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sábado, 8 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24459: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (3): Um tiro de misericórdia!

Contos com mural ao fundo (3)> Um tiro de misericórdia! 

por Luís Graça


1. Conheceste-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheceste-o, de Tavira, do CISMI, do Centro de Instrução de Sargentos Milicianos. Haviam pertencido, ambos, à Companhia de Instrução comandada por uma figura impagável, um tenente gordinho, que, dizia-se, tinha-se coberto de “honra & glória” no Norte de Angola. Já esqueceste o seu nome, para bem da tua higiene mental.

Em Bissau, estavas hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite. (Era assim que, na época, se chamavam, “en français, comme il faut!”, todas as espeluncas da noite, em Lisboa e,  onde se bebia uísque marado, "de Sacavém", e havia umas miúdas de minissaia e cueca vermelha, peludas,  que te faziam olhos remelosos, e cócegas no pescoço… Tinham unhas compridas, como os felinos, pintadas de um verniz vermelho horroroso. Faziam, pela vida, coitadas. E viviam nas periferias de Lisboa que cresciam então como cogumelos, em arredores como a linha de Sintra, começando na Reboleira.)

O raio da espelunca de Bissau tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi, “Em tua casa” … Convidativo ao voyeurismo: "entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa, não importa que seja a 4 mil quilómetros de distância de Lisboa"… Era já uma antevisáo do bar de alterne...

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de patacão, que não viam há meses um pedaço de chicha (leia-se: carne de fêmea, branca, “comestível", em linguagem de "cabra-macho"), o Chez Toi devia ter um especial encanto que tu nunca conseguiste saborear nem descortinar…

Enfim, trazia aos machos solitários, tugas, que vaguegavam por Bissau, como baratas tontas,  algumas vagas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa e Porto, que o resto era paisagem, no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato, tão triste, tão desolador, tão deprimente, tão… (Porra, já chega!)

Uma deusa chamada Sophia tinha, em 1962, descrito no seu  “Livro Sexto” (um livrinho de poemas de cento e poucas páginas),  esse país liliputiano, onde quem mandava era um velho abutre:

“O velho abutre é sábio e alisa as suas penas, / A podridão lhe agrada e os seus discursos / Têm o condão de tornar as almas mais pequenas.”

Já não sabes como lá foste parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Indicação do turismo local, ou de um algum "proxegeneta" da 5ª Rep (o café  Bento), enfim, não te recordas. Para o caso também não interessa. Andavas desenfiado, há uns dias, em Bissau, antecipando o gozo do início da licença de férias na Metrópole. Tu e outro gajo da tua companhia. Aguardavam o avião da TAP para Lisboa. Tinham vindo com alguma antecedência, de noite, no "barco turra", rio Geba abaixo, outra pequena grande aventura...

Sim, era assim que se dizia: o gozo da licença de férias!... Eram as primeiras férias pagas da tua vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Farias questão de dizer, mais tarde, já "paisano", que não tiveste problemas de consciência nem devolveste, à Pátria, o dinheiro, sujo, de “mercenário”, saudação a que tiveste direito à chegada, num dos primeiros grafitos que te lembras de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa: “Não sejas otário, / muito menos mercenário; / isto vai mal, / diz não à guerra colonial”).

Otário, mercenário?!
... Confessaste depois que te sentiste mal. Insultado, mesmo com as tuas reservas em relação à puta da guerra em que estavas metido. Sentiste que era um insulto a quem, como tu e os teus soldados, não deram o salto para o estrangeiro de fora, e cumpriam em África, longe de casa, uma missão em nome da Pátria, a qual estava acima de todos os regimes... Santa ingenuidade, a tua!

Estava-se em plena época das chuvas, talvez julho de 1970, já não te recordas bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E tu deixavas para trás um ano de intensa atividade operacional. Nessa noite foste dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, arranhava o francês de praia ou, pelo menos usava expressões, coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris que tu nunca viverias. ) Mas o bas fond em Bissau era, para a tropa-macaca, o Pilão, com má fama e bom proveito.

2. Abra-se aqui um parênteses, para explicar que tu tinhas feito uma aposta, tu e o teu parceiro do Chez Toi, coisas de machos solitários, bravatas, que fazem parte dos ritos de passagem da rapaziada da época: ir "dormir uma noite ao Pilão", antes de embarcar no avião da TAP; o primeiro a “desemparar a loja" e a "cavar", pagava o almoço no restaurante Pelicano, no dia seguinte. Era um teste de resistência, de virilidade e de coragem física... Pobres diabos!...

Ficaram os dois numa espécie de "casa da mariquinhas” lá do sítio, de toscas tabuinhas e telhado de zinco, e cada um foi com a sua “bajuda", cabo-verdiana, os quartos lado a lado, e com a "saída de emergência" por ali perto, mentalmente assinalada, para o que desse e viesse... Trajavam à civil e andavam... desarmados.

Às duas da noite, tu levantaste-te, vestiste as calças, deixaste a nota de 100 pesos que havias combinado com a rapariga, em cima do caixote que servia de mesinha de cabeceira, e saíste...

A atmosfera era sufocante, o zinco transformava as casas em estufa quente, as paredes de tabique deixavam passar os ruídos, de fora e de dentro, e sobretudo não aguentaste o choro de uma criança que dormia debaixo da cama, ao lado do balde do mijo, e em quem tu nem sequer tinhas reparado quando entraste, à luz mortiça de uma vela... Era demais para o teu estofo!...

Bateste à porta do outro quarto onde estava o teu parceiro, três toques secos, com os nós dos dedos, como combinado, e, passada meia hora, regressavam os dois, ao Chez Toi, meio "almareados" (o termo era do teu companheiro de viagem, oriundo do baixo Alentejo, Ourique ou Odemira, já não te lembras ao certo) e bêbados de sono.

3. Logo por azar nessa noite alguém arrombara a porta do teu quarto no Chez Toi, forçara o cadeado da mala de cartão e fanara-te uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, Old Parr e Dimple, para oferecer a quem devias favores, lá na terra, eram toda a riqueza que tu levarias a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionavas comprar no Taufik Saad na véspera do embarque.

Foste de imediato falar com o gordo do gerente do Chez Toi, que estava a aviar copos ao balcão. A conversa tornou-se logo desagradável: sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa, o gerente começou por pôr em dúvida a tua versão. Mas acabou por aceitar ir averiguar o sucedido, face aos veementes protestos, teus e do teu parceiro de aventuras...

As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, ali do "chão de Papel", que fazia o serviço de quartos. Em Bissau, não havia criadas, só criados, como no resto da África colonial ou pós-colonial.

Gerou-se algum burburinho. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque ou gin tónico na mão, juntaram-se a ti e ao teu solidário parceiro do Pilão.

O clima, no barzeco, que tinha música ao vivo, começou a ficar propício à pancadaria e até ao linchamento, depois dos teus protestos perante o gerente, por causa do arrombamento da tua mala de cartão. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais. Toda a gente, afinal, se sentiu lesada...

Tu e o sabujo do gerente já tinham chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque, que andava a servir às mesas, suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum álibi (nem porta, a não a ser a principal, para fugir). Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de insultos de teor racista:

– Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... A culpa é do Caco Baldé, que obriga aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, provavelmente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que tu, mas mais entroncado. Estava visivelmente eufórico, para não dizer embriagado. 
Tiveste então a infeliz ideia de o tentar acalmar, respondendo cilizadamente à sua provocação:

– Ó amigo, vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com os meus camaradas que arriscam todos os dias a vida…

O tipo não te deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça, de garras afiadas, direitinhas à tua carótida… Foi a primeira (e única) cena de porrada, de luta corpo a corpo, em que tu te viste envolvido no teatro de operações da Guiné… De facto, nunca tinhas sentido o "inimigo" tão perto, olhos nos olhos… Foram os dois ao chão, mas os gajos do conjunto (caixa, guitarra elétrica e voz) continuaram a tocar, no meio da algazarra, o "All you need is love"...

Providencialmente foi nessa altura que “ele” apareceu, fardado... "Ele", o teu anjo da guarda... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-te daquela situação de embaraço, apuro e aflição.

Escusado será dizer que o teu agressor também eram afinal,  militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, ou em trânsito para o mato, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar prontamente até ao cais apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a "ramona"… Quando te deste conta, eram já três ou quatro da madrugada…




Excerto do desdobrável publicitário do "Chez Toi", restaurante, pensão e "boite", sita na rua eng Sá Carneiro. Exemplar da coleção do nosso coeditor Carlos Vinhal. Data: Bissau, 15 de fevereiro de 1971. Parece que em 1973 também era conhecido por "Gato Negro"...

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



4. “Ele”, o teu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que "o teu conhecido de Tavira", com quem de resto tu ainda tinhas umas velhas contas por saldar…

Resumidamente, aqui a vai a tua versão dessa história que te estava atravessada e que remontava ao quarto trimestre de 1968, em Tavira.

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da instrução da malta, levaste dele uns socos valentes nos queixos. Tu tinhas adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto "nem a aleijar nem a ser aleijado"… Esperavas, com a tua ingenuidade e boa-fé, que o teu parceiro, com mais cabedal do que tu, 10 ou 12 cm mais alto do que tu, entrasse no jogo do faz-de-conta… Como muitos dos instruendos do CISMI faziam, de acordo com um "tácito código de honra" mais ou menos assumido, se não por todos, por muitos, para quem Tavira era apenas mais uma estaçáo do calvário...

Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. E que pontuava. Estava sobretudo  obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos três melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar, como era o seu sonho…

Ficaste-lhe com um pó dos diabos!... Ainda hoje te doem os queixos da “porrada” que apanhaste, segundo confidenciaste mais tarde… Não tinhas, pois, grandes razões para te lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabaste por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as vossas duas companhias para a Guiné. Trocaram um olá, meio embaraçados ou "encavacados", já o navio tinha passado as Canárias.

– O que lá vai, lá vai. Boa sorte! – foram as únicas palavras de despedida que vocês disseram um ao outro, nos Adidos, em Bissau, depois de relembrarem o episódio de Tavira.

– Sem ressentimentos! E agora, que Deus e os santos te protejam!– terás gracejado tu.

5. Voltaste a reencontrá-lo, por um bambúrrio, nessa noite, no Chez Toi. Afinal, iam ambos de férias. Ficaram com os contactos um do outro. Ele ia para Bragança, sua terra natal. E foi aí que o procuraste, quase cinquenta anos depois, na sequência de uma estadia em Montesinho onde tu passaras uns dias, em turismo. 

Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem que esperavas encontrar precocemente envelhecido, como alguns dos antigos combatentes que tu conhecias, uns já viúvos, solitários e amargurados, a lidar mal com a reforma, as doenças da idade e os fantasma do passado. Mas, não, o Carvalho (era o seu apelido) tinha ganho um novo fôlego, uma "alma nova",  entregando-se agora às delícias da natureza (fazia visitas guiadas no Parque Natural de Montesinho).

(...) “Talvez não acredites, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné. Lá, e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não conseguia, aliás ainda não consigo…

“Sem surpresa, vejo agora que afinal alguns gajos também tinha o seu… diário secreto. Num dos últimos almoços da nossa companhia, lá em baixo, no Sul, tínhamos combinado levar fotos e papéis da Guiné e houve vários camaradas que trouxeram os seus apontamentos, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… No meu caso, eram simples notas,  esboços, rabiscos, até recortes de jornal e revista e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida quotidiana das tabancas por onde andei… Uma forma, afinal, de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo. (Acho que tinha algum talento para a ilustração, que acabei por não desenvolver, depois da "peluda".)

“Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...

“Sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa), tive a veleidade de retomar os meus papéis. Mas a escrita é algo de muito penoso. E eu, afinal, prefiro dar os meus passeios pela serra.

“Tentei voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Não acreditas, mas não tenho mail. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros, pelos meus filhos e netos, pelos amigos, pela malta do grupo dos amigos de Montesinh0

"Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no 'front office'. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província, até me fixar na minha terra natal (sou daqui perto de Bragança, da mesma aldeia da nossa amiga comum que que te deu o meu número de telemóvel. no posto de turismo).

 Enfim, uma vida a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil, de especulação, corrupção e negociatas, trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes das agências a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…

"É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Municipal. Voltei a Bragança, sim, bom filho à casa torna. A minha mulher é professora primária e reformou-se primeiro do que eu... 

"A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade como Lisboa ou Porto. Lisboa, por exemplo, deprime-me. Lá sinto-me como um lobo solitário, encurralado, apanhado pelo Fojo do Lobo.

"Pois é, voltei à folha de papel A4, e ao caderno de linhas, como na 4.ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou me arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de básquete, tal como fui um não menos candidato falhado a Polícia Militar. Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.


"Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei, antes da tropa, com um conhecido advogado aqui da praça que, depois do 25 de abril, haveria de chegar a deputado por um dos partidos do arco do poder. Eu fazia a biscatagem de aprendiz de solicitador. Bati muitos requerimentos em papel selado…

“Ainda te lembras do papel selado?!... Quando o chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um 'Vou-te embrulhar em papel selado!'…


“Mas agora acabou. A minha velha máquina de datilografia está arrumada a um canto.  Foi das primeiras máquinas portuguesas, a aparecer no mercado,  com teclado HCESAR. Não me perguntes a marca... Messa, dizes tu?...Ah, sim, seria uma Messa... De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.

"Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro com as minhas memórias da Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.


“Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invetiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.

"Nasci em 1947  
  como tu, suponho, somos da mesma colheita, não?! – muito longe do mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira, o cardeal-patriarca de Lisboa ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.

"Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher mais nova do régulo, que tinha muitas)… 

"Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais, e em que fui educado na catequese e no seminário. Tive uma educação cristã, como toda a gente na minha terra. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí!).

“Matei, não matei?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. Na realidade, matei, na guerra; não sei das balas que disparei; a matar, de certeza, foi apenas por razões humanitárias, ou em autodefesa... Matei, sim, conscientemente, para abreviar o sofrimento de um  homem ferido de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.

'Medo?', perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, algumas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN, em que estávamos mais expostos. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné. Perdi cedo as ilusões!...


"Se bem te lembras,  fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive,  foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo, na margem esquerda do Rio Corubal, não longe já da foz… Ainda era 'periquito' e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanas da companhia, 'meias-lecas', filhos da mãe...

"Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lados de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Estavam em contraluz, não nos viram... Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta (ou biafada, não te sei dizer ao certo),  mais ou menos da minha estatura, estava por um fio… 

"Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava à beira de um ataque de nervos, e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o 'turra' ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu, nem sequer o sacana do alferes 'ranger', comandante do meu pelotão.

"Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão, o 1.º pelotão, olhava, constrangida, ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. 

"Ainda 'periquitos' com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.

"Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista como eu, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos 'jagudis' e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV, a DO 27, com o sacana do major de operações do batalhão de Tite, nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar por sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...

"Nos olhos do 'turra' pareceu-me ler uma última súplica: 'Depressa, 'tuga', dá-me o tiro de misericórdia... E que o teu deus te pague!'

"Fui tocado, acredita, por aquele olhar de humanidade! Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera e sangrara de imediato, havia dois meses atrás, numa caçada noturna. (Como transmontano, nado e criado no planalto, eu era caçador, não direi exímio, mas era bom caçador.)

"Não, não era um porco, era um homem que estava ali a morrer, igual a mim, exceto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava, na bandeira por que lutava... Trazia amuletos no peito e nos braços, tal como eu que usava um fio de ouro com o crucifixo. Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, as tripas de fora, o sexo esfacelado, gemendo baixinho, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror, piedade e compaixão...


"E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu... A sua cabeça estoirou, a massa encefálica misturou-se com a lama das minhas botas de lona… Nunca mais esquecerei aquela cena atroz. E nunca mais usei aquelas botas, conspurcadas!

"Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDM que nos esperava no tarrafo, no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, no 'gosse-gosse', mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no Leste. 

"Durante semanas, os olhos vidrados do 'turra' não me saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica, injusta e repugnante, de 'Furriel Ca...rrasco'. (Como eu gaguejava um pouco, quando me enervava, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...

"É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. Só vias o rosto dos prisioneiros ou de um ou outro guerrilheiro abatido junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate.

“Só mais tarde, muito mais tarde, li o conto do Miguel Torga, 'O Alma Grande', o gajo de manápulas compridas que era chamado, na aldeia, para apressar a morte dos moribundos. Chama-lhe eutanásia, se quiseres. Neste caso, ele usava o travesseiro para sufocar o moribundo. Tudo isto a pedido da família, que devia ser cristã-nova, e que queria evitar com isso que viesse o abade com os últimos sacramentos, a extrema unção…

"Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma vez ou duas vezes. Numa ocasião, recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da política do Spínola. E isso deu-me algum consolo. Noutra ocasião, o capitão que achava que eu daria também um bom torcionário, e poderia  pôr a 'cantar' um  gajo suspeito da população...  Recusei-me, indignado, o suspeito, um mandinga,  foi entregue à PIDE de Bafatá.

"Não, nunca usaria a faca de mato, se é isso que queres saber. Daquela vez (e única, juro) preferi o tiro na nuca... Fiquei com má fama, dentro e fora da companhia. E, no fim, nem uma merda de um louvor me deram, a começar pelo safado do capitáo, que depois meteu o chico...

"Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo 'uppercut' que te ia pondo KO... Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos que tiveste de desenvolver para te saberes defender melhor... Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti. E acho que estamos quites,  pensando no apuro de que eu te livrei em Bissau, no tal Chez Toi... (já não me lembrava do nome).

"Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos, nem sequer à minha mulher. Um deles até é juiz, ainda pior. Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de perder a sua estima... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... Há um pacto de silêncio em relação âs merdas que cada um fez... Hoje tratam-me pelo meu apelido Carvalho (sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o 'Furriel Ca...rrasco', que era uma coisa que me irritava solenemente. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.


(...) "Como te disse, deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, transmontano como eu, o 'Alma Grande',  da colectânea 'Novos Contos da Montanha', se não me engano... 

"De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do 'abafador', a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos ou terminais... E em que só se chamava o médico, como ainda acontecia na minha aldeia, no tempo dos meus avós e dos meus pais... para passar o atestado de óbito!”...

6. Despediram-se com um grande abraço apertado, com a promessa de tu voltares, em setembro, a seu concelho, para ele te levar a  ver e a ouvir a brama dos veados no Parque Natural de Montesinho... 

Ele por lá ficou, em Bragança, a fazer aquilo que lhe dava gozo, que era ser guia da natureza e levar grupos a descobrir a sua região... Tu voltaste ao Porto, não sem ficares por um bom par de horas, ao longo da autoestrada, a A4, com um nó na garganta não menos apertado que o teu abraço...

© Luís Graça (2019). | Última revisão: 7/7/2023
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Nota do editor:

sábado, 23 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23453: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXIV: António Eugénio da Silva Sampaio, alf inf (Bragança, 1893 - França, CEP, 1918)



António Eugénio da Silva Sampaio (1893-1918)



Nome: António Eugénio da Silva Sampaio

Posto Alferes de Infantaria

Naturalidade: Bragança

Data de nascimento: 24 de Janeiro de 1893

Incorporação: 1916 na Escola de Guerra (nº 512 do Corpo de Alunos)

Unidade: Depósito de Infantaria, Regimento de Infantaria n.º 30

Condecorações

TO da morte em combate: França (CEP)

Data de Embarque: 8 de Janeiro de 1918

Data da morte: 9 de Abril de 1918

Sepultura: França, Cemitério de Richebourg l`Avoué

Circunstâncias da morte: Na batalha de 9 de Abril foi ferido gravemente e feito prisioneiro tendo sido, mais tarde, encontrado o seu cadáver no campo de batalha.





António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 10 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23064: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXIII: Manuel Augusto Farinha da Silva, ten inf (Lisboa, 1892 - França, CEP,1918)

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18056: Consultório militar do José Martins (28): Memórias de Guerra (3): Distritos de Braga, Viana do Castelo, Vila Real, Bragança e Viseu


1. Terceiro poste do trabalho de pesquisa do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), composto por sete postes, sobre as Memórias de Guerra (Grande Guerra e Guerra do Ultramar), espalhadas pelo país e estrangeiro, trabalho este que pode ser corrigido ou actualizado pelos nossos leitores. 




(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18051: Consultório militar do José Martins (27): Memórias de Guerra (2): Distritos de Coimbra, Aveiro e Porto

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17049: Militares mortos na 1.ª Guerra Mundial e Guerra do Ultramar do concelho de Torre de Moncorvo (Armando Gonçalves) - Parte VI: Baixas do distrito de Brgança, na I Grande Guerra por teatro de operações: Angola, Moçambique e França











Lisboa >   "Expedicionários portugueses escrevendo uma carta para a família", foto de Joshua Benoliel (1873I-1932). 

(Capa da "Ilustração Portuguesa", II érie, nº 575, 26 de fevereiro de 1916)





1. Continuação do trabalho de pesquisa do nosso amigo Armando Gonçalves, professor de História, do Agrupamento de Escolas Dr. Ramiro Salgado, em Torre de Moncorvo, e que aceitou integrar a nossa Tabanca Grande, passando a ser o nº 733 (*)


Parte III (pp. 20-28)






















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