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segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24825: Casos: a verdade sobre...(35): Op Revistar, programada no ar condicionado de Bissau, uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaura, e que acabou por abortar... (Mário Gaspar, ex-fur mil at inf MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68 / José Brás, ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) e 7º Pel Art / BAC > O obús 8.8. Foto do álbum do nosso saudoso cap SGE ref  José Neto (1929-2007), na altura o 2º sargento da CART 1613, que chefiava a secretaria.

Foto: © José Neto (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (entrou para a Tabanca Grande em 8/12/2013; tem 135 referências no nosso blogue; por razões de saúde não tem prestado maior colaboração ao blogue nos últimos tempos; alegramo-nos com
o seu reaparecimento).

Data - 4/11/2023 04:39  
Assunto - Operação Revistar  
Caros Camaradas, Luís e Carlos

Capa do livro
de José Brás, "Lugares de passagem",
Lisboa, Chiado, Editora, 2011


Dia 5 deste mês faz precisamente 55 anos que regressou da Guiné a CART 1659. Desembarcámos só na manhã de 6, passando mais de 12 horas ao largo de Lisboa.

Cheguei com muitas dúvidas, tendo a sorte de desvendar todas,  com uma falha: a "Operação Revistar”.

No Blogue não surgiu ninguém que tivesse conhecimento da mesma. Passei horas no Arquivo Histórico-Militar, esclarecendo muitas dúvidas. Sabia que só era possível levar-se a efeito tal Operação, com objectivos tão ambiciosos, direi inclusive estúpidos. Pretendiam esses senhores de gabinete acabar com a guerra, inclusive matar os líderes ('Nino' Vieira) e apanharem toda a documentação confidencial.

Chegara de licença e em Bissau não se falava de outro assunto. (*)

Um Abraço a todos os Camaradas
Mário Vitorino Gaspar

PS - Podem publicar no Blogue. Continuo bastante doente, mas acrescentar a informação de José Brás à minha, a tudo que assisti, deixou-me melhor. Até parece que tenho menos dores.

2. Operação Revistar (não consta do livro da CECA, 2015, relativo à atividade operacional no CTIG, de 1967 a 1970)(**)



José Brás, (ex-fur mil trms, CCAÇ 1622, 
Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68),

Do livro de José Brás “Lugares de Passagem” (texto que me enviou, a mim, Mário Gaspar, o amigo José Brás; conheço-o desde o início dos anos 60; estudei no Colégio Sousa Martins, em Vila Franca de Xira): 

(..) Mas nada disto de que venho a falar-vos tem importância e a importância dou-lha eu no
 engano de vos fazer compreender melhor a encomenda do Santinhos no episódio burlesco que desde o início vos quero relatar. 

Comecemos pelo princípio! Em certo tempo, que como vocês sabem não é o mesmo que em tempo certo… em certo mau tempo, direi, foi programada no ar condicionado de Bissau uma operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaur (...). Salancaur, imaginem…  

Tal operação envolvia várias Companhias que passaram a noite deitadas pelo chão do acanhado quartel de Medjo e incluía bombardeamentos prévios nos dias precedentes pela aviação, Fiats, T6’s (...), e DO-27 no ar a horas que deveriam ser as do assalto, e bojardas dos tais obuses do Santos a partir de Medjo, tudo antes da planeada entrada da tropa apeada. 

As quatro peças de artilharia foram deslocadas dos seus espaldares para o exterior da paliçada, alinhadas lado a lado e apontadas em paralelo ao objetivo como dedos de deuses vingativos. A regulação do tiro seria feita, e foi, a partir do voo de um DO-27, Major de operações mais que duvidoso a mandar vir, tantos graus à esquerda, alongar o tiro mais cem metros…

Diz-se que o homem põe e Deus dispõe. Dizia Fernando Pessoa que Deus quer, o homem sonha e a obra nasce. Que Deus quisesse tal coisa, quer dizer, o assalto a Salancaur, é duvidoso, ainda que num mundo como este nem em deuses se possa confiar, e esta parte digo eu que tanta desgraça vi naquelas terras. O sonho, neste caso, o sonho seria do mastronço que ocupava a cadeira do poder de Bissau, ou de alguns dos seus bengalinhas querendo mostrar serviço, movendo pioneses coloridos no amplo mapa que ornamentava paredes nas competentes salas do QG (...) e do palácio do Governador. 

Pesadelo se deveria dizer, em vez de sonho, já que sonho é palavra mais adequada a gente que luta e morre por liberdade de sua terra e povos, e por justiça, o que ali, claramente, não era o caso, mas bem o seu contrário. Pesadelo, portanto, também querendo justificar-se a coisa torta e deformada, causadora de sofrimento e dores, talvez mortes a somar a mortes nos dois lados da contenda. 

A operação que deveria ser de um dia, naquela mata quase virgem, avançando nos poucos quilómetros à força de catana para evitar sinais de picada antiga, chegou à antecâmara do destino apenas na terceira madrugada. Sete quilómetros, a bem dizer, se medidos em linha reta, acho que era a leitura dos generais em Bissau. Fomes, sedes, exaustão, desidratação, medos, esfrangalharam corpos e convicções. As evacuações começaram em catadupa, umas de necessidade absolutamente comprovada e outras aproveitadas no ressalto, todas, vi eu, mais que justificadas no limite de cada um, nas caras torcidas de esgar, nos olhos febris. Na frente da tropa que se aprestava para o ataque, havia agora um enorme espaço de bolanha nua e rasa que era necessário passar para chegar ao objetivo.

Ordem para iniciar procedimentos de tiro de obus em Mejdo. Tudo a postos, cada peça com seu apontador e municiador. Em PRC-10 (...) ouvia eu as ordens do DO ao Santinhos, e em wallkie talk, a comunicação entre o Santinhos e o apontador de cada obus, conversa esta, em especial, para a qual peço a vossa inesgotável imaginação, recriando a manhã naquele lugar, quente e húmida, mais abafada ainda pelo stress da espera de meia dúzia de soldados que haviam ficado a garantir a segurança das peças, encarrapitados na bancada da paliçada; o DO esvoaçando e dando indicações, não tão longe dali que não se pudesse enxergar-lhe a evolução a olho nu; a voz do Santinhos nas perguntas ao avião, nas ordens às peças, pastosa, embrulhada na língua, augurando tensões.

− Primeira bateria?

− Pronto,  meu Alferes!

− Segunda bateria?

− Pronto.  meu Alferes!

− Terceira bateria?

− Pronto. meu Alferes!

− Quarta bateria?

− Quarta bateria?!

− Quarta bateria?!!!

− Foooooda-se!

BUUUUUUUUUUUUUUUUUM!!! Quatro buuuns num só, ecoaram inesperados nos meus ouvidos e no susto dos ocupantes do DO que voava em frente, não muito acima da linha de tiro!

− Tirem-me daqui!!!  − esganiçou o Alferes.  − Tirem-me daquiiiii!

Um médico de fora que por ali ficara para a possibilidade de ter de servir na operação, diagnosticou sintomatologia histeriforme e solicitou evacuação para o Alferes. O helicóptero que o veio buscar,  carregou já para Medjo o seu substituto, outro Alferes, açoriano, diferente do Santinhos no talhe físico e na atitude. Para aquele dia nem valia a pena a pressa da substituição. 

Os obuses não teriam mais serventia naquela operação acabada por ordem superior, como superior havia sido a do seu início. Do DO para a tropa na orla da mata a ordem foi de recuar porque do outro lado daquele largo espaço aberto, eram muitos os morteiros, canhões sem recuo, possíveis foguetões terra-terra dissimulados e outros materiais eficazes na função de matar, prontos para bater a bolanha nua e rasa.

Não havia tropas helitransportadas. E que houvesse! A morte de dezenas estaria assim mais que certa, ainda por cima, para nada, segundo concluíram os chefes. Sensatamente, desta vez.

Não morreu ninguém, portanto, do nosso lado, pelo menos.

Só fomes.

Só sedes.

Só medos.

Só pragas.

Só raivas!

E do Santinhos, Alferes e civil, engenheiro brilhante, segundo se dizia, e contestatário, nunca mais ouvi fosse o que fosse, por palavras escritas, ou ditas… ou (des)ditas.


In "Lugares de Passagem" (com a devida vénia...)

Nota do editor: nesta altura devia estar em Mejo o 6º Pel Art / BCAC (8,8 cm). OU o 7º, que depois foi para Guileje.
 



Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas,
CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68)
  

3. Sobre a  “Operação Revistar” ver o texto que publiquei no blogue, Poste P14302 (***).

(...) A CCAÇ 1622 viria a ser a maior vítima da “Operação Revistar”, que tinha por objectivo a Acção ofensiva em diversos acampamentos do PAIGC e o aprisionamento do chefe Nino Vieira. Participaram na “Operação Revistar”, a CCAÇ 1622; CCAÇ 1591; CCAÇ 1624 e CART 1613.

No dia 3 (de dezembro de 1967), teve a Companhia, 3 feridos (um Oficial, um Sargento e um Soldado; 18 evacuados por esgotamento físico e dois por doença).

No dia 6, repete-se a Operação, e para além das Companhias que tinham estado na 1.ª Acção no terreno, foram reforçados com a minha CART 1659 e CCAÇ 1620.

Na História da Unidade da CCAÇ 1620, nem uma linha sobre a “Operação Revistar”, entretanto esteve lá.

Na História da Unidade da CART 1659 consta:

“De 1 a 3 e de 6 e 7 de Dezembro de 1967, feita a Operação Revistar, uma Acção ofensiva na Península de Salancaur, tendo as forças da CART 1659 colaborado numa primeira fase, montando segurança ao aquartelamento de Mejo. Numa segunda fase, participaram da operação juntamente com as forças da CART 1613 e CCAÇ 1591, 1622 e 1624. Os objectivos previstos não foram atingidos devido ao esgotamento físico das nossas tropas”.

Na História da Unidade da CCAÇ 1591, repetem-se as dificuldades que a NT teve ao percorrer matas fechadas, calor intenso o que provocou o agravamento do estado físico das NT. Termina dizendo que a Companhia acusou, notoriamente, as 5 noites ao relento, dormindo no chão e a falta de alimentação capaz, antes de iniciar a Operação.

Na História da Unidade da CCAÇ 1624, repete-se o mesmo, só com mais 15 evacuações (1 Oficial e 1 Sargento), não existindo condições para se concluir a Operação. (...)

(...) Sobre a actividade da Força Aérea nada é focado, mas que a aviação esteve lá não me podem negar. Dias antes já actuava, e em força, bombardeando constantemente a Península de Salancaur.

Em relação aos motivos que levaram que a Operação não fosse concluída, todos falam em desgastes nas NT. Estavam Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos do lado contrário da Bolanha? E a aviação?

Uma Grande Operação falhada. Quem foram os culpados?

Estes também foram para mim dias horríveis, 7 dias consecutivos que não esqueço. (,,,)


4. E agora acrescento eu, para se percebeu o meu reencontro como Zé Brás:

No início dos anos 60 um grupo de 9 estudantes do Externato Sousa Martins fundaram o Jornal “Eco Académico”, entre eles estava eu. A Direcção do Externato pensou ser um Jornal tipo “quadro de honra”. Através do Padre, Professor de Moral, conseguiu-se que fosse composto e impresso na Tipografia do Centro de Apoio Social Infantil (CASI).

Conseguimos assinantes e publicidade, após cada um de nós entrar, penso com 50$00.

Começámos por inserir artigos que foram contestados pelo Externato e o CASI deixou de nos apoiar. Falou-se em desistirmos mas continuámos. Foi complicado visto termos de pagar a uma Tipografia.

Entretanto já tínhamos sido convidados para colaborar na Criação da Secção Cultural do União Desportivo Vilafranquense (UDV).

Quem nos coordena é o escritor Alves Redol em reuniões semanais (?).

Já deixara de estudar mas continuei a frequentar esses encontros. Nasci em Sintra e desde os meus 3 anos que vivia em Alhandra – rival nº 1 do União. Os meus Amigos chamaram-me traidor por colaborar com o clube de Vila Franca. Trabalhava mas continuei a frequentar o Restaurante Maioral, local onde anteriormente nos juntávamos diariamente e que continuava por ser o “local de encontro”. Vítor Manuel Caetano Dias, meu primo, é um dos obreiros.

A Secção Cultural nasce, já com o amigo José Brás que a compõe. Outras figuras surgem. O Cineclube do UDV faz história.

A 3 de Maio de 1965 sou obrigado a iniciar o Serviço Militar no RI 5, nas Caldas da Rainha o Curso de Sargentos Milicianos. José Brás encontra-se na mesma unidade. Finda a Recruta vou para Tavira em Agosto, e o Amigo José Brás também.

O meu Comandante de Pelotão é o Alferes de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete.

Devido a ter sido hospitalizado no Hospital Militar de Évora, perco a Especialidade – Armas Pesadas – e vou de Licença Registada para casa. Em Janeiro mandam-me apresentar na Escola Prática de Artilharia (EPA), em Vendas Novas e termino a Especialidade e sou promovido após ter sido forçado contra vontade a prestar Provas para os Comandos – recusei, tive a sorte de me safar – e após Licença sou colocado no RI 14, Viseu. Monitor em várias Recrutas, com sucesso. Imagine-se. 

Quando penso estar prestes em terminar o Serviço Militar vou, contra vontade, Prestar Provas para os Rangeres. Após concluir todas as provas, foram 9 dias, e uma caminhada de 40 quilómetros, regresso a Viseu, onde integro a Equipa de Natação no Campeonato da Região Militar. Sou o único elemento da equipa a apurar-se para os Campeonatos das Regiões Militares Nacionais. Volto a ter esperança, mas sou destacado para o RAC, em Oeiras. Dai sigo para a Escola Prática de Engenharia, Tancos para frequentar o Curso de Minas e Armadilhas. Acontecem aqui umas histórias curiosas, mas noto ter sido deveras enganado. Preferível ter ido para os Comandos ou Rangeres. Passei o Curso com 14,8 (?), recebi um diploma e fui mobilizado para a Guiné.

Chego a Bissau em Janeiro de 1967 – não desembarcamos na cidade – e seguimos de LDM para o desconhecido. Defronte de Cacine dizem irmos para Gadamael Porto. Visto um Pelotão e uma Secção ter de ir para o Destacamento de Ganturé, toca-me esse destino.

Vários Furriéis Milicianos, Amigos e conhecidos que estavam já destacados na zona falam-me que o meu amigo – já Capitão Cadete – se encontrava em Mejo, entre eles o Amigo José Brás. Sempre que era destacado para Operações nesse aquartelamento, tentava que ele não me visse. Em Dezembro de 1967 dou de caras com o Capitão na falada “Operação Revistar”.

Devido a um Rebentamento, no dia 4 de Julho, quando morrem (dizem) 10 nativos e mais de 20 feridos graves,  vou para Gadamael. Entretanto já tenho o doutoramento de Minas e Armadilhas.

Não li o livro de José Brásm  “Lugares de Passagem”, só por mero acaso há poucos dias, tomei conhecimento. É notório que a Operação é a mesma – uma mancha tremenda na História que se recusam em falar – História da Guerra Colonial.


5. Lisboa > 
Hospital Júlio de Matos >  25 de Setembro de 1998 > Colóquio "Amor em Tempo de Guerra"

Volto a encontrar-me com José Brás, Aqui fica uma resumo,

O Amor em Tempo de Guerra

 por Mário Vitorino Gaspar

No dia 25 de Setembro de 1998 houve um Colóquio com o tema “Amor em Tempo de Guerra – A Guerra Colonial Portuguesa”, no Anfiteatro do Hospital Júlio de Matos. Para além do Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque e da Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, esteve presente um convidado surpresa, José Brás, ex-combatente que publicou o livro “Vindimas do Capim”, Prémio Revelação do Ano de 1986,  que começou por afirmar: 

– Na Guerra Colonial não existiram, quanto sei, orgias, como as vistas nos filmes americanos da Guerra do Vietname. (…). Que soldados portugueses eram estes? Alguns fizeram-se homens com as prostitutas das feiras anuais da província. E vão para a guerra. Guiné, onde cumpri o serviço militar, é um território pequeno… mas a solidão era maior. O soldado, na maioria carente de bens materiais, e muitas vezes de sexo, vai para a guerra e sente-se mais livre em combate que no quartel. 

Continua: 
– A masturbação, essa, sim, existia, até pela descoberta do corpo.

O Psiquiatra Doutor Afonso de Albuquerque, que cumpriu o serviço militar como Médico em Moçambique, referiu: 
– A sexualidade em tempo de guerra tem a ver com a experiência havida em tempo de paz. Quando parti para Moçambique chorei … limpei as lágrimas e lancei o lenço ao mar… Chegado à zona onde se instalou a minha Companhia, as prostitutas quando souberam que estavam nas imediações novos militares instalados, surgiram logo. Existia uma mulher branca, por cada dez europeus. Os perigos das relações sexuais com as nativas eram as doenças venéreas. Não havia preservativo, mas bisnagas de sulfamida. Os soldados afirmavam que aquilo tirava a potência. Sucedeu que um número de militares analfabetos, e não só, acabaram por ter experiências sexuais com animais.

Falou-se da homossexualidade existente na Guerra Colonial.

A Psicóloga Clínica Doutora Fani Lopes, disse: 

– Era natural que a namorada ou noiva fosse virgem. Casos houve que antes da partida para a guerra deixava de o ser. Decerto que algum pacto foi feito por mulheres de ex-combatentes, visto esses casamentos durarem ainda hoje.

Mário Vitorino Gaspar, fez notar:

– Importante referir, pela minha experiência, que o amor em tempo de guerra, estava aqui e não no sul da Guiné em 1967/1968. Lá existia guerra e não amor. Em Ganturé, destacamento de Gadamael Porto, o Régulo da zona, o beafada Abibo Injasso, Tenente de 2ª Linha, e elo de ligação entre o Exército Português e os “informadores” – que jogavam com um “pau de dois bicos” – e pago com uma viagem anual a Meca pelo Estado Português, proibia que as mulheres, e principalmente as bajudas (raparigas novas e em princípio virgens) de terem relações sexuais com os militares, sendo castigadas se o fizessem. Quando confrontadas com a tropa para terem relações sexuais, as mulheres ou bajudas recusavam com uma frase: - “Mim cá nega!”

Amor era o amor de pais, família, da noiva ou namorada.

Mas até se fazia sexo por correio – por carta ou aerograma – sexo por escrita, com noiva, namorada ou madrinha de guerra, por vezes até havia masturbação! Os militares na zona onde me encontrava só podiam ter relações sexuais, quando evacuados por ferimentos ou doença para Bissau, onde existiam prostitutas

Muitas vezes ficava imensamente triste por receber tanta correspondência e soldados nem um simples aerograma terem. Estes quando me falavam choravam e queixavam-se que as namoradas andavam com outros, por vezes até familiares, principalmente primos.

O Dr. Santinho Martins completou: 
– Necessário fazermos a distinção entre oficiais, sargentos e praças. É que estes últimos não tinham dinheiro. As prostitutas eram mulheres na decadência, já com uma certa idade.

Foi levantada a questão:
– Até que ponto o amor pode ser uma boa terapia para o Ex-Combatente que sofre de Perturbações do Stress Pós Traumático de Guerra?

A Doutora Fani Lopes, ao terminar afirmou: 
– Um ou outro regressa da guerra e posteriormente isola-se de tudo e de todos. O isolamento consigo próprio é uma situação de risco. A vida não é aquilo que queremos, mas aquilo que ela é!

Discutiu-se o “Amor em Tempo de Guerra – o Sexo em Tempo de Guerra”

NOTA: Este texto foi publicado no Jornal APOIAR, fui um dos seus fundadores e 1º Director.
 ____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24447: Casos: a verdade sobre... (34): A CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72), comandada pelo cap inf Augusto José Monteiro Valente (1944-2012), e depois maj gen ref, que embarcou para o CTIG sem três alferes (que terão desertado) e durante a IAO ficou sem o último, por motivos disciplinares...

(**) Fonte: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1.ª Edição; Lisboa (2015).

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22961: As tuas melhoras, camarada!... (2): Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/68), está há várias semanas internado no Hospital das Forças Armadas



Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), lapidador de diamantes reformado, e colaborador sénior do nosso blogue (com 130 referências no nosso blogue)


1. SMS que me mandou o Mário Gaspar, em 27/1/2022,às 9h39:

Camarada Luís Graça:

Estiu hospitalizado no Hospital das Forças Armadas há dez dias. Problemas complicados.

Abraços para todos,

Mário Vitorino Gaspar


2. Telefonei-lhe ontem, ainda lá estava, com dificuldades em falar, mas sentindo-se melhor. Mandou "um abraço para a Tabanca". Já lhe tinha respondido, também por SMS, às 15h57, do dia 27:

Tempos tramados, Mário. Só vejo notícias dessas, tristes.  A malta está-se a ir abaixo das canetas... Mas tu és como a Fénix Renascida... Vais sair pelo teu pé... Ou não fosses um "Zorba"|...

Agora tens que te deixar tratar. Vai dando notícias. Estás num bom hospital. Força para ti. Estou na fisioterapia. 

Abraço fraterno, Luís

Ele vai gostar de receber um SMS ou até uma chamada de viva voz, dos amigos e camaradas da Guiné. Aqui fica o seu nº de telemóvel: 936 214 284 . (*)



3. E, a propósito da sua companhia, a CART 1659... Eles não eram "Os Zorbas", mas tão apenas "Zorba"... Divisa: "Os Homens não morrem"..."Zorba" (**)

Vd. aqui a ficha de unidade:

Companhia de Artilharia nº 1659 

Identificação: CArt 1659

Unidade Mob: RAC - Oeiras

Crndt: Cap Mil Art Manuel Francisco Fernandes de Mansilha

Divisa: "Os Homens não Morrem" - "Zorba"

Partida: Embarque em 11 Jan67; desembarque em 17Jan67 ! Regresso: Embarque em 300ut68


Síntese da Actividade Operacional

Em 19Jan67, rendendo a CCaç 798, assumiu a responsabilidade do subsector de Gadamael, com um pelotão destacado em Ganturé, e ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1861 e depois do BArt 1896 e ainda do BCaç 2834.

Em Ju168, face à intensificação da actividade de patrulhamento de itinerários e emboscadas na linha de infiltração inimiga na região de Guileje, o destacamento de Ganturé foi reforçado, temporariamente, por outro pelotão da companhia.

Em 200ut68, foi rendida no subsector de Gadamael pela CArt 2410 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 81 - 2.a Div/d." Sec, do AHM).  Tem cerca de 

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág.448. (Com a devida vénia...).

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21064: Tabanca da Diáspora Lusófona (12): O "açoriano" da CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68), José Manuel Espínola Picanço, dá sinais de vida: vive em Strathroy, Ontário Canadá, a menos de 900 km do luso-americano João Crisóstomo

1. O nosso camarada José Manuel Espínola Picanço respondeu ao pedido do Mário Gaspar (*) que o tentava localizar: foi 1º cabo apontador de metralhadora da CART 1659, "Zorba",  (Gafamael e Ganturé, 1967/68). 

Ficamos a saber que vive, desde 1971, no Canadá, mas tem casa na sua ilha natal, Graciosa, Açores. Como muitos outros açorianos, madeirenses e continentais, teve de procurar "melhor sorte" no estrangeiro, depois de regressar da Guiné...Nunca saberemos quantos são,  ou quantos foram, os nossos camaradas da Guiné espalhados pelos quatro cantos do mundo...


O Piçanço fica desde já convidado a integrar a nossa Tabanca Grande, e eu vou pedir ao João Crisóstomo, régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona (**), para falar com ele... Afinal, vivem os dois no "Novo Mundo", e até são quase vizinhos, de Nova Iorque a Strathroy, Ontario, Canada,  a distância não chega a 900 km, de carro. O Piçanço deve ter dupla nacionalidade tal como o Crisóstomo. 

Neste dia 10 de Junho de 2020, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, lembremo-nos destes nossos camaradas que, acabadas as suas comissões de serviço militar, não tiveram lugar à mesa da Pátria que lhes pediu tudo, incluindo, se necessário, o supremo sacrifício da vida... 

2. Transcrevse-se, a seguir,  a resposta do ex-1º cabo Espínola Picanço (*):

Olá,  Mário Gaspar, eu sou o José Manuel Espínola Picanço, a identificação que fizeste sobre mim,  está correta.(*)


Eu era o "Açoriano", pertencia ao pelotão do do alferes Moreira. 

No ano de 1970 encontrei alguns elementos da nossa companhia, em Lisboa inclindo o ex-capitao Mansilha. Em 1971 emigrei para o Canadá, onde resido atualmente.

A minha direção é esta:

13 Westgate Ave
Strathroy 
Ontario 
Canada

E os meus contactos:

telefone fixo 519-245-3440 telemóvel 519-639-5104. 

Email: luzense101@hotmail.com

Também tenho casa na ilha Graciosa,  Açores, costumo passar lá 4 ou 5 meses por ano, mas este ano,  devido à pandemia, não devo la ir. 

Aqui fica um abraço deste ex-combatente Zorbista,e fico sempre ao seu dispor.

8 de junho de 2020 às 14:44

_______________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de á7 de junho  de 2020 > Guiné 61/74 - P21052: Em busca de... (306): 1º Cabo Apontador de Metralhadora, nº 03122666, José Manuel Espínola Picanço, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68) (Mário Gaspar)

(**) Último poste da série >  10 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21063: Tabanca da Diáspora Lusófona (11): Procuro, desde 1967, o Luís Filipe, que foi meu camarada, no COM, 1º turno de 1964, 3ª Companhia, 5º pelotão, EPI, Mafra... Encontrei-o na estação de caminho de ferro de Vila Franca de Xira, deu-me um grande abraço, julgava-me morto na Guiné, passámos um fim de semana no Algarve, tenho ideia que era alentejano, de boas famílias... Quem saberá o seu nome completo, e outros dados que me permitam ainda poder encontrá-lo ? (João Crisóstomo, Nova Iorque)

domingo, 7 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21052: Em busca de... (306): 1º Cabo Apontador de Metralhadora, nº 03122666, José Manuel Espínola Picanço, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68) (Mário Gaspar)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael Porto > 1967 > Aquartelamento e tabanca em meados de 1967, no início da comissão da CART 1659.

Foto (e legenda): © Mário Gaspar (2013). Todos os direitos reservados. [Edião e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1. Mensagem, de 5 do corrente, do Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68: 


Camarada Luís e Camarada Carlos

Vão aparecendo Camaradas da Companhia de Artilharia – CART 1659 (Zorba – “Os Homens não Morrem”. Um deles é o nosso 1º Cabo nº 03122666, José Manuel Espínola Picanço, Apontador de Metralhadora.

Curiosamente recordo o nome, mas não estou a ver a pessoa.

 Peço ao Picanço que me envie o seu E-mail, Morada e Telemóvel.

Por não recordar a pessoa, embora tenha verificado no meu livro “O Corredor da Morte” e na “História da Unidade” e é verdade o Picanço é Zorba.

A CART 1659 estava recheada de bons Militares – Extraordinários Mecânicos Auto, capazes de porem a funcionar algumas das dezenas de viaturas; Carpinteiros e até Pedreiros. A foto [acima] é bem demonstrativa das condições que tínhamos, no início da comissão.

Tudo era improvisado, não existia uma Loja de Esquina. De uma garrafa de cerveja fazíamos um copo; de uma outra garrafa de cerveja nascia um candeeiro; do barril de vinho inventava-se um banco, uma cadeira e até uma mesa. De um bidão fabricávamos tabuleiros para assar.

O nome do Aquartelamento era Gadamael Porto, mas nem sinais existiam de um Porto. Não foi a Engenharia que construiu o nosso Porto, fomos nós que nem sequer éramos engenheiros. Fabricámos o Forno para o fabrico do pão do Aquartelamento de Gandembel, obra do Soldado nº 00747866, António Manuel Magalhães Mendes Cerejo.

Capinou-se; tratámos de melhorar os abrigos; o arame farpado foi colocado mais à frente para termos melhor visibilidade.

Não falo de Guerra, sim do local onde nos mantivemos, e o que fizemos durante a Comissão. Tudo feito sem Horário de Trabalho. Bebíamos cerveja numa barraca e dormíamos, quando era possível, sempre atacados pelos mosquitos.

O camarada 1º Cabo José Picanço, Apontador de Metralhadora, é testemunha. A Zorba podia orgulhar-se não somente dos Apontadores de Metralhadora, Morteiro e Bazuca como de todos os Atiradores e Especialistas. A CART 1659 cumpriu.

Tenho imenso orgulho no Soldado Português, desde aquele que combateu em Angola, Guiné ou Moçambique. No período da Guerra Colonial mantivemos sempre o mesmo armamento e assistíamos ao avanço da tecnologia de armamento do PAIGC.

O Soldado Português possuía a força transmitida pela enxada de trabalho do nascer ao pôr do sol; força de pernas de se deslocar quilómetros sem conta a pé desde a sua Aldeia a povoações mais perto e estava habituado a sofrer.

Lembrar que fui Monitor no RI 14, em Viseu; dei Instrução de Minas e Armadilhas a uma Companhia e a Especialidade à CART 1659. Neste período tentava enganar a Tropa.

Cumpri na Guerra, até na APOIAR, o meu papel.

Um abraço
Mário Vitorino Gaspar

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Nota do editor:

Último poste da série >  7 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20825: Em busca de... (305): Fur Mil Fotocine Júlio César Fragoso Pereira (Guiné, 1966/67) (Armando Pires, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2861)

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19219: Os nossos regressos (35): Dia 5 de Novembro de 1968, chegada a Lisboa (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68, com data de 5 de Novembro de 2018:

Caro Luís e Carlos
Dia 5 de Novembro de 1968
Faz hoje 50 anos que a minha Companhia de Artilharia 1659 - CART 1659 regressou pelas 17 horas no Paquete Uíge - pasme-se, depois de ir encostar ao cais de Alcântara, Lisboa, recebeu ordens para parar e pouco depois afastou-se para o largo - e foi-nos informado que não desembarcaríamos. É difícil explicar como ficou o pessoal. Pensei logo lançar-me ao Tejo e ir a nado. Aquela noite não se esquece.

Cumprimentos à Tabanca Grande
Mário Vitorino Gaspar


Regresso da Guiné

Mário Vitorino Gaspar

Finalmente no dia 31 de outubro de 1968, embarcámos para Lisboa. Tal como sucedeu, no embarque numa lancha para Bissau, não me recordo de tal, o mesmo sucedeu na entrada no Uíge, nem mesmo de como uma mala de cânfora, fora parar ao porão, com alguma bagagem dentro. Fomos colocados no Forte da Amura. Como sucedera quando vim de férias, fomos colocados de serviço. Não ficámos isentos de Serviços. De qualquer modo houve tempo para tudo – principalmente compras – tinha pensado adquirir uma mala de cânfora, fiz a escolha. A comida em Bissau era diferente, eu e alguns camaradas optámos por fazer as refeições, sempre com a alternativa de uma ou outra fora da Messe.

Bissau era um jornal diário aberto da guerra no território. Inclusive, a pequena informação chegava às esplanadas. Tratando-se da Operação em que Portugal se empenhara – considerada de “Confidencial” – alguma em que nem a Nossa Tropa tinha conhecimento, discutia-se à frente de uma cerveja. O pessoal da Nossa Companhia que envergava camuflados novos, recém-chegados do Casão, e entregues uns dias antes da nossa saída do mato, exibindo no braço o dístico da Companhia de Artilharia 1659 (“ZORBA”). Em qualquer local alguém gritava:
– Salta que é periquito!

Habitualmente o pequeno-almoço era no famoso – lá no burgo – “Zé da Amura”, pombos verdes fritos, sempre acompanhados com cerveja. Bebida nunca esgotada nestas terras. Visitas ao Mercado para ver as novidades do dia. Iam aparecendo peças de pau-preto, principalmente máscaras; punhais e catanas forradas a pele de animais.

Tivemos oportunidade de conhecer melhor Bissau. Grande parte dos Nossos Jovens Heróis nem a cidade conheciam. As noites eram diferentes, nem um não ao convite para conhecer o “Bairro do Pilão”.

Os Militares preparados para tirarem a Carta de Condução lá estavam no dia marcado. Toda a Companhia festejava essa grande vitória, tratava-se de uma boa porta aberta para um emprego.

Por vezes parava no tempo e fazia um balanço desta experiência que nunca iria esquecer. Um primeiro período, após a chegada ao largo de Bissau, recordado sempre a mesquinhez de que ordenava, de fazer o favor de dar viagem de luxo a Oficiais e Sargentos e empurrarem para o porão os soldados, garrafões e garrafas de aguardente. Iria esquecer a dádiva de um quarto de pão, um ovo cozido, uma laranja, uma maçã golden… Um destino incerto. Recordo que no primeiro balanço que fiz após uma semana na Guiné, explica-se com a frase:
– Mais parece ter sido anestesiado!
Agora posso dizer:
– Deixei de estar anestesiado há uma semana, dia em que pensei: – pode ser que saia vivo!

Não sou capaz de me lembrar como entrei na LDM em Gadamael Porto, nem como em Bissau subi para o Paquete Uíge. Resumindo: – continuo na Guiné! Será para sempre.

A viagem de regresso a Portugal foi muito idêntica à da ida para a Guiné. O mar estava mais calmo. Eu só pensava na chegada a Lisboa. Era um milagre este regresso. Ia bebendo mais cervejas que o habitual. Escrevera para casa e pedira que levassem para o cais de Alcântara a bandeira do Alhandra Sporting Club. A maior que existisse, para que eu pudesse vê‑­la do paquete. Continuavam os jogos. Jogava‑­se a dinheiro. Tal como da ida para a guerra, não esquecendo o Bingo.

Os constantes enjoos continuavam. Perto da Ilha do Sal o mar agitou‑­se um pouco, mas existia quem não suportasse os balanços do Uíge. Bebia‑­se, e não só cerveja. E fumar? Cada vez fumava mais.

Fomos assistir a uma sessão de cinema:
– “Festival de Twist N.º 1” e “Negócio à Italiana” (este com Alberto Sordi e Gianna Maria Canale). Foi um momento bem passado, que fez esquecer alguns traumas mal geridos.

Lembrei a morte do Furriel Vítor Correia Pestana e dos Soldados António Lopes Costa e do Manuel Ferreira Silva.
Membros da população civil maior percentagem de mulheres e crianças que tombaram a 4 de julho de 1967? Feridos. Todos os feridos que tivemos. Nunca acreditei que fosse obra do PAIGC.
Ainda estou a ouvir o tiroteio nas emboscadas e ataques aos aquarte­lamentos de Gadamael Porto, Ganturé, Sangonhá (quando lá fomos montar segurança), Cameconde, nas mesmas circunstâncias, Guileje e Mejo. No “corredor da morte”? Aqueles locais sinistros cheiravam a guerra. Tudo parecia um cemitério.
Mas tudo muito difícil de explicar: as crateras das granadas que reben­tavam no chão, as árvores esburacadas pelas balas, estilhaços, ofereciam‑­nos simultaneamente um ar belo. A vegetação era exuberante, eram belos aqueles locais.

A sede, fome, falta de notícias da família, da namorada e dos amigos. A importância das madrinhas de guerra.

Curiosidade: transcrevo a Ementa do Almoço, a bordo do Paquete Uíge, no dia 2 de novembro de 1968 dos Sargentos:
Sopa: Juliana – Peixe – Iroses de Caldeirada; Ovos – Tortilha à Espanhola; Entrada – Favas à Transmontana; Fruta; Chá – Café.





Segundo se dizia, estávamos prestes a chegar a Lisboa. Falava‑­se que seria no dia 5 de novembro de 1968. Eu continuava a fumar cada vez mais.

O Paquete chegou. Segundo informação não íamos desembarcar por já ser tarde. Espreitávamos para a marginal de Cascais e víamos as luzes das viaturas que percorriam a marginal. Gritava‑­se:
– Olhem para os carros!

Fomos deitar‑­nos, a ver se o tempo passava mais depressa. Protes­tava‑­se:
– Ainda é dia! Por que não nos deixam desembarcar?

Deviam ter informado pela televisão e rádio que a tropa, oriunda da Guiné, não desembarcaria no dia 5. Embora estivéssemos bastante afastados do cais de Alcântara, poucas pessoas víamos.
Passámos a noite nesta angústia, até que eu me lembrei de ir tomar um duche, num intervalo de uma ida ao bar ou de fumar um cigarro. Os maços de tabaco que comprara para levar para casa, estavam quase no fim.
Quando vou para tomar banho, eis que verifico que a água estava gelada. Não havia água quente. Tinham‑­na desligado. Lá tive que tomar um banho de água fria, que teve o condão de aquecer a mente.
Depois do banho verifiquei que quase todos se encontravam cá em cima, do mesmo lado do Uíge. O barco estava inclinado, até parecia que se ia virar.

O Comandante da CART 1659 chamou‑­me:
– Mário, você fica responsável pela bagagem de porão. Fica em Lis­boa, a Companhia paga‑­lhe o alojamento e a alimentação e depois segue para casa, – disse.
– Nem pensar, já basta o que já fiz, quero é ir para casa. Capitão, escolha outro!
– Então fica responsável pelo guião da Companhia. Vai haver uma formatura e o Mário forma com a CART, com o guião, depois vai discursar um Oficial.
– Nunca fiz isso, mas está bem. Onde ficar o guião no princípio, con­tinua no mesmo sítio até que termine a parada! – Disse eu.

Fui descendo. Encontrei alguns soldados da minha Companhia que se encontravam mal dispostos. Estive um pouco com eles, e sem dar por isso estava a fumar mais um cigarro. Fui ao camarote onde dormia. Alguns Furriéis estavam deitados.
– Levantem‑­se, estamos quase a desembarcar!

Depois de subir, e espreitar para o cais, vi entre uma multidão a ban­deira do Alhandra Sporting Club. Ali estava a minha família.
No cais estava a Polícia Militar, e no barco os militares gritavam em uníssono:
– Malandros, vão para o mato!...

Bandeira do Alhandra Sporting Club

Até que chegou a hora de desembarque.
Fui ter com os meus, levando a bagagem comigo. Estavam a minha namorada, que viria a ser a minha mulher, o meu irmão José e a minha cunhada Fernanda.
A formatura não se chegou a efetuar e fomos automaticamente trans­portados para um quartel nas imediações de Oeiras, que estava desativado.
Arrumei a minha bagagem. Quando estava indeciso com o guião na mão, coloquei-o sobre a bagagem do Capitão. Fomos almoçar, e engraçado, o prato que naquele momento mais desejava: – carne assada no forno com batatas. Fomos no carro do meu irmão e depois do almoço regressámos ao quartel.

– Então é sempre a mesma porcaria. Colocou o guião por cima da minha bagagem e foi‑­se embora, Mário? – Disse o Capitão.
– Houve azar Capitão? – Respondi‑­lhe.
– Tivemos que entregar o guião, ao responsável do Regimento de Artilharia de Costa, deveria haver uma cerimónia, e nada disso sucedeu! – Retorquiu o Capitão.
– Então ficou entregue! – Disse, sorrindo.
Não se tratava de falta de respeito. Tinha muita consideração pelo nosso Capitão. A verdade é que o Capitão Mansilha estava mesmo zangado.

Depois de trocas de opiniões, e de terem começado a pagar os mon­tantes que o Exército Português nos devia, gritou para o Capitão o Alferes Miliciano Luís Alberto Alves de Gouveia:
– Paguem já ao Mário, não o façam esperar, ele tem a família à espera!
Recebi o dinheiro, despedi‑­me do pessoal, e fui para junto dos meus que se encontravam no exterior, junto ao carro. Fomos até Alhandra.

Chegados a Alhandra, desloquei‑­me a casa para tirar a farda e vestir­‑me com a roupa que a minha mãe tinha deixado em cima da cama e saí.
Em lugar de me dirigir para um jantar que o meu pai organizara, fui na direção do cais “14”, ver o meu Tejo.
Lá estavam as Fragatas, os barcos desportivos que treinavam e os avieiros nas suas bateiras. Fiquei ali, esquecendo completamente, os meus pais, meus familiares e amigos que esperavam por mim.
Foi quando entrei em mim e dirigi‑­me para a Padaria do meu pai, onde era, de facto, a festa em minha homenagem.

Tamanha alegria! Ria‑­se. Chorava‑­se. Meu pai fez rebentar uns dois morteiros, e uns tantos foguetes.
Todos queriam saber de mim. A família grande e os amigos também. Chegou o Cabo da GNR, e quando me viu cumprimentou‑­me militarmente. Olhei para ele e parece que ri ao lembrar aqueles tempos em que ele nos perseguia, e até escondia a roupa deixada em cima da areia. Convidei-o para comer e beber qualquer coisa.

Segundo consta no meu Processo Individual do Exército, depois de ter passado à Primeira Classe de Comportamento em 3 de maio de 1968, em 28 de novembro de 1968 terminei a minha obrigação de Serviço, depois de ter gozado 21 dias de licença. Passei às tropas licenciadas em dezembro de 1978 por ter completado 35 anos de idade.

Reiniciei a minha vida naquele dia. Teria de recuperar o tempo perdido. Esquecer, retirar as folhas dos calendários correspondentes a todos os dias? Pouco provável esquecer, conhecia-me bem e jamais vou esquecer uma guerra.
Os amigos? Como era possível esquecê-los?
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19218: Os nossos regressos (35): 21 de Novembro - o dia do regresso da Guiné… 48 anos depois

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19093: Efemérides (291): Faz hoje 51 anos: 12 de outubro de 1967, o dia em que eu morri....Por outro lado, sou o "único culpado" do suicídio do ex-alf mil, madeirense, Gouveia (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)



Fotocópia da folha da caderneta militar, página 5,  do Mário Gaspar... onde foi averbada a sua morte, supostamente ocorrida em 12 de outubro de 1967.


Fotocópia da folha da caderneta militar, do Mário Gaspar, correspondente à página das "ocorrências extraordinárias", onde é de novo referida a sua  morte...

Fotos (e legendas) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem, de hoje, às 5h35, do Mário Gaspar, ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR; tem mais de. uma centena de referências no nosso blogue]

Caros Camaradas,


Que interesse têm os portugueses de saberem que existiu uma Guerra Colonial? Já basta o “Aquecimento Global”, que nem sequer sabemos ao certo o que é, ainda para cúmulo essa guerra onde os nossos pais ou avôs combateram. Pois vou narrar-lhes aquilo que me sucedeu, talvez em Agosto, no período das férias de 1969.

– Foi precisamente no dia 12 de Outubro de 1967 que morri (*). Não sei como! Se por doença: paludismo; matacanha; outra.
– Mas o que é isso do paludismo ou matacanha? Compreendia antes se fosse da saudade!
– Esquece!

Morri, curiosamente só tive conhecimento de tal, no dia do meu casamento. Inicialmente fiquei preocupado, quando o Padre na Igreja de São João de Brito disse:
 – Estou a casar o morto vivo!
– Se morreste, não compreendi essa, estás aqui, e vivo… Como a sardinha da Costa!Sorri e tudo se sumiu como espuma!

Pois no dia que me desloco à Sacristia para levantar a Certidão de Casamento, recordei aquele episódio rocambolesco na Igreja. Parei no topo da escadaria e abri a sinistra Caderneta Militar que deixara para que fossem feitas as alterações necessárias:  data do casamento e mudança de residência.

Primeira surpresa. Leio, esfregando os olhos:  "Baixa de Serviço: – por falecimento a 12 de Outubro de 1967!" ... Algumas páginas a seguir: "Morto a 12 de Outubro".

Tudo sem explicações: quem o fez tinha plena consciência daquelas asneiras, podia no mínimo ressalvar esta «morte», uma mentira cruel,  e um Padre que tinha a obrigação de fazer menos comentários.

Verdade é que ia caindo na escadaria e rebolado até ao “passeio português”. Tinha consciência que da tropa podia esperar um pouco de tudo, agora matarem um combatente com tinta parker azul permanente…

Tive de saber o que estava por detrás daquela historieta.

Nas férias em Agosto dirigi-me ao Quartel mobilizador,  o Regimento de Artilharia de Costa (RAC), em Oeiras. Encontrava-se na Secretaria o Major (julgo ser ainda Major), o oficial que me colocara de Serviço no último domingo que tinha a oportunidade de estar com a Família antes de embarcar para a Guiné.

Quando lhe dei para as mãos a Caderneta logo me arrependi. Leu e disse:
– Que mal faz estar aqui dado como morto?
 Ao senhor pouco ou nada importa!

Interrompi-o ao escrever na Caderneta com uma bic azul e outra vermelha.
– Mas você não pode, nem deve fazer emendas ou ressalvas. Nesse caso as rasuras faço eu. Não tem o direito.

Tirei-lhe a Caderneta das mãos. Tinha sublinhado de um lado e fez uma ressalva.

Tratei-o mal, chamando a atenção àquilo que me fizera colocando-me no domingo anterior à partida de Serviço:
– Sargento de Dia ao Regimento!

Ninguém aceitou fazer esse Serviço por mim por ameaça a todos que de algum modo fizessem esse Serviço, inclusive eu pagava bem.

Passado algum tempo desloquei-me ao Departamento do Arquivo Geral do Exército que funcionava no antigo Quartel na Avenida de Berna e nos dias de hoje emprestado à Universidade NOVA de Lisboa. Segundo consta,  o imóvel foi vendido, esse quantitativo serve para o Fundo dos Combatentes.

Interessa neste caso a explicação sobre a minha morte. Logo que disse a razão da minha ida , s três indivíduos riram. Entreguei a Caderneta e logo vi segurar uma pasta, diferente das outras, estava toda agrafada. Disse:
– Vi que tenho toda a razão: morri a 12 de Outubro de 1967!

O Sargento tirou os agrafos – eram os três Sargentos – e referiu logo:
– Olhem,  este camarada era nosso vizinho na Guiné!

Disse-me junto ao balcão:
– Aquele estupor esteve comigo em Guileje e o outro do canto era de Mejo.

Curioso, estivemos todos juntos. Respondi:
– Agora estou a reconhecê-los, estivemos mais de uma vez a comer juntos.

Referiram estar tudo na ordem, com o inconveniente de estar registado na Caderneta. Não compreendiam a razão do Major em Oeiras ter feito esta gatafunhada. Ninguém o autorizou.

Ainda fui a Programas de Rádio; dei entrevistas para jornais e fui a dois Programas de televisão. Um deles, da Fátima Lopes.


 

Lisboa > Belém > Forte do Bom Sucesso > Memorial aos Mortos do Ultramar >  c. 2018 > O Mário Gaspar aponta os nomes dos seus camaradas  António Lopes Costa, soldado, e Victor Correia Pestana, furriel, mortos em acidente com arma de fogo, em 12 de outubro de 1967, perto de Ganturé, junto à fronteira com a República da Guiné-Conacri.  (**)


Fotos (e legendas) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Talvez tivesse algo a ver com esta asneira, terem morrido o meu Amigo, vítima do rebentamento de uma granada armadilhada, o Furriel Miliciano Vítor José Correia Pestana, de Abitureiras, Santarém e o Soldado António Lopes da Costa, de Cerva, Vila Real. Ambos mortos por acidente, um acidente, e grande, era estarmos na guerra.

Quando gozei férias fui entregar à Família do Vítor pequenos utensílios que lhe pertenciam. Como o Vítor falasse muito no Mário, trataram-me como sendo o filho, primo, etc.. Custou-me imenso. Como tivessem morrido num período em que não estava, fui verificando não me terem narrado tudo sobre ambas as mortes, por saberem sermos muito amigos. A razão de tal é termos cumprido grande parte do Serviço Militar juntos.

Um dia insisti com um camarada que a chorar pelo telemóvel contou. A CART 1659 iniciou uma patrulha até à fronteira com o fim de montarem armadilhas, o que foi feito. Esta patrulha era sempre no mesmo sentido, nunca no contrário nem regresso pelo mesmo lado.

O Alferes Gouveia que comandava, já na fronteira deu ordens para regressarem pelo mesmo trajecto da ida e o Vítor Pestana referiu ter feito o croqui mas no sentido da ida, não possuía pontos de referência no sentido contrário. Insistiu o Alferes, eram ordens. O Costa disse ao Furriel que o acompanhava, os dois avançaram. Pára o Pestana, olhando para os pés. Não podia escapar e lançou-se sobre a granada armadilhada que rebenta. O Costa fica encostado a uma árvore, parecia descansar, nem sequer sinais de ter atingido, estava morto. O Pestana tinha braços e pernas seguros do restante corpo por linhas. No peito um buraco. Estava vivo. Ainda chegou vivo a Gadamael Porto e foi visto pelo Médico do Batalhão que se encontrava perto.

O Pestana pedia, e por favor, aos Furriéis Milicianos, que lhe dessem um tiro na cabeça. Morreu. Tive só conhecimento da sua morte ao regressar de licença. A história que me contam é sobre o local das mortes e das ordens que recebeu.

Todas as vezes que via o Alferes Luís Alberto Alves de Gouveia, olhava-o bem nos olhos e dizia:
– Você matou o Pestana e o Costa!

Ele nunca me respondeu. Anos depois, encontrei-me com o Capitão Miliciano de Infantaria Manuel Francisco Fernandes de Mansilha, [,nosso antigo comandante,]  que me informou:
– O Gouveia suicidou-se na Ilha da Madeira. Lançou-se ao mar de um penhasco!

Respondi-lhe:
– Sou o único culpado.

______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18875: Efemérides (290): 4 de Julho – dia da Rainha Santa Isabel – o Dia do Serviço de Administração Militar (António Tavares, ex-Fur Mil SAM)

(**) Vd. postes de:


4 de outubro de  2015 > Guiné 63/74 - P15197: História de vida (41): Regressei a 6/11/1968 e casei-me a 29/6/1969, com uma das minhas madrinhas de guerra...Soube pelo padre que a tropa me tinha dado como morto... (Mário Gaspar,ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18537: O Cancioneiro da Nossa Guerra (7): "Marcha de Regresso" (Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)



Brasão da CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68). Divisa; "Os Homens Não Morrem".




Lisboa > Belém > Forte do Bom Sucesso > Liga dos Combatentes > 22 de maio de 2014 > 17h30 > Sessão de lançamento do livro do nosso camarada Mário Gaspar, "Corredor da Morte", edição de autor, 2014 > Sessão presidida pelo gen ref Chito Rodrigues, presidente da direção da Liga dos Combatenrtes, com a participação ainda do psiquitra Afonso de Albuquerque (que prefaciou a obra), da prof Ermelinda Caetano, do presidente da APOIAR, Jorge Gouve

"Nesta foto, estou a autografar o livro do capitão [, hoje, advogado,  Manuel Francisco Fernandes de Mansilha,] que fala com o 1.º cabo cripto Mendes, o autor dos versos "Os Homens Não Morrem".1O ex-1.º cabo cripto António Luís Faria Mendes foi funcionário da Ordem dos Médicos na cidade do Porto."


Fotos (e legendas) : © Mário Gaspar (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Marcha de Regresso


Rapazes, cantai cantigas,
Alegres e animadas,
Acabaram-se as fadigas
Das patrulhas e emboscadas.

Bravos rapazes da ZORBA,
Dispostos a trabalhar,
Sejam barcos ou colunas,
É sempre, sempre, a alinhar.

Viemos para a Guiné,
Prontos a combater,
Pica, estiva e sapa até,
Tudo soubemos fazer.

Ao partirmos com saudades…
A saudade é uma mulher,
Que tenha felicidades
Quem depois de nós vier.

CORO

Cá vai a malta da ZORBA,
Toda alegre e sorridente,
Alegria não nos falta,
Que a tristeza mata a gente.
Cá a vai a malta da ZORBA...
Corações cheios de fé,
Depois da missão cumprida,
Gadamael – Ganturé,
Situadas lá no sul,
Da província da Guiné.


Ao regressarmos a casa,
Para nós a vida muda,
O cântaro perde a asa,
Nós ganhamos a peluda.

Já vai chegando o momento
De à Guiné dizer adeus,
De acabar o sofrimento,
Voltar a abraçar os meus.

Mais de vinte meses é vitória,
A ZORBA é das primeiras
E vai constar da história
Lá no RAC, em Oeiras.

A ZORBA cumpriu o seu dever
E seu nome deixou gravado,
Nunca a iremos esquecer,
Honra ser-se seu soldado.

(Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)

[Revisão / fixação de texto: MG / LG]


Mensagem, de 17 do corrente, de Mário Gaspar

Luís,

Tenho imensos textos da minha autoria, escritos após o regresso, principalmente aqueles que publiquei no meu livro “O Corredor da Morte” [edição de autor, 2014]. No mesmo livro também constam versos que escrevi em Gadamael Porto para um grande amigo (nalguns casos possuo os aerogramas e cartas). Estes versos possuem a curiosidade de estarem virgens – publiquei-os sem os rever – transmitem o meu estado de espírito da altura.

Ainda existem os versos da autoria da prima da minha falecida mãe, de nome Piedade, que a mesma ofereceu, feitos numa Gráfica Tipografia,  aos convidados (amigos e familiares) no dia do meu regresso a casa, na festa que os meus pais organizaram.

Também os versos da “Marcha do Regresso” da “ZORBA”, que agora junto, Estes foram escritos por vários autores.

Os versos recolhidos no almoço, de 2015, da CART 1659, ZORBA,  “Os Homens não Morrem”, são de António Luís Faria Mendes,  ex-1.º Cabo Operador Cripto, que não esteve nessee  almoço de confraternização.(*)

Julgo não teres dúvidas. Como disse inicialmente,  escrevi muitos versos posteriormente à chegada. Alguns, nunca os publiquei, outros foram lidos em tertúlias de poesia, onde esteve a minha grande amiga Felismina Mealha, membro da nossa Tabanca Grande, tendo ela lido alguns.

Envio, talvez o principal. Como disse,  escrevi já após o regresso da Guiné alguns versos - denomino-os como "POÉSIAS". Possuem o inconveniente de serem longos. Se tiveres dúvidas diz.

Um abraço, Mário Vitorino Gaspar

PS - Lá em Gadamael, criámos  um conjunto musical denominado “Os Caveiras” cujos instrumentos tinham a particularidade de serem feitos com chapa de bidão, peles de cabra de mato, marmitas, colheres, etc. e quase sempre animou os almoços de confraternização realizados mensalmente entre todo o pessoal da Companhia.

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segunda-feira, 16 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18528: O Cancioneiro da Nossa Guerra (6): "Os Homens não Morrem" (Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)


Batalha > Fetal > 26 de setembro de 2015 > Convívio da CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/69) >  Em primeiro plano, à esquerda, o ex-cap mil inf, hoje advogado, Manuel Francisco Fernandes de Mansilha... No final do almoço, leu as quadras que abaixo se reproduzem, e que lhe foram enviadas por um "Zorba", em 2011 pelo Natal. Segundo o Mário Gaspar, o autor dos versos é António Luís Faria Mendes, ex-1.º Cabo Operador Cripto.


Brasão da CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68). Lema: "Os Homens Não Morrem".

Fotos (e legendas) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Os Homens Não Morrem

por António Luís Faria Mendes,
ex-1.º Cabo Operador Cripto

Bem certo que o tempo passa,
Já nos vai pesando o pé, 
Mas não há nada que faça
Esquecermos a Guiné!

Alguns em Gadamael,
Os outros em Ganturé.
Fulas, mandingas, papel,
Sobe o rio com a maré.

Tempos difíceis, claro.
Sei que se foi cimentando
A amizade, um dom raro,
Que estamos comemorando.

Caro Mendes, Cabo Cripto,
Que que decifravas a mensagem,
Magro como um eucalipto,
Sempre com fé e coragem.

Vale a pena acreditar
Que há mar e os rios correm.
O que nos fez regressar?
Foi porque “Os Homens Não Morrem”!

Versos da autoria de António Luís Faria Mendes ex-1.º Cabo Operador Cripto. Data: c. 2011. Recolha de Mário Gaspar (ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (*). Transcrição, revisão e fixação de texto: MG / LG (**)
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Vd,. postes anteriores:

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18261: O cancioneiro da nossa guerra (4): "o tango dos periquitos" ou o hino da revolta da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) (Silvino Oliveira / José Colaço)

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18259: O cancioneiro da nossa guerra (3): mais quatro letras, ao gosto popular alentejano, do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71)

8 de novembro de 2017> Guiné 61/74 - P17944: O cancioneiro da nossa guerra (2): três letras do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71): (i) Os Morcegos; (ii) Estou farto deles, tirem-me daqui; (iii) Fado da Metralha

30 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17811: O cancioneiro da nossa guerra (1): "Asssim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude"... 4 dezenas de quadras populares, do açoriano Eduardo Manuel Simas, ex-sold at inf, CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18274: Memória dos lugares (374): Gadamael, c.1967/68, ao tempo da CART 1659, 'Zorba' (Manuel Cibrão Guimarães, ex-fur mil, CCAÇ 1620, Bissau, Cameconde, Cacine, Sangonhá, Cacoca, Cachil e Bolama, 1966/68)


Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Gadamael   > CCAÇ 1620 > c. 1967/68 > Passeio de "sintex". (Ao tempo ainda não havia o "cais de Gadamael" onde, em 1973, descarregava o batelão BM3, que abastecia Gadamaele  Guileje... Recorde-se que o rio que banhava Gadamael Porto era o Sapo, afluente do Rio Cacine


Foto nº 1 A > Guiné > Região de Tombali > Gadamael  > CCAÇ 1620 > c. 1967/68 > Passeio de sintex. Pormenor. da esquerda para a direita, "eu, o fur at inf da minha companhia, de apelido Viegas,  que está a remar, mais dois militares da minha companhia, de que não me lembro o nome, e  sentado à popa, de bigode, o   2º sargento que respondia pela CART 1659, que estava em Gadamael. Íamos de Sangonhá a Gamadael, em coluna auto. Eu era furriel mecânico auto. Este é um momento de descontração, no rio [Sapo} que  banhava Gadamael... A estrada na altura era transitável de Cacine a Guileje, passando por Cameconde, Cacoca e Sangonhá. De Mejo para Buba é que não... A minha companhia esteve de agosto de 1967 a março de 1968 em Sangonhá, com um pelotão destacado em Cacoca, e que era rendido ao fim de um mês. Em Cacoca ocupávamos as instalações de um comerciante branco, oriundo da região de Aveiro, que se chamava Tonecas. Com a guerra, ele  abandonou Cacoca, e ficou só com o estabelecimento de Cacine. Conheci-o em Cacine. Negociava produtos (frutas, coconote, etc.) com tipos da Guiné-Conacri que iam lá de barco, e tinham salvo-condutos passados pela NT, eram também 'agentes duplos' que davam informações sobre o que se passava do lá da fronteira. Em Cacoca também havia intercâmbios deste género , os tipos da Guiné-Conacri iam lá visitar os parentes e vender e comprar produtos".

Foto (e legenda): © Manuel Cibrão Guimarães (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Mapa de Cacoca (1960) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Sangonhá, nas proximidades da fronteira com a Guiné-Conacri, tendo a norte Gadamael e Ganturé, e a sul Cacoca e Cameconde  (e a sudoeste Cacine, vd. mapa de Cacine e mapa geral da província)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)




[Foto à direita: Manuel Cibrão Guimarães:
natural de Avintes, V. N. Gaia, vive em Rio Tinto, Gondomar]

1. Continuação da publicação de uma seleção de fotos do
álbum do nosso grã-tabanqueiro nº 766, Manuel Cibrão Guimarães, ex-fur mil, mec auto, da CCAÇ 1620 (Bissau, Cameconde, Cacine, Sangonhá, Cacoca, Cachil e Bolama, 1966/68). (*)

Antes de ir para o Cachil (em março de 1968, e onde esteve até 1/7/1968), a CCAÇ 1620 tinha assumido, em 5 de janeiro de 1967, a responsabilidade do subsetor de Cameconde, rendendo, por troca, a CCAÇ 799 (Cacine e Cameconde, 1965/67), e passando a integrar o dispositivo e manobra do BCAÇ 1861 e depois do BART 1896. É nessa altura que a CCAÇ 1620 tem um pelotão destacado em Cacine.

Em 1 de agosto de 1967, por rotação com a CART 1692, assumiu a responsabilidade do subsector de Sangonhá, com um pelotão destacado em Cacoca, mantendo-se no mesmo sector do BART 1896.

A foto que publicamos hoje, tirada em Gadamael, é do tempo em que a CCAÇ 1620 esteve em Sagonhá (agosto de  1967 / março de 1968). O Manuel Cibrão Guimarães passou, portanto,  sensivelmente o mesmo tempo (7 meses) erm dois sítios do regulado de Cacine: em Cacine e em Sangonhá.


22 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18238: Tabanca Grande (457): Manuel Cibrão Guimarães, ex-fur mil, CCAÇ 1620 (Cameconde, Sangonhá, Cachil, Cacine, Cacoca, Gadamael, 1966/68)... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 766.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18248: Efemérides (268): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte II



Brasão da CART 1659 (Gadamael, 1967/68), "Zorba". Lema: "Os Homens Não Morrem"


Guiné > Região de Tombali > CART 1659 (1967/69 > Ganturé em 1967

Foto (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


Passaram 51 Anos: Chegada ao Largo de Bissau, 17 de janeiro de 1967 - Parte II (*)

por Mário Vitorino Gaspar



“… Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca…”

Álvaro de Campos
Gadamael Porto, 19 de Janeiro de 1967
(continuação)

“Não sou eu nem o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro”.

Mário de Sá-Carneiro

(...) Árvores de alguma altura abundavam, a população civil aproximava­‑se, querendo conhecer os novos vizinhos, enquanto um alferes se apre­sentava. Tinha ido em rendição individual e ficaria ainda com a nossa companhia, segundo afirmado pelo próprio. Um militar, praticamente sem farda, que também ficaria connosco, aproximou­‑se de mim:
– Meu furriel,  quer comer uns borrachos fritos?

Olhei­‑o admirado. Afinal aquilo não era assim tão mau. Até existiam uns pombinhos para comer!
– Onde estão eles?
– Ó furriel, venha comigo!

Olhei por cima dos meus ombros e vi as divisas camufladas. Retirei­ as mesmas e coloquei-as no bolso do camuflado. Enquanto reparava que aquele 1.º cabo que se tornara meu amigo,  não vestia nenhuma roupa do exército. Estava com uns calções de banho e uns chinelos de enfiar nos dedos.

Fritou os borrachos e umas batatas, Iniciei a minha primeira refeição em terras de África. Que pitéu! Não sabia a razão da escolha ter recaído sobre mim. Admirado para o tamanho das cervejas. Ouvi da sua boca:
– Essas são de seis decilitros.

O 1.º cabo confortava­‑me:
– Os borrachos não che­gavam para todos.

Estavam a tratar de fazer o jantar: – bacalhau com grão. Fora um milagre, uma bênção. Após a fome, a primeira fartura, porque estava disponível para trincar a bacalhoada, logo que estivesse pronta.

Começámos a instalar­‑nos e o alferes miliciano que ficara connosco – era de rendição individual – ia esclarecendo-nos. Fiquei numa barraca encostada ao abrigo onde ficou a minha secção, coberta com chapa zincada. Era decerto um forno. Havia uma cama e um caixote de munições que funcionaria como mesa-de-cabeceira, sobre a qual via uma garrafa de cerveja cheia de gasolina com um pavio enfiado no buraco da carica. Era a iluminação da minha nova moradia.

O furriel miliciano que eu substituía,  deixara ficar dois isqueiros Zipp  avariados com a inscrição “Movimento Nacional Feminino”. Nenhum dos isqueiros funcionava. Abri a mala e coloquei sobre o caixote que serviria de mesa-de-cabeceira, quatro livros:

“Os Cavalos Também se Abatem”, de Horace McCoy;
“Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes;
“A Fanga”, de Alves Redol; e
"Zorba o Grego”, de Nikos Kazantzákis.

Este último tinha muito a ver com a sigla da CART 1659: “ZORBA” – “Os Homens não Morrem”.

Começava a sentir cada vez mais o calor naquele clima doentio. Mesmo os atletas, não o eram. Não se respirava. Também era verdade que o fumo dos cigarros fumados tinha criado um autêntico nevoeiro naquele que era o meu quarto. O alferes Póvoa, o sargento Dores, eu e os furriéis miilicianos Jorge e Alves tínhamos ficado espalhados pelo aquartelamento, cada um com determinada missão defensiva.

Dei uma volta ao pequeno aquartelamento depois de despir o camu­flado e vestir uns calções, fiquei em tronco nu. Comido o bacalhau, prato do dia, fomos até ao bar, se é que aquilo era algum bar. Bebi e conversei com todos aqueles soldados­‑amigos­‑irmãos.

A população civil, por não nos conhecer, estava talvez indecisa, o que era normal, olhando-nos com um ponto de interrogação estampado no rosto. Tive o primeiro sorriso da bajuda que passava. O Alferes Miliciano Santarém ia-nos informando. Estávamos portanto no Setor S2, ficando a CART 1659 ligada para efeitos operacionais ao BCAÇ 1821, com sede em Buba.

Há uma via norte-sul ligando Aldeia Formosa com Cacine. Depois do Cruzamento de Ganturé – na mesma via – estão os aquartelamentos de Sangonhá, Cacoca e Cameconde, seguindo-se Cacine. No chamado Cruzamento de Guileje, há uma bifurcação para Mejo e Guileje. O terreno é plano, com cursos de água, sendo alguns deles de grande caudal.

A população insta­lada nas tabancas de Gadamael Porto, cerca de 400.  e em Ganturé (sede do Regulado), cerca de 200 indivíduos são beafadas. Existem ainda fulas, tandas, mandingas, landumas, bagas, nalús, sossos etc. Dedicam-se principalmente ao cultivo do amendoim, arroz e à caça e pesca principalmente para o abastecimento da tropa. As Praças “U” [, recrutamento local], pertencentes à Companhia, eram 31, existindo ainda 45 Caçadores Nativos.

Ficámos portanto junto da fronteira com a República da Guiné, Guiné ex-Francesa. Não estávamos preparados para aquele clima e éramos desconhecedores da cultura e língua daquelas gentes. Repetia-se a situação, era raríssimo ouvir­mos uma frase em português. Palavrões, sim.

Enquanto todos jantávamos, o dito bacalhau, ouviu-se o arrancar do motor e acenderam-se as luzes. Estávamos já instalados, e de serviço a tempo inteiro – 24 horas por dia – em terras da Guiné. A partir daquele momento tínhamos que estar preparados para tudo, até para termos que ouvir alguém gritar:
– Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda!

Era bem verdade que a grande casa guiada por Salazar queria e ordenava.

Cansados, dormimos, os que não foram destacados para os primeiros serviços. De manhã seria um outro dia. Logo tivemos o primeiro grande problema: – não tínhamos um Padeiro na Companhia. Fui eu que solucionei essa enorme falha. Era filho e neto de Padeiro, tinha trabalhado desde muito pequeno, depois de deixar de estudar fora Padeiro, tinha inclusive a Carteira Profissional de Ajudante de Padeiro. Acompanhei o fabrico do primeiro pão de Gadamael Porto e Ganturé. Não era complicado fazer bom pão, a farinha era de boa qualidade e oriunda de França. Aliás toda a população civil fazia propaganda diária da moagem francesa, muita da roupa que vestiam era feita do pano de sacas de farinha.

Começámos a conhecer os hábitos daquelas gentes, acordando diariamente com o troar do pilão que desfazia miolos e as ideias. Verdade que, por vezes, escutasse o toque do clarim, mas por pouco tempo. Fiquei cativo, o único pensamento, mesmo cativo. Agrilhoado. Tinha de libertar dessa ideia.

Iniciou-se uma nova fase das nossas vidas depois de todos instalados. Ficaria connosco o alferes miliciano que deixara de fazer parte da Companhia que havíamos rendido, e que esperava nova colocação. Continuavam as desigualdades. Uma Messe com 2 alferes mili­cianos (o tal que entretanto esperava colocação,  o alferes Póvoa, comandante das tropas destacadas), 1 sargento e 3 furriéis milicianos.

Começam a surgir inúmeros boatos, postos a circular pelo PAIGC, focando ataques e destruições nas nossas tropas, criando-nos não só a nós como às populações uma certa insegurança. Queria acreditar que sofrer seria natural, as bonitas flores também sofrem. O meu grande problema era não gostar de arroz.

Como se tinham refugiado na República da Guiné muita população desde 1963, a nossa Companhia começou a exercer, quando estes visitavam a família, ações tendentes a persuadi-los a regressarem a Ganturé e Gadamael Porto, iniciando-se logo um aumento da população. A diminuta população existente dedicava-se ao cultivo de mancarra e à caça e pesca. O peixe denominado por nós da bolanha servia para o abastecimento próprio e para venda à nossa tropa. Portanto íamos começando a conhecer aquelas gentes, adaptámo-nos, melhorando progressivamente o espaço, que seria a nossa terra.

Na Messe tínhamos um gira-discos, que ali ficara e somente um disco. Este era – «Sony and Cher» – “I got you Babe”. Parecia mais estarmos nos "rangers", em Lamego, massacrados com as músicas “O sambinha chato” e “Et maitenant”.

Havia um refeitório para as praças, com mesas feitas de caixotes de munições e bancos improvisados.  As primeiras avionetas começaram a aterrar em Gadamael Porto, visto em Ganturé não existir uma pista, e a ansiedade do correio começou por ser natural. Tínhamos que ir à sede da Companhia buscar o correio: a carta e o aerograma com a notícia da família. Também o contacto com a namorada, noiva e madrinha de guerra. Quando avistávamos a avioneta, inventávamos desculpas para ir buscar o correio.

Como especialista de minas e armadilhas, após ordens do capitão que nos visitou [,em Ganturé,] comecei a rebentar, com petardos de trotil, aqueles monumentos enormes, construídos pelas formigas, chamados de bagabagas, que eu nunca tinha visto. As formigas construtoras de betão armado eram o exemplo vivo da unidade, a mesma união que pretendíamos no futuro para nós militares. Eram potenciais abrigos para o PAIGC em futuros ataques ao aquar­telamento, não muito longe da fronteira.

Mais tarde concluímos que não era bem verdade esta opinião, porque os bagabagas serviam também para nossa defesa. Começava a ambientar-me, e o trotil que inicialmente utilizara, depois de umas tantas mordidelas das formigas que assistiam não pacifi­camente à invasão das suas casas, foi substituído pelas granadas, colocadas nas fendas, e com uma corda não esticada, puxava junto da paliçada.

Esse trabalho, depois de milhares de mordidelas daquelas formigas que depois de arrancadas à pele, e amputadas das cabeças, continuavam a morder, foi a primeira grande experiência. Começara já a fazer o estrangulamento do cordão lento com o detonador, com os dentes (em lugar de utilizar o alicate estrangulador), como era ensinado no Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, em Tancos. Havia aprendido a fazer o estrangulamento, nome dado ao acto de ligar o detonador ao cordão lento, na direção das costas. Isto para não sermos atingidos no rosto, e principalmente nos olhos.

Lembrei as pragas bíblicas: – As águas convertidas em sangue; as rãs; os mosquitos; as moscas venenosas; a peste nos animais; as úlceras; o granizo; os gafanhotos; as trevas e o anúncio da 10.ª praga. Eram as primeiríssimas pragas que anunciavam outras. Cortou-se o capim (capinar) em toda a zona entre a paliçada construída com chapas de bidões e terra batida no meio, e o arame farpado. Começámos por limpar a zona mais à frente, cortando a vegetação e queimando-a. Já tínhamos uma visão mais ampla de toda a zona circundante do aquartelamento.

Os abrigos foram melhorados, consoante aquilo que os militares consideravam ser mais cómodo, e aqui e acolá iam surgindo uns pequenos luxos para o local. Tudo obra executada nos intervalos das primeiras patrulhas, estas bem perto dos aquartelamentos. Existiam furriéis milicianos em Guileje e Mejo, que tinham estado comigo noutras unidades na metrópole. Quando se abasteciam em Gadamael, passavam por Ganturé. Sempre que os encontrava bebíamos umas cervejolas. A cerveja era também camarada.

Todos os dias eram nomeadas equipas para trazerem água, sempre necessária, havia de ser transportada para o aquartelamento, puxada com um motor para bidões. Era utilizada para alimentação e a higiene de cada um. Não havendo casas de banho apropriadas, o banho era com um púcaro improvisado, feito de uma qualquer lata com uma asa de arame, que derra­mava aquele líquido precioso sobre o corpo. Outra equipa ia à lenha.

Os copos eram feitos de garrafas partidas com óleo queimado com um ferro em brasa. Depois de golpes na boca, concluímos ser importante raspar as arestas nas pedras ferrosas, visto a zona ser rica em minério de ferro. A água para beber  tinha que ser tratada com pastilhas e, mesmo assim,  sabia mal. Ao fim de poucos dias em terras da Guiné fizemos uma patrulha até à fronteira da República da Guiné, num dia de altíssimas temperaturas. Não estando preparados, após termos bebido toda a água, enchemos de novo os cantis num charco existente e colocámos pastilhas. A sede era demais e bebemos este líquido sem que as pastilhas fizessem efeito.

Logo de seguida Tropas “U” e Caçadores Nativos mijavam para o charco. Perdi o controlo, senti vontade de esmurrá-los. Bebera mijo, ou para ser mais claro, todos bebemos mijo. Prometi nunca mais beber água na Guiné, nem a filtrada. Esta experiência ajudou-me a saber como lidar com aquelas gentes.

Ouvíamos constantemente os rebentamentos na área, e nos intervalos o matraquear do pilão vivia também ali e depressa ficou a fazer parte das nossas vidas. Enquanto a grande parte das mulheres com as mamas escor­rendo até à cintura batiam com o pilão com um toque cadenciado a quem se juntavam as bajudas, algumas com a mama firme, nós aproximávamo-nos sorrateiramente destas últimas, procurando uma pequena oportunidade para lhes tocar no corpo. Éramos jovens.
– Mim cá nega! – respondiam após o primeiro toque nos corpos nus.

Habituámo-nos a respeitar esta vontade, que por vezes não era a delas. Visto Ganturé ser a Sede do Regulado, onde o Abibo Injassó era o régulo, também rei, que não permitia que as mulheres e bajudas tives­sem qualquer tipo de relações sexuais com os militares, muito embora se tentasse sempre que existisse uma oportunidade, principalmente com as lavadeiras. As operações sucediam-se, principalmente as patrulhas de apoio às companhias de Mejo, Guileje e Sangonhá, o abastecimento era descarregado em Gadamael Porto.

O régulo era o elo de ligação entre a nossa unidade e os informadores. Criou-se uma rede de Informação. O informador era um pau de dois bicos, para nós positi­vamente, muito embora algumas vezes se colocasse em causa a informação. Tínhamos assim conhecimento da movimentação do PAIGC na zona. O informa­dor era pago pela informação, e se ela fosse verdadeira, recebiam mais.

A nossa tropa ajudava a população civil, facultando por exemplo a utilização das viaturas para o transporte de cargas pesadas. Também existia algum emprego para os naturais, nomeadamente nas obras dos aquartelamentos e com o contributo das lavadeiras na lavagem da roupa. Fomentou-se o cultivo do arroz, mandioca, batata-doce, milho, árvores de fruto.

De Gadamael tivemos conhecimento que os reabastecimentos para a zona far-se-iam pelo dito cais do aquartelamento, que continuava a ser uma caixa de uma GMC. Tarefa ingrata essa visto que corria a CART 1659, o risco de passar a comissão a descarregar toneladas e toneladas de mercadoria, que caiam na água e se enterrava no lodo. Cada barco para descarregar era um problema, e a nossa tropa tinha que inventar para não se afundar na lama com um saco às costas ou uma caixa de cerveja. Muitas caixas ficavam perdidas no rio. Íamos a Gadamael Porto, principalmente para falarmos com os amigos. Tirávamos fotografias, algumas demonstrativas das más condições que possuíamos. De várias viaturas conseguíamos montar uma.

Fizemos a primeira Operação ao famoso “Corredor da Morte”, também denominado “Corredor de Guileje”.

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18247: Efemérides (267): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte I