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segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21528: Notas de leitura (1322): "Biambe e os Biambenses", por Manuel Costa Lobo; 5livros.pt, 2019 - Um levantamento ímpar: toda a história de Biambe (1966/1974), sítio de coragem e martírio (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Foi obra, pôr em sequência cronológica, entre 1966 e 1974, as atividades desenvolvidas por um conjunto de Unidades Militares que puseram de pé o quartel de Biambe, que aqui lutaram e muito sofreram, que refizeram o quartel, que acompanharam reordenamentos, que viveram o drama do duplo controlo, e que naquele ponto estratégico estiveram sempre na mira de uma guerrilha bem motivada, não longe do santuário do Morés. 

Aqui igualmente se desenham, em termos corográficos, as ligações de Biambe com Encheia e Bissorã, é elevada a lista dos sinistrados com minas anti-pessoal, mas também minas anticarro e nenhuma das unidades que por ali passou foi poupada a flagelações grandes e compridas. Épico o nascimento do quartel e a 26 de julho o aquartelamento de Bissum foi entregue ao PAIGC, o mesmo acontecendo no dia 31 com o aquartelamento de Inquida. O que se entregou estava limpo e arrumado. A 7 de setembro entregou-se Biambe. "O único acontecimento digno de relevo foi o desgosto demonstrado pela população que se manifestou ruidosamente no adeus aos militares. Estavam apreensivos e temerosos porque não sabiam como seria o dia seguinte"

O trabalho de Manuel Costa Lobo incentiva-nos a repensar nos benefícios historiográficos que era coligir outras histórias, de molde a angariarmos testemunhos dos antigos combatentes, os que escreveram e os que porventura terão orgulho em serem convocados para dar o seu contributo.

Um abraço do
Mário


Um levantamento ímpar: toda a história de Biambe (1966/1974), sítio de coragem e martírio (2)

Mário Beja Santos

Por uso e costume, o antigo combatente fala da sua experiência, comenta o lugar ou lugares em que permaneceu, fala do quotidiano, a guerra está sempre presente. Há também as histórias de unidade, passadas todas estas décadas ainda há quem as esteja a cotejar, é um dever de memória que mais cedo ou mais tarde nos abala a consciência. 

A raridade de haver narrativa de como se constituiu um aquartelamento e fazer figurar todos os que lá estiveram, honrar o esforço, homenagear o heroísmo, abraçar quem figurou na gesta coletiva, naquele lugar e por todo o tempo da guerra. "Biambe e os Biambenses", por Manuel Costa Lobo, 5livros.pt (telemóvel 919 455 444), 2019, é um documento exemplar, uma faina de coligir a implantação de um aquartelamento em 1966, numa das regiões mais ásperas da luta armada, nas fímbrias do Morés, ali ganhou esporas de valentia a CCAV 1485, seguir-se-ão outras unidades até se chegar à missão final, que marcará a partida das forças portuguesas na região. 

Não é literatura memorial, é um registo dos dados disponíveis destas unidades envolvidas a que se vão averbar testemunhos e ilustrar com imagens, muitas delas pessoais. Biambe era lugar estratégico para evitar infiltrações do PAIGC na ilha de Bissau.

Está feito o registo da CCAV 1485 e da CART 1688, chegou a hora de pôr em cena mais unidades militares, logo a CCAÇ 2464 que permaneceu em Biambe de 15 de fevereiro a 8 de junho de 1969, teve pois uma curta estadia, o treino operacional foi feito em sobreposição com a CART 1688, um dos seus pelotões foi para o destacamento de Encheia, destacamento que também era reforçado com um outro pelotão da CCAÇ 2444. Não para a via-sacra das flagelações, as minas antipessoal fazem vítimas, responde-se bem aos ataques, fez-se um golpe de mão a uma base de guerrilha conhecida por Biambinho ou Biambifoi, os guerrilheiros tinham retirado deixando lá apenas velhos, doentes e feridos, na última retirada foram colhidos por uma tempestade de fogo, segue-se outra emboscada já perto de Biambe, só com a chegada dos Fiat é que findou o tiroteio. 

É neste contexto que surge um problema de desobediência ao Capitão Prata levou a um pelotão a ter-se negado a sair, acusando-o de incompetente. 

Escreve-se na obra que “Durante a permanência em Encheia, do Capitão Prata e sua comitiva, houve muitas atuações que ultrapassaram os limites da falta de segurança, nas operações efetuadas em locais muito perigosos houve atuações junto das populações das tabancas limítrofes detestadas pelos residentes, em suma houve uma atuação que saía fora de todas as normas de um correto comando e de uma normal convivência com as populações nativas”

E, mais adiante: 

“Deste facto resultou que, no dia seguinte, o Comandante-Chefe, General António de Spínola, tenha visitado Encheia com uma mensagem apaziguadora, enaltecendo as qualidades dos soldados açorianos e sobrepondo a coragem do capitão às suas falhas nas questões de segurança, dando o assunto como encerrado sem punições para ninguém”

Mas o sarrabulho não ficou por aqui, houve queixa da população civil, no dia seguinte chegou um major como instrutor do auto de averiguações ao capitão e a outro réu. No dia seguinte, em plena manhã, uma flagelação com quatro morteiradas, Encheia é flagelada dois dias depois. Sabe-se, entretanto, o resultado das averiguações, o pelotão desobediente da CCAÇ 2444 fora castigado.

Manuel Costa Lobo inclui o depoimento do radiotelegrafista José Maria Claro a quem foi amputada a perna esquerda decorrente do rebentamento de uma mina antipessoal, ele escreveu a um camarada, António Graça Nobre, um belíssimo depoimento, pungente, que assim termina: 

“Dia 7 de abril, dia trágico para mim, depois de estar duas horas de serviço no rádio fui tentar adormecer. Ao fim de meia hora acordaram-me para que fosse formar a coluna para sair, mas voltei a adormecer. Daí a meia hora, voltaram a acordar-me e disseram que o pelotão já estava à minha espera há uma hora. Até este dia protegi os meus camaradas, pedindo auxílio à Força Aérea, e neste dia, até pedi a minha própria evacuação, com a consternação de todos os colegas do curso, posicionados nos postos do nosso sector”

Quem está a testemunhar é o ex-Alferes António José Vale que descreve também, e com imensa intensidade, um grande ataque a Biambe em 7 de junho. Nesse mês de junho e até finais de novembro temos novo protagonista, a CCAÇ 2531. Registo de novas flagelações, há igualmente reações. É tempo de reconstrução do quartel, as casernas começavam a acusar o desgaste, foi por aqui que começaram as obras, fez-se novo edifício do comando (secretaria, gabinete do comandante, os quartos deste e do 1.º sargento, o bar, a messe de oficiais e sargentos), mais tarde os balneários. Procede-se ao reordenamento da tabanca. 

É um soma e segue de ataques e respostas, a guerrilha podia ver incendiadas as suas instalações, reinstalava-se depressa, sobretudo no Queré e no Iusse. Chegou a hora de aparecerem os foguetões, o Alferes José Manuel Guedes Freire Rodrigues foi condecorado com a Cruz de Guerra 3.ª classe.

Entra no terreno a CCAÇ 2780, chegou a hora do autor fazer jus aos seus registos, estarão no Biambe entre novembro de 1970 e agosto de 1972, terá muito para contar, ele é Furriel Enfermeiro. 

É minucioso no seu registo, terno a descrever as aflições que presenciou, as operações efetuadas, os meses passam-se, as obras continuam, abrem-se picadas, a vida é bastante dura no destacamento de Inquida, fala da sua preparação, nunca percebeu como foi selecionado para enfermeiro, fala do seu currículo, das peripécias que viveu e de como se desenvencilhava de situações melindrosas: 

“Um homem andava em cima de uma árvore no seu trabalho usando uma catana como instrumento. Por qualquer motivo imprevisto ter-lhe-á falhado o movimento e atingiu o próprio pénis. Quando chegou ao posto médico vinha com aquele órgão a pingar sangue. A solução que encontrámos foi dar-lhe uma injeção de um produto coagulante e para evitarmos ter que lhe mexer improvisámos uma lata de conserva de pêssego, enchemo-la de água oxigenada e mandámos o indivíduo mergulhá-lo ali. Assim se procedeu à desinfeção do dito".

"Noutra vez apareceu-me outro homem com um pé ao dependuro, só preso pela pele, com os ossos (tíbia e fíbula) completamente separados pela fratura. Não tivemos outra solução senão fazer uma imobilização muito cautelosa por meio de talas, chamar o meio aéreo e evacuá-lo para Bissau. Passados uns tempos regressou agarrado a um varapau com uma manifesta incapacidade de mobilização”

Narra a rendição pela CCAÇ 4610, conta a história de dois militares que foram caçar e acabaram prisioneiros do PAIGC, serão libertos após a independência da Guiné-Bissau, na troca com os prisioneiros do PAIGC que estavam detidos na Ilha das Galinhas.

E caminhamos para o fim da história de Biambe na guerra, a 3.ª Companhia do BCAÇ 4610/72 permanecerá em Biambe de agosto de 1972 a julho de 1974. Aqui se escreve que Biambe tinha pela frente uma força hostil que atuava com as secções em Biambe, Biur, Quinhaque e Quitamo, 2 grupos de infantaria, uma bateria de artilharia ligeiro e um grupo de sapadores; no Queré tinham um grupo reforçado com 1 ou 2 morteiros 82. 

A unidade militar apanha a transição para a chegada dos mísseis Strella, uma flagelação em maio de 1973 levou à morte de sete crianças num disparo de morteiro 82. O último episódio é a presença da 3.ª Companhia do Batalhão de Cavalaria 8320/73.

Na conclusão, o autor lembra o sacrifício que todos tiveram que suportar, agradece os testemunhos de quem com ele colaborou na elaboração de todo este histórico de Biambe e assim põe termo à sua iniciativa:

“Tudo aquilo que aqui foi escrito traduz a minha maneira de ver, de sentir e de interpretar. Muitos dirão que não foi bem assim, que foi mais assado. Embora a guerra fosse a mesma, cada um viveu uma experiência pessoal muito própria, com cores, cheiros e intensidades muito diversas, tenho consciência de que me dei por inteiro neste testemunho e que não ocultei o que sei”.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21507: Notas de leitura (1321): "Biambe e os Biambenses", por Manuel Costa Lobo; 5livros.pt, 2019 - Um levantamento ímpar: toda a história de Biambe (1966/1974), sítio de coragem e martírio (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21507: Notas de leitura (1321): "Biambe e os Biambenses", por Manuel Costa Lobo; 5livros.pt, 2019 - Um levantamento ímpar: toda a história de Biambe (1966/1974), sítio de coragem e martírio (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Rendo-me à tenacidade do organizador da história de Biambe, um aquartelamento que em 1965 foi reconhecido como uma posição estratégica para a defesa da ilha de Bissau, ali em território próximo do Morés, junto a Encheia. Manuel Costa Lobo é um recolector singular, leu diferentes histórias de unidades que por Biambe passaram, conversou com protagonistas, dá sequência cronológica às imagens, a seu tempo, como veremos, falará de si e do seu desempenho de furriel-enfermeiro. Não conhecia uma empreitada semelhante a esta, homenagear os biambenses e contar a história de um lugar criado por causa da guerra, falar da sua fundação, a crueldade do duplo controlo a que eram sujeitas as populações, mostrar como os militares portugueses respondiam taco a taco a uma guerrilha agressiva, impiedosa. Interrogo-me como é possível que a historiografia da guerra da Guiné oblitere tudo ou quase tudo o que se passou nos primeiros anos da guerra, polarizando-se no homem providencial que chegou em 1968 e que já então dizia que a situação da Guiné era altamente crítica, expressão que utilizará quando se retirar da Guiné em 1973. Há que dar os parabéns à iniciativa de Manuel Costa Lobo, ela abre imaginação a outros tipos de trabalhos que iluminem um qualquer lugar da guerra em todo o seu tempo.

Um abraço do
Mário


Um levantamento ímpar: toda a história de Biambe (1966/1974), sítio de coragem e martírio (1)

Mário Beja Santos

Por uso e costume, o antigo combatente fala da sua experiência, comenta o lugar ou lugares em que permaneceu, fala do quotidiano, a guerra está sempre presente. Há também as histórias de unidade, passadas todas estas décadas ainda há quem as esteja a cotejar, é um dever de memória que mais cedo ou mais tarde nos abala a consciência. A raridade de haver narrativa de como se constituiu um aquartelamento e fazer figurar todos os que lá estiveram, honrar o esforço, homenagear o heroísmo, abraçar quem figurou na gesta coletiva, naquele lugar e por todo o tempo da guerra. "Biambe e os Biambenses", por Manuel Costa Lobo, 5livros.pt (telemóvel 919 455 444), 2019, é um documento exemplar, uma faina de coligir a implantação de um aquartelamento em 1966, numa das regiões mais ásperas da luta armada, nas fímbrias do Morés, ali ganhou esporas de valentia a CCAV 1485, seguir-se-ão outras unidades até se chegar à missão final, que marcará a partida das forças portuguesas na região. Não é literatura memorial, é um registo dos dados disponíveis destas unidades envolvidas a que se vão averbar testemunhos e ilustrar com imagens, muitas delas pessoais. Biambe era lugar estratégico para evitar infiltrações do PAIGC na ilha de Bissau.

O autor conta como o propósito desta obra começou entre os anos de 2013 e 2014 e releva a importância estratégica de Biambe, faz logo destaque que em janeiro de 1965 o SIPFA (Serviço de Informação Pública das Forças Armadas Portuguesas) referia que na zona de Bissorã a atividade da guerrilha tinha sido intensificada, nomeadamente nas matas de Olossato, Queré e Biambe, havia na região bases bastante ativas do PAIGC. Deu-se a resposta atacando a base de Biambe que seria comandada por Agostinho da Silva, o Gazela. E adianta o autor onde fica Biambe: no Oio, a cerca de 30 quilómetros a norte de Bissau. E escreve: “A zona do Oio era particularmente violenta. Bula e Bissorã distam cerca de 40 quilómetros, uma zona desguarnecida com Biambe pelo meio. Como Biambe ficava mais perto de Bissorã, cerca de 14 quilómetros, competia às tropas aqui estacionadas efetuarem as patrulhas e as operações naquela área. Os Altos Comandos reconhecem que Biambe é uma zona fulcral da manobra do PAIGC e toma-se a decisão de ali implantar um aquartelamento, os materiais de construção desta nova unidade foram concentrados em Bula e Binar”. Em 20 de abril de 1966, chegaram as primeiras tropas ao Biambe. As forças do PAIGC não irão dar descanso, usarão todas as suas armas: flagelações, emboscadas, destruições de pontes, colocação de abatises, minas. Tempos ásperos, para se fazer abastecimentos e levar os materiais para um novo quartel, houve que contar com reforços, assim aconteceu a Operação Arranque, tudo é descrito ao pormenor, o autor recolhe testemunhos de como a partir de um local desmatado se criaram condições de alguma segurança, a despeito das destruições que a guerrilha provocava. O leitor tem fotografias eloquentes nos trabalhos dos sapadores, do icónico poilão de Biambe, um Dakota a lançar os géneros de paraquedas. São flagelações atrás de flagelações. Há uma vítima mortal.

Conta-se a história da deserção do José Augusto Teixeira Mourão, o seu depoimento irá aparecer no livro que Gérard Chaliand escreverá em 1966 sobre a luta armada na Guiné, encontrou-o na base de Maké, em pleno Morés. Enquanto se implanta o aquartelamento, debatendo-se a unidade militar com problemas incríveis de abastecimento, estabelecem-se contactos com população, obviamente sujeita ao drama do duplo controle, um tormento interminável. Tudo começa com o pedido do homem grande de Embande pretender cumprimentar o comandante da companhia, haverá receção a um grupo de 30 homens, inicia-se a aproximação. O PAIGC reage, incendeia a tabanca de Embande e mata o chefe. A tabanca de Camã foi encontrada totalmente abandonada, a população dispersa-se. Ali perto está o destacamento de Encheia, a unidade militar de então, a CCAV 1485 será louvada e considerada uma unidade de elite. Em Biambe vivem-se horas difíceis, ainda não há solução para o problema do reabastecimento por via terrestre.

Já se passou meio ano, decorrem as operações no perímetro Biambe-Encheia e Biambe-Bissorã. Melhorou o relacionamento com as tabancas da periferia. De 1966 para 1967 o armamento do PAIGC aperfeiçoa-se, chegaram os canhões. A propaganda do PAIGC delira e exagera com os números dos seus resultados: “Nas operações levadas a cabo destruiu-se uma quinzena de quartéis inimigos, tais como Olossato e Enxalé, mesmo quando foram reconstruídos, foram novamente destruídos ou danificados”. No início de 1967 estão consolidadas as obras de construção do quartel, as operações continuam, colabora o Pelotão de Caçadores Nativos 55, as flagelações estão intermitentes, preferencialmente ao fim do dia. Começa-se a construir a tabanca junto ao quartel, havia já um número razoável de apresentados. “Era importante reunir a população numa tabanca junto ao quartel, tirando-a dos locais onde o IN tinha a liberdade de se acolher e de se abastecer. A CCAV 1485 iniciou com muito sacrifício este trabalho e as unidades que se lhe seguiram vieram a concretizar”. Trabalho dificílimo, a desconfiança da população era enorme.

A missão da CCAV 1485 finda em maio, é substituída pela CART 1688. Começa a construção da pista para o DO 27. “Sem auxílio de ninguém, quer pessoal quer material, só com paz, picaretas, enxadas e carros de mão, logo ao terceiro dia de ocupação do Sector começou o pessoal desta CART a fazer a sua pista”. Não param as flagelações e continuam os patrulhamentos, há captura de guerrilheiros e de material, o PAIGC incendeia tabancas, em novembro a pista foi inaugurada. Durante o tempo em que a CART 1688 se instalou no Biambe até ao fim do ano apresentaram 69 elementos da população. E chegámos a 1968 e a atividade operacional não abranda de um lado e do outro.

Começou a era de Spínola, a CART 1688 será condecorada, aproxima-se o fim da sua comissão, o autor elenca os resultados e antes de nos falar da unidade que vem substituir, a CCAÇ 2464, dá-nos uma narrativa de grande emoção, Zé do Biambe, fala de um artigo do Coronel Damasceno Loureiro Borges (antigo Comandante da CART 1688) que ficou marcado por uma história singular. Primeiro fala de Biambe, dizendo que o quartel estava situado na orla de uma mata num pequeníssimo alto que dominava uma estreita e comprida bolanha, a meio ficava a tabanca e junto à bolanha situava-se a Fonte do Biambe. Um dia, ia uma força de segurança para a dita fonte, uma bazucada troou nos ares de Biambe, as nossas tropas ripostaram, o IN retirou deixando morto um elemento da população.

“Cerca de duas horas depois:
- Meu capitão, tem pessoal na bolanha! (Assim me falava um militar guineense).
- Não pode ser! Os turras não iam para a bolanha por ser um local descoberto e o quartel fica para além…
- Tem sim, olhe os jagudis (abutres).
- De facto, uma nuvem de jagudis fazia círculos no ar em redor de um ponto, sinal da presença de algum animal ferido ou morto.
Decidimos fazer reconhecimento.
- Cá está ele. Está vivo! Cá está o ‘turra’ (gritou o guia).
- Como estás tu aqui?
- Como fui ferido, para não atrasar a fuga, os meus camaradas disseram-me para eu ficar aqui, até me virem buscar.
Mostrava serenidade. Não indiciava qualquer traço de terror. Não se vislumbrava qualquer mancha de sangue naquele corpo jovem.
- Então o que tens?
- Entrou bala aqui.
E para indicar o local, despiu a camisa e com o dedo indicou um buraco de bala, junto ao mamilo esquerdo.
Como disse, era jovem, chamava-se Zé do Biambe e tinha vindo com o seu grupo montar emboscada na Fonte às quatro da madrugada.
Regressados ao quartel, foram ministrados os primeiros socorros na enfermaria e enquanto permanecia deitado na maca foi pedida uma evacuação tipo Y.
Alguns minutos após a chegada ao quartel:
- Posso dormir um bocadinho?
- Sim, até chegar o avião.
Fechou os olhos… E sereníssimo, sem um esgar, sem um gesto, sem um queixume… morreu.
Nunca presenciara nem nunca imaginei que alguém pudesse morrer assim tão, tão serenamente.
Se presto homenagem ao militar português, na pessoa dos militares que me acompanharam na CART 1688, perante ti, Zé do Biambe, curvo-me com admiração por todos os que lutaram, do teu lado, pela tua casa”.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de31 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21500: Notas de leitura (1320): A festa do corpinho... (Jorge Cabral, "Estórias cabralianas", Lisboa, ed. José Almendra, 2020, pp. 59-60)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17077: Convívios (779): Convívio do pessoal do BART 1913 (Guiné, 1967/69), a levar a efeito no próximo dia 27 de Maio de 2017, em Viana do Castelo (Fernando Cepa)



Pede o nosso camarada Fernando Cepa, (ex-Fur Mil Art da CART 1689/BART 1913, Catió, Cabedú, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), para divulgarmos o Convívio do seu Batalhão, a levar a efeito no próximo dia 27 de Maio de 2017 em Viana do Castelo, este ano coincidente com o 50.º aniversário da partida para a Guiné.


CONVÍVIO DO PESSOAL DO
BART 1913 
 CCS, CART 1687, CART 1688 e CART 1689

27 DE MAIO DE 2017 - VIANA DO CASTELO 

CINQUENTENÁRIO DA PARTIDA PARA A GUINÉ EM 25.04.1967 

PROGRAMA:

10.00 H - Recepção no Forte de S. Julião da Barra 
11.00 H - Missa na Igreja de S. Domingos 
13.00 H - Almoço no Restaurante Camelo em Santa Marta de Portuzelo 
16.00 H - Queimada Galega 
Animação - Música, Baile e Folclore 

Presenças já confirmadas. 
Senhor General Manuel Moreira Maia 
Senhor Tenente Coronel Alves da Silva 

Contactos:
Teotónio Barreto (Ex-Alf Mil da CCS) - 963 037 234 
Fernando Cepa (Ex-Fur Mil da Cart 1689) - 964 056 889 
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17070: Convívios (778): XI Encontro dos Combatentes da Guerra do Ultramar do Concelho de Matosinhos, a realizar-se no próximo dia 11 de Março de 2017, em Leça da Palmeira (Carlos Vinhal)

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13716: Notas de leitura (640): “Guiné, a cobardia ali não tinha lugar”, por José Silveira da Rosa, edição de autor, 2003 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
Por mim, preferiria que se usasse de uma absoluta descrição sobre este livro. Trata-se de alguém em estado de grande sofrimento, com os seus sonhos por terra, alguém que esteve no Terreiro do Paço no dia 10 de Junho de 1968 a receber uma condecoração para a CART 1688, que passou um largo período de tempo a combater em Biambi, e que descreve situações terríveis, desde uma inacreditável execução de capturados até várias violações.
É tudo demasiado excessivo e doloroso e o que se deixa escrito é apresentado como um alívio da consciência.
Tudo quanto se escreveu naquela nossa guerra não pode ser ignorado, para isso procuro trabalhar com as regras de escrúpulo porque pauto a minha vida.
Constrange-me ler certos relatos, fica-se perplexo, nem sempre dá para acreditar. Por isso registo e sigo em frente.

Um abraço do
Mário


Um jogador de Os Belenenses em Biambi

Beja Santos

“Guiné, a cobardia ali não tinha lugar”, por José Silveira da Rosa, edição de autor, 2003, relata a história de um furriel que embarcou para a Guiné em Abril de 1967, de Bissau partiram para Bula, após o treino operacional coube à CART 1688 o destacamento de Biambi, no Oeste do Oio. Vai falar de rotina na montagem de emboscadas, nas operações de grande porte, nos patrulhamentos de reconhecimento e das nomadizações, escoltas com picagem das estradas e a outra rotina da segurança à fonte, das limpezas ao aquartelamento, dos serviços de capinação bem como a construção da pista de aterragem. Enumera as zonas que percorrem, nomes como Encheia, Biambezinho, Estrada de Bissorã, Estrada de Binar. Livro profusamente ilustrado, nunca encontrei álbum fotográfico como este: com diferentes armas e em posse para o fotógrafo, na messe, na fonte, a jogar à bola, junto de viaturas atascadas, com diferentes camaradas, disfarçado de autóctone, a simular que vai trabalhar com morteiro 81, no aquartelamento, ao pé do abrigo, em cima dos morros de baga-baga, a simular que está a trabalhar no arrozal, a pilar arroz, a colher mangos… E socorre-se de alguns depoimentos de camaradas, a seu pedido.

Tece acusações gravíssimas. O furriel Silveira Rosa pertencia ao 2.º pelotão da CART 1688, denominado “Os Diabólicos”, explicando que fora opção do seu irreverente alferes, “sempre na vanguarda em assuntos de guerra, oferecendo por vezes o seu e nosso pelotão para algumas missões voluntárias, sem perguntar se aceitávamos ou não”. Em Biambi, estimulou as orações noturnas. Aliás, reza sempre enquanto vai na picada, como escreve: “Lembrai-vos, ó puríssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tem recorrido à vossa assistência e reclamado o vosso socorro, fosse por vós desamparado”.

Biambi conheceu várias flagelações, que ele pormenoriza. Um ataque de paludismo, nos finais de Agosto de 1968, estava ele com mais de 39º de febre, não impediu que o comandante da companhia recuasse na ordem de ele ir para uma emboscada, regressou com mais dores, deram-lhe uma injeção que o levou ao hospital de Bissau, onde surgiu uma tromboflebite, nunca mais se recompôs, foi evacuado para Lisboa, ao fim de quatro meses de internamento, a sua guerra acabou aqui. Em Maio de 1969 regressou, à sua terra-natal, o Faial. A partir daí, potenciaram-se os sofrimentos. É deficiente militar, sofre de stress pós-traumático de guerra, é inapto para o trabalho desde o final de 2000. Escreve que tendo sido futebolista profissional, depois da vida militar sujeitou-se a ser caixeiro, empregado de escritório durante 24 anos e nos últimos anos da sua carreira profissional foi caixeiro/encarregado.

A região de Biambi tinha naturalmente diferentes tabancas submetidas a duplo controlo, o que gerava, nalguns casos, situações terríveis. Estamos já nas confissões que ele entende fazer, e que são assumidas como um desabafo e um grito da consciência. Numa emboscada para os lados do Alto do Tama apanharam uma jovem. Na presença do alferes, a jovem terá sido violada, o Silveira da Rosa recusou colaborar na violação coletiva. Segue-se o que ele intitula de “descrição macabra”, algo que aconteceu no dia 5 de Agosto de 1967. Houve uma operação de grande porte, coube à unidade do furriel Rosa efetuar um golpe de mão. A CART 1688 terá sido intercetada pelos guerrilheiros do PAIGC e seguiu-se uma emboscada terrível que meteu abelhas. Entretanto, houvera captura de prisioneiros. O comandante de companhia teria entregue os ditos prisioneiros (os nove nesse dia apanhados, e o autor acrescenta mais oito que já lá estavam há algum tempo, não se percebe quando nem porquê) ao linchamento. O furriel Rosa a tudo assiste em cima da caserna-abrigo, viu uma multidão enfurecida primeiro a distribuir pontapés, bolachadas e cotoveladas; um furriel pegou num barril vazio e dava com ele nas costas dos prisioneiros. E seguiu-se a execução, os prisioneiros foram levados de olhos vendados e mortos tiro a tiro, um outro furriel tirava uma orelha… Este foi o “massacre-genocídio” que ele presenciou. E escreve: “Sei que vou pagar por esta denúncia, mas enfrentá-lo-ei com coragem e teimosia, alivio o fardo que carrego há uns 35 anos. Que Deus me dê forças para enfrentar as consequências”.

Dá-nos uma descrição minuciosa do aquartelamento do Biambi, ilustrando mesmo com uma fotografia aérea, as instalações estão numeradas e ficamos a saber onde é a secretaria, a cantina, o centro-cripto, o balneário, as instalações onde viviam os militares da companhia e as milícias. A CART 1688 foi condecorada com a “Flâmula de Ouro”, bem como a Cruz de Guerra 1.ª Classe, o furriel Rosa participou nas cerimónias do Dia de Portugal, em 1968, no Terreiro do Paço.

O texto prossegue em ziguezague e temos mais violações ao desbarato, desta vez o alferes do 2.º pelotão vão buscar mulheres para um género de orgia, voltaram a insistir com ele, volta a pedir perdão a Deus. O furriel Rosa escreveu os seus desabafos no jornal Correio da Horta, logo foi interpolado por outros militares, encorajando-o. O presidente da Apoiar – Associação de Apoio aos Ex-combatentes Vítimas do Stress da Guerra, Mário Gaspar, também participa com o seu depoimento, descreve uma operação que se realizou em 14 e 15 de Julho de 1967 no Corredor de Guileje, na região de Famora, e conta a odisseia de um soldado que andou perdido onze dias ao fim dos quais foi ter ao aquartelamento de Guileje, o soldado António Fernandes da Silva, de Carregal do Sal.

Publicita os seus gritos de revolta, queixa-se das mentiras dos políticos, da falta de contagem de tempo, elogia o médico que o tem tratado.

O relato do furriel José Silveira da Rosa tem o aspeto incomum de publicar dezenas e dezenas de fotografias, de um modo geral em posições de lazer e recreio, onde não faltam poses a jogar futebol, o seu sonho danificado pelo acidente que modificou a sua vida. Relata um massacre de 17 pessoas, que me parece inacreditável, se acaso um comandante de companhia tivesse decretado um linchamento havia seguramente consequências, alguém teria participado para Bissau a carnificina. Acresce as descrições das violações, uma delas, como escreve inequivocamente, a mando do alferes do 2.º pelotão, com nome e tudo. Pode entender-se que haja problemas de consciência com o furriel Rosa e que ele está dentro da clara certidão da verdade, não se deixa de refletir como a liberdade de expressão pode ser desviada para excessos, para assassinatos de caráter, para o opróbrio de gente desta CART 1688 que seguramente nada teve a ver com alegados desmandos.

O que aqui se escreve em recensão deve ser tomado à letra, o que os autores escrevem, em memorial ou em ficção, ficarão como testemunhos, serão um dia filtrados, e nalguns casos alvo de condenação ou exaltação.
Sem mais comentários.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13696: Notas de leitura (639): “Do Outro Lado das Coisas", do Embaixador João Rosa Lã (2) (Mário Beja Santos)