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quarta-feira, 3 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24280: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte VI: Sexo, álcool e amuletos... A maldição ou a premonição do Amílcar Cabral ?..."Só nós somos capazes de destruir o Partido" (Boké, Guiné-Conacri, finais de 1970)


Guiné-Bissau (sic) > PAIGC > s/l > Março-abril de 1974 > Mulher com criança /Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 29 - Life in the Liberated Areas, Guinea-Bissau - Woman with child - 1974.tif

Fonte: Wikimedia Commons > Guinea-Bissau and Senegal_1973-1974 (Coutinho Collection) (Com a devida vénia...) . Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)






1. A seguir à invasão de Conacri por tropas portuguesas e forças da oposição ao governo de Sékou Touré, em 22 de novembro de 1970 (Op Mar Verde), Amílcar Cabral (AC) reuniu as cúpulas do PAIGC em Boké, na Guiné-Conacri, próximo da fronteira sul com o território da então Guiné Portuguesa, em data que não podemos precisar mas sabemos, pelo testemunho de Luís Cabral (LC) ("Crónica da Libertação", Lisboa, O Jornal, 1984, 464 pp.), que foi ainda em 1970, por volta do final desse  ano. (*)

AC aproveitou para fazer o balanço da "bárbara agressão do inimigo contra a capital da República da Guiné", segundo o relato do seu mano, LC (pág. 373).

Difícil para ambos  era compreender "a traição de muitos dos principais colaboradores do presidente Sékou Touré" (sic) (pág. 374). Naturalmente o AC não revelou,  aos seus  colaboradores mais próximos,  as tremendas dificuldades  (económicas, politicas,  sociais, etc.) por que estava a passar a Guiné-Conacri nem ele alguma vez denunciou a natureza ditatorial do regime de Sékou Touré. Obviamente, não iria cuspir na sopa nem dizer mal dos seus hóspedes.... e aliados. Amílcar Cabral (e o seu estado-maior) estava nas mãos do "camarada" Sékou Touré (em relação ao qual, de resto, havia um temor reverencial, visível na maneira como o LC se  referiu a ele da primeira vez que o conheceu, à distância, chegando na sua viatura presidencial ao aeroporto da capital).

Mas não deixou, o AC,  de avançar com a sua própria teoria espontânea  sobre os riscos que estava a correr o próprio PAIGC, cujas sementes de destruição não eram exógenas (ou seja, vindas do exterior) mas endógenas (geradas a partir de dentro), insistindo repetidas vezes que "só nós" (sic) (...) "estávamos em condições de destruir o Partido" (pág, 375). Uma premonição, quiçá, do seu próporio assassinato dois anos mais tarde, em Conacri, a 20 de janeiro de 1973, e onde a participação do Sékou Touré, como autor moral,  está  ainda por esclarecer, bem como a de dirigentes do PAIGC como o Osvaldo Vieira, primo do 'Nino'.

E contou, o AC, para gáudio geral da audiência,   a história ou a fábula do bode que, numa pequena terra se havia celebrizado pela sua extraordinária capacidade de procriação, até ao dia em que o presidente do município local se apressou a comprá-lo e instalá-lo num estábulo-modelo, promovendo-o a "bode municipal"...

A partir daí, bem comido e melhor dormido, o bode desinteressou-se totalmente das cabras. Quando o seu antigo proprietário, indignado, lhe pediu explicações, face às reclamações do seu novo dono ( o presidente do município). o bode limitou-se a responder, cinicamente: "Agora sou funcionário público." (pág. 376).

A mensagem que o AC quis transmitir  aos seus "generais", depois da prova de fogos  que fora, para todos aqueles que  lá estavam, a invasão de Conacri e a tentativa de derrube do regime, era clara: ninguém nos destrói,  a partir de fora, a começar pelos "tugas", se continuarmos de mãos dadas a certar fileiras... Mas nós podemos destruir-nos uns aos outros...

Foi nesta reunião de Boké que apareceu, pela primeira vez, a figura do Partido-Estado. Foi criado o Conselho Superior de Luta no seio do qual era eleito o Conselho Executivo da Luta (pág. 377). Foi também nesta reunião que passaram a fazer parte das Forças Armadas, "as forças regulares - o Exército Popular, a Marinha Nacional e, mais tarde, a Aviação Militar" (pág. 378). Por seu lado, "a Guerrilha e a Milícia foram juntas numa única organização, as Forças Armadas Locais (FAL)", cabendo a sua direção ao Comité Nacional das Regiões Libertadas (sic).

E chegamos ao ponto que nos interessa. No final da reunião, o AC punha mais uma vez o dedo na ferida, manifestando as suas reiteradas preocupações com a "vida pessoal dos quadros e dirigentes do Partido" (pág. 378).

Escreve o irmão, LC:

"Sei bem quanto era doloroso para o Amílcar ter de abordar sempre esta questão delicada cuja origem nascia do comportamento de alguns dos dirigentes da luta" (Negritos nossos)...

E o LC exemplifica, com algum prurido, duas condutas altamente perniciosas para um partido que se pretendia "libertador": 

(i) "o consumo exagerado da bebida alcoólica" (pp. 378/379); 

e (ii) a prostituição, o assédio sexual, a poligamia (pp. 380/383), 

e (iii) implicitamente a cultura do "cabra-macho"... (Claro que ele nunca usa as palavras prostituição, assédio sexual e cabra-macho..).

As questões do álcool e do sexo eram extremamente incómodas e até fracturantes num  "partido revolucionário", de inspiração marxista, como o PAIGC, que se queria frugal, puritano, impoluto. 

Os dirigentes e os quadros sabiam quem eram os visados pelas palavras de AC. Um deles seria o Osvaldo Veira, grande apreciador da "água de Lisboa", acrescentamos nós. 

No caso do álcool, LC conta que havia dirigentes que se davam ao luxo de ter os seus "furadores" privativos (!) para extraírem o vinho de palma, bebida que rareava no mato tal como as bebidas alcoólicas que eram importadas (e disputadas em Conacri).

A questão da "violência sexual" (outra expressão que nunca é usada, por falso moralismo) era outro grave problema que já vinha de trás. Diversos "senhores da guerra" haviam sido denunciados, julgados e condenados à morte, em Cassacá, no I Congresso do PAIGC, em fevereiro de 1964, acusados de brutais abusos sexuais e atrocidades para com a população, e nomeadamente para com as  raparigas e outras mulheres jovens (mas também contra os que os que se opunham a estas práticas horrendas). LC só volta a referir a persistência deste problema por ocasião da reunião de Boké, em finais de 1970.  Isto significa que ele nunca fora resolvido ao longo daqueles anos todos...

"Todos os homens normais gostam de mulheres, dizia ele [ o Amílcar Cabral] (...). No auge do seu desespero em ter de abordar esta questão uma vez mais, o Amílcar acrescentou, elevando ligeiramente a voz: 'Se pensam que são mais machos do que nós, estão enganados, se quiserem podemos ir ao quarto ao lado e fazer a experiência! Temos as nossas mulheres, a nossa família, e sabemos a responsabilidade que nos cabe nesta fase da vida do nosso povo`".(...) (pág. 382).

O que estava em causa era a cultura, então dominante no seio do PAIGC, do "cabra-macho", de peito feito às balas, de "peito vermelho", aguerrido, corajoso, mas também violento, machão, predador sexual...

Umas terceira preocupação do AC (e do LC) era o uso e abuso de amuletos, já abordado nas pp. 166/167. LC revela que os dirigentes do PAIGC, no mato, "tinham sempre um combatente muito jovem, que transportava,  num saco, os variados amuletos a que cada um tinha direito, dada a sua condição de chefia" (pág, 166). 

No caso do 'Nino' Vieira, por exemplo, não se deslocava no mato em situações de combate,  sem o seu arsenal de amuletos, e de pelo menos dois ajudantes (!),  que os carregavam, além de um bigrupo reforçado,  segundo o testemunho (suspeito) do Bobo Queita (que não gostava dele, e ainda mais depois do golpe de Estado de 14 de novembro de 1940).    [ In: Norberto Tavares de Carvalho, "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita". Edição de autor, Porto, 2011. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes. p. 197.)

O AC, de formação católica, filho de ex-padre e professor primário (todavia, sexualmente muito promíscuo, com muitos filhos de várias mulheres), não apreciava também estes "aspectos menos racionais" do comportamento dos seus homens... Mas teve que engolir este e muitos  outros sapos (como, por exemplo,  a "mutilação genital feminina" praticada pelos povos "islamizados" da Guiné: não me lembro de ele alguma vez se ter pronunciado, ou pelo menos escrito, sobre este problema, ele que, de resto,  era pai de duas meninas, filhas de uma portuguesa... que foi alegadamente o "amor da sua vida").

"O amuleto - mezinho, como lhe chamávamos - era uma fraqueza que foi transformada em força pelo Partido" (pág. 166). Quando ainda não havia armas para se defenderem, "o Amílcar entregava-lhe(s) o dinheiro necessário para mandar fazer o mezinho - algumas citações do Corão, escritas em caracteres árabes" (...), amuleto que depois era "cuidadosamente forrado de cabedal, e que tinha a virtude de reforçar no combatente a confiança em si próprio, trazendo-lhe a confiança psíquica indispensável ao bom cumprimento da sua missão (pág. 167).

Umas páginas à frente, LC conta a história caricata de um grupo de estrangeiros, o sociólogo sueco Rolf Gustavson e uma equipa de cineastas e fotógrafos franceses, constituída por Michel Honorim, Giles Caron e Michel Carbeau" (pág. 385). Os franceses vinham do Biafra e queriam ver cenas de guerra e sangue...

Isto passa-se entre Farim e Jumbembem, quase nas barbas das NT. Face ao risco de serem apanhados por uma emboscada das tropas portuguesas, LC deu ordem à escolta, comandada por Bobo Queita, para fazer uma "retirada forçada" até à fronteira... Não tendo nada de interessante para filmar (nem sequer umas tabancas em ruínas, carbonizadas pelo napalm dos colonialistas... ), "o chefe da equipa francesa disse em voz alta que éramos um bando de mentirosos" (sic).

Apesar da desculpa do cansaço físico e da tensão acumulada, o LC é obrigado a ameaçar confiscar-lhe as películas há utilizadas. Resultado: 

"Do documentário que devia ser feito das filmagens de Michel Carbeau, pelo realizador Michel Honorim, chefe da equipa, nunca tivemos notícias" (pág. 387). 

Restou o fotógrafo Gilles Caron que terá feito, mesmo assim, algumas belas imagens dos sítios por onde passou...

Destes (e doutros nomes que andaram pelas "áreas libertadas" a documentar a luta do PAIGC) há escassíssimas referências na Net: vd. Journal of Film Preservation, 77/78, october 2008.

domingo, 16 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24227: (Ex)citações (425): o recurso ao pensamento mágico, à superstição, aos amuletos e às artes adivinhatórias, etc., na guerra, de um lado e do outro (Luís Graça)

(...) " Quando eu e o capitão João Bacar, em fevereiro [de 1970] , tínhamos vindo de Bissau para Fá Mandinga, para formarmos a CCmds da Guiné, o capitão Barbosa Henriques  [o instrutor]   deixou-nos em Bambadinca para tratarmos da situação das nossas famílias. E foi nessa ocasião que, em casa de um companheiro de João Bacar, encontrei esse tal homem, o Mamadu Candé, um Homem Grande e adivinho muito respeitado.

Pois, então, em Paunca, quando o encontrei, Mamadu Candé disse-me, solenemente, para eu avisar o capitão João Bacar que fizesse tudo por tudo para que a nossa companhia não fosse deslocada para ocidente de Fá Mandinga. Que nos ajudava a tratar de nos mantermos no leste, que a nossa fama já era grande e que, assim, o leste não seria conquistado. E disse mais: que nas suas previsões nos tinha visto a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e que nessa cidade íamos começar a sofrer muitas baixas.

Quando lhe perguntei que cidade era essa, se ficava na Europa ou em África, ele respondeu que não sabia. Eu acho que ele sabia muito bem qual era a cidade, não queria era dizer-nos. (...) (*)

(...) "Disseram-me que estávamos entre Bubaque e a Ilha de Soga, no arquipélago dos Bijagós. Que estamos a fazer neste sítio? Era uma pergunta que todos faziam, resposta ninguém tinha. O que vimos foi um grande movimento na ilha que me disseram chamar-se Soga.

Nesta altura veio-me à lembrança que, em Fá Mandinga tínhamos recebido instrução de combate dentro de cidades [ministrada pelo cap art Morais da Silva, hoje cor ref, membro da nossa Tabanca Grande... LG]. E também recordei o que tinha ouvido do adivinho de Paunca [Mamadu Candé, pág. 166 ]. Que íamos para uma grande cidade e que íamos sofrer muitas baixas. Eu nunca falei nesta conversa a ninguém, a não ser ao João Bacar. Fiquei com estes pensamentos na cabeça".(...) (**)


1. Comentário de LG ao poste P24224 (*):

Tal como os seus patrícios guineenses, muçulmanos, animistas ou cristãos, o Amadu Djaló era supersticioso. Veja-se a importância que ele dá, no seu livro de memórias, às revelações dos adivinhos. 

Neste caso, em Paunca, ele recebe uma mensagem misteriosa que deve transmitir ao seu comandante, João Bacar Jaló, ambos fulas e muçulmanos. A CCmds Africanos deve ficar no Leste e nunca sair de lá.  O adivinho Mamadu Candé, homem grande e respeitado na suas artes adivinhatórias, que ele já conhecia de Bambadinca, diz que a CCmds Africanos  vai ser confrontada com um cenário de tragédia. O adivinho vê o Amadu Djaló e o João Bacar metidos num barco a caminho de uma grande cidade, aonde desembarcam e onde sofrerão muitas baixas. 

Trata-se de uma premonição da Operação Mar Verde, o desembarque anfíbio em Conacri em 22/11/1970... Ou será antes uma reconstituição feita  "a posteriori", na sequênciua da operação ou muitos anos depois, pelo Amadu ? "Afinal, o que adivinho me revelou, batia certo!", terá concluído...

 O adivinho não lhe revelava ormenores, de qualquer modo,  uma cidade grande, junto ao mar, alvo da ação dos comandos africanos,  por via de um desembarque anfíbio, ó podia ser nos países limítrofes, Dakar (Senegal) ou Conacri (República da Guiné). 

O recurso a adivinhos, para saber o futuro e aliviar a angústia da incerteza, devia ajudar os combatentes de um lado e do outro a exorcizar o medo, enfim  é um ato de securização, tal como uso de amuletos (ou mesinhos) que protegem o corpo contra as balas do inimigo, era muito frequente, nesse tempo,  entre os guineenses, quer do PAIGC, quer das nossas tropas.

Amílcar Cabral sempre lutou contra estes aspetos "menos racionais" do comportamento dos seus militantes, e em particular dos seus  combatentes. O 'Nino' Vieira, por exemplo, não se deslocava no mato em situações de combate sem o seu arsenal de amuletos, e de ajudantes que os carregavam.... Quem o diz é o comandante Bobo Keita (ou Queita) ( In: Norberto Tavares de Carvalho, De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes. p. 197). (***)

Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (1969/71) > O "alfero Cabral", "completamente apanhado do clima"... O nosso saudoso alf mil at art Jorge Cabral (1944-2021) ostentando, ao peito, um amuleto de origem fula ou mandinga, e mais dois, um à cintura e outro no direito ...  

A função dos amuletos de guerra era "fechar (blindar) o corpo" contra as balas do inimigo... Todos os combatentes, em todas as guerras, são "supersticiosos", sejam cristãos, mulçulmanos, judeus, crentes ou não crentes... E mal deles se não desenvolvem uma "idelogia defensiva" que os proteja contra o medo e o azar: veja-.se a conhecida divisa dos comandos, "A sorte protege os audazes"...  Todas as profissões de risco (dos médicos aos pilotos de aviação, dos futebolistas aos toureiros, dos mineiros às tropas especiais) têm estratégias de "racionalização" para lidar com os "riscos"...

Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 15 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24224: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIV: As previsões agoirentas do adivinho Mamadu Candé que nos via, a mim e ao João Bacar Jaló, a viajar num barco para desembarcarmos numa grande cidade e aí a sofrer muitas baixas (... só não nos disse o nome da cidade: Conacri...)

(**) Vd. poste de 22 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23804: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte X: Op Mar Verde, há 52 anos, em 22/11/1970: para Conacri, rapidamente e em força.

(***) Último poste da série > 4 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24194: (Ex)citações (424): Adeus, até ao meu regresso !... Mas em que ainda se fala de esquizofrenias galopantes, de Diniz de Almeida e do velho... do Restelo da Revolução (José Belo, Suécia)

sábado, 8 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24208: Armamento do PAIGC (1): As polémicas viaturas blindadas BRDM-2 que teriam sido utilizadas contra Copá (7/1/1974) e Bedanda (31/3/1974)

Foto nº 1A


Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Bissau >Fortaleza da Amura > Museu Militar da Luta de Libertação Nacional > "Viatura blindada,  de fabrico russo, que terá sido usado pelo PAIGC em 1974 contra Bedanda e Copá" (*).  A legenda é lacónica, o Patrício Ribeir0 deixou aos nossos especialistas de armamento a responsabilidade de identificar as peças museológicas... Podemos acrescentar que, salvo melhor opinião, esta viatura, da antiga União Soviética (1964), é conhecida pela designação BRDM-2 , mas também GAZ-41-08 e ainda BRT 40PB, BRT 40P-2.

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Foto nº 2 > Guiné > s/l > s/d (c. 1973/74) > "Guerrilheiros deslocando-se num carro blindado, Guiné-Bissau" (que não parece, vista da traseira, ser uma BRDM-2)

Foto do acervo documental de Mário Pinto de Andrade (1928-1990), dossiê do Arquivo e Biblioteca da Fundação Mário Soares. Estas viaturas, oriundas da base de Kandiafara, a sul de Guileje, na vizinha Guiné-Conacri, já estavam em em 1973 devidamente identificadas e referenciadas pelas autoridades militares portuguesas, contituindo um perigo potencial para as guarnições fronteiriças, tais como Guileje, Gadamael, Bedanda, Cacine ou Aldeia Formosa. É impossível, porém. saber se a viatura da foto está em território da então província portuguesa da Guiné ou em território da Guiné-Conacri. Ou se se trata apenas dc uma imagem de propaganda.

Foto (e legenda): Cortesia de © Fundação Mário Soares (2009). Direitos reservados



Foto nº 3 > Guiné  > Região de  Gabu > Bajocunda (ou Pirada?) > Pós-25 de Abril de 1974 >  "Esta viatura de origem russa é igual às três que atacavam Copá em Janeiro/Fevereiro de 74. É uma BRDM-2". 

Comentário de Amílcar Ventura ( ex-fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323(Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74), natural de (e residente em) Silves, membro da nossa Tabanca Grande desde 9 de maio de 2009; publicou a foto acima na nossa  na página do Facebook da Tabanca Grande Luís Graça, em 6/4/2023, 10;53.

Foto (e legenda): © Amílcar Ventura (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Foto nº 4 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Bajocunda (ou Pirada ?) > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Encontro das Altas Chefias de Pirada depois do 25 de Abril [de 1974]". (**) Não dá para perceber de que tipo de viatura se trata (BRDM-1 ou 2).

Foto (e legenda): © Amílcar Ventura (2009). Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Publicámos há dias uma imagem de uma viatura blindada, existente no Museu Militar da Amura ("Museu Militar da Luta de Libertação Nacional") (vd. Foto nº 1, acima).  

E essa foto é a mesma que vai abrir este série sobre o armamento do PAIGC.  A existência ou não de "viaturas blindadas" ao serviço do PAIGC já deu origem aqui a alguma polémica (***)... O António Martins de Matos deu o  mote: "quem os viu de ver e não de ouvir?" (***). O António Graça de Abreu, nas suas memórias da Guiné,  dissse que sim, que já em 31 de março de 1974, foram utilizadas "viaturas blindadas" contra Bedanda (****), o que o alf mil António Rodrigues, da CCAÇ 5, vem confirmar, embora se refira a uma versão, a BTR 152, de que nunca ouvimos falar.

Os "bravos de Copá" já antes, em 7 de janeiro de 1974, tiveram que defrontar a BRDM-2, uma viatura blindada anfíbia, de reconhecimento e patrulhamento, de 7 toneladas, e uma tripulação de 4 elementos, estando equipada com duas metralhadoras (uma pesada, de 14,5 mm, e uma ligeira, de 7,62 mm).

Tanto em Copá como em Bedanda, a sua estreia parece terá sido desastrosa, para o lado do PAIGC.  Em Copá, morreu o Mamadú Cassamá, confirma o Bobo Keita (ou Queita), o "chfe dos blindados" ou "tanques anfíbios"(sic)...  Depois do 25 de Abril de 1974, o PAIGC passeou algumas destes "brinquedos" na fronteira Norte (Bajocunda, Pirada), conforme se pode ver nas fostos do Amílcar Ventura (Fotos nºs 3 e 4) (**).

Ficamos na dúvida sobre o "dono" das viaturas, o PAIGC ou o Sékou Touré...  E continmuamos a ter dúvidas sobre o tipo de viaturas, usadas contra Copá e Bedanda: BRDM.1 ou BRDM-2 ?

2. Em tempos escrevemos o seguinte comentário no poste P9375 (****), e não o vamos rever mesmo em face das fotos acima publicadas (a nº 1 é de facto de uma BRDM-2, mas não sabemos se é uma oferta da Guiné-Conacri para o museu militar da Amura...):

No Arquivo Amílcar Cabral, tratado e disponiblizado para o grande público pela Fundação Mário Sores, no portal Casa Comum, não há qualquer referência a viaturas blindadas entregues pelos russos no porto de Conacri... Estamos a falar de 10 mil documentos, que abrange todo o período da guerra de "libertação"...

Até finais de 1971, a ex-União Soviética só fornecia armas automáticas, RPG 7, munições, fardamento, medicamentos e coisas assim... E mesmo assim era preciso negociar com o "ciumento" Sekou Touré... que não perdoava a Amílcar Cabral o crescente prestígio e protaganismo a nível internacional e o leque de alianças e apoios (que ia da Suécia à China)...

Felizmente para nós, parte do armamento e das munições deviam ser "obsoletos"... São os próprios e "insuspeitos" cubanos que dizem que 40% das granadas lançadas contra Copá em janeiro de 1974 não rebentavam!... (As culpas tanto podiam ser dos fabricantes como, mais provável, das condições de transporte, armazenamento e operação).

BRDM-2 para o Amílcar Cabral? Devem ser fantasias dos burocratas da 2ª Rep, para justificar o seu ordenado ao fim do mês e as horas de tédio (e de algum cagufe) passadas em Bissau... A gente sabe como funcionava a nossa "inteligentsia" na Guiné, incluindo os "broncos" da PIDE/DGS... que tinham a 4.ª classe mal tirada...

O PAIGC nunca teve, ao que parece, este tipo de veículos... Os russos terão oferecido, em 1969, 10 BRDM-1 (5 toneladas e meia + 4 tripulantes e depósito de 150 litros de gasolina)... "Sucata" que o Sekou Touré poderá ter disponibilizado, depois da morte de Amílcar Cabral, aos homens do PAIGC... que ele precisava de controlar... Mas aquela viatura devia gastar 100 aos 100 !...

Como é que vocês queriam vê-la a passar o "arco de triunfo" em Bissau? Ou a passar a ferro as 3 fiadas de arame farpado de Jemberém?

Quanto às BRMD-2 (versão posterior, melhorada, 7 a 8 toneldadas!), era muito menos provável que os guerrilheiros do PAIGC alguma vez lhes tenham posto a vista em cima... a não ser, já reformados, em 1998, quando a Ucrânia ofereceu à Guiné-Bissau quatro veículos desses, se calhar a cair de pobres... Que até a caridade tem um preço!

Angola teve 50, mas já em plena guerra da chamada "2.ª independência"...

O BRMD-2 era um "besta" de 7 a 8 toneladas, com uma tripulação de 4 elementos (condutor, operador de rádio e observador, comandante e apontador de metralhadora pesada...) e um depósito de 290 litros de gasolina, 5,75 metros de comprido... Onde é que o PAIGC tinha gente com unhas para manobrar um "anfíbio" destes? E sobretudo logística? E depois era um alvo fácil para a nossa aviação...

(...) O BRDM-2 (Boyevaya Razvedyvatelnaya Dozornaya Mashina, Боевая Разведывательная Дозорная Машина, literally "Combat Reconnaissance/Patrol Vehicle"[5]) is an amphibious armoured patrol car used by Russia and the former Soviet Union. It was also known under the designations BTR-40PB, BTR-40P-2 and GAZ 41-08. This vehicle, like many other Soviet designs, has been exported extensively and is in use in at least 38 countries. It was intended to replace the earlier BRDM-1, compared to which it had improved amphibious capabilities and better armament. (...)

18 de julho de 2016 às 14:59
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 5 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24200: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (34): Visita ao "Museu Militar da Luta de Libertação Nacional", na fortaleza da Amura


(***) Vd. postes de: 

16 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16309: Controvérsias (131): Blindados do PAIGC ? Quem os viu de ver e não de ouvir ?... (António Martins de Matos, ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen pilav ref)


(***) Vd. poste de 16 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16309: Controvérsias (131): Blindados do PAIGC ? Quem os viu de ver e não de ouvir ?... (António Martins de Matos, ex-tenente pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje ten gen pilav ref)

(****) Vd. poste de 20 de  janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9375: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (5): ): "Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda [, em 31 de março de 1974]"...

(Comentário de António Rodrigues:).

Caros camaradas: 
Estava colocado em Bedanda aquando do ataque com viaturas blindadas, onde era alferes miliciano.

As viaturas com que fomos atacados eram as BTR 152 (soviéticas), equipadas com metralhadoras.

A sua quase entrada no perímetro deveu-se ao facto de elas terem atacado a partir da zona onde se situavam as tabancas da população civil e isso impedir que quer as "Bazookas" quer os canhões sem recuo não poderem ripostar.

Abraços, António Rodrigues | 25 de novembro de 2012 às 17:25

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23988: Casos: a verdade sobre... (33): Vitorino Costa, o primeiro comandante da guerrilha, formado em Pequim em 1961, a ser morto pelas NT em meados de 1962

 

Grupo de quadros do PAIGC recebidos por Mao Tse-Tung na República Popular da China, em 1961 |

Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 05360.000.084 | Assunto: Grupo de quadros do PAIGC recebidos por Mao Tse-Tung na República Popular da China, para iniciarem treino militar na Academia Militar de Nanquim: João Bernardo Vieira [Nino], Francisco Mendes, Constantino Teixeira, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Domingos Ramos, Rui Djassi, Osvaldo Vieira, Vitorino Costa e Hilário Gomes. | Data: 1961 | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Fotografias


(1961), "Grupo de quadros do PAIGC recebidos por Mao Tse-Tung na República Popular da China", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43247 (2023-1-16)



(Detalhe: Reproduzido com a devida vénia... Legenda segundo o nosso colaborador permanente Cherno Baldé: "Na foto do grupo de Nanquim (China, 1961) estão presentes, a contar da esquerda, na fila da frente: Nino Vieira, um diplomata que não identifico, uma mulher que deve ser a companheira do diplomata (ou a tradutora, acrescentamos nós), o Presidente Mao Tse-Tung, Francisco Mendes (Tchico Té), Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Rui Djassi. Na segunda fila: Pedro Ramos, um diplomata Chinés, Vitorino Costa, Hilário Gomes, Constantino Teixeira (Tchutcho) e o Manuel Saturnino Costa".


1. Já aqui falámos de Vitorino Costa, Tem meia dúzia de referências no nosso blogue. De seu nome completo, Vitorino Domingos Costa, irmão de Manuel Saturnino da Costa (futuro primeiro ministro da República da Guiné-Bissau), foi morto, em 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153, comandado pelo cap inf José Curto, na região de Quínara (nas proximidades de Darsalame ou perto de São João, não sabemos ao certo).

Sobre esta época, de 1962, em que o PAIGC começou a fazer trabalho de formação político-militar e a recrutar gente nas tabancas,  sobretudo nas regiões de Quínara e de Tombali, continuamos ainda a saber muito pouco. Faltam os testemunhos, orais e escritos, de um lado e do outro. Faltam os relatórios. Faltam as fotos.  

Mas sabe-se que  o ano de 1962 não começou bem para o PAIGC que viu, por exemplo, em Bissau (a "zona zero")  ser descoberto e preso o seu presidente (do Comité Central, nomeado já na prisão, pelo Partido), que vivia na clandestinidade, o Rafael Barbosa, de etnia papel, e com ele centenas de militantes e simpatizantes (100 dos quais serão depois deportados para o Campo de Chão-Bom, Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde)

De resto, era ainda escassa a presença do exército português no território. E a PIDE tinha acabado de se instalar. Por tudo isso, é um período que se presta a muita especulação. O filme do George/Jorge Freire ainda mostra uma Guiné relativamente idílica, calma, tranquila, onde se pode viver e viajar, em segurança, nomeadamente no leste, no chão fula. Mas por quanto tempo ? Quando deixa Nova Lamego, no leste,  e é colocado em Bedanda, no sul, em novembro de 1962, com a sua 4ª CCAÇ, o cap Jorge Freire ainda leva consigo a esposa. Mas em dezembro ela é obrigada a regressar a Portugal, por razões de segurança. 

2. Tudo indica que o 'comandante' Vitorino Costa terá morrido  na sequência de uma "ação punitiva" do nosso exército, depois de um conhecido comerciante de Empada ter sido assassinado barbaramente na estrada, no regresso de Darsalame para Empada. Mas não sabemos, ao certo, se há uma relação entre os dois acontecimentos.

Vitorino Costa e Manuel Saturnino Costa, além de irmãos,   eram dois dos históricos militantes enviados para a China para receber treino político-militar,  tendo sido inclusive  recebidos pelo então "grande timoneiro", Mao Zedong, em 1961 (Vd. foto acima). Eis a lista completa, por ordem alfabética,  do grupo dos "primeiros comandantes da guerrilha", formados na Academia Militar de Pequim (nenhum deles hoje vivo, o último a morrer foi o Saturnino Costa, em 2021):
  • Constantino Teixeira
  • Domingos Ramos
  • Francisco Mendes
  • Hilário Gomes,
  • João Bernardo Vieira (Nino)
  • Manuel Saturnino da Costa
  • Osvaldo Vieira
  • Pedro Ramos
  • Rui Djassi
  • Vitorino Costa

Sabemos que Vitorino Costa era um homem próximo de Amílcar Cabral (e de Luís Cabral) e que a sua morte foi sentida como um sério revés para a guerrilha, em preparação. Também Bobo Keita (ou Queita)  se refere ao seu nome, na sua biografia "De campo em campo", escrita por Norberto Tavares de Carvalho, (ed. autor, 2011).  É um dos seus vinte guerrilheiro do PAIGC  que morreram de morte violenta, e que ele evoca, no final do seu livro (p. 237):

(...) "Vitorino [o autor escreve Victorino ] Costa era responsável pela mobilização da zona de Quínara, Fulacunda, Tite, S. João [ correspondente então à Zona 8 do PAIGC - Bolama - Tite - Fulacunda - Buba - Empada - Darsalame.] .  

"Em plena campanha de recrutamento, foi pernoitar numa tabanca cujo chefe colaborava com os portugueses. Vitorino Costa foi denunciado.  Era no tempo daquele  que era conhecido como 'capitão Curto', um militar português muito temido pela população. O seu ultimato era conhecido: 'Fogo ou chapa'. O fogo significava um tiro na cabeça  e chapa referia-se ao emblema do Partido.  Quem era suspeito de pertencer ou de colaborar com o PAIGC, ou entregava o emblema ou era morto. 

"O capitão Curto, uma vez alertado  da presença de militantes do Partido na região, invadiu a tabanca com os seus homens.  Vitorino Costa viu-se  cercado e tentou defender-se com a única pistola que possuía. Naquele tempo , no princípio da luta, o Partido não dispunha ainda de armas. O combate era desigual. Depois de ter sido morto a tiro, foi decapitado e a sua cabeça enfiada num grosso ramo com o qual os portugueses exibiram a cabeça do nosso camarada, fazendo-a circular por toda a tabanca, ameaçando e intimidando a população a não colaborar com os 'turras' (...). Esta cena ocorreu antes do início da guerra. Foi em 1962". 

3. Luís Cabral, na suas memórias ( "Crónica da Libertação", Lisboa, O Jornal, 1984), tem uma versão ligeiramente diferente deste episódio (pp. 127/128);

(...) "No Centro-Sul, na região de Quínara, a situação também se tornava difícil. Depois da sua saída precipitada do Gabu  [onde foi cercado em Canquelifá, escapando por pouco às autoridades alertadas pelo chefe da tabanca, vd. pp. 115/117 ], Vitorino Costa tinha sido enviado a esta região para reforçar a equipa que já lá se encontrava . Instalou-se na área de Tite (...). 

"Vitorino era um jovem com muito orgulho e estava entre os quadros do Partido que tinham mais habilitações literárias. (...) Apercebia-se facilmente nele o desejo de fazer tudo para cumprir o melhor possível a sua missão em Quínara.

"Vitorino dormia com os seus homens na tabanca de S. Joana , na área de S. João  [gralha ?  seria Santa Maria ? não localizámos este topónimo, S. Joana,  na carta e São João, 1955, escala 1/50 mil], quando a casa foi cercada pelas tropas coloniais. O inimigo tinha conhecimento das nossas fracas possibilidades de defesa (...).

"No seu grupo, só o Vitorino tinha uma pistola e foi com ela  que conseguiu chamar a atenção das forças inimigas, às quais ainda resistiu corajosamente o tempo necessário para a retirada dos  seus companheiros.

"Gravemente ferido, (...) morria pouco depois,  O seu corpo, transportado num veículo,  foi levado pelas tropas coloniais a várias tabancas de Quínara. Ao seu companheiro  Seni Sambu,  cortaram-lhe a cabeça, que  foi exposta em Fulacunda, sua terra natal, em presença da sua própria mãe (...).


4. Não encontrámos uma única foto individual de Vitorino Costa no Arquivo Amilcar Cabral que, em boa hora, passou a estar disponível, para consulta, a partir de 20 de janeiro de 2013.  Na foto em grupo, tirada em Pequim, em 1961, e acima reproduzida, não temos a certeza de quem é o Vitorino Costa (nem a maior parte dos outros elementos do PAIGC).

De qualquer modo, sabemos que o capitão Curto e a sua CCAÇ 153 foram inimigos mortais do PAIGC. O Vitorino Costa (e mais alguns dos seus homens) terá sido  morto em meados de 1962 (talvez julho ou junho). 

A versão que sabíamos é que a tabanca onde foi abatido o Vitorino Costa seria em Darsalame, e a sua "cabeça" terá sido trazida para Tite, sede do BCAÇ 237.  Tratava-se de um "grande ronco" para as autoridades portuguesas em luta contra "o início da subversão", e foi seguramente um grande revés para o PAIGC (*) que, oficialmente, só vai começar a luta armada em 23/1/1963, com o primeiro ataque ao aquartelamento de Tite.

Falámos ao telefone, em tempos, em 2010,  com dois camaradas contemporâneos dos acontecimentos: o fur mil Octávio do Couto Sousa, da CCAÇ 153, de Ponta Delgada, e o José Pinto Ferreira, ex-1.º cabo radiotelegrafista, CCS/BCAÇ 237 (Tite, 1961/63), do Marco de Canaveses.   Infelizmente nenhum deles integra,  ainda hoje,  a nossa Tabanca Grande, apesar do nosso convite, e de já  termos publicado postes com o seu nome (**). Dada a delicadeza do assunto, o Octávio do Couto Sousa não nos autorizou, na altura, a publicação do seu depoimento; ele integrava o grupo do cap Curto que cercou, "em Darsalame" (sic),  o Vitorino Costa (menos de 30 homens).

Seria importante o testemunho de mais camaradas sobre estes acontecimentos do início (mal conhecido) da guerra. De qualquer modo, tanto o Octávio do Couto Sousa como o José Pinto Ferreira  reforçaram a ideia de que o  capitão Curto, pese embora a lenda a que está associada o seu nome na Guiné (mesmo ao fim de mais de meio século!), foi um militar destemido, corajoso e competente. (Temos 13 referências sobre este oficial, que infelizmente já faleceu em  18/11/2018, com o posto de ten gen ref.) 

No livro da CECA, não encontrámos qualquer referência a este episódio (Vd. Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 6.º volume:  Aspectos da actividade operacional. Tomo II: Guiné. Livro 1. Lisboa: 2014,  538 pp).

De qualquer modo, nunca é demais recordar que ao nosso blogue interessa apenas a verdade dos factos. E, como é nossa norma, não fazemos juízos de valor sobre o comportamento, individual, de nenhum combatente da guerra colonial na Guiné, muito menos dos nossos camaradas operacionais (de soldado a capitão). (***)

 Sobre a CCAÇ 153, escreveu o nosso camarada Octávio do Couto Sousa [Mafra, 1959, Tavira em 1959/60; furriel miliciano em 1960/61; sargento miliciano em 1962/63], em comentário ao blogue Rumo a Fulacunda, em 2/10/2008:

    (...) A Companhia 153 proveio do RI 13, de Vila Real, com cabos e praças daquelas redondezas, alguns com nomes das suas terras, o Vila Amiens, o Chaves, etc. Como disse no primeiro escrito, foi uma pena termo-nos separado em Vila Real, terminada a comissão, desejosos todos de partir para as nossas famílias, sem o cuidado de trocar endereços que nestes anos seriam preciosos para nos reencontrarmos. A maioria dos oficiais e sargentos foram mobilizados de outras zonas. No nosso caso e do João M. C. Baptista, estávamos já na disponibilidade e a viver nos Açores.

    O nosso Comandante de Companhia foi o Capitão, hoje General, José dos Santos Carreto Curto.

    Fomos a única companhia em todo o Sul da Guiné em 1961, com um pelotão em Buba e uma secção em Aldeia Formosa. Tivemos depois um pelotão em Cacine. Estivemos também aquartelados em Cufar numa fábrica de arroz, assim como em Catió, até que tudo se agudizou em termos operacionais. Para Buba chegou uma companhia, a 154, outra para Cacine e por muitas outras localidades foram chegando mais unidades consoante a guerra se intensificava.

    As fotos mostram o quartel de Tite onde se instalou o primeiro Batalhão, o 237, ao qual passámos a pertencer como tropa operacional e por questões de organização.

    Acompanhámos o primeiro ataque a Tite [em 23 de Janeiro de 1963], de Fulacunda saíram reforços nos quais estivemos integrados, visto que o Batalhão, como sede, não estava ainda operacional.

    A nossa companhia, a 153, acabou por ficar toda junta e em várias missões percorremos todo Sul na busca e destruição das casas de mato que o PAIGC proliferava por tudo quanto eram zonas mais ou menos isoladas. (...)


    5. Há uns largos anos atrás (mais de doze!), recebemos uma mensagem de um leitor nosso, guineense, que nunca chegámos a publicar... (Na altura, trabalhava localmente para as Nações Unidas.) Achamos oportuno fazê-lo agora, até na esperança de haver mais elementos informativos sobre este caso.

    De: Augusto Domingos  Costa <costa4@un.org>

    Data - quarta, 8/06/2011, 16:48

    Assunto -  Em busca de informações

    Caro Luís Graça!

    Saudações de uma longa vida a juntar e reconstruir memórias de um período agridoce e extremamente rico em termos de relacionamento humano entre nossos dois povos.

    Sou um cidadão guineense que vai lendo, sempre que possa, memórias plasmadas no vosso blogue. Mas interesso-me, neste momento, da história da CCAÇ 153, do lendário Cap Curto, Fulacunda, 1961/63. Já li o depoimento de José Pinto Ferreira, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, acerca do Cap Curto não ter mandado cortar a cabeça do Victorino Domingos da Costa, e ter sido injustamente diabolizado com esse cunho. 

    Interesso-me também em saber a verdade, sem rancores nem mágoas, por esse Senhor que foi decapitado ser o primogénito da nossa família. Aguardo com serenidade o depoimento do ex-Fur Mil Octávio do Couto Sousa porque temos o objecto de encontrar as ossadas e trazê-las para Bissau.

    Um abraço,
    Augusto A. Domingos da Costa
    _______

    Notas do editor:


    (...)  Carta do futuro diplomata do PAIGC e da República da Guiné-Bissau, Gil Fernandes, a estudar em Boston, EUA, datada de 1/12/1962, dirigida a Amílcar Cabral. Começa nestes termos:

    "Caro Amílcar: Foi com grande consternação que recebi a sua última carta relatando a morte de Vitorino Costa. Eu e ele fomos grandes amigos e fui por algum tempo seu explicador. A sensação de choque  que se recebe perante acontecimentos desta natureza é absolutamente  indescritível, este é mais um crime que mais tarde os portugueses terão que dar conta. Imagino em que estado é que o Amílcar se deve encontrar, mas confio inteiramente na sua perseverança, agora é que é preciso mais coragem"  (...)"


    (...) "Fui telegrafista muito activo ao serviço do Comando do BCAÇ 237, o que me permitiu assimilar algumas verdades nunca desmentidas. Dito isto, peço que aceitem e reflictam no que se diz nos Postes acima referidos:

    (...) "O Comandante da CCAÇ 153 foi o Capitão José dos Santos Carreto Curto, aquartelado em Fulacunda. Era um oficial corajoso, visto como inimigo fidalgal pela Rádio Conakry. Nunca terá cortado cabeças a ninguém, mas tão só sido acusado injustamente de um acto menos digno que terá sido praticado por um seu subordinado no IN, morto quando fugia para o Rio. Actos repelentes, sem confirmação, não devem ser credibilizados." (...)

    Vd. também poste de 5 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19259: (D)o outro lado do combate (39): Vídeo de 2/3/2008 com entrevista a antigo guerrilheiro do PAIGC, contemporâneo do cerco a Darsalame, em julho de 1962, pelo grupo de combate da CCAÇ 153, comandado pelo cap inf José Curto (Luís Graça)

    (***) Último poste da série > 5 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23847: Casos: a verdade sobre... (32): o pós-25 de Abril no CTIG, as relações das NT com o PAIGC, a retração do dispositivo militar e a descolonização

    quinta-feira, 23 de julho de 2020

    Guiné 61/74 - P21193: PAIGC: quem foi quem ? (14): Julião Lopes, ex-craque da seleção nacional de futebol, comandante da base central do Morés, comandante da Marinha de Guerra até ao golpe de Estado do 'Nino' Vieira, em 14 de novembro de 1980




    1. Mensagem, a partir de Abu Dhabi, enviada pelo nosso coeditor Jorge Araujo, em 3 do corrente:


    Caro Luís,
     Bom dia.
    Envio a foto de "família" do grupo que estagiou em Praga, em 1961, onde consta o Julião Lopes. (*)

    Até breve.

    Jorge Araújo.


    2. Comentário do editor LG:

    Este Julião Lopes, comandante da base central do Morés, será o futuro comandante da Marinha de Guerra da Guiné-Bissau, depois da independência e até ao golpe de Estado de ‘Nino’Vieira, em 14 de novembro de 1980, altura em que foi preso.

    Era, no final dos anos 50/princípios de 60, um craque da seleção nacional guineense... Passou à clandestinidade, fugindo para Conacri em finais de 1960, com outros futebolistas conhecidos, populares na época, como o Bobo Keita, o Lino Correia (, da UDIB), o João de Deus, e outros, jovens que viviam no bairro do Pilão (ou Pilum, ou Cupelom) (**).

    Recorde-se que o Bobo Keita pertencia, na temporada de 1960/61, à equipa da primeira divisão do Sport Bissau e Benfica, embora ele fosse "sportinguista".

     No seu livro de memórias (, resultante de entrevistas com Norberto Tavares de Carvalho, publicado em 2011), relata este episódio da fuga, de vários grupos de futebolistas, de Bissau até Conacri. Diz ele que "de janeiro a outubro de 1961 , estivemos em Conacri a receber aulas do [Amílcar] Cabral" (p. 67). Foi nessa altura [, ou mais tarde, 215/11/1962] que morreu o Lino Correia, num acidente estúpido: "ao executar um salto mortal, caiu e quebrou o pescoço"... 

    Em outubro de 1961, "fomos destacados para a mobilização no Leste"... Bobo Keita não faz referência ao grupo que, entretanto,  partira para Praga (capital da antiga Checoslováquia), onde se incluía o Julião Lopes (foto acima).

    Há, no livro do Bobo Keita (ou melhor, do Norberto Tavares de Carvalho) , mais algumas breves referências ao Julião Lopes: 

    (i) na base de Kumbagnhor / Kumbamori, no Senegal, numa casamento de um camarada (p. 108); 
    (ii) como comandante da base central do Morés (em 7 de novembro de 1967) (p. 120); 
    (iii) na discussão sobre a atribuição de patentes de comandante (p. 200); 
    (iv) em Sambuiá, em 1968, quando foi planeado atacar o aeroporto de  Bissau (p. 206), operação essa levada a cabo pelo André Gomes e sua equipa de 7 homens (p. 206);
    (v) há ainda uma foto de grupo (p. 210).

    E é tudo o que sabemos sobre o "homem da bola"...que chegou a comandante da guerrilha, tal como o Bobo Keita. Ambos, apesar de tudo, tiveram sorte de chegar vivos à independência. E ambos chegaram ao topo da hierarquia da guerrilha: foram "comandantes", independentemente de outros aspetos controversos do seu percurso e do seu comportamento. Ao Julião Lopes, nomeadamente, são atribuídos, durante e depois da luta pela independência,. comportamentos típicos do sociopata.



    PAIGC > s/l > s/ d> [posterio a 25 de Abril de 1974] > Da esquerda para a direita: Comandantes Abdulai Bari, João da Silva, Julião Lopes, Armando Soares da Gama, André Gomes, um elemento não identificado,  e de perfil  Bobo Keita, em companhia da sra. Maria Augusta Saúde Maria.

    Foto: arquivo de Bobo Keita (2011) (cortesia de Norberto Tavares de Carvalho - De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011, 303 pp. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes.

    De qualquer inporta recordar que o futebol foi um viveiro de militantes do PAIGC: Bobo Keita, que nasceu no Cupelom [ ou Pilão] de Baixo, em Bissau, jogava na equipa do bairro, o Estrela Negra... Dela faziam parte futuros militantes nacionalistas como o Umaro Djaló, Julião Lopes, Corona, Ansumane Mané (outro que não o brigadeiro), Lino Correia (que era de Mansoa)...

    Keita, miúdo de rua, não tinha botas... As primeiras que teve foram-lhe emprestadas (e depois dadas) pelo Sport Bissau e Benfica. Jogou com elas em Mansoa. Jogará depois nos juniores do Benfica e, dada o seu talento, chega rapidamente à seleção provincial.

    Tinha então 17 anos. Como a idade mínima legal eram os 18, à face das normas internacionais do futebol, tiveram que lhe fazer uma "nova" certidão de nascimento (sic)... A partir daí,  conforme as circunstâncias ou convienências, passou "a exibir dois bilhetes de identidade, um com dezassete anos e outro com dezoito anos", confidencia o Bobo Keita (1939-2009) ao seu biógrafo (p. 31), o Norberto Tavares de Carvalho (, vítima, ele próprio,  do 'spinolismo' e do 'ninismo'). (****): estudante de liceu, preso na Ilha das Galinhas, e  libertado com o 25 de Abril de 1974, esteve, depois com a golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, nas masmorras de 'Nito' Vieira, até maio de 1983.

    3. Nota do Jorge Araújo, em Abu Dhahi (em comentário posterior a este poste):
    Reportando-me em particular à "foto de família" acima [Praga, 1961,] , e para contextualização da mesma, acrescento:

    (i)  com excepção do Amílcar Cabral, os restantes dez elementos foram os eleitos que seguiram para a Checoslováquia, em Setembro de 1961, para aí cumprirem um estágio de três meses;

    (ii) a deslocação a Praga deste grupo é, pois, consequência de um convite (oferta) formulado ao PAIGC de igual número de "bolsas";

    (iii)  este assunto é apresentado e analisado na reunião do Secretariado do Partido, realizada em casa de Amílcar Cabral [Conacri], em 20 de Setembro de 1961.

    (iv) - Na acta, escrita em francês, consta o seguinte:

    Tradução: 

    (...) “Estamos num caminho que ninguém na África jamais seguiu: ter estruturas antes da independência. Também tenho o prazer de vos informar que a Checoslováquia nos oferece mais 10 quadros [bolsas de estágio] que devemos enviar o mais rapidamente possível, tais como: Mecânica e Electricidade, Agricultura (máquinas), Estradas, Construções, Administração Interna, Planeamento Económico, Higiene e Acção Social, Distribuição de bens de consumo, Restaurantes e hotéis. Temos que pensar cuidadosamente sobre quem são as pessoas que devem ir para este estágio.” (...)

    Citação: (1961), "Acta da Reunião do Secretariado do PAIGC", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34129

    ___________

    Notas do editor:


    (...) Diz o relatório (p. 18):

    "Por informações colhidas na base Central sobre este camarada [Julião Lopes], soube que num ataque [realizado em Outubro de 1963] do grupo por ele dirigido, em Encheia, contra o Chefe de Posto [José Cerqueira Leiras] e não contra a tropa colonial, que numa rajada da sua metralhadora matou três camaradas, a saber: Luís Mendes "Mambará", João Balimbote e Joãozinho Amona, ficando ele, Julião, ferido com uma bala de um dos camaradas daqueles que morreram, que o atingiu propositadamente com a intenção de o matar, procurando assim vingar-se por si e seus companheiros, tendo nesta altura também ficado ferido, e ainda pelo camarada Julião Lopes, o camarada Paulo Santi

    Depois de arrebentada a porta da residência do Chefe de Posto [José Cerqueira Leiras], para ser liquidado, o respectivo chefe, o camarada Julião Lopes, impediu os seus companheiros de o fazerem, alegando bastar já o mesmo ter uma perna quebrada [balas nas pernas].

    O Cmdt deste ataque, Julião Lopes, foi depois transportado para o Hospital de Ziguinchor, a fim de ser intervencionado, onde se manteve até ao dia 09 de Janeiro de 1964, 5.ª feira, data em que deu início ao seu regresso à base Central do Morés. (..:)



    (**) Vd. poste de 29 de outubro de  2011 > Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)

    domingo, 19 de julho de 2020

    Guiné 61/74 - P21184: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Óio-Morés em 1963: o caso da queda do T6 FAP 1694 em 14 de outubro de 1963 (Jorge Araújo) - II (e última) Parte


    Foto 5 - Citação: (1963-1973), "Comandante Pedro Pires com dois combatentes do PAIGC", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43495, com a devida vénia.


     Foto 6 - Citação: (1963-1973), "Guerrilheiros do PAIGC atravessando um rio", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43140, com a devida vénia.
      



    O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,
    CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior; vive em, Almada, está atualmente nos Emiratos Árabes Unidos; tem cerca de 260 registos no nosso blogue.


    MEMÓRIAS CRUZADAS
    NAS 'MATAS' DA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS EM 1963
    - NUANCES DA MISSÃO DE LOURENÇO GOMES EM OUT'63 -
    II (e última) PARTE



    Mapa da região do Óio-Morés (satélite) com infografia da queda do «T-6 matrícula FAP 1694», pilotado pelo Cap Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, ocorrida em 14 de Outubro de 1963, 2.ª feira.

    ► Continuação do P21151 (08.07.20)


    No primeiro fragmento deste trabalho – P21151 (*) – procedemos à análise dos temas inseridos no relatório elaborado pelo dirigente do PAIGC do Bureau de Dakar, Lourenço Gomes (1922-1999?), natural do Canchungo (Teixeira Pinto), referente à sua "missão" de contacto com três das bases da região do Óio-Morés (território da Zona Norte): Morés (base Central), Fajonquito e Maqué, realizada entre 08 e 18 de Outubro de 1963.

    Com recurso a outras fontes de informação primária, relacionadas com os mesmos factos, foi possível identificar alguns conflitos factuais entre as «Memórias Cruzadas», nomeadamente o episódio do acidente (queda) do «T-6 FAP 1697», pilotado pelo Cap Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, ocorrida em 14Out1963, naquela região, e que serviu de pretexto para a escolha do subtítulo.

    Agora, nesta segunda (e última) parte, com recurso à mesma metodologia, utilizamos um outro relatório, que estava apenso ao primeiro do Lourenço Gomes, elaborado por Pedro [Verona Rodrigues] Pires (1934-), natural de São Filipe, Ilha do Fogo, Cabo Verde, a partir das informações transmitidas pelo guia - "estafeta" Biagué Sagne, após a sua chegada a Dakar, depois de ter conduzido dois desertores da marinha portuguesa até Ziguinchor.

    Para além de ser considerado como elemento de confiança dos dirigentes da estrutura de Dakar, Biagué Sagne ("estafeta de eleição") era quase sempre o escolhido para as "missões" de ligação entre os dois lados da fronteira Norte (Senegal/Guiné-Bissau), conforme consta na literatura. 

    Conhecedor exímio da geografia do território e simultaneamente dos itinerários de risco controlado, face ao contexto das movimentações militares, Biagué era elogiado por ser um caminhante muito resistente, a fazer lembrar, na época, a "Locomotiva de Praga", apelido atribuído ao checo Emil Zátopek (1922-2000), o único atleta a vencer os 5.000 metros, 10.000 metros e maratona numa mesma Olimpíada (J.O. de 1952, em Helsínquia, na Finlândia), e que em 2012, durante as celebrações do centenário da «IAAF» (International Association of Athletics FederationsAssociação Internacional de Federações de Atletismo), realizadas na sua sede em Monte Carlo, no Principado do Mónaco, foi imortalizado no "Salão da Fama do Atletismo".

    2.2 - RELATÓRIO (elaborado por Pedro Pires)

    ► Segundo informações colhidas a partir das declarações do Biagué.

    Dakar, 21 de Outubro de 1963 (data em que assinou o documento dactilografado)

    Bombardeamento do dia 14Out63 (2.ª feira) = 

     Houve 8 feridos entre os quais uma rapariga que ficou com uma perna fracturada. O Tiago [Aleluia] Lopes feriu-se na cabeça, mas está completamente restabelecido. O bombardeamento foi muito próximo da base [Central] do Osvaldo Vieira. Foi perto da tabanca de Morés.

    # «MC» ▼ 

    Os oito feridos referidos acima, cujos nomes não foram identificados neste relatório do Pedro Pires, seriam divulgados, quatro meses mais parte, por Bebiano Cabral d'Almada, no âmbito da sua (nova) visita às bases do Óio – P21095 (P-I) – a saber:    




    Citação: (1964), "Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41387, com a devida vénia.

    Por outro lado, e como contraditório à obra de Norberto Tavares Carvalho – "De campo em campo: dos estádios de futebol à luta de libertação nacional dos povos da Guiné e de Cabo Verde"; conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011, recupero a opinião transmitida pelo Luís Graça, a propósito de duas notas incluídas no P17123, «(D)o outro lado do combate: Vida e morte de Simão Mendes, vítima de bombardeamento, pela FAP, da base central do Morés, em 20 de fevereiro de 1966 (Jorge Araújo)».

    ▬ Dizia, então, o camarada Luís Graça:  

    (…) "O Bobo Keita não é bom de datas. Antecipou, ao que parece, a morte do Simão Mendes em 1 ano e três meses…".

    De facto, podemos hoje concluir que algumas das datas e contextos relatados pelo Cmdt Bobo Keita (1939-2009), "nas suas conversas publicadas em livro" [capa ao lado], estavam desfasadas da realidade, o que se compreende, face aos muitos "sustos" que, certamente, apanhou durante os anos em que foi guerrilheiro.

    Exemplos retirados da op. cit. p. 244:

    "(vi) Morreu [Simão Mendes], mais tarde, no intenso bombardeamento da base de Morés ocorrido no dia 14 de Novembro de 1964". Seria que estava-se a referir ao bombardeamento de 14 de Outubro de 1963, aquele que acima é citado, onde aconteceram 8 ou 13 mortes… (mas não a de Simão Mendes)?

    "(vii) Nesse bombardeamento, "os camaradas Juvêncio Gomes e Tiago Aleluia Lopes foram atingidos por estilhaços", na cabeça (o Tiago Lopes), nas mãos e parte do rosto (o Juvêncio Gomes). Mais uma vez se infere que a data aludida por Bobo Keita não confere, mas sim a de 14 de Outubro de 1963, onde o Tiago Lopes e o Juvêncio Gomes foram, de facto, feridos, o primeiro recuperou na base, do ferimento na cabeça, e o segundo foi evacuado para o Hospital de Ziguinchor, por ter sido atingido com "estilhaços na cara e no pescoço, e com fractura do braço esquerdo e ferimentos no pé", conforme consta na descrição supra.

    Barco = 

    [Durante a evacuação dos oito feridos], os portugueses surpreenderam os camaradas quando atravessavam o rio [Cacheu] numa cambança, cambança por onde passaram com o Rendeiro e o Timóteo [em 18 de Setembro de 1963], e apreenderam o barco que viera de Conacri há pouco tempo. 

    Os soldados fizeram fogo sobre os nossos e tiveram que abandonar o barco. Não houve feridos.

    Base = 

    O Osvaldo Vieira vai mudar de base.

    Soldados portugueses = 

    Estão detidos em Ziguinchor. Foram conduzidos por um guia [Biagué Sagne] que foi encarregado desse serviço pelo Zain Lopes [Rafael Barbosa]. Precisamos de ver esse problema dos refugiados no Senegal mais profundamente. Espero as vossas instruções nesse sentido. Não podemos ter confiança absoluta em ninguém e julgo que é necessário separar o Lar [Ziguinchor] do Bureau [Dakar].

    Julião [Lopes] = 

    Este camarada continua em Ziguinchor [ferido por um dos seus três camaradas por ele assassinados em Encheia] porque não está completamente restabelecido. O Paulo Santi [que havia sido ferido, também, pelo Julião Lopes, no mesmo episódio de Encheia] já entrou.

    Chico Té [Francisco Mendes] e o Constantino Teixeira = 

    Devem vir a Dakar para seguirem para Conacri [a fim de reunirem com Amílcar Cabral].

    # «MC» ▼ 

    A reunião teve lugar a 27 de Outubro de 1963, domingo, encontro que contou apenas com a presença do Secretário-Geral e de Chico Té [Francisco Mendes], na qualidade de responsável político. 

    Durante a sessão de trabalho foi apresentado e analisado o novo "plano de acção militar" para as zonas da Região do Óio (Central) e Gabú (Interior Norte). As "missões" a levar à prática incluíam:

    (i) – meios de reconhecimento;
    (ii) – criação da base em Geba;
    (iii) – controlo da ligação fluvial e terreste;
    (iv) – receber mais gente do Yaya [Koté];
    (v) – intensificar as acções de sabotagem;
    (vi) – liquidação dos Régulos (?).

    Para a supervisão deste "plano de acção militar", foram indigitados trinta responsáveis (Comndantes), distribuídos pelas diferentes bases existentes nessas zonas.
    De seguida apresentam-se os pontos mais relevantes dessa reunião, indicados acima.



    Citação: (1963), "Reunião com Chico Té", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41265, com a devida vénia.

    Oportunistas = 

    Teriam estado na Gâmbia onde teriam encontrado o Cônsul e mesmo teriam ido a Bissau os oportunistas da clique do Benjamim Bull. Devem ter feito parte desse grupo: Bull, Domingos Araújo e Madjo. 

    Teriam mesmo falado com o Rafael Barbosa, em Bissau, segundo as informações de Quebá Mané. "Foram ver o Governador e este pediu-lhes para contactarem o Rafael…". O Domingos Araújo esteve ausente cerca de 23 dias. Teria ido a Bissau via Gâmbia.

    Carta = 

    Os camaradas interceptaram uma carta do Cônsul que era dirigida a Domingos Araújo e uma outra a Ernestina para o Cônsul. As cartas estão com o Lourenço Gomes.

    Malas de Correio = 

    Os camaradas interceptaram uma camioneta do Lulula e apoderaram-se da mala do correio.

    Timóteo e Rendeiro = 

    O Rodrigo Rendeiro seguiu para Bissau. O Timóteo Pinto continua em Dakar, pelo menos, estava cá há cinco dias. Estou a ver se consigo descobrir o paradeiro dele. O Osvaldo Vieira e os camaradas do interior já estão informados da fuga deles.

    # «MC» ▼ 

    Sobre as "Histórias do Rodrigo Rendeiro e Timóteo Pinto" sugere-se a consulta das narrativas a seguir mencionadas:

    ▬ P17920: "A odisseia do português, da Murtosa, Rodrigo Rendeiro: uma viagem atribulada, de 3 a 26 de Setembro de 1963, de Porto Gole, … até ao Senegal (Samine, Ziguinchor e Dacar)".

    ▬ P17926: "Continuação da odisseia do Rodrigo Rendeiro que acabou por regressar a Bissau, com um salvo-conduto do consulado da Suíça em Dacar, que o levou até à Gâmbia…".

    ▬ P17929: "O Rodrigo Rendeiro, depois de regressar a Bissau, terá fornecido preciosas informações à FAP, permitindo a localização (e bombardeamento) das bases do PAIGC em Morés e Dando…".

    Oportunistas = 

    Teriam estado na Gâmbia há uns quinze dias [início de Outubro'63], coincidindo com a partida dos dois traidores [Timóteo e Rendeiro].

    Lourenço Gomes = 

    Ele foi detido antes de ontem juntamente com os soldados portugueses [Manuel José Fernandes Vaz e Fernando Fortes]. Haverá relação entre os panfletos tendenciosos e a atitude do Governo de Casamansa? Penso que não. Esses panfletos não terão, pelo menos, um estímulo do Governo do Senegal? Qual a atitude do Partido perante o "tracked" [vigia/controlo de movimentos] que se refere a Cacine e Casamansa?

    Polícia = 

    Estive hoje por duas vezes na "Sûreté" [Segurança), mas o Director e seu Adjunto estavam ausentes.

    Medicamentos = 

    Peço que levem em consideração o pedido do Lourenço Gomes.

    Peças do motor Kelvin = 

    É preciso que mandem as peças avariadas para poder comprá-las.



    Citação: (1963), "Relatório sobre a visita de Lourenço Gomes à região de Óio", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41412, com a devida vénia.

    ► Fontes consultadas:

    Ø  CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07075.147.046. 

    Título: Relatório sobre a visita de Lourenço Gomes à região do Óio. 

    Assunto: Relatório assinado por Lourenço Gomes sobre a sua visita ao interior, região de Óio. Visita aos locais onde foram abatidos os aviões portugueses; ataque à base de Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira]. Necessidade de medicamentos no interior. Material de Guerra.Despesas. Viatura para transporte dos feridos. Envio dos militares portuguesas, Fernandes Vaz e Fernando Fortes, para a base de Abel Djassi. Em anexo documento assinado por Pedro Pires, datado de 21 de Outubro de 1963, com as informações colhidas das declarações de Biagué. 

    Data: Quinta, 24 de Outubro de 1963. 

    Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios XI 1961-1964.

     Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. 

    Tipo Documental: Documentos.

    Ø  Outras: as referidas em cada caso.

    Concluído.
    Termino, agradecendo a atenção dispensada.
    Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
    Jorge Araújo.
    09JUL2020
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    Nota do editor: