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terça-feira, 17 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24765: Agenda cultural (840): Síntese da minha comunicação destinada à conferência "Comemorar o Cinquentenário do 25 de Abril", realizada nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2023, iniciativa da Câmara Municipal da Torre de Moncorvo (Mário Beja Santos)


A juventude moncorvense compareceu em força num dos painéis
Presentes: coronel Vasco Lourenço, general Alípio Tomé Pinto e o presidente da edilidade, Nuno Rodrigues Gonçalves. Sentado, e diligentemente a escrever, o nosso confrade Paulo Salgado, moderou a sessão António Lopes, oficial do Exército aposentado

Imagens cedidas pela Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, a quem agradecemos


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Do programa da conferência não falo, veio publicado no blogue. O que me foi pedido prendia-se com a análise da literatura da guerra colonial, mau conhecedor das literaturas referentes aos teatros angolano e moçambicano, fui-me reportando ao que conheço da realidade da literatura guineense.

Como estas comunicações não dão para divagar, há que encontrar um ritmo que possa cativar um público transversal, por isso achei por bem falar da abrangência da literatura e suas manifestações; enfatizar a variedade topográfica que gerou singularidades quanto à Guiné, Angola e Moçambique, se bem que, haja um enquadramento que vai do embarque ao desembarque e que toca a todos, e mesmo nesse itinerário um relato de alguém que viveu em destacamento naturalmente que se distingue de quem foi fuzileiro ou paraquedista; procuro dar ênfase à questão do meio, como ele é preponderante na inquietação de um patrulhamento ou no fascínio de um esplendoroso palmar que surge inopinadamente; e há a questão do tempo da comissão, um relato de Álvaro Guerra, que combateu no início da luta armada distingue-se da história de um batalhão como o BCAV 2867, que combateu na região de Tite nos anos de 1969 e 1970, e que coteja os factos por ele percecionados com a documentação do PAIGC depositada na Fundação Mário Soares. 

E confesso que me desvelou o acolhimento de Paulo Salgado que me levou a visitar zonas extraordinárias do Baixo Sabor, deu-me matéria para falar de itinerâncias na região moncorvense.

Um abraço do
Mário


Síntese da minha comunicação destinada à conferência Comemorar o Cinquentenário do 25 de Abril, realizada nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2023, iniciativa da Câmara Municipal da Torre de Moncorvo

Uma guerra colonial que gerou investigação e largas memórias de diferente ficção

Mário Beja Santos

1. Era inevitável: uma guerra vivida em três frentes, de 1961 a 1975, iria implicar estudos historiográficos, socioeconómicos, abordagens militares, diferentes domínios de investigação, nomeadamente no campo universitário, dando origem a uma vasta multiplicidade de teses e obras destinadas a um vasto mercado, desde o estritamente militar ao do grande público. 

Por natureza, e mercê do olhar ideológico, será também motivo de contínuos trabalhos, recorde-se que há omissões graves no campo da investigação que importa colmatar: por exemplo, não há ainda nenhum estudo aprofundado sobre os quatro anos (1964-1968) da governação de Arnaldo Schulz;

2. Mas nem só da investigação vive o homem: há um rol infindável de manifestações literárias: conto, novela, romance, poesia, literatura memorial, reportagem, propaganda para captar populações ou a favor da política do Estado Novo, justificando a gradual intervenção militar, mesmo quando esse regime apresentava tal intervenção como “ações de polícia”;

3. Como é natural, dada a variedade topográfica das três frentes, gerou-se uma literatura com particularidades/especificidades. Há, contudo, questões e conceitos que se podem apresentar como padronizados: 
  • as despedidas aquando do embarque; 
  • a viagem tormentosa, com as praças metidas em porão; 
  • o estado de nervosismo e a expetativa do que se vai encontrar pela frente; 
  • a chegada, o embate com o clima; 
  • a deslocação para um lugar ainda desconhecido; 
  • a adaptação ao meio, por vezes uma intensa participação em obras para melhorar o nível do conforto; 
  • a tensão nos patrulhamentos, procurar ver o que se esconde no capim; 
  • o sobressalto da mina antipessoal e mina anticarro; 
  • os primeiros contactos com a guerrilha; 
  • o comer mal, a vigilância noturna, as flagelações, etc., etc.. 

Não são situações padronizadas, são quadros de referência do itinerário da comissão, obviamente com cambiantes, é bem provável que um paraquedista, um fuzileiro, um comando, estejam dominados por outras referências, as operações têm um peso dominante na literatura que eles elaboram;

4. As particularidades decorrem do meio, como é óbvio: 
  • o território da Guiné depende das marés altas e baixas (o território tem uma superfície de 36.125 km2 numas alturas, noutras 28.000 km2); 
  • é território sulcado por rias e braços de mar, tem de facto só dois rios, o Geba e o Corubal;
  •  há o tarrafo, que pode ser um inimigo natural implacável, no mínimo intimida, ande-se por terra ou por água; 
  • há as florestas-galeria, por vezes caminha-se de gatas, surgem inesperados contratempos, podem ser as abelhas, um porco do mato que se atravessa à frente da patrulha, e que provoca pânico; 
  • há a estação das chuvas, que nos faz adoecer, que aumenta os casos de malária…
  • como é evidente, há a ligação entre o militar e as populações, a solicitação do médico ou do enfermeiro ou do maqueiro, angariar professor para a criançada ou para os soldados iletrados; fica-se aterrado quando se vê um leproso ou um ser humano com elefantíase...

 Tudo isto é matéria que aparece na correspondência do militar para a família e amigos e entra nas obras literárias, claro está;

5. Tal como os estudos historiográficos, a propaganda apologética, qualquer obra de ficção tem de ser dimensionada pelo tempo em que foi escrita e publicada. Da análise que faço à literatura da guerra colonial da Guiné, consigo distinguir as seguintes fases:
  • as obras publicadas até 1974, nelas prepondera o heroísmo e a exaltação das qualidades do soldado português, há situações específicas como um diário que foi publicado no Jornal da Bairrada, em pleno Estado Novo, e quando o autor, também durante esse regime deu corpo a um livro, este foi apreendido pela censura (Tarrafo, de Armor Pires Mota); 
  • há literatura encriptada, é o caso das obras de Álvaro Guerra; com o 25 de Abril, o azimute muda de direção, crescem as críticas à guerra, há mesmo assassinatos de caráter, e nesta literatura tantas vezes contundente surgem obras que hoje merecem atenção nas universidades, é o caso do romance Lugar de Massacre, de José Martins Garcia; 
  • tenho para mim que é nas décadas de 1980 e 1990, quando o antigo combatente passa a ter mais disponibilidade e serenidade face aos acontecimentos vividos, que vão surgir obras de inegável valor no campo romanesco; 
  • é na viragem do século que faz aparição a literatura memorial, hoje a vanguarda desta ficção, é um amplo leque que vai da poesia popular, passando pelos diários, recordações fragmentadas, singelas histórias de unidades militares, e muito mais.

6. Tudo conjugado, temos o campo da investigação, o ensaio antológico, a análise política; e, na sequência diacrónica a literatura da guerra colonial tem de ser apreciada no tempo em que foi escrita e no território em que se combateu. É de uso indispensável, doravante, para ser compatibilizada com o que dizem os factos históricos, pois há imensos relatos que podem servir de contraponto ou validação de documentos: dou o exemplo dos depoimentos de antigos combatentes do BCAV 2867, que combateu na região de Tite (sul da Guiné) nos anos de 1969 a 1970, e que aparecem ao lado de documentação do PAIGC depositada na Fundação Mário Soares.

Poderá dizer-se que na sua generalidade esta literatura não prima pela grande qualidade, mas há um acervo de obras (e noutras capítulos ou parágrafos) que farão obrigatoriamente parte do que melhor se tem escrito na nossa contemporaneidade.

É a análise destes pontos que pretendo fazer e debater neste auditório. 

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21134: Tabanca Grande (496): Gonçalo Inocentes, ex-fur mil, CCAÇ 423 e CCAV 488 / BCAV 490: de rendição individual (1964/65), natural de Angola, reformado da TAP, escritor... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 810


Guiné > Bissau > Brá > c. 1964/65 > o fur mil Gonçalo Inocentes,  angolano, de rendição individual, tendo passado pela CCAÇ 423 e pela CCAV 488, entre 1964 e 1965

Fotos (e legendas): © Gonçalo Inocentes  (20w0) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem Gonçalo Inocentes, que passa a ser o nosso grã-tabanqueiro nº 810

Data: terça, 23/06/2020, 14:47



Luís, encantado com a recepção (*).

Fui mobilizado em rendição individual em Abril de 64 como furriel. Fui direitinho da EPC [, Escola Prática de Cavalaria] em Santarém para a CCAÇ 423 em S. João.

Como eles já tinham um ano de comissão,  eu fiquei e fui a seguir colocado na CCav 488 [Bissau e Jumbembem, 1963/65]. Quando eles cumpriram o tempo, eu já tinha mais de 16 meses,  pelo que  acabei por regressar com eles sem ter cumprido os dois anos. Tive sorte.

Regressei a Angola, onde nasci [, em 1940], para exercer a profissão de Regente Agrícola.

Quatro  anos depois fiz a agulha e passei-me para a aviação. O meu primeiro trabalho foi voar para os quarteis do norte para fazer reabastecimentos. Acabei na linha aérea (TAAG) e, com a descolonização,  acabei na TAP onde permaneci até ser apanhado por um enfarte cardíaco o que me levou para a reforma.

Aí comecei a escrever, editando a história da Escola Agrícola de Santarém. Depois a história da Sociedade Agrícola da Cassequel, onde trabalhei como técnico [, e onde também trabalhou o Amílcar Cabral, em 1956, como engenheiro Agrónomo].

Depois editei a história de um naufrágio, em 1724, na ilha de Porto Santo, de um galeão holandês. 

Editei também um livro de arte e poesia em coautoria com uma artista, bem como um de poesia escrito por um tio falecido. Em espera e já escritos tenho a minha história na aviação, a influência das mulheres no meu percurso de vida, uma viagem desde o mar do Norte até Vilamoura em veleiro de 10 m, o restauro de um veleiro clássico. 

Assim, meio resumido,  aqui vai o meu percurso.

Como página do meu livro da Guiné, atendendo ao período que estamos agora a passar, envio um bem curioso, sem qualquer tiro.

Quanto a livros podem ser vistos alguns no Google em Gonçalo Inocentes (Matheos).

Como fotos segue uma da Guiné tirada no quartel de Brá e outra actual.
É bom ficar abrigado na grande tabanca.

Outro alfabravo
Gonçalo


2. Comentário do editor LG:

Camarada Gonçalo, depois de um primeiro poste (*), e da manifestação da tua vontade em ficar "abrigado" sob o nosso poilão (simbólico, as fraterno, mágico, protetor...), cabe-me completar a tua apresentação à Tabanca Grande, conforme mail que já te enviei ontem,

Passamos a ser, contigo, 810, os camaradas e amigos da Guiné... 10% infelizmente já não estão, fisicamente, entre, são aqueles bravos que já partiram para a última viagem...

Camaradas são os de armas, amigos são familiares de ex-combatentes (viúvas, filhos, irmãos), e alguns guineenses ou gente especialmente interessada pela Guiné e pela guerra de 1961/74 (investigadores, etc.). 

Temos gente das 3 armas, e da grande maioria das unidades que passaram pelo CTIG. Partilhamos memórias (e afectos). Temos algumas regras, simples e consensuais, que é pressuposto aceitares tacitamente

Faço a tua apresentação, com os elementos que me mandaste, incluindo o pequeno excerto do teu livro ), que reproduzo abaixo).

Vai dando notícias e manda mais colaboração: se achares oportuno podemos abrir uma série para ti, com pequenas histórias / memórias de 1964/65... Ou outras, que achares por bem, de "outras guerras".

Boa saúde, boas escritas, e que os bons irãs da Tabanca Grande te protejam,
Luís Graça


PS - O alferes miliciano  e escritor Armor Pires Mota, é também da tua da CCAV 488. Natural de Oliveira do Bairro, região da Bairrada, onde nasceu em 1939, honra-nos com a sua presença na Tabanca Grande onde tem quase uma centena de referências, Lembras-te dele?

O alferes Santos Andrade escreveu, em verso, a história do BCAV 490. Podes encontrar no blogue muitos postes com excertos do livrinho, cuja capa se reproduz (, imagem à direita). Lembras-te dele?

Temos apenas meia dúzia de referências à CCAÇ 423... Mais de 3 dezenas à CCAV 488. Vais gostar desta foto, abaixo reproduzida, que eu presumo tenha sido tirada em Jumbembém


Guiné > Região do Pio > Jumbembem > CCAV 488 (Bissau e Jumbembem, 1963/65) > Emblema da CCAV 488, desenhado com "garrafas de cerveja"... Foto do 1º cabo  Augusto Mota,  especialista em material de segurança cripto, hoje a viver  no Brasil,  que, pelas funções no QG, nunca saiu de Bissau (***)... Tinha um amigo em Jumbembém  a quem enviava jornais e revistas.

Foto (e legenda): © Augusto Mota (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Pormenor da capa do Gonçalo Inocentes (Matheos),  "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65" (ModoCromia, no prelo).



Brasão do BCAV 490  (Bissau, Como e Farim, 1963/65)


3. Excerto do livro"O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65"

A Diarreia

por Gonçalo Inocentes (Matheos)

As diarreias,  Senhor!

As diarreias são um desequilíbrio que nos deixa completamente desequilibrados porque é como se estivéssemos a desfazer-nos de dentro para fora.

São péssimas quando aparecem e quando aparecem em certos lugares e ocasiões são simplesmente demolidoras.

Há diarreias singulares e surtos epidémicos.

Agora imagine-se um surto de epidémico de diarreia num grupo de combate, no decorrer de uma acção militar nas matas da Guiné. É surreal.

É surreal de facto. Homens caminhando em duas linhas, afastados como é norma, de arma aperrada prontinha a disparar e no silêncio da mata quando nem os bichos se manifestavam, há uma voz sumida que diz: “é agora!”.

Toda a coluna estaca, joelho no chão e o infeliz

 afasta-se um metro para o lado, despe as calçasrápido porque não há tempo, observa bem não vá haver uma cobra por ali e, descarrega.

Não há papel e muito menos higiénico, mas há folhas de plantas que usadas com cuidado limpam e não deixam lá formigas.

E segue-se outro e outro, mais outro correndo a vez a todos mas diga-se: o inimigo nunca nos apanhou com as calças em baixo.

Vivi isto nas matas de Quinhará e deixámos para o inimigo um rastro diarreico, malcheiroso, desagradável até para os formigueiros. Autênticas minas que quando pisadas não matam, mas desmoralizam pra caramba.

E lembrei-me disto, porquê? De facto, desde a dita Guerra da Guiné que terminámos de forma vil, que a nossa Governação se tem caracterizado por uma diarreia epidémica e crónica. Quando a coisa é boa para o povo, arruína as contas do estado, logo é efémera. Quando ajuda o orçamento é penosa para os mesmos de sempre, logo é perene.

Até dá a sensação de que houve uma praga pregada que, quanto mais corrermos mais nos borramos e quanto mais pararmos, mais nos dói. (p. 49)

____________


(**) Último poste da série > de 21 de junho de  2020 > Guiné 61/74 - P21097: Tabanca Grande (495): Acácio Fernando da Silva Mares, ex-Fur Mil Inf da 1.ª Comp/BCAÇ 4612/72) (Porto Gole, 1972/74), 809.º Grã-Tabanqueiro da nossa tertúlia

(***) Vd. poste de 6 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16452: Tabanca Grande (493): Augusto Mota, grã-tabanqueiro nº 726... Especialista em material de segurança cripto (Quartel General, CTIG, Bissau, 1963/66), gerente comercial da Casa Campião em Bissau, agente do Totobola (SCML), agente e correspondente do "Expresso" e de outros jornais e revistas, livreiro, animador cultural, português da diáspora a viver no Brasil há mais de 40 anos...

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20853: Notas de leitura (1279): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Dirão alguns que esta investigação universitária aborda o demasiado óbvio: havia censura de que um regime totalitário não abria mão, a guerra colonial ainda é uma história para contar. Há que reconhecer o mérito da metodologia utilizada: o que foi concretamente o jornalismo português na divulgação da guerra colonial, como operou a censura, que memórias guardam radialistas e jornalistas que chegaram a pisar o solo nos teatros de operações, qual a atmosfera das redações, que papel desempenhou a autocensura, e muito mais. Há memórias e testemunhos de valor perdurável e estamos em querer que a investigação histórica de futuro não poderá prescindir desta sondagem sobre o jornalismo e os jornalistas, em Portugal e nas colónias.

Um abraço do
Mário


O jornalismo português e a guerra colonial (2)

Beja Santos

Sílvia Torres
“O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016, é um laborioso trabalho de pesquisa e de inquirição a protagonistas diretos na ótica de uma dupla temática: como era feita a cobertura jornalística dos jornalistas portugueses da Metrópole e das províncias ultramarinas envolvidas no conflito, uma investigação que obrigou a identificar o jornalismo português durante o Estado Novo, quais os meios de comunicação portugueses vigentes nas colónias/províncias ultramarinas sobretudo durante a guerra colonial, com se fabricavam as notícias, como agia a censura, sob que prisma, e com base em testemunhos de alguns dos protagonistas diretos este género jornalístico é de estudo indispensável na investigação histórica.

O professor Francisco Rui Cádima aborda o tratamento da guerra colonial na RTP, observa que a ausência da ideia de império nos telejornais da década de 1950, ou mesmo a ausência de uma estratégia deliberada de manipulação das consciências, a informação era tipo oficioso, com pouco uso da imagem.

Iniciada a guerra colonial em Angola, mostram-se imagens do terror praticado, mas insistia-se na tese de tranquilidade e incriminava-se a ingerência estrangeira e os bandidos vindos do exterior. A RTP abriu uma campanha nacional de apoio às vítimas do terrorismo em Angola para recolha de donativos.

Toda a informação televisiva aparecerá altamente condicionada. Manuel Maria Múrias irá desempenhar o papel de agente de legitimação da política salazarista. Haverá uma viragem com a chegada de Ramiro Valadão em 1970. “Esta mudança não foi apenas uma mudança de pessoas, ou de liderança na redação, mas significou também uma importante alteração no quadro do próprio discurso jornalístico televisivo”. O regime não deixou abrir fendas na doutrina oficial de que o Ultramar era matéria fora de discussão.

Vários autores debruçam-se sobre a censura e como esta se constituiu como o elemento dissuasor de qualquer veleidade em abrir discussões sobre o nacionalismo, a existência de atrocidades ou até exploração económica.

A equipa organizada por Sílvia Torres ouviu memórias de jornalistas e intervenientes na guerra colonial, desde Agostinho Azevedo que escrevia no oficioso Voz da Guiné, passando por Armor Pires Mota que publicava crónicas durante a sua comissão militar na Guiné no Jornal da Bairrada, nem a PIDE nem a censura deram por nada, publicou o livro Tarrafo com as mesmíssimas crónicas, foi imediatamente apreendido e houve interrogatórios, depõem igualmente Baptista Bastos, Cesário Borga, Diamantino Monteiro, do Rádio Clube da Huíla, como também David Borges da Rádio Clube da Huíla, o jornalista Fernando Correia que pisou os três teatros de operações e que explica cabalmente todo o processo de crescente desinteresse do próprio regime em dar informações sobre a guerra; o jornalista Fernando Dacosta observa que a guerra foi muito mal contada, nenhum jornalista legou um grande trabalho sobre a guerra colonial e justifica:

“Não podia fazer. Na literatura, hoje, a história já começa a ser contada. Cada vez se escrevem mais livros sobre a guerra colonial. Mas, neste plano, importa destacar um dos primeiros escritores: o jornalista Fernando Assis Pacheco, que escreveu Walt, um livro que situa a guerra colonial na guerra do Vietname para, desta forma, poder falar sobre a guerra colonial e escapar ao corte da censura. É talvez um dos documentos mais importantes sobre a guerra colonial que foi publicado muito antes do 25 de Abril”.

E analisa igualmente a imprensa na metrópole: “A censura era ferocíssima em relação às notícias, filtrava tudo quanto os jornais tentassem publicar e, de uma maneira geral, cortava. Só se publicavam as informações que a própria censura entendia ou que o gabinete militar divulgava”.

Uma figura lendária, o jornalista Fernando Farinha, que acompanhava as tropas no terreno, descreve os seus métodos de trabalho, como é que as suas reportagens chegavam à redação:

  “Fazer chegar os rolos fotográficos e os textos ou notas de texto à redação requeria alguma imaginação. Umas vezes, aproveitava o transporte de feridos, feito por helicóptero, para o Hospital Militar de Luanda, para enviar rolos e notas de texto. Punha o papel dentro do rolo e colava tudo com fita-adesiva às ligaduras ou talas dos feridos. Os próprios feridos ou outros militares informavam depois a redação de que era preciso ir buscar o material ao hospital. Outras vezes, verbalmente, via rádio do Exército para o rádio do avião que sobrevoasse a zona, pedia aos pilotos que transmitissem determinadas informações”.

E discreteia quanto ao modo quanto o conflito passou a ser visto internamente:

“No início, a guerra era vista pelos militares como um dever de patriotismo a cumprir. Era fundamental manter a pátria unida e defender um território que era português, custasse o que custasse. O inimigo era terrorista e tinha de ser abatido. Mais tarde, o pensamento já não era este, sendo a guerra vista como desnecessária. No final, já só se queria um entendimento com os terroristas e o fim da guerra. O inimigo passou a ser mais respeitado, porque as tropas portuguesas perceberam que os guerrilheiros lutavam pela sua terra. O amor à pátria e a portugalidade das colónias foi-se perdendo à medida que a guerra avançava”.

Segue-se a entrevista a alguém que teve atividade humorística na imprensa, Fernando Gonçalves criou o cartoon Zé da Fisga, que aparecia em publicações com sede em Luanda; Francisco Pinto Balsemão, João Palmeiro e Joaquim Letria irão depor sobre o seu papel de jornalistas ou intervenientes nos meios de comunicação social.

Letria fala dos problemas com a censura mas também da autocensura, e conta a experiência amarga que teve na Guiné como repórter de guerra:

“Posso contar que me levaram ao Palácio do Governo por causa de um telegrama, com cerca de 150 palavras, que eu enviei para o Diário de Lisboa por correio. Julgava eu que o telegrama tinha sido enviado, quando aparece um jipe, conduzido por um funcionário para me levar ao palácio. E aí fui muito maltratado por General Arnaldo Schulz e pelo representante do SNI. Porquê? Porque eu tinha tentado enviar para Lisboa informação classificada que prejudicava as nossas tropas. Eu escrevi no telegrama que tinha havido um ataque do PAIGC que tinha matado nove soldados portugueses e dizia aonde é que tinha sido o ataque, quantos soldados é que tínhamos na Guiné e quando é que a guerra tinha começado. Fui repreendido por ter contado a verdade. Tinha cometido um erro gravíssimo e se o voltasse a fazer mandavam-me para Lisboa”[1].

Para Letria a guerra colonial é uma história por contar, ainda há muito para mostrar. E recorda que ainda não foi ouvida gente que gravava as mensagens de Natal, esses operadores da RTP ainda não testemunharam.

(Continua)
____________

Notas do editor:

[1] - A propósito destas mortes anunciadas pelo jornalista Joaquim Letria, consultar o Poste de 7 de Dezembro de 2017 > Guiné 63/74 - P15455: Notas de leitura (783): “Sem Papas na Língua”, Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014 (Mário Beja Santos).

Último poste da série de 6 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20820: Notas de leitura (1278): “O jornalismo português e a guerra colonial”, com organização de Sílvia Torres, Guerra e Paz Editores, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20691: Notas de leitura (1268): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (47) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Teima-se em tentar eliminar o palco em que se desenvolveu aquele período da guerra, havia mil militares antes de se desencadearem as hostilidades, o número vai crescendo, nesta fase começa a aproximar-se dos 25 mil. Estão lá os três ramos das Forças Armadas, a Armada percorre os rios, tem na Guiné o seu papel crucial, muitíssimo superior ao que viveu em Angola e Moçambique. Indubitavelmente, 1964 é um ano chave pelo alastramento da guerra, pelas populações em fuga, pela compreensível dificuldade em definir uma estratégia com defesa das populações. As forças portuguesas irão vezes sem conta ao Oio, como ao Cantanhez e a outras paragens de luta renhida. Os resultados serão sempre minguados pelo facto de ali não se permanecer mais tempo daquele que dura a operação. Só muito mais tarde, com a operação "Grande Empresa", em 1972, é que se procurará a reocupação do Sul, como se sabe com resultados efémeros pois em 1973 um vendaval de fogo irá comprometer o esforço quase titânico do que foi a criação desses novos estacionamentos.
De seguida, passamos para os documentos da estratégia portuguesa, tal como eles constam na "Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África", no teatro de operações da Guiné.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (47)

Beja Santos

“Deixando estas regiões
para Brá se abalou.
A Companhia do azar
em Farim continuou.

Houve boatos daqui e de além
já se sabe o que é a rapaziada
todos queriam abalar da porrada
porque na guerra ninguém estava bem.
Em Farim, Cuntima e Jumbembem
houve muitas aflições
mas deixando as operações
e começando pela 3.ª Companhia
vai o Batalhão de Cavalaria
deixando estas regiões.

Na 488 se aguentaram
até chegar a sua vez
e no dia 13 deste mês
aquela povoação deixaram.
Mulheres e crianças choraram
e tudo à tropa se abraçou.
Em Cuntima o mesmo se passou
quando chegámos à hora de abalar
e deixando tudo a gritar
para Brá se abalou.

Alguns homens do Comando
regressaram de avião
e outros vieram numa embarcação
pelo Geba navegando.
Ao cais de Bissau chegando
em Brá vamos aquartelar.
É lá que vamos aguardar
o dia que mais se ambicionou
mas por enquanto ainda não chegou
a Companhia do azar.

A 487 se exibiu
com mais uma mina que encontrou
o furriel Cravo alevantou
após o Joel que a viu.
Noutra vez que se saiu
mais uma arma se apanhou.
Ao fim da comissão se chegou
sempre arriscados à morte
e a Companhia da pouca sorte
em Farim continuou”.

********************

Aproxima-se o fim da comissão do BCAV 490, procure-se, em nome da clareza, entreabrir as portadas deste cenário em que decorreram as suas atividades. Há um antes, aquele despertar nacionalista que transita do fim da década de 1950, quando Amílcar Cabral parte para o exílio, ficando ali perto, em Conacri, outros, na órbita de Rafael Barbosa, sublevam no interior da Guiné Portuguesa. Organizou-se o partido e organizou-se a guerrilha, formaram-se guerrilheiros e com o primeiro armamento desencadeou-se a luta armada, surpreendendo as forças portuguesas que esperavam acometidas nas regiões fronteiriças, acreditava-se que se iria reproduzir o que se passara em Angola a papel químico. O BCAV 490, é este o modesto entendimento do companheiro do bardo, vai viver o período crucial da expansão do PAIGC por zonas de onde, ao longo de toda a guerra, só sairá para regressar: nas matas do Sul, em toda a região do Morés, no Corubal. O contingente português vai crescendo, de mil militares chegará rapidamente a dez mil, depois a vinte mil, e crescerá ainda mais. O PAIGC dinamitou a economia, no final de 1964 já pouco restará das serrações e das atividades comerciais da CUF e da Sociedade Comercial Ultramarina. O PAIGC não intimida somente, procura mobilizar as populações rurais, o líder fundador é muitíssimo claro, estas populações são fundamentais para alojar e até para alimentar os contingentes da guerrilha. Há dados seguros sobre este crescimento. Voltamos hoje a referenciar “Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional, 1950-1974, o caso da Guiné-Bissau”, o essencial da tese de doutoramento de Leopoldo Amado, IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, 2011. A título complementar, passaremos para a “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, os livros dedicados à Guiné.

Leopoldo Amado recorda que a partir de março de 1963 todo o Sul está em sobressalto: destruição de pontões nas áreas de Tite e de Buba, flagelações na península de Empada com corte de acessos à povoação e aos locais de embarque para Bolama, incêndio do barco a motor da carreira Bolama-Ponta Bambaiã, ataques às tabancas, flagelações de Cufar e Fulacunda. E nos meses seguintes chega-se a Cacine, a Gadamael, a Cacoca e Sangonhá. Atravessa-se o Corubal e ataca-se o Xime; e a guerrilha escolhe com sucesso o Oio, o quadrilátero Mansoa-Bissorã-Olossato-Mansabá é uma zona de florestas densas e quase sem estradas, melhor refúgio não podia haver. No final do primeiro semestre de 1963 avança-se para Bissorã e Barro, para Binta e Farim, montam-se emboscadas entre Mansoa e Bissorã, destroem-se pontões na estrada Olossato-Mansabá. A destruição económica parece imparável, o principal eixo rodoviário da região, a estrada Mansoa-Mansabá-Bafatá vai ficando inutilizável. No final do ano, o armamento soviético começa a chegar às carradas, as atividades de guerrilha consolidam-se no canal do Geba, há bases que permitem atuar entre Porto Gole, Enxalé, Xime e ao Norte de Bambadinca, o PAIGC instala-se numa capilaridade que vai de todas as bases do Morés até Sambuiá, Sarauol, Belel, alastra a sua atuação em novas direções, para Bula e Binar, procura atingir, ainda que com pouco sucesso, a região dos Manjacos.

Ver-se-á adiante que Louro de Sousa e Schulz, à luz dos meios, da incapacidade de prever a estratégia do PAIGC, foram atamancando, procurou-se expulsar os grupos do PAIGC no Sul, no Norte, impedir os abastecimentos vindos da República da Guiné e do Senegal, só que os efetivos do PAIGC alastravam-se, chegava novo armamento. Em maio de 1964 ocorre a primeira colocação de minas, chegam os morteiros e até as minas de anticarro armadilhadas, o Xime é atacado à bazuca, passa a ser corrente flagelar os aquartelamentos e as tabancas em autodefesa com morteiros e metralhadoras, mais tarde virão os canhões sem recuo. A Guiné, também nos vem recordar Leopoldo Amado, foi o mais importante e o único teatro de operações onde a ação da Armada Portuguesa foi vital, não só em termos estratégicos como táticos.
E recorre a uma citação de um trabalho de António José Telo:
“À volta de 80% de toda a carga ou pessoal movimentado seguia por via marítima ou fluvial, só cerca de 18% seguia por estrada e 2% por via aérea. No final da guerra, quando o transporte por terra era mais difícil, as vias fluviais e marítimas asseguravam cerca de 85% de toda a carga e passageiros. Esse transporte era igualmente vital para o PAIGC, pelo que a acção de interdição e fiscalização da armada era tão importante como a de transporte. Na realidade, podemos dizer que uma das poucas formas de qualquer dos lados vencer militarmente a guerra na Guiné seria ali impedir o uso dos cursos de água com fins logísticos e de transporte pelo outro”.

Louro de Sousa apela aos recursos disponíveis, Arnaldo Schulz receberá muitíssimo mais, e dos três ramos das Forças Armadas, apercebe-se que tem poucos contingentes bem preparados para a natureza daquela guerra, resolve o dilema do número crescente da população sobre duplo controlo recorrendo à disseminação de aquartelamentos, à preparação de milícias e a uma política de tabancas em autodefesa, sob vigilância das forças posicionadas em destacamento, virão forças especiais, desde fuzileiros a paraquedistas, os bombardeamentos atordoarão todas essas matas onde se acantonam os guerrilheiros e as populações suas apoiantes. É fácil acusar Schulz de que não tinha uma ideia de manobra bem definida, veja-se o contexto em que ele chega à Guiné em 1964, há já dois importantes santuários, o Cantanhez e o Oio-Morés. O que se julgava importante no início da guerra, caso da ilha do Como, esvazia-se com as novas preocupações do avanço do PAIGC em direção ao Boé, o corredor de Guileje passa a ter um papel crucial no abastecimento, as forças portuguesas tudo tentarão para expulsar essas linhas de abastecimento, sem êxito algum. Schulz recorrerá à propaganda, às emissões radiofónicas, ao Boletim Informativo das Forças Armadas, uma comunicação com diferentes direções, incluindo a opinião pública em Portugal. Às ações da guerrilha, procurava-se reagir, ensaiava-se um dispositivo militar para reocupar a zona fronteiriça desde a Aldeia Formosa a Cacine e Campeane. O dispositivo de informações do Exército Português era muito elementar, o uso de informadores dava os seus primeiros passos. Daí a surpresa de certos ataques, como aqueles que começaram a surgir nas regiões fronteiriças, no Norte e no Leste. No final de 1964, a luta armada é cada vez mais persistente à volta de Bula e de Teixeira Pinto, de Bissorã e de Mansabá. Nessa altura, Guileje é já um local que o PAIGC pretende reduzir a pó.

E Leopoldo Amado escreve:
“Em finais de Novembro de 1964, o PAIGC atacou por três vezes, e violentamente, o aquartelamento de Guileje, sendo o ataque de 29 de grande envergadura. Iniciado às quatro da manhã, durou cerca de duas horas, período durante o qual os guerrilheiros utilizaram todas as armas novas que possuíam. No dia seguinte, deu-se novo ataque, que provocou novas baixas, demonstrando não somente que o PAIGC teria decidido ocupar em força a povoação de Guileje por ser estratégica, mas também para fazer uma demonstração de força, usando os novos armamentos com que a partir dessa altura já contava: morteiros, metralhadoras ligeiras, espingardas automáticas, minas anticarro de fabrico russo”.

Todo o restante ano de 1964 vai revelando um gradual poder combativo do PAIGC. Para além dos acometimentos sistemáticos em Madina do Boé e Guileje, a maior parte dos destacamentos do Sul são flagelados e prosseguiu a destruição de pontões, dificultando a mobilidade das forças portuguesas. De toda esta evolução, Arnaldo Schulz dará conta aos seus superiores, vai-se instituindo a contrainformação militar, melhorou a ação psicossocial, são aprovados planos de desenvolvimento, como novos alojamentos em bairros de Bissau. E entrarão em cena helicópteros com helicanhões. Trata-se de uma realidade que já não será acompanhada pelo BCAV 490. Como é óbvio, a tese de doutoramento de Leopoldo Amado prossegue até 1974, o que significa que está fora do contexto que analisamos.

O companheiro do bardo socorre-se de belas páginas da obra-prima de Armor Pires Mota, “Estranha Noiva de Guerra”, Âncora Editora, 2010, para se dar o ambiente do que era uma flagelação clássica, nela ainda não são referidos os foguetões e muito menos a aproximação de viaturas, como acontecerá anos mais tarde:
“Um tiro solitário saltitou, estalando fino. Já não tive tempo para disparar outro e outro. As sentinelas abriram, de imediato, fogo cerrado para o mato. O ataque começava. Só tive tempo de enfiar a G3 em bandoleira e as cartucheiras. Correndo, de torso curvado, quase arrasando o chão, fui acaçapar-me em abrigo. A fuzilaria feroz e cerrada vinha de todos os lados, dos morros de bagabaga, de árvores bem copadas, da pista de aterragem, até da tabanca, os morteiros mais ao largo. Via-se que estavam perto. As armas espirravam estrondos, faiscavam pirilampos de fogo devastador, mesmo à boca do mato. As tarimbas rangeram. Em menos de um ámen, todos enfiaram o capacete, as cartucheiras. O ânimo também. Em menos de um ámen, empurraram as armas para o quadril, arrastaram cunhetes de bala e granadas de mão. Alguns, nem sequer tiveram tempo de pensar que iam de berimbau ao léu ou mesmo de cuecas. Tanto fazia morrer nu como vestido (…). Um vulto começou a correr aos ziguezagues na direcção onde eu estava. Os olhos faiscavam. Firmei a arma bem no ombro. Suspendi ainda a respiração. Como se fosse o meu último minuto de vida. Premi o gatilho e abati-o como uma rajada seca de seis tiros. O rapaz dançou no ar, como um boneco de palha. Por outros locais, os gajos tentavam forçar a barreira, vomitando fogo e apostando em fazer das suas (…). O ataque tinha duas partes. Assim, ao recomeçar o tiroteio, verificou-se logo uma intenção mais violenta por parte do IN, a que correspondeu a tropa com fogo nutrido. O pior é que o IN se acobertava e protegia com as casas de tabique da aldeia à nossa guarda e o capitão recusava-se a bater a aldeia com os morteiros. Algumas granadas dos morteiros de calibre 82mm do IN começavam a espirrar com mais força sobre a caserna e a escola. A escola era a messe e a casa de habitação do capitão”.

Em todas as circunstâncias, o contraditório e o complementar são obrigatórios para melhor procurar entender como se ia desencadeando aquela guerra, como reagia a estratégia portuguesa a toda esta carga avassaladora da guerrilha. Por isso se seguirão referências ao que se escreve na “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”. E fica-se rapidamente a perceber que há lacunas fundamentais a preencher para que todas estas peças do caleidoscópio melhor se agreguem para dar uma explicável figura.

(continua)
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Notas de leitura

Poste anterior de 21 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20672: Notas de leitura (1266): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (46) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20681: Notas de leitura (1267): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20619: Notas de leitura (1261): Longas Horas do Tempo Africano, por Manuel Barão da Cunha; 10.ª edição, revista e reestruturada, Oeiras Valley, Município de Oeiras, 2019 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Manuel Barão da Cunha, um caso sério de reincidência na literatura da guerra colonial, um apóstolo da sua difusão organizando tertúlias entre Lisboa e Oeiras, desta vez convoca um elevado número de testemunhos que referenciam o homem e a sua obra.
Tendo começado a escrever ainda no Estado Novo, sobressaiu pelo cuidado posto na exaltação dos seus soldados, na satisfação expressa pela obra feita. Vê-se claramente que tem o seu coração repartido por Angola e pela Guiné. E é admirável este seu trabalho alquímico de mexer e remexer nas coisas do passado, o chamamento que faz de vivos e mortos que pertencem à sua história, participantes de toda a sua vida militar e até civil.
Deve-se a Manuel Barão da Cunha uma enorme gratidão coletiva por ser um porta-bandeira sem rival no dever de memória, trazendo-nos à presença toda e qualquer pessoa que calcorreou o império ou nele combateu. É uma dívida de peso, impagável. Mas ele também não se importa.

Um abraço do
Mário


Longas horas do tempo africano, por Manuel Barão da Cunha

Mário Beja Santos

Num estudo recente sobre as cartas de guerra, uma investigação de Joana Pontes intitulada Sinais de Vida, Tinta-da-China, 2019, esta conhecida investigadora e jornalista observa que a generalidade da correspondência estudada confina-se a um tempo demarcado, o da comissão militar, aos lugares que o combatente percorreu ou onde vive, não há um entendimento do fenómeno da guerra no seu todo, as motivações de fundo, acrescendo que com o passar dos anos, um pouco como o passar dos meses da comissão militar, é percetível o desalento e a vontade de regressar. Serve este preâmbulo para abrir caminho a uma outra consideração: toda a literatura da guerra colonial tem que ser ponderada no tempo em que se publicou, conheceu sucessivas etapas. Não é homogénea, o que se escreve sobre a Guiné tem particularidades, não se encontra na literatura de guerra angolana ou moçambicana. Qualquer relato remete-nos para a localização e a natureza do inimigo. Um exemplo mínimo: quem escreve sobre a Guiné inclui, inevitavelmente, rios e rias, lodo, diferenças de maré, humidade excessiva, calcorrear quinze quilómetros nos emaranhados de uma floresta-galeria provocam uma exaustão sem paralelo; quem escreve sobre Angola e Moçambique fala em longas distâncias, viagens de centenas de quilómetros, operações com montes e vales.

O que se vai espelhar na literatura, consoante o palco e a experiência vivida pelo combatente. Ler Armor Pires Mota, Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Álamo Oliveira, Cristóvão de Aguiar, José Brás, Luís Rosa, é perceber como estes homens falam de um tempo, de lugares, de situações distintas, como distintas foram as perceções que eles registaram da guerra que viveram. E o mesmo se pode dizer de escritores como João de Melo ou António Lobo Antunes, em Angola, ou Carlos Vale Ferraz ou António Brito, em Moçambique.

E o fenómeno literário também é irradiante, pois abarca romance e conto, memórias, ensaio, poesia, reportagem, história e diários. Atenda-se que um significativo número de escritores faz uma só “viagem”, memórias ou romance, escreve-se uma vez e não se regressa. Há os reincidentes, caso de Armor Pires Mota e Manuel Barão da Cunha. Curiosamente, ambos escreveram na fase de arranque, sob a forma de epopeia, de gesta, da glorificação da obra do soldado, da exultação da camaradagem e do destemor de gente humilde que apanhou o início das guerras.

Manuel Barão da Cunha 

Manuel Barão da Cunha tem vasta obra, todo começou com um livro memorial, Aquelas Longas Horas, 1968, edição da Mocidade Portuguesa. Combateu em Angola, ali estava em 1961, conheceu ásperos tempos, irá intervir em regiões cruciais, como Nambuangongo, participou na operação Viriato. Estará na Guiné, anos depois, na intervenção direta, fazendo operações em santuários do PAIGC e depois na quadrícula, no Leste, no regulado de Pachana. Em 1972, reciclou o que escrevera, com novos averbamentos, e publicou Tempo Africano. Escreverá posteriormente A Flor e a Guerra, em 1974, na Parceria António Maria Pereira. É um registo distinto, tem pouco de épico ou glorificador, ressalta uma visão amargada, é um homem doente, ferido, seguramente a desiludir-se, se tivermos em conta o que escreveu.

Depois, como um alquimista, passou a torcer, a retorcer e a distorcer as diferentes narrativas de guerra. O essencial das suas memórias tem a ver com a Angola de 1960 a 1962 e a Guiné de 1964 a 1966. Foi um pioneiro desta escrita, faça-se-lhe justiça. Já uma vez escrevi como ele fala dos seus soldados, das obras que deixarão em vários pontos de Angola e da Guiné, segundo um princípio axial: “A obra ficava, o homem partia. A obra ficava para outros homens e o homem partia para outras obras”. Fazendo e refazendo o Tempo Africano foi tratado como farinha espoada, a narrativa passou a compartimentar-se em andamentos, e onde o autor se distanciava de tudo quanto contava, foi-se gerando uma aproximação autobiográfica, com o recurso a um alter-ego, Pedro Cid, que vai dialogando com um jovem, em variadíssimas situações que metem repastos e encontros com outros veteranos de guerra. O jovem, Francisco Adão, pergunta, Pedro Cid responde, ao sabor da cronologia. Tudo começa em Angola, estamos em janeiro de 1960, Pedro é um “dragão”, um jovem alferes que comanda mancebos naturais ou residentes em Angola. E assim chegamos aos acontecimentos de fevereiro de 1961, com os ataques a Luanda e musseques periféricos. Pedro é um observador privilegiado, cabe-lhe ir a Nambuangongo com os seus “dragões”, seguir-se-ão outras dolorosas missões, e mesmo autobiográfico retoma-se a atmosfera de Aquelas longas horas, dando ênfase aos comportamentos militares de exceção. Gente que aparece agora a depor, entre muitíssimos outros depoimentos na obra mais recente de Manuel Barão da Cunha, "Longas Horas do Tempo Africano", 10.ª edição, revista e reestruturada, Oeiras Valley, Município de Oeiras, 2019.

Pedro regressa a Portugal, estará em Lamego nas Operações Especiais. E em 1964, parte para a Guiné, na CCAV 704. No início, faz parte das forças de intervenção, vai ao Sul e depois ao Morés, volta agora a falar nesta operação Tornado que durou cerca de 80 horas. E depois passa para a quadrícula, estará no Leste, fala em Bajocunda e Copá, vive em Amedalai, sede do regulado da Pachana, deixarão obra. Pedro Cid regressará a Angola entre 1969 e 1971.

O seu novo livro recolhe depoimentos de amigos, de companheiros de estrada, de camaradas que o admiram, alguns deles foram seus militares: o escritor João Aguiar, o General Rocha Vieira, o Engenheiro Anacoreta Correia, o Professor Henrique Coutinho Gouveia, entre tantos outros. A edição é ricamente ilustrada com desenhos do pintor Neves e Sousa. Uma autobiografia num livro de consagração do escritor. Fala-se da sua preparação, o Colégio Militar é uma referência. É meticuloso nas suas referências. Quando fala da operação Viriato, anota: “Durante 36 dias e 36 noites e ao longo de 1419 km deparámo-nos com mais de 20 ações de combate, incluindo emboscadas, muitas das quais não foram registadas por terem sido atingidos militares de outras unidades, num total de 3 mortos e 38 feridos; mais de duas centenas de obstáculos, alguns constituídos por 4 e 5 árvores empilhadas ou embondeiros gigantes, fazendas destruídas, incluindo casas e viaturas; abrigos próximos da picada, para facilitar a emboscada".

Livro de uma vida militar, nele acorreu um conclave de diferentes protagonistas de todo este itinerário que depois se prolongou pela vida civil, um trabalho proficiente na Livraria Verney, onde começaram as afamadas tertúlias Fim do Império, que hoje se derramam por diferentes espaços, acolhendo apresentação de obras de múltiplos olhares, tal e tanto é o incansável dever de memória a que Manuel Barão da Cunha se entrega.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20610: Notas de leitura (1260): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (43) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20545: Notas de leitura (1254): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (40) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Era inaceitável não se fazer uma referência, ligeira que fosse, a quem escreveu poesia durante e depois da comissão. É a dimensão literária mais pobre que temos, mas há um ponto intrigante, a meu ver muito pouco explorado no blogue: a poesia popular. Reconheço que não se pode inventariar estes livrinhos que circulam nalgumas reuniões anuais, atribui-se pouca importância para a explicação histórica, é muito pessoal mas, reconheça-se, de grande pendor afetivo, deixo à vossa consideração a hipótese de se procurar tentar fazer um levantamento, não tenho nenhuma receita.
Para se olhar ao espelho com o bardo do BCAV 490 só me ocorre, pela máquina poética, Álamo Oliveira, o poema escolhido parece-me gracioso, um açoriano carregado de saudades da Guiné.
Que eu saiba, Álamo Oliveira não regressou ao tema.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (40)

Beja Santos

“Foi ferido um Furriel
ao pé da enfermaria.
A 489 com coragem
novamente se distinguia.

Como é de calcular,
ainda existe grande bando
e a 18 de Abril o Comando
eles vieram atacar.
Granadas começaram a jogar,
caindo muitas fora do quartel.
O nosso amigo Joel
grande susto apanhou
porque quando uma rebentou
foi ferido um Furriel.

Tudo se levantou
quando na caserna uma caiu
a mala do barbeiro se partiu,
mas ninguém se magoou.
Para as viaturas tudo abalou
onde perigo não havia.
Mas neste momento se ouvia
o Furriel Mortágua aos gemidos,
foi ferido pelos bandidos
ao pé da enfermaria.

Na 487 rebentaram
umas minas há tempos atrasados.
Ficaram alguns colegas atordoados,
mas todos recuperaram.
O Pardal foi dos que ficaram
estendidos na folhagem.
Contra o grupo selvagem
luta-se sem pena nem dó
por isso entrou em Sulucó
a 489 com coragem.

Avançando uns carreiros,
ao local preciso chegaram,
o acampamento cercaram,
desorientando os bandoleiros.
Cá de trás com os morteiros
muito fogo se fazia,
neste momento a Companhia
arrancou com os seus pelotões
e apanhando armas e munições
novamente se distinguia.”

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Enquanto decorrem estas refregas, cuide-se de saber se há livros de poesia dedicados à Guiné, ou com afinidades. Armor Pires Mota chegou a ser galardoado com o prémio Camilo Pessanha pelo seu livro "Baga-Baga". Há, em pequenas edições, outras obras de poesia popular. Um dia recebi de um antigo soldado, António Veríssimo, da CCAÇ 2402, um livro de perfeita rima métrica, detive-me num poema muito singelo, afetuoso, senti-o quase como padrão da poesia popular de toda a guerra da Guiné, veja-se esta “Carta P’rá Família”:

“Boa saúde a todos desejo
E que a vida vos corra bem
Eu não sei se mais vos vejo
Ou se pereço aqui, na terra de ninguém

Estou ótimo graças a Deus
Vou vivendo no meio da guerra
Esperando voltar para os meus
Para a paz da minha terra

Corre carta, corre carta
Sai daqui, vai embora
Leva a meus pais esta farta Saudade que eu sinto agora

Voa carta, carta voa
Segue sempre em frente
E quando chegares a Lisboa
Vai ter com a minha gente

Segue carta o teu caminho
Leva beijinhos e saudades também
Diz lá no meu cantinho
Que aqui mal! Eu estou bem”

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Álamo Oliveira
Como é óbvio, não há condições mínimas para se proceder a um inventário desta poesia popular, encontrámo-la casualmente, tal como eu tive a dita de encontrar em casa de alfarrábios esta obra do bardo do BCAV 490.
Mas há outros atrevimentos poéticos, um deles merece citação pelo que é e de quem é. “Triste vida leva a garça”, por Álamo Oliveira, Ulmeiro, 1984, precede uma obra já aqui referenciada, Até Hoje (Memória de Cão), também da Ulmeiro, 1986. Álamo Oliveira andou por Binta, honremos o bardo falando da poesia de Álamo Oliveira, aqui ficam extratos do seu poema “cantigas de ter ido à guerra não p’ra matar ou morrer – pico, soldado – mais nada”, com ressaibos açorianos, não se pode desmentir o sangue:

“Guiné, meu campo de guerra,
Gindungo com que tempero
A alcatra da minha terra…
Vinho de palma não quero.

Antes ‘cheiro’ que me aguarda
Com confeitos e alfenim.
Não fui herói de espingarda,
Não fui cobra de capim.

Noites longas, sem mulher;
Noites de cio em segredo.
- Seja soldado quem quer,
Toda a farda mete medo.
(…)
Foi mau. Foi duro. Foi reles.
(Hoje é só bruma passada).
Ó terra de curtir peles,
Mochila cheia de nada.

De resto, quem não recorda
O pavor que nos lançou
O Mastigas numa corda
No dia em que se enforcou?

Fui soldado. Simplesmente.
Soldado de corpo nu.
Amei África e sua gente…
Muito sumo de caju.

Por isso, canto, em quadra
A saudade que engatilha
A arma que me desarma:
- África-mim/minha ilha!

Dos companheiros de armas,
Guardo o rosto e afeição.
Soldados com espingardas
Murchas e presas à mão

Para puxar o gatilho
No momento de matar.
Antes, sachavam o milho,
Agora, são de odiar.

Hoje, à distância de anos,
Meia légua do caixão,
Coso, de memória, os panos:
- Meus companheiros quem são?
(…)
Que eu quis de África o chão,
O lugar e a madrugada;
Amei o seu povo sem pão…
Eu fui soldado – mais nada.

Ansumane, meu amigo,
Ainda estás na mesquita?
Sonho, às vezes, contigo,
Teu olhar mago me fita.

De toga, África te veja,
Verde-oiro bordado à mão,
Curvado – Alá te proteja! –,
Nas rezas do Alcorão.

Num só Deus me comprometo,
De um só Deus te não arranco.
O teu é negro de preto,
O meu é alvo de branco.
(…)
Terras de Binta, Mansoa,
Safim, Bissau, Jumbembem,
E outros nomes que, em boa
Verdade, não me lembro bem.

Lá no fundo da picada,
Vejo avançar para mim,
Negra balanta gingada
Com um molhe de capim.

Carrega o filho às costas,
Seios caídos de fora,
Mãe-negra, em quem apostas
O teu futuro agora?

Que eu vi cacheus e gebas
Caminharem com a maré,
Mas, por mais rios que bebas,
Não terás teu candomblé.
(…)
Mãe-negra – África-mim,
Meu postal desilustrado,
Tempo de angústia e capim
Ao meu ombro pendurado.

Que bem faço por esquecer
Armas, mosquitos, viagem.
África ferrou-me o ser,
Trouxe-a feita tatuagem.

Se da guerra me livrei,
Do seu povo é que não.
Na farda, não me piquei,
Mas trouxe, na minha mão

Ritos de fanado e morte,
Rios mansos que o sol coa,
Luar branco, trovão-forte,
Negro vogando em canoa.
(…)
Guiné! Guiné! Voz de gente!
Doce de coco e baunilha!
Bem te sinto, no meu ventre,
A pulsar no som da ilha,

Que é de mar, enxofre e lava
Hortênsias e solidão.
Guiné, minha irmã-escrava,
Mango caído no chão.”

Por aqui fiquemos, não posso escusar dizer que esta desgarrada com marca de água açoriana me impressiona profundamente, é toada nova de poesia de sabor luso-guineense, um espinho de saudade, ele é porta-estandarte dessa Guiné que ficou para muitos como uma irmã-escrava lá nas terras do poeta feitas de enxofre e lava.

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 3 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20523: Notas de leitura (1252): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (39) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20534: Notas de leitura (1253): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20254: Notas de leitura (1227): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (28) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Deixa-se para mais tarde a descrição da atividade operacional do BCAV 490. Procurou-se o recurso ao diário de Armor Pires Mota, "Tarrafo" e ao livro "A Guerra da Guiné" de Hélio Felgas, é uma tentativa de juntar um depoimento pessoal de quem faz parte da história do BCAV 490 ouvindo a exposição do Tenente-Coronel Hélio Felgas, onde se insinua que a área que esteve sob o seu comando, Bula, melhorou muito, não escondendo, nos entretantos, o alastramento da guerra.
Quanto mais se procura decifrar a lógica do pensamento estratégico que presidia a esta atividade operacional esbarra-se com a falta de documentos. E aqui se deixa uma reflexão. É inteiramente inviável escrever uma história da guerra da Guiné sem proceder ao estudo de toda a documentação de caráter estratégico do Brigadeiro Louro de Sousa e de Arnaldo Schulz, é incompreensível passar-se em silêncio todo este vasto período e cair de repente na era Spínola, com a inflação de documentos, imagens, filmes, depoimentos, livros de toda a espécie. Aliás, as obras repetem-se umas às outras, de quando em quando citam-se os boletins das Forças Armadas e os livros impressos, trabalhar sai do pelo, há muito a procurar nos arquivos dos ministérios da Defesa e do Ultramar, para já não falar no Arquivo Histórico-Militar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (28)

Beja Santos

“Comemos mancarra assada,
o sofrimento começou.
Na 487 este mês
foi triste o que se passou.

Em Jumbembem se encontrava
o Geraldes e o Ananias,
trabalhando, todos os dias,
Abílio também lá estava.
O Almorindo passava
muitos dias sem comer nada.
A comida não era carregada
por não se poder transportar
e para que a fome melhor se aguentar,
comemos mancarra assada.

Em Cuntima a alinhar
o amigo António José,
de viatura ou a pé
para a estrada patrulhar.
Os bandidos os iam esperar
e, às vezes, até se lutou.
Muitas árvores se tirou,
pelos malvados derrubadas
e andando grandes caminhadas
o sofrimento começou.

A 31 de Maio abalámos
para a Farim regressar
mas houve grande azar:
3 emboscadas apanhámos
algumas vezes nos levantámos,
mas atacaram muita vez.
Muito fogo aqui se fez
esgotando quase as munições
e sofreram-se muitas aflições
durante este mês.

O Aníbal Joaquim foi ferido
com estilhaços de granada.
O 26, bom camarada,
numa mão foi atingido;
o 320 ficou estendido,
porque um tiro na cabeça levou;
o Sarg. Revez na viatura o levou
com o 33 a socorrer,
mas depois de tanto sofrer
foi triste o que se passou.”

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Para esta evocação do bardo faz-se recurso ao que anda a fazer Armor Pires Mota, em bandas próximas, mas nem sempre coincidentes. No tal dia 31 de maio, depois de ter estado em Sitató, a 27, passou por Cuntima e escreve: “Um dia igual a tantos outros dias iguais. Deixada Cuntima, só os macacos, gritando de ramo em ramo, bordejavam a estrada. Às três horas da tarde, chegámos a Jumbembem, à serração”.

Sem neste momento se fazer recurso à cronologia das operações, consulta vantajosa para em certos momentos entender as dores de alma do nosso bardo, importa dizer que o diário intitulado “Tarrafo”, de Armor Pires Mota, ajuda-nos a entender o que ele experienciou fundamentalmente em Jumbembem, desde maio de 1964 até junho de 1965. Nesta povoação observa as lides, vê chegar muita gente que tinha sido profundamente atingida pela subversão, aldeias queimadas, fugas, ameaças, divisões familiares na escolha do lado em que se fica. Armor vai estando atento à vida em Jumbembem, chegou a época das chuvas, há gente que vai à caça e de repente chega-se a um local altamente problemático na época, Canjambari.

Estamos em 9 de outubro, e ele escreve:
“A estrada está atravancada de árvores e bissilões de grande porte que chegam a cruzar-se uns sobre os outros.
A nossa missão era: levantamento de abatises.
Antes de chegarmos às árvores, apeámos, prevendo já a táctica e as manhas do inimigo.
Ele deixou-nos entrar na zona de morte.
Um estrondo ecoou, seguido de rajadas e estrondos sucessivos.
6.50.
Uma chuva de granadas começou a rebentar rente a nós, lançadas por autênticos suicidas, atordoando-nos. E os estilhaços voavam. Uma chuva densa de balas feria o espaço, partia ramos, furava o capim verde, tilintava ao bater nas viaturas. E nós, uns deitados, outros de joelhos, varríamos tudo à nossa frente. Corria sangue.
O sol tinha encorado por detrás do arvoredo na distância, agarrado a um céu azul. (…) E começamos a atacar as árvores. Uns fendiam-nas com serrões. Outros cravavam-lhes os machados e as catanas.
Volteavam os ferros no ar, curvavam-se e rasgavam os troncos arrogantes. E, cortados, o Unimog arrastava-os com o guincho para dentro do mato.
Os terroristas continuaram a açoitar-nos com rajadas espaçadas e uma estrangalhou um carregador da Madsen. O apontador deu um salto para trás. A morte rondou-lhe a escassos centímetros.
E nova emboscada nos lançou por terra. A gente, ao lançar-se por terra, não vê onde cai, se é dura ou mole, ou está armadilhada. E caí todo no meio de um formigueiro enorme. Quando dei por tal, já as formigas me tinham feito o cerco cerrado e entravam a ferrar-me, sem dó nem piedade, subiam-me as costas, os pés e as mãos. Elas quase me iam comendo. E o meu jogo era este: coçava-me, rebolava-me, matava às mãos cheias, esmagando-as entre o corpo e a farda, esmagando-as entre os dedos, fazia fogo. Coçava-me, rebolava-me…
O sol tinha subido no azul. Quase a pique, faiscava, estilhaçava-se todo no cano da arma, enviava-me lâminas de fogo para a fronte, para os olhos”.

Copa de Bissilão 
Imagem retirada do blogue Intelectuais Balantas na Diáspora, com a devida vénia

Mas Armor também nos fala dos dias de festa, da praga dos mosquitos, de incêndios, das operações a Canjambari, Fanbantã, e não perde oportunidade de nos falar do apoio dado em Cuntima aos doentes, vinham em grande número do Senegal:
“Cuntima é sentinela avançada, junto à fronteira norte.
Nos princípios de 1964 estava quase abandonada, porque as populações, que viviam à volta, intimidadas, passaram para o Senegal. Mas hoje estão a regressar, sem entraves da parte dos gendarmes, aldeias inteiras, já de olhos postos na próxima sementeira da mancarra e preparando os arados para o amanho das bolanhas.
Confiam na tropa. E esta confiança foi-se consolidando à medida que a zona ia sendo limpa. E um factor decisivo que concorreu extraordinariamente para o regresso das populações ao seu chão, ao ‘chão de Português’, foi a psicossocial desenvolvida pelo Dr. José Lourenço, espírito dinâmico, aberto e comunicativo. A princípio, todos os dias, apareciam no posto de socorros dezenas e dezenas de refugiados, cheios de mazelas. Hoje, formando bicha, não faltam doentes do Senegal, sobretudo da cidade de Koldá, e até alguns da Gâmbia. (…) Muitas mulheres, sobretudo mulheres de gendarmes e padres mouros, uns dias antes do dia previsto, vêm esperar a sua hora em casa de alguma pessoa amiga, ali em Cuntima, onde, depois, é chamado o médico para assistir ao parto sem que regateie um minuto sequer, seja a que hora for. E, então, as mães, contentes e, numa prova de gratidão, põem aos filhos o nome do médico, que cedo começam a deturpar. Há alguns que ficam a chamar-se José Doutor. Há mesmo uma miúda que tem o nome de Maria Lissa, deturpação de Maria Luísa, filha do Dr. José Lourenço. (…) Ainda não há muito tempo que o comandante dos guardas da fronteira, no fim da visita de inspecção ao posto de Sare Wale, enviou um recado ao capitão a pedir-lhe que fosse à fronteira. Este não se fez rogado e lá partiu com o médico e mais alguns homens, mas todos desarmados. Convidaram-no a vir sentar-se à sombra de um mangueiro do ‘Chão Português’ e ali trocaram longos minutos de conversa. Que estava imensamente reconhecido, assim como o seu governo, pela assistência médica que a tropa prestava a muitos senegaleses”.

Há páginas deste diário em Sulucó, Fanbantã, mas Jumbembem é verdadeiramente o ponto de irradiação, ele despede-se de nós a 6 de junho, é o seu penúltimo depoimento, fala do renascimento da tabanca de Lamel. Há crianças que cantam canções portuguesas com “A Tia Anica do Loulé” ou “O Tiroliro”, Armor está feliz, pois a aldeia nova é uma realidade.

Voltemos a Hélio Felgas, estamos agora no segundo semestre de 1964, ele considera que as forças portuguesas começaram a assenhorear-se da situação na Guiné, condições que, a partir do princípio de 1965, estavam a permitir encarar o aspeto militar com justificado otimismo. Enquanto tal afirma não se esquece de dizer que tinha alastrado a presença terrorista em Badora e Cossé, entre Bambadinca e Bafatá, era clara intenção do PAIGC intervir na área dos Fulas. No seu livro, Felgas procura desmontar os alardes propagandísticos do PAIGC, as fantasiosas centenas e dezenas de mortos, por exemplo.

Entretanto, enquanto afirma ter havido uma diminuição da atividade do PAIGC, este apresenta-se em Canquelifá, mostrava atividade nas zonas do Oio, em Farim e Canhamina.
E escreve:
“A norte de Cacheu havia indícios de que o PAIGC procurava controlar a região de Canjambari, a leste de Farim, aproveitando a época das chuvas que impedia ou dificultava o trânsito local das viaturas militares.
Nas estradas do Oio, as emboscadas dos bandoleiros tinham locais quase certos. Entre Bissorã e Olossato, ocorriam em geral por alturas da ponte de Maqué, quase a meia distância das duas povoações.
Entre Mansoa e Bissorã uma grande parte tinha sido na área de Namedão, considerada ponto de passagem dos reabastecimentos vindos da ilha de Bissau para os acampamentos do PAIGC nas matas de Dando, Cambajo e Morés. Entre Binar e Bissorã, os bandoleiros tinham três troços preferidos, todos eles em zonas onde a luxuriante vegetação marginal quase invadia a estrada. Aliás, o perigo subsistia mesmo nos trechos sem vegetação, devido às minas que continuavam a ser largamente empregues. Por vezes, contando com o natural afrouxamento da atenção dos nossos soldados nestes trechos mais descobertos, os terroristas montavam neles emboscadas, chegando-lhes, para se esconderem, o capim, as árvores e os morros de bagabaga que bordam as estradas”.

Uma bem estranha acalmia… E mais adiante, na sua exposição, o Tenente-Coronel Hélio Felgas dá outras informações bem úteis para se entender o estado daquela região:
“Os documentos apreendidos nos acampamentos terroristas continuavam a fornecer indicações de certo modo úteis. Soube-se, por exemplo, que a ‘base’ principal da região 3, estava situada nas proximidades da tabanca de Morés e tinha como responsável-geral Osvaldo Máximo Vieira. Desta base principal dependiam mais de uma dúzia de outras bases das quais as mais importantes e conhecidas eram as de Cambajo, Biambi, Nafa, Iador, Bancolene, Maqué, Fajonquito, Bissancaja, Sarauol, Cabadjal, Sambuiá, Bricama, Sulucó. Em todas elas havia um responsável militar e um responsável político”.

(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 14 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20238: Notas de leitura (1226): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (1) (Mário Beja Santos)