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quinta-feira, 21 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8585: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (11): Por morrer uma andorinha...

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 3 de Julho de 2011:


AO CORRER DA BOLHA- XI

Por Morrer uma Andorinha…

Era uma vez um Alferes

Podia começar assim…
Terminada uma Operação na zona do Enxalé, esperava a passagem do macaréu. Só então cambariam o Geba até ao Xime.
Meio enrolado, ouvidos à escuta, a noite a chegar e, para aumentar o desconforto, a dor do dente a voltar, raios, raios, que chatice.

-Dá-me mais uma “pincelada “ dessa Mistura Bonin? …sei lá o nome, é LM, aqui é tudo do LM.

-Tem que ir a Bissau arrancar o dente. Isto só alivia e estraga os outros.

Horas depois já estavam em Fá.
Dormiu mal. O Furriel Enfermeiro aconselhou, logo pela manhã, a ida a Bissau.

Dias depois entrou no Hospital Militar e procurou a Estomatologia. Encontrou uma sala com várias cadeiras, médicos e o cheiro próprio daqueles locais. Borrifafa-se nisso, queria era ser tratado. E foi por um médico, calmo e sorridente, que lhe traçou o destino:

- Temos que arrancar o dente.

Já o esperava.
Falaram agradavelmente enquanto esperavam o efeito da anestesia.
Tentou o médico e o dente saiu alegremente.

- Aqui está, tudo bem e volta daqui a dois dias para ver esse siso. Não é para arrancar. Prevenir.

(O médico, se bem se lembra era de Coimbra ou esteve ligado à Briosa).

Dias depois dois, claro, voltou a entrar na sala. Tentou ser tratado pelo mesmo médico. Não foi possível e outro o tratou.
Mal o ouviu. Boca aberta, dedo lá dentro, breve espreitar.
Pouco depois zunia, com ruído irritante, a broca que de pronto avançou, primeiro na direcção da boca e depois do dente. Por pouco tempo, urrou o alferes e parou a broca.

-Tem que ser arrancado, sentenciou o clínico.

E foi. Foi com força e protestos do médico contra dente tão teimoso. Finalmente o siso lá saiu, descansou o médico e o alferes continuava, em surdina a chamar-lhe… isso mesmo, pensou bem.

Saiu da sala, com Guia assinada e ordem de regressar no dia seguinte ou noutro que não interessava.
Volto o “tanas de albernoa”…

Voltou e muito rápido. Nunca digas nunca.

Voltou porque horas depois as dores eram fortes, o sangue teimava em aparecer ao canto da boca. - Estou lixado.

Um Tenente de Cavalaria levou-o, no “jeep” que tinha, ao Hospital.
No caminho comentaram o que o HM 241, quem lá trabalhava e outros militares ligados à saúde representavam para os que estavam no mato.

“O que interessa é chegares vivo ao Hospital de Bissau e estás safo”. Em dias de tecto baixo, com dificuldade em evacuações de feridos, sentia-se o moral das tropas.
Por morrer uma andorinha… e isto não era caso de vida ou morte…

Entrou no Hospital, a cabeça a latejar, a visão meio enevoada, a raiva a tirar-lhe o juízo depois da partida do siso.
Nem viu, ao dobrar uma esquina, um Major do BART 1904.

- Então, que se passa? - Disse o Major.

Relatou brevemente e seguiu o Major. Numa sala estavam muitos militares ligados, se bem se apercebeu, à saúde. Ele saiu dali.
Pouco depois apareceu o Major e o tal clínico.

- Eu espero aqui. Tem transporte?

- Devo ter ou talvez não.

Seguiu o homem que lhe extrairia o siso e os protestos dele.
Ele nada dizia só, em surdina ia “falando”… do dito e de muito mais. Era para se entreter, para tranquilizar.
Sentou-se na cadeira, abriu a boca, lavou com água e algo mais, suportou a introdução de uma massa acastanhada ou que ficou dessa cor, levou uma injecção e esperou.

- Vai à Farmácia Militar e levanta o que aí está. Toma como aí diz. Volta cá daqui a… não se lembra quando ou participo de si. Aceitou o papel e a Guia com as novas indicações.

Saiu, foi à Farmácia, recebeu medicamentos e informações.

Nesse dia, talvez não, no outro já estava em Bambadinca e depois em Fá.
Da recuperação se encarregou o Enfermeiro.
A Guia… o vento levou-a… tudo o vento leva…

Passado muito tempo, já em Mansambo, a Companhia estava com muitos problemas de saúde. Recebeu, por isso mesmo, uma visita de alguns médicos héli-transportados.
Parece ter decorrido bem. Dizem que sim, se não me engano.
Fizeram fila para verificação dentária. Depois da saída do primeiro, talvez do segundo “doente” , desapareceu a fila. Seria…?

Na parada havia militares a lançar aviões de papel. Gritavam. - Vou para a Metrópole. Outros pediam boleia. Um outro, que tinha partido os óculos numa emboscada e ficou sem eles, o tique de os puxar para o lugar com o indicador manteve-se. Outro tomava comprimidos por cores. E agora? Azul… depois o verde…

Parece que ao fim da tarde, o tal Alferes regressou, salvo erro, da Moricanhe com o Grupo. Soube as novidades.
Foi benéfica, para a saúde daqueles militares a consulta colectiva. As condições eram demasiado más e foi uma boa medida.

Parece que o Comandante da Companhia teve que passar, no dia seguinte ou no outro, pelo Comando de Batalhão para uma ou outra explicação. Sem problemas se bem me lembro.

Tudo bem e lá continuaram cantando e rindo… mas a saúde e certas condições parece terem mudado.

Era uma vez um velho, a quem há décadas atrás chamaram Alferes... que, mesmo tanto tempo depois, se ouve o zumbido da broca no estomatologista fica muito, muito desagradado… vidas…
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8565: Fotos à procura de... uma legenda (1): Álbum de Torcato Mendonça (CART 2339, Mansambo, 1968/69)

Vd. postes da série de:

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1353: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (1): O bababaga e o papa-figos

9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5958: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (2): SPM 4758

12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5974: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (3): O velho picador

16 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6002: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (4): Os apontamentos de Amílcar Cabral

20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6197: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (5): Mentes com dúvidas

21 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6202: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (6): Quem ficou com a minha G3

3 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6305: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (7): Lágrimas secas

14 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6388: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (8): Promessas

16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6404: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): Páscoa de 1968

17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6410: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (10): O saco do Zé Paz D'Almas

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6410: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (10): O saco do Zé Paz D'Almas

1. Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil AT Art da CART 2339, Mansambo, 1968/69, com data de 10 de Maio de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Obrigado pela info do comentário da 2404.
Como é o teu tempo? Dilata?

Posso estar equivocado. Posso mesmo estar a ler mal. Posso o que quiseres... certo é que resolvi enviar um escrito diferente. Depois de guerras, depois de controversias (não da Série do Blogue), depois disto e daquilo, lembrei-me de algumas "coisas" que dizem.

Desopila, alivia o enjoo, pode ser mezinha e vai em anexo.
Tenho outro anexo. Não vai agora. Um dia segue como Estória de Mansambo que é. Facto a marcar-me para sempre e que escritos de Bolha ou mezinhas do Zé Paz d' Alma, coisa séria e acredita quem quer, não podem aliviar. Quanto mais curar.

Um abraço amigo do
Torcato


AO CORRER DA BOLHA - X

O SACO do ZÉ PAZ d’ALMAS


O Paulinho… Paulito… ou Paulocas. Não era este seu nome. Lá por casa e por alguns amigos, era assim chamado.

O padrinho, homem de posses e mau génio, tinha-o baptizado por Paulino. Nem mais, Paulino como o avô do padrinho. Homem velho, bigodes retorcidos, corrente de oiro na jaqueta, olhar a bater fundo e, ainda a custo, montador de alguma das incautas donzelas que, de quando em vez, para a família Paulino iam trabalhar nas artes domésticas.

Por mor disso acontecia, raramente agora, a interrupção do ciclo de alguma. Raios e coriscos se levantavam pela Maria, a olheira de tudo, velha que já fora donzela e tudo topava. A governanta-mor Maria, antes de o inchaço aparecer, falava de pronto com o avô do padrinho do Paulinho, Paulito ou Paulocas que, como o afilhado, se chamava Paulino.

- Patrão Paulino aquela moça coitada, a filha da Alzira lavadeira, parece que devia consultar o Dr. Leónidas.

- Trata disso e eu logo falo com ele. Respondia, enrolando as pontas da farta e já alva bigodaça, o velho.

Foi crescendo o Paulinho, Paulito ou Paulocas e era tratado como se fosse filho do padrinho, solteirão empedernido, com mulher de casa posta na vila, mais amante, contudo, das cartas e de festanças do que de donzelas.

Cresceu rápido o afilhado Paulino e nos estudos nada deu. Nada.

Um dia foi às sortes e passado um ano, nem tanto, abalou para um quartel.

Por lá andou aos saltos, cambalhotas e “desenfianços”. Só que quartel militar é diferente e foi apanhando “porradas” como diziam, em violação às regras ditas e impostas por oficiais e sargentos, mais estes que aqueles, com caras escanhoadas e marmóreas, modos bruscos e que berram de pronto. Até pareciam terem olhares na nuca.

Não estava, a isso, habituado o Paulino afilhado. Tanta levou que um dia se viu despachado para uma colónia, não penal mas de lugar, de lugar ou província que diziam ser o ultramar. Como era franzino ou fraco de aspecto, ficou logo na que mais perto se encontrava: - Guiné.

Tenta o padrinho a cunha, o pedido, a troca mesmo em paga a outro e nada. Nada livra o afilhado da ida até terras distantes.

Abalou num barco, o Paulino e uns centos de mancebos Tejo abaixo, com muitos lenços, deles e de quem em terra ficava, a abanarem despedidas e a lançarem desejos de regressos rápidos.

Lá se foi o Paulinho, Paulito ou Paulocas como a velha Maria ainda o tratava.

O avô do padrinho, para mais um desgosto deste, finou-se pouco depois. Não de desgosto. Não. Finou-se de esforço de “caça”, num final de quente tarde, a meio do Verão em pleno Agosto.

Por lá, pela Guiné, andava o Paulino, o soldado Paulino, esperto e desenfiado, mesada certa ida da Metrópole. Talvez isso tenha contribuído para mais uma ou duas “porradas” a cortarem vinda de férias. Fartou-se, definitivamente, daquela gente da tropa, daquele calor e mosqitagem de ferroada fácil.

Fartou-se daquilo tudo e tudo fazia para esquecer.

Um dia voltou. Finalmente.

Voltou diferente o Paulino. Mais magro, macilento, olhar afundado e ausente, sorriso apagado.

O velho Dr. Leónidas tentou tratá-lo mas desistiu.

- O tempo cura isto, sentenciou.

Não curou nada. Certas noites, levantava-se em sobressaltos e em muitos dias com toda a gente praguejava.

O padrinho aguentou, aguentou e um dia despachou-o para clínica recomendada. Passam uns tempos e as notícias eram ou pareciam ser boas. Diziam os clínicos: - O Paulino recupera bem. Estas eram as noticias que acompanhavam a conta mensal.

O padrinho e a Maria, já a andar de tripé e bengala, acreditavam.

A Antónia, já entrada na idade e substituta de Maria governanta-mor, não acreditava. Tanto assim que foi falar, em segredo claro, com o Zé Paz d’Almas. Agradeceu a visita e confiança nele depositada, benzeu, lançou água benta, fez rezas, mezinhas e disse:

- Aquilo acontece Tóina. Acontece. Tenho visto casos assim. Passa. Passa de certeza e eu vou tratar dele. Se não passar há a corda e o saco.

- A corda e o saco? Diz aflita, benzendo-se a Antónia.

- Sim mulher.

Se ele voltar a ter aflições, falar sozinho, pesadelos no sono, tens que o convencer a usar o saco.

A Antónia olha desconfiada, ouve com atenção o Zé Paz d’Almas e, antes de sair deixa-lhe um cesto com uns mimos.

Passa o tempo e volta a Antónia.

Conversa com Zé Paz d’Almas. Retorna a casa com o cesto, a corda, o saco benzido e todas as recomendações de convencimento do curandeiro.

Anos depois, não muitos, o Paulino, o Senhor Paulino, quando sente qualquer aflição, tormento ou contrariedade a virem, desce à cave, abre a porta, ao lado da porta da adega e agarra o saco.

Calmamente abre um pouco a boca do dito e mete lá a sua. Fala então, desabafa os tormentos e, diz a Antónia, por vezes até urra.

Rapidamente ata-o com a corda e volta a pendurá-lo.

Sai aliviado, sorridente mesmo.

Zé Paz d’Almas morreu recentemente e a Antónia está velha demais. Dizem.

Também parece haver muitos sacos e substitutos. Dizem.

Zés Paz d´Almas parece que não. Dizem.

Dizem cada uma… mas dizem.


NOTA: qualquer comparação, de alguém com o Paulino é pura maldade. Não sei dele. Não deve ter telemóvel e não sei onde vive.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6404: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): Páscoa de 1968

domingo, 16 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6404: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): Páscoa de 1968

1. Do nosso Camarada Torcato Mendonça, ex-Alf Mil AT Art da CART 2339, Mansambo, 1968/69, mais um Ao correr da bolha, desta feita lembrando a Páscoa de 1968:


AO CORRER DA BOLHA - IX

PÁSCOA de 1968

Abril, Domingo de Páscoa de 68


Ao certo a data não sei. A agenda diz catorze de Abril como a data do Domingo de Páscoa. Irrelevante para nós pois lá não haviam dias de semana.

Na melhor das hipóteses seria celebrado entre quinta-feira e domingo ou segunda-feira.

Recordo, isso sim, o que aconteceu.

Estávamos em Fá de Cima. Havia messe de oficiais e sargentos. Os soldados tinham refeitório e comida diferente. Em Mansambo a comida era igual para todos e, como vivíamos em abrigos, todo o resto era semelhante. Foi assim que nos ensinaram, à maioria dos graduados, que tiraram a especialidade em Vendas Novas.

Estávamos pois em tempo de Páscoa, tempo importante para a maioria dos militares da Companhia, tempo onde a família é mais fortemente recordada, tempo a ter cuidado com a quebra psicológica de muitos.

A maioria, mesmo os pouco ou nada dados à religião católica, gostaria de comemorar aquele dia.

Assim, mesmo na Guiné, resolveram comemorar e eu estava de acordo.

Só que isso viria a trazer-me mais um aborrecimento com o Comandante da Companhia (o segundo, dos seis que tivemos - quatro capitães – dois do QP felizmente - e dois alferes).

Não comento mais:

- O 1.º Sargento já faleceu;

- Esse capitão só lá esteve mais uns dois ou três meses.

Os militares do meu Grupo, com a conivência dos furriéis, compraram para a festa dois ou três cabritos. Disseram-me e, por mim, tudo bem.

Havia o espírito do Grupo de Combate mas, logicamente neste caso o espírito de união da Companhia prevalecia. A comemoração iria ser conjunta certamente. Penso eu pois era um dia festivo, dia de estar com a família e amigos. Ali, naquela terra distante, local de perigo, essa necessidade seria maior. Acresce ainda a vontade de esquecer, por breves momentos a guerra.

A Companhia era de intervenção ao BART 1904, logo fazia Operações, patrulhamentos, rusgas, montava emboscadas, seguranças a Mato de Cão e toda a actividade operacional do Batalhão.

Antes da Páscoa, fizemos um patrulhamento e emboscada. Segue-se uma segurança a Mato de Cão. Chegamos já tarde a Fá e disse para os militares descansarem até mais tarde no dia seguinte.

Desconhecia que o Comandante da Companhia tinha regressado de uma das suas saídas. Esta a Bissau creio eu.

A meio da manhã do dia seguinte, talvez por volta das nove ou mesmo dez horas, um dos furriéis veio falar comigo.

- O Capitão suspendeu tudo o que a Companhia tinha preparado para o dia de Páscoa. Os nossos chegaram atrasados à formatura e há problema.

Respondi que ia tratar do assunto.

Falei com o Capitão, disse o que se havia passado e o porquê do atraso. Do resto nada disse. Ele é que comandava e o assunto era com ele.

Tudo resolvido. Fui falar com o Grupo e trocamos breves palavras. As suficientes. Tudo esclarecido e cada um foi à sua vida.

O almoço no refeitório dos soldados era normal.

Na messe havia comida diferente a querer dizer: - É Dia de Páscoa.

Recusei-me a almoçar. Troca de palavras menos próprias e abandonei a mesa.

Passado um pouco, um dos alferes veio falar comigo ao quarto. Estava triste. Homem casado sofria certamente mais do que eu. Mostrei-lhe “ O Meu Diário”.

Folheou e disse:

- Não escrevas. Destrói isto. Na porta tens “I’m free” e com isto ainda tens problemas. Hoje sinto-me deprimido e desabafou um pouco…

Segui o conselho de uma pessoa mais calma, menos sanguínea. Ficou a recordação e os cabritos que nos acompanharam para Mansambo. Um deles, não comprado, a levantar problemas… coisas de bodes.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6388: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (8): Promessas

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6388: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (8): Promessas

1. Do nosso Camarada Torcato Mendonça, ex-Alf Mil AT Art da CART 2339, Mansambo, 1968/69:

AO CORRER DA BOLHA - VIII

PROMESSAS


Espaço enorme.

Espaço bem definido, tendo num topo uma Basílica em construção e a antiga no outro. Entre as duas aquele espaço enorme, o lugar de culto com a pequena capela com a Senhora. Os visitantes e peregrinos, muitos, andavam por ali em oração ou, como eu, poucos, certamente, em observação.

Ainda vi um ou outro camuflado, gente a caminhar de joelhos para admiração minha, gente de rostos sulcados pelas rugas e curtidos por mil sóis, em contraste com outros muito bem tratados. A diversidade era enorme quer no aspecto social quer no aspecto etário.

Ia observando e procurava a explicação para tudo o que me envolvia. Senti, talvez pela educação católica outrora recebida, por saber a história do local ou, certo é que algo me transmitia um misto de paz, de tranquilidade e de inquietação, uma necessidade de compreender. Sentia ser difícil de explicar aquele choque de sentimentos sentidos.

Observava uma grande espiritualidade e simultaneamente o peso enorme da parte material, o negócio, o dinheiro que por ali corria. Ia pensando, meditando em tudo e tentar explicação certamente para o inexplicável.

De repente vi-o. Estava parado, absorto nos seus pensamentos. Dirigi-me para ele e quase lhe toquei. Só então me olhou. Olhar vago, vazio, olhar impróprio nele.

Cumprimentamo-nos e nem esboçou um sorriso.

- Que fazes aqui, perguntou-me.

- Vim tratar de um assunto pessoal. E tu? Estranho ver-te aqui.

- Fácil de explicar, respondeu-me. Estou aqui porque, como tu, estive na Guiné. Hoje, vinha do Porto para Lisboa e virei para cá.

Vamos tomar um café e falamos um pouco.

Senti nele a necessidade de desabafar, de contar algo.

Sentados frente a frente deixei-o então falar. Se bem me lembro disse:

- Há muitos anos atrás, numa fria e enevoada manhã de Dezembro, aportei a Lisboa vindo da Guiné. Não tive grande dificuldade em encontrar meus pais no meio daquela multidão. Confesso que foi um encontro a marcar-me para sempre. Nunca tinha sentido aquela forma como me olhavam, abraçavam, tocavam. Tentava manter-me calmo. Falávamos a querer dizer tudo, a falar de forma estranha como se o tempo se fosse esgotar, como se alguém viesse impedir que falássemos. Difícil de explicar.

Claro que não posso fazer analogia com a partida. Nesse dia, a pedido meu, não tinha ninguém lá.

Mostraram, mais minha mãe, o desejo de aqui vir antes do regresso a casa.

Disse ser difícil para mim. Só estaria disponível dois ou três dias depois. Não sabia ao certo. Um dia viríamos. Um dia. Ainda falamos um pouco mais e escuso de referir. Falamos, posteriormente, em vir aqui algumas vezes.

Vi-o beber o café já frio.

- Nunca cá vieste, pois não? Perguntei-lhe

- Não. Vim hoje porque senti necessidade. Respondeu-me.

Mudou de tema e falamos de outros assuntos. Assuntos triviais, assuntos a dizerem não querer falar mais do porquê da visita ali.

Pouco depois despedimo-nos.

Ainda fiquei e pedi mais um café. Precisava. Se estava, digo mesmo, um pouco confuso, talvez agora sentisse uma maior necessidade de compreender certos porquês.

Enquanto bebia o café relembrava a forte religiosidade existente no meu Grupo de Combate, na minha Companhia.

Quantos, depois de voltar da Guiné ali teriam vindo?

Lá, quando caíam numa emboscada, faziam um assalto, sofriam um ataque ao aquartelamento, pensariam em religião? Qual seria o seu peso antes das operações?

Todos os Grupos tinham, se a memória me não atraiçoa, uma Senhora a quem rezavam em maioria.

E do outro lado, do lado dos nossos adversários ou inimigo, maioritariamente de outra religião, como pensariam?

Um dia, se isso for possível, tentarei perguntar aos camaradas do meu grupo.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6381: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (20): Choro na noite

Vd. último poste da série de 3 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6305: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (7): Lágrimas secas

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6305: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (7): Lágrimas secas


1. O nosso Camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil AT Art da CART 2339,
Mansambo, 1968/69), enviou-nos mais um dos seus “Ao correr da bolha”, com data de 28 de Abril de 2010:

AO CORRER DA BOLHA - VII
Lágrimas Secas

Fim de tarde.
Viaturas, em coluna, a voltarem ao aquartelamento.
Muitos a esperarem, inquietos, nervosos, corações a baterem mais forte. Homens de rostos tisnados pelo sol, troncos nus e suados, olhares duros, fechados e a furarem os movimentos das viaturas.
De repente um grito, um levantar de braço de quase todos, numa sincronização a parecer treinada, a parecer de um só e surgem os risos e os sorrisos de alegria a fazerem brilhar os olhares.
Aí está o correio com a carta, a encomenda, o aerograma. Aí está a ligação ao mundo real, mundo deles que não aquele, mundo lá longe e a chegar, aqui e agora, em letras em papel estendidas ou nele, em encomenda embrulhada. Segue-se, então, breve rebulício e depois o silêncio.
Passa o tempo, não muito, só a parecer muito e um deles entra na zona de convívio, protegida por fiadas de bidões, que antecede a entrada de um dos abrigos. Querem que partilhe algo do conteúdo de uma encomenda aberta, encomenda recém chegada em atraso de Natal.
Agradece, diz que já volta e entra no abrigo. Procura uns papéis e sente o rebentamento, segue-se logo outro e mais outros na infernal troca de tiros e granadas.
Olha à volta, berra, sente a Breda a cantar, logo ali ao canto do abrigo, os morteiros e os obuses mais ao longe e ri-se. Ri-se porque pertence àquela bestialidade e, para ele, é a normalidade ou, para tantos, a não sentirem já a anormalidade de uma vida assim.
Gritam, chamam-no e corre para fora. Olha e pára, transforma-se, fecha o rosto, aperta os dentes e sente o cheiro da morte, o cheiro adocicado do sangue.
Tinham acertado, logo no inicio com o RPG, no palanque da sentinela. Em cheio.
Olhares de raiva, silêncios só cortados pelo gemido de um ferido.
Passa o tempo, olham-se e pelo olhar se acalmam, pelo olhar falam. Olhares a tudo dizerem, quase tudo, pois as vozes estão embargadas pela raiva.
Aparece um lençol. Agarra-o e sobe os poucos degraus até ao camarada parcialmente desfeito. Apanha-o e vai embrulhando. Ajudam-no no silêncio da morte.
Preso, balouçando e brilhando, mesmo com a fraca luz, o fio e a cruz do camarada. Porquê? Ali porquê?
Fá-los voar com uma palmada.
Desce e chora por dentro. Sente a dor da perca. Sente que já não verte lágrimas por fora, já não correm pela face. Secaram á muito.
Olham-no e ajudam sem uma palavra. Juntam-se em silêncio, cabeças baixas, pensamentos certamente a jurarem vingança. Alguém leva o camarada e muitos o seguem. Outros arrumam e fazem voltar a normalidade.

Na mesa a encomenda continua aberta…

Um abraço,Torcato Mendonça
Alf Mil AT Art da CART 2339
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Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:

21 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6202: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (6): Quem ficou com a minha G3

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6202: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (6): Quem ficou com a minha G3

1. Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), gostava de saber por onde pára a sua G3. É o que ele pergunta ao correr da bolha, em mensagem com data de 10 de Abril de 2010:


AO CORRER DA BOLHA - VI

QUEM FICOU COM A MINHA G3


Quem ficou com a minha G3?

Gostava dela. Coronha de madeira com um ronco ou amuleto na parte mais estreita, o fuste igualmente em madeira luzidia, tratada, toda ela, com carinho e, por isso mesmo, sempre pronta a trabalhar.

Quem teria ficado com aquela beleza?

Era muda, felizmente, e um pouco surda ou muito mesmo. Falava com ela e nada me dizia claro, se era muda só me ouvia, penso eu.

Nunca me deixou envergonhado, a minha G3 de coronha de madeira. O ronco ou amuleto, impensável tirá-lo sem o danificar, dava-lhe um ar africano. Talvez tenha sido herdada de um africano. Quem sabe.

Tive vários objectos herdados. Um cinturão, um bornal com divisórias interiores e um ou outro mais. Não herdados mas oferecidos, mais trocados talvez, dois ou três roncos de cintura e um de peito, pulseira e anéis. Estes e o cinturão ainda estão comigo. O bornal talvez o tenha oferecido. Houve ainda uma pulseira de prata e, em ouro, um anel de sete “escravas”. Trabalho excelente de um ourives de Bafatá. Objectos que se foram em braço e dedo de duas mulheres.

Há tempo, não muito, vi o cinturão e rodeei a cintura com ele. Espanto meu, espanto meu, para o fechar precisava mais um palmo de cinturão.

Rápido, mas cuidadosamente, enrolei-o lendo os nomes dos lugares nele escritos. Tantos? Não me lembro de alguns. Se lá estão escritos é porque por lá andei.

Voltando ao assunto principal, porque falo saudosamente da minha antiga G3?

Olhei, em leitura mais de folhear, para uma revista e vi dois militares, de hoje, em preparação para partida para terras distantes, outras guerras e outras vidas, só que nas mãos tinham G3. Ainda? Ainda duram as velhas G3 de meu tempo e os senhores das guerras, de hoje, não encontraram melhor? Será que algumas fizeram as guerras do meu tempo? Será que a minha G3 andou mundo fora, tiro aqui e rajada acolá? Não. Certamente já não teria os “roletes” funcionais. Daí talvez ainda esteja funcional e em boas mãos.

Se foi bem tratada, como no meu tempo, talvez. Limpa e oleada, culatra e eteceteras tratados e a até a alma brilhava. Sim porque as armas têm alma, neste caso a minha G3. O dono é que ainda hoje a procura. A alma claro.

Era companheirona a G3 e atirava tão bem bala 7,62 ou dilagrama com granada M/62.

Por onde andará?
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6197: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (5): Mentes com dúvidas

terça-feira, 20 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6197: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (5): Mentes com dúvidas

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 10 de Abril de 2010:

Caros Editores
Há bastante tempo que nada vos envio. Escritos tendes vós, certamente para dar e vender.
Acontece que hoje voltei a ver, noutra revista, a G3 na mão de militares em preparação. Talvez mais em pose para a fotografia.

Li um post relacionado com o livro, melhor com a apresentação da biografia do Marechal Spínola.
Fiz breve comentário a pedir a correcção da data do falecimento. Falei igualmente no Tenente Coronel Pimentel Bastos. E porquê? Somente porque ambos foram meus comandantes; um de certo modo afastado pois era o ComChefe na Guiné e o outro o Cmdt de um dos Batalhões (2852) a que pertenci. Ambos eram, muitas vezes tratados, sem grande mal por "nom de guerre". Por eu não usar esses nomes ou outros como: tugas, turras etc (em combate e não só chamava pelo In não só de turras mas ofendia as esposas, pais e mães etc aliviando tensões e incentivando outras coisas), não quer dizer que outros não os usem.

Nada escreverei sobre o Marechal; aparece num ou em mais escritos meus e, recentemente em comentário, creio que quando do poste da apresentação da biografia. Não sei bem e só indo ver e não vale a pena.
Certo é que quer com o Marechal Spínola quer com a G3 e não só mais adensam algumas dúvidas que se me apresentam.

Assim sendo envio dois escritos de alguns que por aqui andam.
Agradecia, mais ao Carlos Vinhal, que acusassem a recepção.

Farão deles (dos escritos claro) o que entenderem.

Bom fim de semana e um tri abraço do,
Torcato


AO CORRER DA BOLHA - V

MENTES COM DÚVIDAS


São já muitos e tão diversos os escritos, depoimentos, comentários lidos e relidos na vã tentativa de os compreender e posteriormente analisar, mesmo de forma simplista. Simplista claro e que não me seja pedida uma análise mais profunda ou os deuses de um Olimpo qualquer entravam em polvorosa.

Nesse ler e, mesmo relendo, assaltam-me dúvidas, assaltam-me muitas – ia dizer resmas ou montes – incertezas. Paro e não sei qual a realidade. Será a que eu vivi ali ou lá e senti aquilo? Não, não tenho disso recordação.

Dispo-me, desnudo mesmo a mente, procurando assim limpar o pensamento, a memória de outrora, e só então pergunto a mim: - onde estiveste? Na Guiné não certamente pois nunca por tal passaste. Sinto haver nomes, assuntos, temas, tomadas de posição que não compreendo. Mente fraca ou perturbada a minha. Porque pode ser essa a causa ou talvez não.

Porquê tantos contra a guerra, tantos a não darem tiros, tantos do contra lá, e mesmo agora cá, a enalteceram o feito e o acto dos que outrora contra nós se bateram? Sim, como se disso eles necessitassem e nós algo, de mau ou menos próprio, tivéssemos outrora praticado e a ser, hoje, projectado em vergonha.

Guerra justa, guerra injusta ou só guerra e, se só guerra é sempre o mal, o ódio, o desumano a estar presente. Mas praticado por quem? Por todos, ou não? Haverá, disfarçado claro, algum saudosismo desse passado? Não tanto.

Eu estive lá, levaram-me para lá em viagem só de ida e de possível vinda e vi, senti em somatório de vivências fortes a deixarem marcas indeléveis, recordações a desaparecerem e, sem saber como, a virarem, uma ou outra vez, presente, a serem confirmadas por cicatrizes na carne ou na mente. Procuro transformá-las em memórias que se esfumem. Difícil? Muito mesmo e, pior ainda, o não saber esquecer e perdoar. O passado, de quando em vez aparece assim quase presente, o passado onde a vida por vezes se vivia toda num minuto, naquele breve instante, entre a vida e a morte, ou, porque não, entre o azar e a sorte.

Sorte! Que sorte? A de estar vivo, a de ali me arrastar por picadas de morte, debaixo de sol de fogo, caminhando em quase esgotamento, arrastando-me por automatismos e só levando da vida um sopro. O sopro ou o instante da sorte? Agora leio, e releio a descrição do lugar, do fulano ou o tal combatente da liberdade, que a nós montou a emboscada, aquela onde n camaradas nossos encontraram, por azar ou falta de sorte, a morte.

Leio, releio e ainda hoje sinto o silêncio da morte, o cheiro a vir e a entranhar-se por todos nós, a revolta ainda hoje a ser quase a de ontem.

Leio, releio e já nem certeza tenho. Estarei assim tão só?

Haveria assim tantos que outrora pensavam ser a guerra injusta, serem contra impérios de opressões e estarem lá como usurpadores, continuadores do secular e injustificado ou errado conceito de propagar fé e civilização? Não, não pensavam assim. Só minoria, pequena minoria que se sentia humilhada e ofendida, a crescer é certo á medida que a guerra se prolongava. Mas só hoje, só hoje é maioria. Será? Ontem, outrora, não certamente. Outrora a maioria aceitava no espalhar a fé e a civilização, no desrespeito pela cultura, pelo ser e saberes de outros povos.

Leio, releio e tenho dúvida na análise; mesmo simplista claro.

Ah o império, o império. Um dia foi embrulhado cuidadosamente e veio debaixo de um braço.

Fico por aqui e irei ler aqui ou acolá. Certamente irei encontrar os feitos dos outrora inimigos. Curioso eles andarem sempre desavindos e nós, melhor eu, não perdoando ou esquecendo aceitar e pugnar, em silêncio e de forma comedida, pela paz. Curioso.

«««

Fiz bem em esperar. Fiz bem em colocar o escrito em letargia, em meio arquivo. Surge agora um outro escrito no blogue. Alguém, um camarada evidentemente, pede ajuda para perceber o que diz não entender.

Tento a ligação entre o que atrás disse e agora leio. Assumo a responsabilidade. São textos diferentes e em comum têm só a dúvida.

Certo é que, em comentários de diversidade opinativa, própria de um site plural, se tenta o esclarecimento. Não vou agora comentar ou falar no interessante poste. Relevo só, em alguns comentários uma certa confusão, talvez termo excessivo, entre politica e partidos políticos. Aqui não se fala abertamente em política. Só que ao opinar estou a fazer política, a tomar posição política. Nada tem a ver com o partido seja ele qual for, a não ser que tente encaixar essa tomada de posição com uma determinada ideologia partidária. Difícil ou sempre passível de contestação e divergência.

Mas, se assim fosse que mal teria isso? Felizmente temos partidos políticos, políticos e vivência democrática.

Nada mais acrescento aqui e agora ou, a faze-lo, iria infringir “as regras” do blog.

Atrevo-me somente a dar um exemplo: - há quem diga guerra do ultramar, guerra colonial, guerra de libertação.

Implícito está uma tomada de posição política. Ou não?

Claro que está. Claro que não afecta o blog como tal, mas pode interessar aos tertulianos que assim classificam a guerra. É que o todo é feito de partes e estas não são iguais ou seria um desastre.

Parece-me ter mais interesse a guerra ter acabado e hoje, independentemente das designações, se falar de paz. E tanto necessita aquela terra por onde andamos. Transcende-nos o pugnar hoje abertamente pela paz. Poderia parecer sobranceria ou ilegítima interferência. Podemos, contudo, tentar ajudar sem interferir. A nossa História, a história de séculos do nosso País não pode ser feita sem a história daqueles novos Países. Temos séculos de história comum, uma língua só e muito mais que convém aprofundar e será sempre indissociável.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6168: O Spínola que eu conheci (14): Sempre vi naquele homem, trinta e quatro anos mais velho do que eu, o Chefe Militar (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 16 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6002: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (4): Os apontamentos de Amílcar Cabral

terça-feira, 16 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6002: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (4): Os apontamentos de Amílcar Cabral

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 10 de Março de 2010:

Caros Editores
Aí vão os textos, um publicado hoje, do que chamei ao correr da bolha.
Acabei por amputar um pouco.
Também penso parar um pouco.

Um abraço
Torcato


Ao Correr da Bolha - IV

O BLOCO-NOTAS de ABEL DJASSI

Ou

OS APONTAMENTOS de A. CABRAL


O P5878* de 24 de Fevereiro, versão II, a versão I estava incompleta, tem como tema um croqui e notas de Amílcar Cabral. Nele está praticamente tudo dito.
Escrevo somente por ter estado no Sector Leste – L1, por ao longo de três ou mais anos aqui no Blogue terem publicado textos meus e não achar despiciente acrescentar algo mais. Pouco contributo é certo, se comparado com doutas análises, não no blogue e menos neste Poste, mas produzidas noutros areópagos.

Voltando então ao croqui e às notas:
O documento de A. Cabral deve ser de Maio de 68. Este mês de Maio foi muito produtivo. Só que nessa data não haviam tropas – NT – em Samba Silate, Demba Taco ou Ponta do Inglês. Esta última foi desactivada em finais de 67 ou Janeiro de 68.Os últimos militares que lá estiveram pertenciam à CART 1746 (Xime) do BART 1904 (Bambadinca).
Quando da publicação já foram apontados alguns erros contidos no documento; quilometragens, dispositivo das NT no Sector 2 do PAIGC, correspondente a parte do nosso Sector L1. Contém o documento poucas informações. Certamente era um simples esquiço e breves notas, só que escrito pelo nº1 do PAIGC, A. Cabral.
O IN tinha mais e melhores informações e mesmo uma rede, relativamente bem montada, com elementos colaboradores nas principais tabancas e em todas as cidades ou núcleos populacionais onde estivessem aquarteladas as NT. Sabíamos e já disso aqui falámos. Tivemos confirmação por elementos In, caso do Malan Mané. Só com boas informações se pode atacar Mansambo como o fizeram em 28 de Junho de 68.
Mansambo era, com alguma frequência, visitado pelo IN. Eram vistos por detrás das árvores ou dos baga-baga, quais fiscais de obras públicas a anotarem a evolução da construção do “campo fortificado” nas palavras da propaganda deles. Haviam até cenas caricatas com uns tiritos, uma morteirada ou bazucada.

Quanto à nossa distribuição no terreno era, talvez devido à escassez de militares, deficiente. O dispositivo das NT estava – mesmo com o reforço da construção de Mansambo – só a servir de tampão ao avanço IN. Basta, convém ver, a Cartografia, excelente diga-se, das Cartas 1/50.000 do Xime, Fulacunda, Xitole e, noutra escala a carta da Província da Guiné.
Quando o aquartelamento de Mansambo estava em fase adiantada, na zona de comando, foi montado um mosaico com as cartas da zona, protegidas com um plástico e onde com lápis e “pioneses” de várias cores se marcava a nossa guerra. Acampamentos IN, itinerários, informações etc.

Escolas – A Educação – era, e bem, umas das preocupações do IN,ou melhor de Cabral e dos seus principais Comandantes. Igualmente para com a saúde ou a agricultura tradicional e adaptada às regiões.
Quando da “Lança Afiada” tivemos ocasião de constatarmos isso. Ficou tudo destruído é certo, as infra estruturas, foram apreendidos muitos livros e outro material escolar, documentação, destruídos celeiros para guardar arroz e outros produtos agrícolas, gado e não só. – Tenho cá uma sacola escolar com o respectivo conteúdo, veio por acaso e pode ir para o museu ou arquivo do blogue –. Esta operação foi a maior feita no Leste quer em duração quer em efectivos. A população, que eu saiba foi evacuada ou veio, no último dia, connosco. Os combatentes e muita população “cambou” o Corubal, à vontade. Os estrategas militares não montaram emboscadas na margem esquerda do Corubal e o IN escapou-se. Não se aniquilando os combatentes do PAIGC para que serviu destruir tanto acampamento, escolas e outras infraestruturas?
São maneiras subjectivas de ver a guerra e passíveis de contestação.
Ainda sobre as escolas importa realçar o seguinte: a língua que era ensinada era o português. Cabral e não só claro, sabiam, mesmo geograficamente envolvidos por países francófonos, que, num país tão pequeno mas simultaneamente com tantas etnias e dialectos, a língua podia ser factor de união, mais o crioulo e, no futuro o português iria servir de língua oficial. Estavam certos. Foi pena ter-se perdido tanto tempo.
Mesmo assim a língua é hoje um factor de união. Há contudo outros factores de união e Cabral sabia. É também a convivência de séculos, a troca de afectos, de elementos culturais, de sermos nós e um pouco deles ou eles e um pouco de nós e a guerra cada vez mais esquecida.
Há excepções. São figuras menores que só valorizam o todo.
A nossa geração, anos 60/70, foi diferente das anteriores e é diferente dos jovens de hoje. Certo. É assim. Ajudemos contudo a fazer a ponte, a falar da verdade aos jovens, a fazer um futuro mais uno, mais fraterno entre povos livres e irmãos de séculos e veremos que o futuro é já hoje.

Sobre o L1, a zona da margem esquerda do Corubal, a linha Xime, Mansambo, Xitole um dia falaremos.
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Notas de CV:

(*) Ver poste de 24 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5878: PAIGC: um curioso croquis do Sector 2, área do Xime, desenhado e legendado por Amílcar Cabral (c. 1968) (Luís Graça)

Vd. último poste da série de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5974: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (3): O velho picador

quinta-feira, 11 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5974: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (3): O velho picador, Seco Camará

1. O Velho Picador, mais um texto para a nova série Ao correr da bolha, enviado por Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), em mensagem do dia 2 de Março de 2010:


Ao Correr da Bolha - III

O Velho Picador


Vi num “Poste” uma foto do velho Seco Camará. Senti saudades dele. Senti saudades de ter menos quarenta anos e, com ele e um grupo, voltarmos a ir ao Poidom, a fazer as “operações” de outrora, parando em “grande alto” para descansar e comer a ração. Diria então o velho Seco, caso a ração dele fosse contemplada com polvo ou lulas:
- Alfero,  rabo de rato, troca pelas tuas sardinhas.

Eu ria e trocava. Comíamos e conversávamos e eu com ele ia aprendendo, não a arte da guerra, mas só a guerra naquele bocado da Guiné que ele, velho mandinga, conhecia como a palma de suas mãos.

Há quantos anos? Desde o inicio, há cinco ou seis anos atrás. Que pensaria ele de nós que íamos e vínhamos à cadência de um ou dois anos? Não sei. Era um velho guerreiro, colaborador das NT ou Nossas Tropas. Morreu, talvez menos de dois anos depois, nem tanto. Voou para o Paraíso dos Mandingas, o velho Seco Camará.

Antes a morte em combate que teve, do que o abjecto e cobarde pelotão de fuzilamento dos libertadores. Quantos amigos meus, como o Seco, passaram por isso?! Quantos? Homens que foram auxiliares das NT e ingloriamente assim desapareceram.

Que fariam eles, durante a guerra, se não andassem connosco? Iam para a guerrilha. Mesmo estando connosco,  quantos em nós acreditariam? Quantas reservas poriam à nossa actuação, à nossa presença e, se colaboravam, quantos não o faziam contrariados com certos militares nossos.

Lembro aqui o caçador Lhavo. Homem grande, olhar e porte altivo, vestimenta muçulmana. Era o meu guia preferido. Não facilitava os pedidos para colaborar. Lembro que foi ele a encontrar o acampamento do Mamadu Indjai. Não queria ir. Naquele fim de tarde falei com ele pausadamente, o Capitão afastado a observar e o Lhavo a entender o que eu lhe dizia. Depois olhou-me e calmamente disse:
- Amanhã ao nascer do Sol vem a Afiá, agora vai para Candamã.

Assim foi feito e com bons resultados.

O Lhavo uma vez ficou aborrecido comigo. Regressávamos da [Op] Lança Afiada, manhã a nascer,  e avistamos uma vaca de mato. Ele queria atirar. Fiz-lhe sinal que não. Baixou a arma e já em Mansambo disse-lhe o porquê. Compreendeu e apertamos as mãos. Talvez se tenha aí cimentado mais a nossa amizade.

Esta gente das Tabancas é que para mim foi, e ainda hoje é, o Povo da Guiné.

Um outro homem diferente mas por quem tinha amizade, o António Bonco Balde, régulo em Candamã, Alferes de 2º Linha (nunca o vi vestido de militar), homem criado numa Missão, empregado em Bissau e regressado a Candamã após a morte do pai. Homem de múltiplos saberes e com ele aprendi muito. Miúdo alferes de 23 anos e Fula, talvez, de quarenta e…homem bom.

Só um breve episódio.

Estava com o meu grupo em Candamã e Afiá, tabancas em auto defesa. Um dia de Afia informaram que faltavam muitos homens. Já sentíramos isso em Candamã. Falamos com o Régulo António Bonco. Ele disse já saber e que eu tinha que compreender. Os “tchãos” não davam o suficiente para alimentar as famílias. Conversamos bastante e agora resumo em breves palavras. Dizia ele:
- Os homens vão para a apanha da mancarra no Senegal. O pior é que quem os leva,  ganha dinheiro, quando regressam quem lhes faz o câmbio ganha dinheiro e eles nem metade do que ganharam trazem.

Fiz um relatório sobre essa exploração, os lucros de comerciantes sem escrúpulos, o silencio da Administração e, se as Informações militares de nada sabiam…ou sabendo…até porque assim cada vez se desguarnecia mais a defesa das tabancas. O Régulo fez questão de assinar também. Foi o relatório enviado à Companhia, o Capitão levou ao Batalhão e este ao Agrupamento.

Sempre se passou algo mas depois fez-se silêncio. Antes do silêncio foram-nos entregues sacos de arroz para distribuir, equitativamente, pela população. Assim não se resolve nada,  dizia o Régulo e eu… história encurtada, inacabada e a merecer tratamento duro nesse tempo.

Quem aos inimigos, perdoa às mãos… pois!

Curiosamente, dizem, se bem me lembro, que o Comandante do BCaç 2852 e um Capitão foram molestados, digamos assim, após o ataque a Bambadinca. Os civis ou a administração civil teria algo a ver com isso? Certamente que não! E que interessa isso agora? Nada!

Será que os homens das tabancas continuam a serem explorados? Certamente que não!
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5958: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (2): SPM 4758

terça-feira, 9 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5958: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (2): SPM 4758

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 2 de Março de 2010:

Estimáveis Editores
Escrevo para dois sabendo ser extensível aos restantes. O MR ainda aparece. Agora o VB anda às voltas com o livro e pouco tempo lhe resta dessa azáfama meritória.
Que seja a palavra do Amadú e a escrita do Virginio - só.
Mas estou aqui a enviar um escrito. Assim:

Há tanto tempo que não envio nada que já nem sei. Hoje apareceu o vento, chuva e frio. Ainda ontem vi andorinhas e alegrei-me. São as apressadas... Hoje fiquei aborrecido e fui teclando... depois ia continuar... e parei.

Envio este SPM e logo escrevo os outros que estão na forja...

Assim, sendo aqui vai e junto um abraço para vocês do,
Torcato


Ao Correr da Bolha - II

Há sempre escritos que não são enviados. Escrevem-se, com caneta e papel ou, como é o caso, directamente batendo teclas. Depois são guardados, enviados e, se não forem publicáveis, entram em arquivo morto. Não. Prefiro em letargia, morto ou morte é triste e chato. Esperam um destino, também é palavra que não me agrada muito – destino… é o destino, o fado… esperam, esperam só uma outra oportunidade. Há sempre uma segunda oportunidade. Refiro-me, evidentemente só aos escritos sobre a Guiné.

Li agora a correr vários postes. Gostei de muitos e ia comentar. Depois, pensando melhor, nada escrevi. Isto da escrita, mesmo as simples letras e palavras em imitação de texto, geram certa ansiedade. E se desagrado a… se lanço polémica com… ou se erro na descrição do facto e etc., etc.

Contudo, e arriscando pois é agradável arriscar, parece que contradiz a ansiedade acima descrita, mas não, reforça-a. Contudo, dizia eu, tenho aqui em papel, alguns escritos, prefiro rascunhos. Uns rascunhos então, e tentarei ir teclando, dando-lhes forma de escrita, ao correr da bolha e depois se verá o destino a dar-lhes.


# - 1 – SPM 4758

Entre os documentos que procurava, apareceu, já velhota, a capa de plástico e cartão onde guardava blocos, envelopes, selos e demais artefactos para a correspondência deste velho militar.

No canto inferior da contracapa, uma pequena bolsa plástica com um papel dentro – SPM 4758 – (Serviço Postal Militar e o número). Francamente não me lembrava do número. Procurei avidamente por um qualquer aerograma esquecido. Nada. Folhas para escrita, envelopes para correio aéreo com cores de outro País, selos e papéis velhos.
Afaguei lentamente a velha capa e recordei, tantos anos passados, as cartas que ela guardou, recebidas ou escritas à espera de envio. Se tu comigo falasses o que me dirias, velha capa?

Só recordei esses velhos tempos, essas terras por onde andamos e a Guiné evidentemente, as pessoas para quem mais escrevia e que me escreviam. Recebia mais do que enviava. Que tinha eu para dizer? Pouco. Admirava-me muito ao ver certos camaradas a escreverem durante muito tempo. Questionava-me: - que dirão eles?

Ou então o alvoroço, o desassossego provocado pela vinda dos sacos com correio. Tudo parava, esperava e desesperava. Feita a triagem aí estava a distribuição. Depois o silêncio, um silêncio de morte a prolongar-se por muito tempo.
Geralmente eu, se tinha correio, esperava, observava e não abria logo. Havia um Furriel que, depois de ler a correspondência dele olhava para a minha e dizia-me:

- Já viu o seu correio? Já vi respondia-lhe. Geralmente resmungava entre dentes e saía em protesto.

Ainda hoje penso, não sei se tenho esse direito, que o correio, a correspondência era óptima para os militares mas tinha um senão. Fazia-os voar, a mim também, para milhares de quilómetros dali. O pior é que a maioria ficava demasiado tempo por lá. Se houvesse uma “operação” no dia seguinte ou no outro, alguns ainda por lá andavam.

Hoje afagando a capa da correspondência, bato-lhe levemente e pergunto-lhe: - Diz lá tu, velha capa que tanto viste, tenho razão?
Nada me diz. Se falasse talvez dissesse: eras um desumanizado e com pensamento de merdas.

Não, talvez não. Mesmo agora, aqui e agora, não sei. O que sei, isso sim, é que a guerra – a suprema bestialidade – não se compadece com desatenções e descuidos. Só assim se sobrevive principalmente em grupo.

Que escreveriam os escribas dos abrigos?
Pensavam certamente de forma diversa da minha.
Dou-lhes razão. Agora claro, já nada recebo ou escrevo do SPM 4758!
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Nota de CV:

(*) Vd. poste primeiro poste da série de 10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1353: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (1): O bababaga e o papa-figos

domingo, 10 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1353: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (1): O bababaga e o papa-figos

AO CORRER DA BOLHA - I

O Bagabaga e o Papa-figos

por Torcato Mendonça

Vi a foto – linda – do bagabaga (1). Recordei-os, espalhados por vários lados e sendo mesmo motivo de algumas estórias.

Com saudade, recordo uma. Eu conto:

O João Figueiras, 1º Cabo Condutor, algarvio de Faro, era um rapaz alegre e brincalhão. Havia, entre nós, uma natural empatia e cumplicidade por motivos vários. Coisas de homens do Sul e que ficam no vento ou vão com as aves… Dois breves episódios com ele:

1º episódio

Estava em Fá (1) e um dia fui chamado a Bambadinca. Viagem curta, rápida, sem perigos e fizemo-la de jipe. O João a conduzir, eu (à cautela devidamente armado) e um militar da mecânica para trazer baterias.

Assuntos rapidamente tratados, regressámos. Talvez, um quilómetro depois de Bambadinca disse ao João:
- A estrada é asfaltada, deixa-me conduzir.

Troca de lugar e lá vamos nós. Devagar dizia, de quando em vez o João. Abrandava um pouco e lá íamos nós.
- Olhe o cruzamento… o cruzamento!... - Só que tarde demais. Fui a direito capim fora, fintei bagabagas, tirei os pés dos pedais, agarrei forte o volante... mas zás, bati num tronco escondido no capim.
- Ai, ai!!! - gritava o João. Mas estávamos todos bem. Só que jipe tinha o pára-choques torcido.

Passou ele a conduzir e pouco depois estávamos em Fá. Um azar nunca vem só! Pouco depois da entrada, aí estava o 1º Sargento. Olhou, apontou o estrago e sorriu…
- Bateste!
- Não foi ele, fui eu. - Fez-se vermelho, inchou o peito gordo de ar e conteve a raiva. Tivemos sempre um contido ódio de estimação, desde Évora e mantivemo-la até fim da comissão.
Sendo assim abateu-se o pára-choques e siga a dança…

2º episódio

O João pediu-me, várias vezes, para ir comigo no mato. Numa daquelas idas simples... Sabe-se lá o que é simples. Eu dizia-lhe:
- Ó João isso não é para ti. Se te aleijas está tudo tramado e lá fica Faro sem um condutor de táxi.

Tanto insistiu, o bom do João, que um dia foi connosco.
- Vais sempre ao pé de mim e do Serra.

Íamos montar uma emboscada. Caminhamos, volteamos e, já com a noite a chegar paramos. Emboscada montada, silêncio total…toques nos rádios previamente combinados e pedrinhas atiradas, de tempos a tempos, para despertar algum dorminhoco. O João mexia-se, queria falar, soprava…para um algarvio estar tanto tempo calado é difícil. Tinha fome, sede…
- Então João, o colchão É duro…? Fumar…?

De repente o aviso. Aproxima-se qualquer coisa… Breve preparação… gestos treinados…à espera. Novo aviso: são bichos. Espera… É um casal de macacos-cães que berram desalmadamente. Ri a malta e descomprime. Fala o João:
- Mon dé, qué iste débe, nem cem cães?
- Cala, cala…quieto.

Com a primeira claridade da madrugada, redobram as cautelas. Só que o João olhou para o alto de um bagabaga, ali junto de nós, e exclamou:
- Olha um papa-figues.
- Cala-te, porra, aqui não há figos quanto mais papa-figos, não estragues isto.

Breve distracção e sinto um toque no ombro
– Olhe o gajo! … - E lá ia trepando o bagabaga…
- Ai o caraças… - Mas a malta olhava e apostava que ele apanhava o pássaro… Mais um pouco… um olho na picada, outro no João… ele estica, por fim a mão e quase apanha o pássaro que, certamente aflito, grasna e foge. Desequilibra-se o João, berra que nem capado e estatela-se no chão. Correm em seu socorro e com o barulho termina a emboscada.

O João estava triste e abanava a cabeça.

No futuro, quando passava pelo João às vezes dizia-lhe:
- Mon dé, queres um papa-figos? - Ou, se avistava um bagabaga e ele estava perto, bastava dizer o nome dele e olhar na direcção do formigueiro…

A 19 de Setembro de 1968, o meu camarada João Figueiras foi ferido gravemente, na célebre emboscada à fonte de Mansambo (3). Dizem que era comandada por um internacionalista cubano…!

Faleceu a 25 desse mês no Hospital Militar de Bissau (4).

E ainda dizem…

__________

Notas de L.G.:

(1) A CART 2339 (1968/69, a que pertencia o Alf Mil Torcato Mendonça, esteve originalmente em Fá (Mandinga), a nordeste de Bambadinca, antes de passar a undidade de quadrícula de Mansambo.

(2) Vd. post de 7 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1348: Concurso O Melhor Bagabaga (2): Bissau (David Guimarães)

(3) Sobre a fonte de Mansambo e as suas tragédias, vd. posts de:

5 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1248: Monteiro: apanhado à unha na fonte de Mansambo em 1968, retido pelo IN em Conacri, libertado em 1970 (Torcato Mendonça)

2 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXV: Do Porto a Bissau (12): A fonte de Mansambo (Albano Costa)

14 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCVIII: A emboscada na fonte de Mansambo (19 de Setembro de 1968) (Carlos Marques dos Santos)

30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339 (Luís Graça / Carlos Marques dos Santos)

(4) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DIX: As baixas da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) (Carlos Marques dos Santos).