a alavanca de segurança dá muitos estalidos ao ser accionada. Assim, não é tão fácil a um portador de AK47 surpreender alguém a curta distância.

Outro caso concreto:

Todos certamente estaremos recordados de quantos vezes era necessário combinar o fogo com o movimento nas manobras de reacção a emboscadas ou na passagem de pontos sensíveis. Nessas ocasiões, em que fazíamos pequenos lanços em corrida para rapidamente atingirmos um abrigo para o qual nos teríamos de lançar de forma a ficarmos automaticamente em posição de podermos fazer fogo (a chamada queda na máscara), a G3, devido à sua configuração era de grande ajuda pois, não tendo partes muito salientes em relação ao punho por onde a segurávamos, (o carregador está ao mesmo nível) permitia que de imediato disparássemos com relativa eficácia.

E a AK47? Reparem bem naquele carregador tão comprido e saliente do corpo da arma. Como fazer manobra idêntica? Impossível. Mesmo colocando a arma com o carregador paralelo ao solo para facilitar a “aterragem”, isso faz com que tenhamos que perder tempo a corrigir a posição de forma a estarmos aptos a disparar. E em combate cada segundo é a diferença entre a vida e a morte.

Um defeito geralmente apontado à G3 é que encravava facilmente com areias e em condições adversas.

Quero aqui referir que ao longo dos muitos anos da minha vida militar, tanto em combate como em instrução ou nas carreiras de tiro, tive diversas armas G3 distribuídas e nunca nenhuma se encravou. A G3 possui de facto um ponto sensível que poderá impedir o seu funcionamento se não for tomado em conta. Trata-se da câmara de explosão, onde fica introduzido o cartucho para o disparo, que tem uns sulcos longitudinais (6 salvo erro)* destinados a facilitar a extracção do invólucro. Acontece que se esses sulcos não estiverem limpos e livres de terra ou resíduos de pólvora não se dá a extracção porque o invólucro fica como que colado às paredes da câmara. Se houver o cuidado em manter esses sulcos sempre livres de corpos estranhos nunca a G3 encravará. Outra coisa que poderá levar a um mau funcionamento é as munições estarem sujas ou com incrustações de calcário ou verdete.

Nós tínhamos por hábito, como forma de prevenir este inconveniente, untarmos as mãos com óleo de limpeza de armamento, para esfregarmos as munições na altura de as introduzirmos nos carregadores. E resultou sempre bem.

São pequenos pormenores que deveriam ter sido ensinados na recruta mas, pelos vistos, nem sempre havia essa preocupação bem como muitas outras que foram, a meu ver, causa de algumas (muitas) mortes desnecessárias.

CONCLUSÃO

Depois de passados tantos anos sobre a guerra, continuo fã incondicional da G3. Se voltasse ao passado e as situações se repetissem, novamente preferia a G3 à HK47.

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Notas e fixação do texto: vb

(*) Quatro estrias ou seis, Mário?

Foi a arma de infantaria padrão do exército alemão, Bundeswehr, até 1997, e continua a ser utilizada por vários exércitos nacionais. A G3 é tipicamente um fuzil de calibre 7.62 x 51 mm NATO, capaz de fogo semi-automático ou totalmente automático com um cartucho desmontável. Pode ainda ser anexada uma baioneta à G3.

Foi desenvolvida pelos engenheiros da Mauser, após terem passado algum tempo em Espanha a trabalhar para outros fabricantes de armas nesse país. Ajudaram a criar a espingarda CETME e levaram-na de volta para a Alemanha. De facto, por algum tempo as G3 tiveram a palavra "CETME" estampada num dos lados; o design levou contudo várias modificações, como por exemplo, a CETME tinha um apoio em madeira e a G3 não.


G3 significa "Gewehr 3", Espingarda, 3 em alemão. A G3 foi adoptada em 1958 como substituta para a G1 da Bundeswehr, uma versão modificada da belga FN FAL, que estava em serviço desde 1956, o ano em que a Alemanha Ocidental tinha entrado para a NATO.

Portugal teve necessidade de adotar uma nova arma no inicio dos anos 60, por conta da guerra colonial na África. As possibilidades não eram muitas. Os Estados Unidos mantinham um claro embargo a Portugal durante a era Kennedy. Assim, a escolha tinha que recair numa arma fornecida por um país que estivesse na disposição de transferir a tecnologia para a sua fabricação em Portugal. A escolha foi pela arma alemã, que passou a ser fabricada em Portugal pela Fábrica de Braço de Prata.

Quando chegou a África, em comparação com as antigas armas ligeiras das forças armadas a G3 era vista como extremamente sofisticada. Tratava-se de uma arma automática, que podia disparar rapidamente uma considerável quantidade de tiros.
Foi necessário bastante treino de forma que a tropa se habituasse a entender que a posição normal da arma devería ser a posição tiro-a-tiro, porque do ponto de vista operacional, gastar rapidamente a munição no meio do mato, sería um problema.

Em 1965, já o numero de espingardas automáticas G3 tinha ultrapassado as 150.000 nas forças armadas, e mesmo assim, ainda existiam em funcionamento 15.000 espingardas automáticas FN, fornecidas de emergência pelo exército alemão, antes da introdução da G3.

A arma esteve presente nos vários cenários de guerra, em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Viu-se ainda a G3 ser utilizada em Timor leste pelas guerrilhas das Falintil.

Até ao ano 2000, ainda algumas velhas G3 se encontravam operacionais naquele território.
A substituição da G3 nas forças armadas portuguesas aproxima-se a passos largos. A sua provável substituta será provavelmente a
G36, que é vista internacionalmente como a substituta lógica da G3, embora outras possibilidades continuem em aberto.

Extraído da Wikimedia Commons. Com a devida vénia.

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De Mário Dias, ver também postes de:

15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)

17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

Sobre a Kalash, vd. os seguintes postes publicados no nosso blogue:

30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74- DCCCXVIII: Confissões de um pacifista: A minha paixão pela bela Kalash (João Tunes)

17 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XX: "Foi você que pediu uma kalash?" (David Guimarães)