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quarta-feira, 4 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18811: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (22): A Mina

1. Em mensagem de 25 de Junho de 2018, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos mais um acontecimento da sua Guerra a Petróleo onde não faltam jornalistas estrangeiros de visita a Mansabá e o rebentamento de uma mina, que danificou uma Berliet, lá para os lados do Bironque.


Itinerário Mansabá-Farim, com o Bironque sensivelmente a meio caminho
© Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné


A Minha Guerra a Petróleo (22)

A Mina

Talvez por estar ligada a Bissau por estrada asfaltada, Mansabá tornou-se um destino para o turismo bélico-jornalístico, aí por volta de Dezembro de 1972, Janeiro de 1973. Um dia, recebi uma mensagem que me informava de que a CArt 3567 seria visitada por um jornalista e professor da Universidade de Harvard. Fiquei naturalmente surpreendido, mas não preparei recepção especial. Pensei que era mais positivo que o visitante visse um dia de actividade normal. Que viria um americano fazer à Guiné, quando as coisas já estavam a correr tão mal no Vietname, de tal sorte que nos Estados Unidos, a contestação à guerra subia diariamente de tom? Um dia, próximo da hora de almoço, uma coluna vinda de Mansoa trouxe o tal professor, acompanhado pelo Capitão Otelo Saraiva de Carvalho. Era um rapaz na casa dos trinta anos, jovial e ávido por saber. Fez-me perguntas, às quais fui respondendo, procurando dar-lhe uma ideia tão real quanto possível da situação. Pelo meu tempo de permanência no “TO daquela PU” não me apetecia, sequer, tentar apresentar-lhe uma situação que não correspondesse à realidade. Todavia, logo no início da conversa, impôs-me uma condição: ao almoço não queria que lhe dessem nem frango, nem bife. Acabara de me inutilizar as duas ementas festivas mais comuns nas “unidades do mato”.

Não me recordo do que era o almoço do dia, mas dispus-me a servi-lo “à la carte”, desde que o nosso depósito géneros pudesse satisfazer-lhe o capricho. Não enjeitou a sopa nem as fatias de casqueiro, mas optou por uma lata de sardinhas em azeite com batatas cozidas, que comeu com uma satisfação muito evidente. Tinha uma certa razão, já que, em todos os sítios onde tinha ido, o que lhe davam para comer era frango assado ou bife com batatas fritas e este último, muitas vezes, parecia extraído da cabeça da rês… Ainda lhe expliquei que aquela iguaria não fazia muito o nosso estilo, em virtude do número de vezes que já a tínhamos experimentado, mas ele respondeu-me no seu melhor português que “esta pessoa prefere sardinhas enlatadas em azeite”.

Após a refeição, passeámos no quartel, trocámos ideias e o visitante regressou a Bissau. Pareceu-me que ia bem impressionado.

Uma ou duas semanas depois – a 9 de Janeiro de 1973 – nova mensagem de teor idêntico, mas agora era uma jornalista norueguesa. A avaliar pela idade do jornalista anterior, começaram as conjecturas acerca da visitante seguinte. Para já era uma nórdica, o que, na nossa escala de conhecimento da Europa, significaria alguém alta, loura, de olhos azuis e com uma certa desenvoltura física… Mas, neste caso, não seria bem assim.

A coluna de Mansoa trouxe-a, num jeep civil, acompanhada pelo meu amigo Otelo e aí aconteceu a surpresa. Era uma velhota magrinha – Inga(?) de seu nome – vestida com uma túnica leve, de cor clara, umas calças escuras um pouco justas, e calçada com umas sabrinas de pano. Vinha visivelmente cansada. Desta vez, não me foram postas questões relativas à ementa do nosso restaurante-snack, mas quando me pediu que lhe mostrasse igrejas e hospitais fiquei bastante confuso. A igreja era improvisada, sempre que o delegado do Senhor visitava a unidade, num antigo refeitório do batalhão que anteriormente tinha guarnecido a localidade, e a enfermaria, se bem que boa e muito funcional, não era propriamente um hospital. Médico, só em Mansoa.

A minha mulher e as esposas de dois furriéis estavam connosco, clandestinamente, o que a jornalista achou muito interessante1. Porém, não conseguiu estabelecer contacto com nenhuma, pois nenhuma falava inglês.

Não sei qual era a posição do governo norueguês em relação à guerra. Hoje, pela experiência que a vida me deu, creio que o povo do país teria uma muito vaga ideia do que ali se passava e os dirigentes políticos mantinham uma posição de conhecimento, mas muito contido. Nunca ouvi falar de qualquer atitude oficial de apoio ou contestação à política portuguesa por parte da Noruega. A Suécia, sabíamos nós que participava na guerra, apoiando farisaicamente o PAIGC, fornecendo-lhe material escolar e sanitário. Mas, embora próximos os países são diferentes e não é lícito misturá-los. Nós, os portugueses também estamos perto dos espanhóis, mas somos povos bem diferentes, vivendo em países diferentes…

A coluna tinha chegado um pouco atrasada e convívio luso-norueguês esteve animado e prolongou-se. Estando previsto que a viagem continuaria para Farim, a partida da coluna para Norte atrasou-se, por consequência. Além disso, a CART não tinha no seu parque um jeep operacional onde se pudesse transportar a visitante até àquela localidade, onde apanharia o avião civil para Bissau. Procurando evitar transportá-la numa viatura militar de difícil acesso para um activo elemento da terceira idade, pedi emprestado ao administrador do posto, um jeep que tinha uma particularidade: estava mal de travões.

Enfim, partimos para Farim, indo a ilustre visitante no jipe, em segundo lugar na coluna. Subitamente, já perto do K3 (Saliquinhedim, de acordo com o mapa), surgiu um pequeno avião civil que, depois de uma volta à nossa vertical, aterrou na estrada no sentido da marcha da coluna. Não seria uma manobra fácil, mas o Comandante Pombo2 realizou-a, provavelmente porque entre o Bironque e o Rio Farim, a estrada asfaltada era recta e desenvolvia-se em terreno plano e praticamente sem vegetação numa área considerável.

Assim, “devido ao adiantado da hora” os dois viajantes VIP foram recolhidos e o avião partiu para Bissau. Que fazer agora? Mandei a coluna prosseguir até à margem do rio. O batalhão ali estacionado estava para ser rendido. Daí que tivesse aproveitado a jangada onde vinha o respectivo comandante para receber a jornalista e com uma viatura apenas cruzei o rio. Ali, os meus “ferrugentos”3 arranjaram, por simples oferta, peças avulsas para reparação das nossas viaturas. Um exemplo de camaradagem entre unidades. Não nos demorámos muito em Farim. Voltámos a cruzar o rio e iniciámos a marcha para Mansabá.

Tudo corria bem e seguíamos a uma velocidade regular. Passámos a tabanca velha do Bironque e um pouco depois… uma explosão. Eu, que seguia com o furriel mecânico (o Licínio), transportando na segunda viatura, o jeep sem travões, vi uma densa nuvem da terra e fumo negro junto da roda dianteira da Berliet que seguia à frente. Todo o pessoal que seguia nela foi projectado, excepto o condutor – o Valongueiro – que permaneceu agarrado ao volante.

Todos deverão ter passado pela estranha sensação de surpresa que o alferes Silva descreveu como “uma percepção imediata de que já se estava no Além, devido à formação de poeira, fumo e escuridão”. Depois diz que “não deixou de apalpar o corpo e ter uma sensação estranha e assim pensar que desta vida já fui”; e continua dizendo que “com o desanuviar da situação de escuridão, ouviu alguns a vociferar "dignas palavras" do nosso vocabulário vernáculo, começou a aperceber-se de que ainda não tinha sido desta que "estava no Além" e mais adiante ainda confessa que “à parte, apenas como desabafo, sei que praguejei contra a jornalista norueguesa um sem fim de palavras vernáculas minhotas, que dispenso de mencionar”. Uma descrição verdadeiramente rica do efeito de surpresa, quando nos sentimos envolvidos num conjunto de sensações dadas por todos os sentidos, mas mergulhados na escuridão, o que nos reduz muitíssimo a nossa capacidade de relação com o meio que nos cerca.

Não consegui imobilizar logo o jeep, mas acabei por aproveitar a berma para esse efeito e, por sorte não atropelei ninguém. O Sá Lopes, furriel “ranger” berrava para os lados do Morés contra os elementos In responsáveis pela situação. Chamava-lhes cobardes e convidava-os a virem até ao local onde estávamos parados. Graças a Deus foi ignorado nos seus apelos e apupos e pudemos tentar resolver o problema. Havia que mudar o pneu da Berliet, mas a poli devia estar deformada pelo que a roda não rolava. Para evitar que o segundo pneu também rebentasse colocou-se-lhe debaixo, uma das grelhas laterais do motor da Berliet e assim fomos rebocando a viatura. De vez que quando, molhava-se a chapa com água ou óleo para baixar e temperatura e facilitar o deslizar da roda.

Mas havia feridos. O que mais me preocupou foi o soldado Pessoa, que tinha um fiozinho de sangue que lhe saía do ouvido. Suspeitei de traumatismo craniano. Porém, o mais grave veio a ser o cabo Trindade4, que foi evacuado para Bissau, no dia seguinte. Empilhei os seis feridos no jeep e segui para o quartel, deixando o alferes Silva a conduzir a coluna, procurando chegar depressa e com a viatura atingida, o menos danificada que fosse possível. À chegada, a minha mulher recebeu-me e, segundo me disse depois, eu tinha terra até no intervalo dos dentes. Era natural, não podendo travar entrei na nuvem de poeira negra que se levantou e, o Licínio e eu ficámos um tanto enfarruscados. Ela nunca mais se esqueceu de que quando lhe peguei num braço, deixei nele uma marca de fuligem.

 Berliet que accionou a mina anticarro na zona do Bironque

No aquartelamento, o alvoroço foi grande. Embora a explosão da mina se tivesse ouvido no quartel, foi o Valdrez, o operador de rádio de serviço, quem recebeu comunicação do sucedido e deu o alarme. A minha mulher que estava a escrever, sentada à minha secretária, foi dos primeiros a saber, já que o gabinete era próximo do posto de rádio. O furriel enfermeiro Carvalho começou a preparar a enfermaria para receber os feridos, mesmo saber quantos eram e o seu grau de gravidade. Estando um grupo de combate da companhia empenhado na segurança à construção da estrada para Bambadinca, o alferes Serras procurou organizar uma coluna de socorro com base no único grupo de combate disponível, o seu, e com as duas viaturas quase incapazes de que dispúnhamos e que só usávamos nos serviços do quartel, que teria de ficar entregue ao desfalcado pelotão de milícia. O Carvalho observou os feridos e, especialmente para o Trindade, era aconselhável a evacuação para Mansoa, onde o médico diria de sua justiça. No dia seguinte, uma nova coluna partiu com os feridos. Todos voltaram, excepto o Trindade, mas alguns vinham muito em baixo de forma. O alferes Silva e o Bateira andaram de bengala durante, pelo menos uma semana, e ainda assim andavam, quando fomos visitados por um brigadeiro do CTIG que vinha estudar da possibilidade de ser instalado em Mansabá um centro de instrução para uma companhia de comandos. Assim veio suceder, tendo sido preparada uma companhia de recompletamentos para o Batalhão de Comandos Africanos da Guiné.

Nunca tive qualquer resultado destas visitas dos tais jornalistas de estrangeiros, nem me foi dito para que publicações trabalhavam. Era um esforço que era necessário fazer para tentar – como se tal fosse possível – para modificar a opinião pública mundial…

Notas:
[1] - Um dia, antes das mulheres dos furriéis Costa e Ramos chegarem, um dos dois médicos do batalhão confidenciou à minha mulher que, na unidade, só havia uma pessoa onde poderia exercer a sua especialidade. O Dr. Pedro Carneiro era ginecologista.
[2] - O Comandante Pombo – José Luís Pombo Rodrigues (1934 – 2017) – era um piloto dos TAGP. Fora piloto da Força Aérea e havia prestado serviço na Guiné, no início da guerra.
[3] - Designação comum a mecânicos e condutores das companhias.
[4] - Manuel de Almeida Cunha Trindade
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17722: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (21): Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), ocorre-me perguntar: E afinal para quê?

sábado, 2 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17722: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (21): Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), ocorre-me perguntar: E afinal para quê?

Guiné-Bissau - 2008 - Cemitério Militar de Bissau - Talhão Central
Foto: © Nuno Rubim (2008) . Direitos reservados.


1. Em mensagem de 28 de Agosto de 2017, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos esta reflexão onde põe em causa o sacrifício de uma geração que combateu em África, numa guerra sem sentido em território desconhecido para a esmagadora maioria dos militares para além-mar mobilizados. A mesma interrogação se põe para os camaradas guineenses que durante 11 anos lutaram a nosso lado.


A Minha Guerra Petróleo (21)

E Afinal para Quê?

Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), facto histórico ocorrido após onze anos de guerra, conduzida nas condições mais duras de quantas ocorreram nos três TO onde a guerrilha contra as autoridades portuguesas eclodiu e depois de ter lido alguns dos últimos posts no blog que me atingiram mais profundamente, ocorre-me perguntar:
E afinal para quê tanto esforço? Para que serviu tanto sacrifício? Valeu a pena o nosso empenhamento, (sempre que existiu) não apenas na área operacional, mas também nas outras, (e tantas foram)? Esta questão do “empenhamento” no desempenho das tarefas diárias levanta a questão fundamental da nossa intervenção em África: será que a considerávamos necessária, justificada, útil e vantajosa até? Ou pelo contrário, aceitávamo-la como uma problema – uma espécie de obstáculo a transpor – a que não podíamos fugir?

Tenho para mim e declaro já que, cada vez mais, concluo que tanto esforço e sacrifício foi totalmente inútil. Mas isso é a minha maneira de pensar… Aqui deixo algumas considerações sobre o tema. A guerra na Guiné durou 11 anos e traduziu-se essencialmente num somatório do sacrifício – físico e psíquico – de períodos de dois anos imposto aos jovens portugueses, numa altura da vida que deveria ser, como dizia Gomes Freire de Andrade, a mais bela parte da vida e durante o qual os rapazes do nosso tempo se preparavam para a vida que se iria seguir. Para além dos que foram e voltaram “bem”, temos a considerar o sacrifício dos mortos, a dor dos feridos e de todos os outros que voltaram depois de terem sido vítimas de outros tipos de sofrimento, como a prisão, por exemplo.

Hoje, coleccionamos as consequências do “conflito”, descrevemo-las em livros, em blogs e em evocações anuais ou convívios em que se recorda o sucedido. Chamam-nos os “Velhotes da Tropa”. Nesta altura já não será importante contabilizar as tais consequências, pois isso é do campo da estatística, uma ciência fria e que normalmente não acrescenta nada de novo, depois de um tratamento matemático da realidade. Os estudiosos futuros que o façam! Além disso, hoje não se pode fazer nada para melhorar o que quer que seja…

Venho apenas perguntar para que serviu tudo aquilo que passámos e cujas marcas hoje ostentamos, veladamente uns, outros exibindo-as com orgulho (provas de dever cumprido, afirmação de coragem ou de virilidade) ou, na pior das situações, por impossibilidade de as esconder.

Vou falar dos portugueses metropolitanos. Mas poderia estender a pergunta, incluindo os guineenses, que lutaram – esses de modo ininterrupto, nas suas terras e junto das suas famílias – do lado das autoridades portuguesas. E, por uma questão de justiça, ainda poderia estender as mesmas perguntas, relativamente aos guineenses (guerrilheiros do PAIGC e civis que os acompanhavam, na esperança de que, depois daquele sacrifício, a vida lhes sorriria). Se podemos apresentar um número dos que lutaram à ordem do governo, sediado em Lisboa, em relação a estes últimos não encontramos arquivos fiáveis que nos permitam estimar quantos tenham sido e, muito menos, quais desses morreram ou ficaram com as sequelas dos tipos que indiquei a cima.

Os “Metropolitanos”, arregimentados num processo contínuo e sempre crescente, podem ter começado por aceitar a ida para a guerra como um imperativo patriótico e moral. Com efeito, a História e a Geografia de Portugal que estudávamos, todos pelos mesmos manuais, e examinados, da mesma forma e com os mesmos critérios, inculcavam-nos no espírito, uma espécie de crença (não diria fé) que fazia com que tivéssemos daquelas terras um conhecimento menos que livresco mas, mesmo assim, se nos perguntassem, considerávamos que elas eram “os nossos territórios de além-mar”. O número dos que lá tinham qualquer coisa de seu era mínimo e, em boa verdade, o sentimento de posse em relação àquelas terras era algo que ninguém conseguia explicar o que fosse. Estou convencido de que este estado de espírito tinha que ver com o momento da vida em que o conhecimento nos era inculcado. Era uma ideia que íamos interiorizando e não podíamos pôr em causa – por motivos óbvios – e que íamos arrumando no nosso espírito, esperando nunca ter de a fazer vir à memória e, muito menos, que isso viesse influenciar a nossa maneira de viver. Quantos de nós tinham ido alguma vez à Guiné? E, contudo, se a Pátria precisasse, iríamos e fomos…

A censura que pesava sobre as publicações antigas acerca da Guiné impedia que tivéssemos conhecimento do que por ali se passou, ao longo de 500 anos e a que não tínhamos acesso nos tais manuais. Era uma censura estranha, já que não “cortava” textos ou impedia a publicação dos livros mas, recorrendo a uma espécie de silêncio nunca assumido, impedia que a mensagem daquelas publicações se difundisse e assim tivéssemos uma ideia concreta do que íamos encontrar e, principalmente, porquê. Hoje, quando lemos os livros e as revistas antigas, só temos que somar dois e dois, ao conectar o que encontrámos nos locais onde vivemos com as descrições que ali encontramos. As publicações de propaganda (emitidas pelo SNI e outras entidades oficiais) eram algo que tinha uma difusão muito restrita, talvez propositadamente, e não despertavam interesse. Eram coisas que “o Estado” publicava, mais por obrigação, e que acabavam por não ter utilidade na difusão da realidade.

E a “realidade” veio. Uma vez desembarcados, só poderemos falar de choque e espanto. Então a Guiné era aquilo? Era por aquilo que vínhamos arriscar-nos? Aquela terra também era Portugal? Porquê, se a diferença era tão grande? Qual era a ligação que sentíamos ter àquelas populações? Ou, reciprocamente, qual era a ligação que as populações tinham connosco? Sem possibilidade de retorno, fizemos apelo à velha capacidade de adaptação dos portugueses a qualquer meio onde se encontrem, chegando ao ponto de tentar falar a língua que era comum aos seus grupos étnicos de que ainda conhecíamos(?) vagamente os nomes. No contacto diário, nunca procurámos ensinar-lhes a nossa. Por mim, creio que recusar aprendê-la era uma das suas formas de resistir à ocupação, que só episodicamente assumiu a forma de integração. É por isso que ainda conhecemos algumas palavras em crioulo ou mesmo em fula, balanta ou outra, consoante as regiões por onde andámos. Mas o mais importante foi que, à chegada, caiu por terra o mito de “dilatação da fé”, uma vez que o número de católicos que encontrámos era ínfimo, se comparado que o dos islamitas ou animistas.

Inevitavelmente, no íntimo de cada um de nós, começaram, então, a ser postas em causa as razões para estarmos ali, naquela hora e naquelas condições. Era uma interrogação para qual cada vez menos tínhamos resposta. É inútil dizer que as perguntas deste teor, sem resposta, eram cada vez mais e as contradições se avolumavam a cada dia de comissão. Sabemos todos que a convicção – mesmo forte – das primeiras mobilizações rapidamente se perdeu e, a cada “fornada” de periquitos, era possível notar a falta de mentalização, de interesse e vontade, relativamente aos velhos que saíam com a sensação de que as coisas não tinham melhorado. Mas, no fundo, o que é que interessava se tinham melhorado? O “dever cumprido” era afinal ter estado sem fugir, ter sofrido e, com maior ou menor êxito ter suportado as investidas do inimigo ou ter obtido êxitos nas nossas acções ofensivas. Mas, em consciência, a maior parte de nós não saberia responder cabalmente se o sector que passámos aos periquitos estava melhor do que tínhamos recebido da velhice. Não falo obviamente, na melhoria das condições de vida, nos aquartelamentos, porque essas vinham do nosso ânimo, capacidade e apoio logístico conseguido.

Numa análise das outras áreas da nossa actuação, vou excluir a famigerada APsic que, antes de tudo, tinha de ser barata, o que a condenava a nem conseguir sequer seduzir os incautos, tal era o seu grau de demagogia. Mas havia outras áreas em que a nossa acção revestia aspectos gratificantes. A melhoria das condições de vida nas tabancas através (por exemplo) da abertura de poços ou construção dos chamados “reordenamentos”, onde era suposto que a população viveria melhor, pelo menos a coberto dos incêndios. No entanto, os “reords” eram também uma consequência da nossa táctica, o que faz supor que nunca teriam acontecido se a guerra não tivesse surgido. Temos também o caso do apoio sanitário que conseguíamos prestar às populações e que, algumas vezes, até estendíamos aos inimigos. E as melhorias no sistema viário, intensificadas durante o governo do General Spínola e obtidas à custa de grande esforço em todas as regiões. Já no que respeita à educação, a nossa actuação foi mais discreta e os resultados bem modestos. Nunca detectei uma grande avidez da população no acesso à instrução e cultura e, devido ao atraso em que se encontrava, seria de esperar que o desenvolvimento da educação fosse quase exigência. Recuso que se trate de características endémicas do povo. Admito antes que se tratasse de uma atitude de desconfiança, ou até de recusa, que radica no passado, talvez longínquo, e que visaria evitar a descaracterização. Seria possível a montagem de uma estrutura de escolas primárias semelhante à que existia na Metrópole? Não creio que fosse, por demasiado cara. Como sabem a “guerra” tinha que ser barata, pois o orçamento não dava para tudo. E professores/as será que os havia?

De qualquer modo, temos que concordar que é uma ideia um tanto ou quanto absurda ter de fazer uma guerra para obter melhorias sociais ou “concedê-las” em consequência da guerra. “Na Guerra Preparando a Paz”, a divisa de um dos batalhões a que pertenci é, no mínimo, um absurdo. A Paz faz-se e pratica-se. Se há guerra é porque há condições para que surja. Preparar a Paz fazendo a guerra, como muitas vezes se diz é como ficar feliz por ter adoecido e saber que o que é bom é ter saúde. Surrealismo puro!

Mas por mais que fizéssemos, há uma coisa, que ninguém pode negar: nunca ocorreu uma mudança de campo massiva da população sob controlo do inimigo, nem uma colaboração espontânea e generalizada por parte da população que estava sob nosso controlo. E a população era o alvo daquela guerra. Era o que tínhamos de conquistar de modo a negar ao inimigo a exploração das contradições que tinham levado à situação que se vivia. É dado adquirido que, na Guerra, há sempre uma parte da população com um comportamento amorfo em relação aos beligerantes, mas as mudanças operadas deveriam ter levado a uma maior aceitação do domínio das autoridades. E tal não sucedeu, por mais que nos esforçássemos.

Não entendíamos porquê mas, já naquele tempo, tínhamos a ideia de que o inimigo estaria muito mobilizado e motivado. Não tínhamos dúvidas de que o aparelho administrativo do inimigo não tinha capacidade para fazer melhor do que a nossa Administração. Também não entendíamos bem o que levava a população que apoiava o inimigo a manter-se junto dele. Sabemos agora que a deserção, de combatentes ou não combatentes, era severamente punida e que o controlo dos acompanhantes era muito apertado. Era o “partido” dos anos sessenta/setenta, nos restos do estalinismo. As sucessivas independências da África iam-no confirmando, de vez em quando. Era só ler os jornais e revistas. Claro que os nacionais poderiam ser acusados de facciosismo, mas os estrangeiros – a que tínhamos acesso – e que normalmente eram a base dos noticiários que víamos, ouvíamos e líamos, poderiam ser aceites como bastante credíveis. Em geral, a saída das autoridades coloniais, precipitava os novos países para as situações de neocolonialismo que não beneficiavam senão o partido (único) que ficava no poder. E se assim fosse em relação à Guiné, que é que poderíamos fazer para que ali fosse diferente?

Passaram 54 anos. Duas gerações! Estamos quase todos na casa dos setenta e é tempo de olhar para trás, de modo lógico, imparcial, sem ideias preconcebidas e com a coragem necessária para enfrentarmos o que passou. É bom que o façamos, antes que os doutores comecem a fazer teses, frias e sem alma, mas que encerrarão o processo. E o que eles escreverem o que está certo. Enumerei, sinteticamente o que fizemos e os resultados (pobres) que tivemos. Descrevi o modo – vicioso e atabalhoado, mas férreo – como fomos, desde a meninice, preparados para participar activamente no que sucedia. O trauma da chegada e as dificuldades em justificarmos numa auto-análise o que fazíamos e o desacerto entre nós e as populações locais que eram também portugueses, mereceu-me destaque. Acho que a convicção, uma vez adquirida, não deve ser posta em causa e, se perdida, perdeu-se tudo o resto. Resumidamente, descrevi a nossa actuação na área operacional e indiquei os sacrifícios e os traumas de toda a espécie que carregamos e que muitas vezes não são compreendidos e muito menos aceites na sociedade dos nossos dias. Por fim mostrei as consequências de um fenómeno que começou sem que nos apercebêssemos e terminou, como seria de esperar.

Como conclusão final interrogo se poderíamos ter feito algo (ou deveríamos ter feito mais) para que as coisas não sucedessem assim e tenho a certeza de que nada havia a fazer. No meu primeiro, ou segundo post, digo que éramos um grupo de bombeiros que chegavam tarde a um incêndio florestal que tinha todas as condições para arder e não tenho hoje qualquer dúvida de que tudo foi em vão. Se calhar, com um pouco de senso, poderíamos ter chegado a uma solução melhor e com menos sacrifícios dos metropolitanos e dos guineenses amigos ou inimigos. Mas, a História não se rebobina…

28 de Agosto de 2017
AJPC
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16891: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (20): Estudo sobre o bi-grupo de Mário Mendes

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16558: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (19): Ainda a definição de literatura da Guerra Colonial ... e a crítica do filme "Cartas da Guerra"

 
1. Em mensagem de 30 de Setembro de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos o seu ponto de vista acerca da literatura e cinema dedicados à Guerra Colonial para integrar a sua série: "A Minha Guerra a Petróleo".



A Minha Guerra Petróleo (19)

Ainda a definição de literatura da Guerra Colonial

Aqui há uns posts atrás, o Branquinho levantou uma questão pertinente que se prende com a definição de literatura da “Guerra Colonial”. Poderá parecer uma questão secundária, mas só agora, já que, para o futuro, ela deverá ser claramente estabelecida, sob pena de se tomarem obras sérias por refugo e vice-versa. E já agora, tendo em conta a recente estreia do filme “Cartas da Guerra”, parece-me oportuno estabelecer o que se deverá entender por Cinema “da Guerra Colonial”. Podemos também juntar-lhe o teatro sobre o mesmo tema, embora esta forma de arte não tenha tido a “guerra” como tema, por razões que será difícil concluir.

Tenho para mim que estas três formas de arte: literatura, cinema e teatro revestem características documentais – registo, tratamento objectivo e exposição à consideração do espectador/leitor de factos ocorridos – que não estão presentes noutras, o que lhes permite serem mais aptas para a reanálise e reconstituição do sucedido num dado momento histórico. O Livro descreve detalhadamente os factos ocorridos, enquanto o Cinema mostra-os. E, enquanto o primeiro deixa ao leitor uma liberdade de interpretação, o segundo, através da imagem móvel, permite uma maior latitude de interpretação. Quer isto dizer que o espectador dá mais de seu na interpretação e apreciação de um filme do que o leitor de uma obra literária ou até (porque não) poética. Ambos estão sempre disponíveis para a consulta, o que não sucede com o teatro – essencialmente efémero – em que cada representação é sempre uma nova narrativa, quase sempre melhor a cada exibição… Mas o teatro, por si só merece uma análise mais detalhada.

O Branquinho[1] começa por apresentar uma premissa que também considero fundamental para a definição do que é "literatura da guerra colonial" e à qual dou o meu acordo total: deixando de lado toda e qualquer postura política ou ideológica.

Das cinco definições que apresenta considero a primeira (todo e qualquer escrito sobre a guerra) demasiado vaga, aberta e imprecisa. Nela cabe tudo, até os estudos científicos ulteriores, de qualquer tipo, sempre necessários sobre uma guerra ou outro qualquer facto histórico. Convirá que seja mais precisa, de modo a que o que se define seja claramente caracterizado, pois, de outro modo não valerá a pena sequer esboçar a definição. Com efeito, a guerra pode ser abordada, especialmente por estudiosos, segundo diversos ângulos, hoje ou em qualquer outro momento do futuro. Pode ser também abordada de modo algo fantasioso, o que, se não houver aviso prévio, poderá induzir o leitor a interpretações erróneas e opiniões inexactas. Bem bastam as que surgirem, com o passar dos anos!

Também não considero relevantes as três seguintes definições que propõe, considerando que todos ou quase todos sofremos a guerra à distância, bastando para tal sermos portugueses, vivendo ou não em Portugal. Igualmente era suficiente sermos portugueses para que sofrêssemos a guerra nos espaços de guerra ou longe dos espaços de guerra. Se, para escrevermos sobre a guerra, basta termos sido portugueses num momento histórico, teremos de concordar que, mesmo tendo vivido nos espaços de guerra, tudo não passará de uma recordação que, por vezes, não vai muito para além do “ouvi dizer que”. Tratar-se-á de uma evocação da memória, mas que não se fundamenta na experiência directa do facto. A “Guerra Colonial” será assim, mais uma envolvente, mais um elemento caracterizador do ambiente que enquadra a história que o autor quer narrar. Cabem neste caso as histórias das mulheres que esperaram os maridos ou namorados, as mães e pais que sofreram com a partida e tiveram ou não a alegria do regresso ou as experiências dos que residiam nos “TO daquelas PU”.

E resta a última, que considero a mais válida pela autenticidade do relato, mesmo prevendo que cada um de nós terá a “sua” verdade, expressa na narrativa que apresentar. É dado adquirido que, o modo como se viu e viveu uma dada situação e o respectivo relato posterior, podem estar marcados pela subjectividade. Isto pode criar dúvidas ou até suspeitas sobre se as coisas terão mesmo ocorrido assim e serve, muitas vezes, de argumento para que a respectiva credibilidade seja diminuída. Porém, não é menos verdade que o abuso do recurso a esse tipo de argumento não é nada conveniente. Chamo a vossa atenção para a grande coincidência entre as descrições do mesmo facto ou situação que se viveu e que está bem patente em muitos posts do blog, escritos por vários camaradas que viveram a mesma situação. É por isso que considero que literatura de guerra colonial é aquela escrita feita somente por quem fez a guerra. Às outras, falta a experiência vivida que nada pode substituir, mesmo que o narrador se esforce muito.

Esclareço que não pretendo vedar a ninguém o direito de escrever sobre a “guerra”, mas não haja dúvidas, de que uma coisa é fazer a guerra outra coisa é sofrer (de vários modos) com a guerra. E muito mais se o que se pretende é transmitir informação sobre o sucedido. A literatura baseada no "consta que" ou no "ouvi dizer" é deficiente e nunca poderá ser aceite nem em relação a esta guerra, a outra qualquer ou a um dado facto histórico.

Fico satisfeito quando encontro estudos sobre a “guerra”, mas não podemos tomar um estudo científico como literatura. Venham eles, objectivos e bem elaborados para que tenhamos (ao menos agora) uma perspectiva do que sucedeu!

Nada nos impede de escrever um romance sobre a guerra colonial. Porém, para além da trama que fica toda ao critério do escritor (ou até cineasta e dramaturgo) tem de haver um escrúpulo muito grande, de forma a criar um ambiente autêntico onde a acção se passe. É assim que se escreve bem e não faltam exemplos no nosso país e na literatura estrangeira. Quem escreve sobre o passado deverá ter sempre realizado previamente um estudo sobre o ambiente onde a acção decorre. Sei que esse trabalho é cansativo, especialmente se for detalhado e preciso. Ainda não escrevemos nada e já nos fartámos de ler e consultar fontes. Estas actuam sobre quem escreve como linhas a não transpor, sob pena de se faltar à verdade e, consequentemente, transmitir informação falsa a quem ler o livro ou vir o filme. É como pôr soldados romanos a combater os lusitanos, usando relógios de pulso. Nada nos impede mas, se calhar não era bem assim…

Voltando agora ao cinema, chamo a atenção dos camaradas para a reconstituição de ambientes feita pelos cineastas das séries inglesas que passam na TV. É um exemplo a seguir. No que respeita à literatura poderia citar, “Guerra e Paz”, “Adeus às Armas” e tantos outros que acabaram por se eternizar, principalmente pela veracidade de tudo o que rodeia a história que o leitor “devora”.

 E acabei por vir ter ao filme “Cartas da Guerra”! Não conheço o realizador, mas vejo cinema há alguns anos. Também não sei nada de música, mas não sou surdo. E só por estas duas frases já podem ver que não gostei, mesmo nada do filme. 

Poderia perder-me em pormenores técnicos como a voz da artista que fala em voz off e que, ou necessita de regressar ao Conservatório para aprender a dizer, ou o som da sua voz foi mal captado. Por mim, desmobilizei de tentar entender o que ela dizia. Não conheço as cartas que estão na base do filme e não estive nunca em Angola.

E ditas estas “declarações de interesses” passemos àquilo que mais me desagradou, por forte suspeita de falta à verdade. Chamo a atenção dos camaradas para o fardamento utilizado, as viaturas – aquela do Unimog 1300 com as guardas levantadas e o pessoal sentado daquele modo – os oficiais com a pistola “à banda” dentro do quartel, aquele quartel… que parecenças terá com aqueles em vivemos? Em suma: a reconstituição dos ambientes está – em minha opinião – imprecisa, mesmo que tal se deva à falta de meios.

Achei, no mínimo ridículo aquela cena em que os militares progridem numa área alagada com o terreno seco ao lado. Mas o pior é o médico com a G-3 e a bolsa de primeiros socorros a tiracolo. Conheci quatro médicos em companhias operacionais, dois deles viveram mesmo no aquartelamento da companhia e nem sequer tinham arma distribuída. Nunca vi nenhum deles com a bolsa a tiracolo, embora possa aceitar que se deslocassem a aldeias para exercerem a sua arte. Aceito que as intenções do realizador tenham sido as melhores, (é óptimo que alguém vá pegando este tema) mas os resultados não foram nem sequer modestos.

Parece-me portanto que deveremos considerar como “literatura da Guerra Colonial” os textos e só estes produzidos por ex-combatentes. Aqueles textos em que a guerra esteja presente, como elemento enquadrante da acção dos personagens, serão uma forma de literatura obviamente válida, mas não me consta que os escritores americanos (por exemplo) escrevam sobre a Guerra do Viet-Nam ou a da Coreia, quando escrevem um romance cuja acção se passa nos Estados Unidos, naquelas alturas e a elas façam referências.

Em relação ao cinema entendo e dou o máximo valor ao modo como o realizador “descreve” o ambiente em que a acção decorre reconstituindo o que as personagens veriam, os utensílios que usavam, o modo como vestiam, enfim tudo o que permita que quem vê o filme se sinta dentro da cena.

Podemos considerar que as “Cartas da Guerra” poderão ser um filme sobre a Guerra Colonial, mas não creio que tenha prestado um grande serviço à divulgação e à manutenção da respectiva memória.
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Notas do editor

[1] - Vd poste de 2 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16440: Contraponto (Alberto Branquinho) (54): Literatura da guerra colonial, o que é?

Poste anterior da série de 29 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16248: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (18): Resposta ao Manuel Luís Lomba

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15809: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (17): O Moral das Tropas é Bom!

1. Em mensagem de 28 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos a sua apreciação sobre o moral das nossas tropas face ao contexto em que era feita e vivida a guerra na Guiné. 
Vd. a propósito os postes P15795 e P15796 do nosso tertuliano, José Matos.
Como sempre, as opiniões do camarada Pereira da Costa são inseridas na sua série: "A Minha Guerra a Petróleo".


Não conheci o Brigadeiro Louro de Sousa. Na Guiné, sou do tempo do já General Arnaldo Schulz. Apenas tenho o texto de uma comunicação sua proferida na Sessão Comemorativa do 120.º Aniversário da “Revista Militar”, em 23 de Maio de 1968. O título da comunicação – A Subversão no Ultramar – e a pessoa a quem se dirige no fim do texto (Presidente da República) dão uma ideia dos pontos de vista nela expressos. Mesmo assim, alguns blocos de texto terminam com conselhos do que se “há-de fazer…”. Pelos resultados que hoje podemos ver em toda a África teremos que concluir que os seus comentários e de outros participantes no processo, como Hélio Felgas, são muito pertinentes. Não terá deixado rasto muito profundo na Guiné talvez porque não se demorou por lá muito tempo e apanhou uma altura de transição entre a “Paz Colonial” e o início do terrorismo.

Nunca ouvi falar da tal exposição “ao poder em Lisboa” (4 de Setembro de 1963), onde terá apontado uma série de problemas que se punham à sua acção e que dificultavam a resposta militar das autoridades portuguesas à acção do PAIGC e não me admiro de que o tal “Poder” tenha reagido mal às suas afirmações. É mau, ainda hoje, ser clarividente, ainda que por experiência obtida no terreno (até parece que é pior…) e prever o que aí vem. Os detentores do poder não gostam de ser confrontados com a inteligência e conhecimento e… arremedam soluções, depois de triturarem devidamente o portador do alerta.

Todavia, as sete primeiras razões que o Brigadeiro Louro de Sousa evoca merecem uma reflexão que, hoje, passados mais de 40 anos, podemos fazer. Creio que a oitava razão, pelo seu carácter amplo, não é de negligenciar, embora só o texto da exposição o possa esclarecer. Esta “guerra” é um fenómeno sociológico abrangente onde é sempre possível encontrar causas a que poderemos chamar menores apenas por serem menos frequentes, embora possam ser influentes.

Quem viveu o ambiente nas unidades operacionais e mesmo nas de serviços – em Bissau, Nova Lamego, Bafatá, etc. – poderá, embora com “efeitos retroactivos”, tentar responder a uma questão que mensalmente se punha no momento em que as unidades de nível companhia respondiam à pergunta: - Como é o moral das tropas? Nunca ouvi que uma unidade tivesse declarado que era mau, mesmo quando as coisas tinham corrido mal durante o mês em apreço e quais as consequências de uma opinião mais pessimista.

António J.P. Costa

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O Moral das Tropas é Bom!

Era das NEPES!

Embora alguns não o conheçam, o SITPES era uma das nossas dores-de-cabeça mensais. Mais um papel que era necessário fazer com resultados pouco palpáveis! Nunca na minha Unidade senti efeitos directos da sua elaboração. Segundo as NEP (Normas de Execução Permanente) da 1.ª Rep. do QG/CTIG, quase todas as Unidades de nível Companhia tinham que o fazer. Hoje, não sei que é feito dele, mas este relatório mensal poderia fazer muita luz sobre o nosso passado. Fui revisitá-lo naquele volume considerável com capa de cartolina castanha, com letras pretas, escrito à máquina com caracteres “micro” e reproduzido em stencil.

Nele ficavam registados todos os movimentos de pessoal e respectivas causas: os mortos, os feridos (ligeiros e graves), os recompletamentos, os louvores e condecorações, as punições de todos tipos e uma série de pequenos detalhes que, hoje, reconstituiriam tantos momentos da nossa vivência. Mas o que mais me atraiu a atenção foi o Anexo 2 – “Relatório do Estado Disciplinar e Moral da Força”. Era uma “exposição concisa sobre o estado moral das tropas” que daria indícios, se bem explorado, sobre o sentir do pessoal, a sua motivação, a sua aceitação das tarefas do dia-a-dia, abreviando: a sua vontade de vencer. As preocupações do Brigadeiro Louro de Sousa inserem-se directa ou indirectamente na Área do Pessoal.

O articulado terminava com três quadros sem designação, o que prova que os peritos em gestão de pessoal esperam sempre que surjam situações que não previram e que terão efeitos na área que dizem dominar. Não creio que estes quadros alguma vez possam ter passado e ser utilizados e com que designação.
Havia quadros a que poderemos chamar menores, pois só com valores consideráveis se tornam significativos, como sejam certas ocorrências: as faltas disciplinares e os acidentes de viação. Outros que se podem ler nas entrelinhas, como é o caso dos pedidos de transferência. Seriam raros, mas quando se tenta trocar uma colocação numa Unidade Operacional por outra em idênticas circunstâncias, algo vai mal no relacionamento entre o militar e a sua Unidade.

O número dos desertores e dos ausentes sem licença mediria a aceitação voluntária e assumida do que se fazia, a saturação e a vontade de ali permanecer. Sabemos que o número de deserções para o campo do inimigo foi muito menos que residual. Porém, a deserção entre os que vinham de férias teve alguma – embora pequena – expressão. Será mais um aspecto a considerar numa das tais causas que o Brigadeiro Louro de Sousa indica. Creio que não se desertava para o inimigo por não haver dúvidas acerca do tratamento que nos estaria reservado. Com muita certeza os maus-tratos seriam longos e abundantes e a possibilidade de comunicação com a família ou eventual repatriamento eram hipóteses que nem sequer se punham. Se não se contactava com a família dos prisioneiros, nem se punha a hipótese do seu repatriamento, como é que tal seria possível com os desertores, criminosos, à luz da legislação em vigor? E que confiança teria o inimigo na colaboração de um desertor? E estaria ele disposto a dá-la? Por outro lado, ao contrário de outras guerras, a deserção, em frente do inimigo, não era possível para outras regiões ou países, eventualmente “neutros”. A ausência sem licença ou por excesso dela só por despiste teria lugar. Tive, na minha Companhia um soldado que ia na nona ou décima ausência e sempre pelo mesmo motivo: frequência assídua do Pilão, em Bissau, durante as frequentes baixas ao HM 241.

Portanto, ficava-se ou regressava-se mesmo sabendo ao que se ia, porque… se calhar, não poderíamos “cá” ficar todos e o que seria se o número de recusas ao reembarque aumentasse? Além disso, começávamos a ser “Homens” e os Homens não fogem. No fundo, ainda nos restava uma ténue esperança de que estávamos a fazer algo válido e necessário.

Instintivamente, temos todos a ideia de que os problemas de 1963, não eram muitos diferentes dos de 1968, 1974...

Das causas referidas por Louro de Sousa encontramos algumas que se prendem directamente com o “Moral das Tropas”: Deficiente instrução das tropas e quadros; Falta de pessoal/insuficiência de efectivos; Falta de enquadramento. Outras influenciam-no (muito), mas não directamente: Deficiente equipamento das Unidades no terreno; Abastecimento (material, munições, víveres e água); Instalações inadequadas, mas todas têm a mesma consequência: Cansaço das NT, sempre ansiosas por acabar a comissão e voltar para a Metrópole.

Os que foram em Unidades constituídas sabem bem as deficiências da sua preparação que era consequência de locais adequados para a instrução, certas restrições (de índole financeira) ao consumo de alguns meios, impreparação dos instrutores – especialmente das praças – que, na maior parte dos casos não sabiam mais do que vagamente se lembravam da sua formação e uma resistência atávica e subliminar, que se radicava numa resistência não escrita nem reconhecida por ninguém a ir para a guerra. Os que foram em rendição individual sabem o que tudo isto significa, mas para pior, uma vez que foram parar a uma Unidade com pessoal já rotinado nas tarefas a desempenhar.

A falta de pessoal e insuficiência de efectivos foi algo que todos pudemos constatar, quer na dificuldade com que se processavam os recompletamentos, quer no embarque de Unidades incompletas em maior ou menor grau. Quem não se lembra do tempo que esperou pelo seu substituto ou pela lentidão com que as baixas de todo o tipo eram colmatadas? Para o fim da guerra há mesmo caso de Unidades que tiveram dificuldades em obter um número considerável de elementos já que o potencial humano do país começou a revelar-se insuficiente para as necessidades, mesmo recorrendo ao “recrutamento da província”. Desta insuficiência resultava um esforço considerável sobre quem estava “lá”, com o correspondente desgaste físico e psicológico.

Da insuficiência de meios humanos resultava também um enquadramento que atingiu níveis baixíssimos especialmente depois de 1972, quando nas Companhias de Quadrícula ou de Intervenção só havia dois profissionais que eram sargentos e, mesmo assim, normalmente com funções administrativas. Este deficiente enquadramento só ampliava os problemas determinados pelas duas causas anteriores. Podemos também referir a redução do número de médicos nos batalhões, que todos notámos.

E entramos na questão do equipamento/armamento ou da falta dele. Ainda recentemente afirmei e ilustrei a deficiência de equipamento da artilharia. Mas, quem não se lembra das dificuldades que tínhamos ao nível das Transmissões? E aquele bendito “algeroz” que dava pelo nome de bazooka de 8,9 cm que se prendia em todo o lado, não dava jeito nenhum e que, tirando em defesa do aquartelamento, não tinha utilidade? E mesmo assim… Já está demonstrado que o abastecimento (material, munições, víveres e água) se processava com “dificuldades”.

Sobre esta questão limito-me a recordar o considerável número de aquartelamentos sem água (Gandembel, Guileje, Banjara, Cutia, entre outros) e as consequências que daí advieram. Poderia falar das dificuldades no reabastecimento de material de aquartelamento, mas isso já pode ser considerado como exigência excessiva. É que, como se recordam, tínhamos camaradas que até censuravam que quiséssemos viver bem (um pouco melhor) no aquartelamento era excessivo.

“Que diabo! Com a Pátria em perigo este gajo quer cadeiras e mesas? Desenrasque-se!”
“Abrigos reforçados com cimento? Vá para as valas para não perder agressividade!”

E as instalações? Compreende-se que uma Unidade que toma conta de um sector “tomado ao In” ou que ocupa uma tabanca no início da guerra se governe com a “prata da casa”, mas tornar esta situação cronicamente provisória só pode ter efeitos negativos. Às vezes de tão inadequadas até se tornavam perigosas. Quem não se recorda de ter herdado esta ou aquela instalação “dos velhinhos” que, pouco tempo depois, estava inutilizável ou perigosa, o que obrigava a sua reconstrução, com o esforço inglório que se adivinha?

Do somatório não necessariamente algébrico e às vezes até em progressão geométrica resultava a mesma consequência: Cansaço das NT, sempre ansiosas por acabar a comissão e voltar para a Metrópole. Se a esta ânsia acrescentarmos a impaciência relativamente ao desfecho favorável ou ao receio de um desfecho desfavorável da população metropolitana e à passividade da população rural – a mais próxima de nós – teremos um caldo de cultura que veio a piorar desde 1963, de acordo com o raciocínio do Brigadeiro Louro de Sousa. Se a isto juntarmos a tendência para embaratecer a guerra perfilhada pelo Salazar e a desproporção entre os meios necessários e os existentes para que a situação se invertesse veremos que pouco ou nada mudou desde 1963.

António J.P. Costa
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Notas do editor

- Negritos e itálicos da responsabilidade do editor

Último poste da série de 18 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15634: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (16): “A Tropa vai fazer de Ti um Homem!”

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15736: Álbum fotográfico de António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª na CART 1692; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494 e CART 3567 (3): Arte guineense

1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 31 de Janeiro de 2016, com algumas fotos sobre a arte da Guiné para o seu Álbum fotográfico:

As esculturas que se seguem foram feitas pelo artesão Mussé (não lhe conheço mais nomes) era nalú e trabalhava à beira-rio, sentado no chão.
O Capitão da Companhia anterior (Sá Nunes) "deu-lhe" um miúdo para que ele o ensinasse e a arte não se perdesse. O Mussé era teimoso e não deixava o miúdo praticar.

Creio que este tipo de arte se perdeu, embora ande por ai, em diversos desenhos um iran - Karamanchol - parecido com um outro que apresentarei, mas mais trabalhado. O Mussé usava um gorro à fula e metia o cachimbo sob o gorro, deixando apenas o fornilho de fora.

As três primeiras são uma Banda que se coloca na cabeça do bailarino apoiada naquela ranhura que está em baixo. O bico mais afiado fica para frente.

As outras duas dizem respeito a outro adorno de dança que chama, se não erro, Lumbé.

A madeira usada era clara, fibrosa e não muito dura. Não sei de que árvore provinha. Não sei em que danças eras utilizadas, pois nunca as vi em uso.






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CIRANS

Julgo que é arte fula, pois foi um soldado fula - o Aliu Embaló - Atirador em 1968 e Campanha, obús 14 / 11,4 em 1971, que mos deu. Tinha nesta altura duas mulheres - a Aminata e a Umu - uma por amor e outra por dever social, dada a estirpe a que pertencia, Vestiam sempre de igual (até o chapéu de sol/chuva), e já havia duas filhas - a Jénabu e a Salimato - uma de cada mulher. Em 1972 nasceu o António Zé que tem este nome em homenagem ao nosso arfero/capitão; este vosso criado.

Este ciran foi construído para oferecer ao meu cunhado Pedro, então com dois anos.

Este ciran, com asa, é para adulto e parece-me mais autêntico.


Um Abraço
António J. P. Costa
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15681: Álbum fotográfico de António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª na CART 1692; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494 e CART 3567 (2): Arte guineense

domingo, 25 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10721: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (8): Você agrediu-me?

1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 23 de Novembro de 2012:



Olá Camaradas

Aqui vai a minha colaboração para o blog, no âmbito da série "A Minha Guerra a Petróleo".

O texto já foi submetido a exame prévio pelo Orlando Pauleta e vem na sequência do texto "Ai que Me Dói Tanto!" (*)

Creio que a leitura deste primeiro, facilita a compreensão do que enviei primeiro.

António José Pereira da Costa

A Minha Guerra a Petróleo (8)

Você agrediu-me?

A minha aventura com as minas não terminou com o ferimento do Paiva. Antes pelo contrário, ainda havia muito terreno a palmilhar. Agora, éramos apenas dois – o Ramos e eu – a conhecer o campo. Na única decisão lúcida possível, por determinação do Batalhão, tínhamos começado a levantá-lo e, até o CAOP “descobrir” o que se passava, tínhamos aberto uma brecha, com início no buraco do par de minas que vitimara o Paiva. Uma brecha não sinalizada é uma situação muito perigosa, em qualquer campo de minas e muito mais num implantado em terreno onde a natureza muda constantemente e com grande rapidez.

As referências, todas naturais, poderiam perder-se facilmente, com as consequências que se imaginam. Se o processo de revisão ou de levantamento não se apressasse, corríamos o risco de não conseguir identificar o local onde a “segunda secção” do campo tinha início. Preocupava-me o que pudesse acontecer ao Ramos. Embora um acidente fosse sempre uma hipótese a considerar, nunca me tinha passado pela cabeça que um, nos moldes do que vitimara o Paiva, pudesse acontecer. Admitia mais a possibilidade de um erro de manipulação, uma explosão no momento da colocação da cavilha, ou até a possibilidade de o IN mudar a posição de uma mina que tivesse detectado. Mas aquela, não… Como já disse, o Ramos era casado, vivendo na tabanca com a mulher e o filho de tenra idade e eu começava agora a imaginar a cena que teria lugar se ele viesse a ficar igualmente ferido.

Hoje, à distância no tempo, estou em crer que ninguém, nos comandos superiores, sabia, com clareza, o que fazer perante a situação que se gerara. As minas eram uma coisa “chata”, que existia e com que era necessário contar, mas não era uma coisa intensamente estudada e aplicada com rigor e atenção. Eu estava em final de comissão e, por muito que retardassem a minha partida, não havia a menor garantia de que a situação se resolveria. O Batalhão, mais lucidamente ou procurando alijar a sua parte da responsabilidade, procurara resolver o problema. Mas o CAOP 2 não estava pelos ajustes, talvez por não querer que as suas decisões fossem postas em causa.

Por isso, depois de ter simulado não “ver” o que se passava, deu ordem ao Batalhão para parar com o levantamento das minas. Foi finalmente tido em conta que o número de especialistas era insuficiente para a tarefa a desempenhar. Daí, que eu tenha sido informado de que a verificação do campo ia continuar com o apoio de dois especialistas – um cabo, Fernando Oliveira Neves, “o Oliveira”, e o furriel Orlando Pauleta – do Pel Sapadores do Batalhão. Quase em simultâneo, recebi notícia de que o meu substituto estava para chegar.

O encontro com o meu substituto foi verdadeiramente surrealista. Veio na “coluna grande” – a coluna Bissau-Farim – e eu procurei-o com a ansiedade de quem está farto e não sabe quando se verá livre daquela situação, que se aproximava do absurdo, tanto num nível a que podemos chamar local, como, muito provavelmente, a nível mais geral. Tinha os 24 meses completos e, embora o oficial de operações do Batalhão me tivesse informado que o meu substituto não seria capitão, não estranhei a situação.

Já há algum tempo que era minha convicção de que o potencial humano, pelo menos no que aos quadros dizia respeito, começava a ser insuficiente para as necessidades da “Guerra”, tanto em quantidade como na preparação ministrada ou recebida. Não o encontrei e a coluna acabou por partir em direcção ao Norte. Pensei: “Ainda não foi desta”. Só então vi, a meio da “avenida central” de Mansabá, um militar de camuflado, amparado a uma G3 e com duas malas ao lado. Estava longe, por isso mandei uma viatura buscá-lo. Recebi-o com o calor possível e, depois de instalado, fomos almoçar. Apresentei-o aos graduados da companhia e notei o seu ar não distante, mas fechado. Pouco conversador, talvez por estar desmoralizado, parecia remoer uma certa dose de revolta. No fundo acontecia a todos os que chegavam, pensei. O contacto com a terra era desmoralizante (“Afinal a Guiné é isto? É por isto que me venho arriscar?”) e o não conhecer a “Guerra” e ouvir falar dela, com certa “fluência”, por quem já lá estava, era traumatizante. Pensei que tudo iria passar e que, em breve, estaria adaptado.

 Avenida principal de Mansabá

Foto do Alf Mil Alfredo Montezuma do BCAÇ 2885

Tinha que lhe passar todas as minhas funções e, sabendo que era miliciano, achei que a parte administrativa seria determinante. O primeiro-sargento Canelas e a sua equipa de “administrativos” dariam boa conta do recado. Pensei, por isso, que por aí não surgiriam problemas, mesmo que tenente Tenreiro não fosse muito conhecedor das coisas da “guerra a petróleo”. O mesmo sucederia com a parte operacional, onde os quadros da CAr. mostravam já uma experiência considerável e um bom conhecimento das particularidades da zona de acção.

Neste âmbito, o problema mais importante era o campo de minas. O Tenreiro não sabia uma letra do assunto, o que complicava a tarefa. Contudo, entendi que, como comandante da companhia, deveria saber, ao menos, onde é que elas estavam, com alguma precisão. Como já disse, na parte administrativa da companhia, o Canelas acabou por vir, delicadamente como era seu timbre, informar-me de que ele não entendia as explicações que lhe eram dadas. Ficava apático, não fazia perguntas, nem sequer das que confirmassem a sua ignorância na matéria, mas o pior era que não parecia ter entendido nada dos ensinamentos que lhe eram dados.

Por outro lado, dos oito quartos-duplos de que o alojamento para oficiais dispunha, ele escolhera ficar no quarto com o alferes Antunes, talvez por ambos terem passado por Coimbra: o Antunes em matemática e ele em geografia, com o curso concluído, suponho eu. Ao fim de poucos dias, o Antunes revelou-me que começava a sentir-se pouco tranquilo e até intimidado com a presença do novo habitante do quarto. Não o tomei a sério, mas quando ele mostrou a cama onde o tenente dormia fiquei estupefacto. Os lençóis, enrolados em trouxa, amontoavam-se sobre o colchão e o travesseiro estava apoiado à cabeceira na “posição de tiro anti-aéreo”. Quanto à roupa pessoal, estava arrumada com certa, digamos… displicência.

Além disso, relatou-me um episódio que me preocupou e que não consegui explicar. O Tenreiro tinha-lhe mostrado os pés com umas pequenas feridas que lhe disse serem causadas pela falta de “umas anfetaminas” que tomava “lá na Metrópole”, mas que agora tinha deixado de tomar. Pensei que, com jeito, poderíamos convencê-lo a mudar de quarto, onde pudesse instalar-se mais à sua vontade, mas, por mais voltas que desse, eu não conseguia determinar a origem das tais feridinhas.

Uma manhã, ao pequeno-almoço, contou-me que tinha tido uma noite de insónias e de muita sede, mas que tinha resolvido este último problema “na mercearia”, onde conseguira obter água. Admiti que tivesse ido ao bar, à sala de praças ou, pior do que isso, que tivesse saído do quartel e ido ao restaurante do senhor Zé e da D. Olinda, cuja sorte comecei a lamentar por terem sido acordados de madrugada para a prática da virtude bíblica de “dar de beber a quem tem sede”. Perguntei-lhe onde tinha ido exactamente e apontou-me para o depósito de géneros da companhia. Do mal, o menos… já que os fiéis do depósito dormiam dentro dele.

Este pequeno detalhe fez-me crer que o meu substituto estava bastante desenraizado. De outra vez, o Serras – outro alferes – contou-me que o tinha encontrado, olhando muito fixamente para uma das janelas da messe. Ao ser surpreendido, virou-se para ele com um ar sério e disse-lhe:
 – Jesus não está aqui!

Como é do conhecimento geral, não estava, de facto. Ou estaria? É uma coisa que nunca saberemos, ao certo. Por mim, creio que, tendo tanto sítio para estar, às vezes até passava por ali, mas em permanências curtas… O Serras é que não achou graça e revelou-me as suas apreensões quanto ao grau de sanidade psíquica do Tenreiro. Por mim, comecei a concluir que algo de grave se passava. Admiti que simulasse ter vindo “já apanhado de casa” ou, pior, que fosse mesmo um doente que o recrutamento se recusara a filtrar. Esta última hipótese preocupava-me seriamente por poder contender com a minha rendição, mas era, cada vez mais, notório que era necessário fazer algo.

Aproveitei uma ida a Mansoa para pôr o comando ao corrente da situação, embora eu não soubesse bem identificar que contornos ela tinha. Foi então que fiquei a saber que estagiara, como alferes, em Angola e que não tinha sido promovido a capitão, à data de reembarque, como era de lei, por falta de condições estatutárias. Quais seriam, não me explicaram. Exclui os motivos políticos, pois não me pareceu que fizessem o seu estilo, e pensei que a situação tivesse a ver com uma certa falta de robustez física. O Tenreiro não era propriamente um atleta, mas nunca supus que a parte psíquica tivesse tanta preponderância na situação que se criara.

Tendo recebido ordem para continuar a verificação do campo de minas, resolvi aproveitar para lho ir “passando”. Éramos, agora, quatro a operar aquela máquina de morte e o meu substituto ficaria com uma ideia da localização. Poderia ser importante durante a realização de um patrulhamento, onde o Ramos, por acaso, não fosse, uma vez que os dois sapadores do Batalhão não estavam, em permanência, em Mansabá.

No dia 9 de Julho de 1973, lá fomos até Mamboncó. Descemos ao local do campo e começámos a pesquisar a partir da primeira mina existente, em direcção a Sul. O Tenreiro, com o mapa nas mãos, ia ficando “familiarizado” com a localização das minas. Segundo as indicações que nos ia dando, nós, os quatro, íamo-las destapando, verificando o estado de conservação e voltávamos a tapá-las. Admitíamos a possibilidade de ter de substituir uma ou outra que nos levantasse suspeitas de mau funcionamento e, por isso, tínhamos levado dois canudos com minas. As minas M-35 eram fornecidas em tubos de cartão que continham umas cinco ou seis, cada um. A certa altura veio a frase que nos fez gelar:
 – Em que mina é que estamos agora?

Tinha-se perdido. E nós a jardinar no meio daquele “lago de nenúfares”. Orientámos cuidadosamente o croqui e, pelos azimutes e medidas para as referências, localizámos a mina a partir da qual iríamos continuar. A partir daí, o cabo “Oliveira” passou a ser o portador do croqui e o Tenreiro apenas espectador hipoteticamente interessado. E fomos progredindo até que resolvi dar os trabalhos como terminados. Por experiência, tinha concluído que o cansaço – acrescido, naquelas condições de trabalho – era inimigo da concenttação e a distracção é algo que, quem trabalha com minas, deve evitar, a qualquer preço. Sei hoje que a perda constante de água e sal criava condições para que o nosso nível de concentração diminuísse.

O Ramos e eu saímos do campo e começámos a equiparmo-nos. Os dois sapadores do Batalhão estavam a verificar a “última” mina daquele dia. De repente, uma explosão. Olhei para o sítio onde ambos estavam. O Pauleta de pé, mas dobrado para frente e com as mãos abertas para trás, ao lado do corpo não se mexia. Mas o cabo caíra no chão e contorcia-se num esgar de dor, gritando:
– Eu nunca mais vejo o Sol!

Foi o que, na altura, me mereceu mais atenção, mas, de acordo com as informações de que disponho, sei que, felizmente, não ficou com a vista afectada. Uma lesão num dos ouvidos determinou a sua baixa ao HMP, no dia seguinte, para ser assistido no serviço de otorrinolaringologia, com posterior regresso à Guiné, logo que foi considerado como “curado”. O ferimento mais sério tinha-o o Pauleta que perdeu um dos olhos.

Num primeiro relance pareceu-me ver um cabo eléctrico, semi-enrolado, no chão. Deu-me até a ideia de que estava um bocado descamisado, como dizem os electricistas. Por momentos ocorreu-me a ideia de uma armadilha do IN ou de uma explosão electricamente comandada. O PAIGC não tinha este hábito, mas, sendo apoiado por estrangeiros, poderia ter sido aplicada esta técnica, que começava a surgir em diversos TO mundiais.

Aproximei-me e vi a “pica”, de verguinha de ferro, que se encaracolara com a potência da explosão. O punho, feito de num emaranhado de adesivo encarniçado, foi o que me tinha sugerido o cabo eléctrico que, afinal, não existia. Há horas de azar e aquela fora uma delas. A ponta da “pica” acertara, em cheio no perno da espoleta de uma das minas do par ali enterrado. Da explosão de ambas resultara a invulgar deformação da “pica”. O Ramos e eu ajudámos os dois feridos a sair da área perigosa e eu pedi ao tenente Tenreiro que recolhesse as armas, os equipamentos que lhes pertenciam e os “canudos” das minas não utilizadas. Ficou parado. Estático, mesmo. Gritei-lhe e ele balbuciou:
–  E as minas?

Larguei o Pauleta. Fui-me a ele, estiquei-lhe os braços e pus-lhe os materiais ao colo. Depois, enfiei-lhe um pontapé no sítio onde as costas mudam de nome para o pôr a andar para as camionetas que estavam na estrada. Só então começou a reagir e, voltando-se para mim, perguntou:
– Você agrediu-me?”
– Agredi, sim! Vá pôr isso às viaturas e depressa.

Ele foi e não voltou. Depois, foi a corrida para Mansoa, à velocidade que a estrada permitia. À chegada, o oficial de operações perguntou-me o que sucedera.
– Toma lá mais dois para a corda do sino. – foi tudo o que me ocorreu responder.

Depois contei o sucedido e queixei-me da inacção do meu putativo substituto. Desta vez não houve comentários desajustados do meu superior hierárquico (que nem se aproximou de nós) e não me lembro de ter visto ninguém do CAOP a perguntar o que quer que fosse. A partir daqui era o Batalhão quem tratava dos feridos. O Tenreiro, perturbadíssimo, ficou em Mansoa, quando regressámos a Mansabá. Eu nem sabia o que pensar da situação que se criara. O campo acabara de fazer mais duas vítimas, nas nossas tropas, e eu não sabia o que fazer. Tinha a sensação de que tudo voltara à estaca zero, mas o que mais me danava era eu ter sido contrário àquela manobra, que se estava a revelar completamente contraproducente, e alguém ter insistido para que eu prosseguisse com ela. O que fazer?

Como já disse noutro local, o Ramos e eu, devidamente autorizados – assinale-se – desmontámos aquela inutilidade, sem mais percalços. Deus (às vezes) estava ali, afinal.

Contaram-me que o tenente Tenreiro, depois de eu ter saído de Mansoa, foi ao médico do Batalhão. Este era um minhoto bonacheirão e gordo que suava desalmada e permanentemente. Quando lhe perguntou de que se queixava, o Tenreiro disse que suava muito e que não se dava bem com o clima. Aí foi interrompido pelo médico que lhe mostrou a camisa encharcada e disse:
– E eu ? Você acha que eu me dou bem com o clima?
– Ora tenha calma e verá que se habitua!

O Tenreiro não se deu por vencido e pediu para ser evacuado. O médico, perante este pedido absurdo, explicou-lhe que, se quisesse, poderia ir a Bissau e, nas urgências do hospital, atirava-se para o chão, gritava que estava doente e podia ser que fosse evacuado.

O doente mudou de maleita e pediu uma consulta de ginecologia. O médico, ainda com alguma paciência, procurou confirmar o nome da consulta. Perante a exacta confirmação, relembrou-lhe que estavam numa consulta médica, que estava a trabalhar e terminou dizendo-lhe:
– Eu até admito que goze comigo, mas com os dois pés, é que não!

O médico era realmente uma pessoa bem-humorada, que fazia bom ambiente e de quem toda a gente era amiga. Vendo que o doente apontava para os “genitais”, mandou-o baixar as calças e verificou que, efectivamente, fora operado naquela área, mas um varicócelo, cuja cicatriz não tinha qualquer indício de poder dar queixas. O doente não conseguiu explicar as razões do seu mal, que justificassem a frequência de consultas daquela especialidade que, naquele tempo, era impossível serem frequentadas por quem nascera homem. Por isso, o médico entendeu despedi-lo. Já à saída, o tenente voltou atrás e, debruçando-se sobre a mesa do médico, exclamou:
– Ah! E também não vejo bem da vista!

Não teve tempo de prosseguir. O médico saiu de trás da secretária e, aos gritos, expulsou-o do gabinete. Não sei exactamente porquê. Talvez a oftalmologia não fosse a sua especialidade…

Uns dias depois, fui chamado ao Batalhão, onde me foi entregue uma nota, em envelope fechado, para levar, em mão, ao QG. Nunca li a nota e o oficial que me atendeu, reconhecendo-me e, conhecendo a minha história, ironizou:
– Olá ilustre guinéu!
– Só se for por naturalização  –respondi.

Olhando para o envelope, entendeu melhor levar-me ao chefe da repartição. Este devia ser alérgico ao mato e seus derivados. Ao ver um capitão de camuflado e com um envelope na mão, nem sequer me cumprimentou. Eu bem tentei, mas não consegui. Creio que o “bacalhau”, já nessa altura, não era barato, mas também admito que terá tido receio de sujar as mãos. Consultou o envelope, onde rezava CEM/QG/1ª REP, e palpitou-lhe que o assunto era complicado. Por isso, optou por me levar ao gabinete do tenente-coronel Salazar Braga, que era o CEM do Quartel-general. O envelope foi finalmente aberto e, no seu estilo frontal, perguntou-me:
– O que é vocês – tu e o teu Comandante de Batalhão – querem?
– Precisava que fosse nomeado outro substituto para mim. Este não serve. – Tentei esclarecer.
– Não serve? Não serve, pune-se! De que é que estás à espera para lhe dares uma porrada? O tipo está a fazer-se de maluco, não há que ver.

Argumentei que, por acaso, ele era mais moderno e menos graduado que eu. E se não fosse assim? Seria a primeira vez que um substituído punia o substituto. Trocámos mais alguns pontos de vista e ele acabou por convocar o Chefe do Serviço de Justiça, o tenente-coronel Lobão da Cruz que, ao que se dizia, era, no Exército, mais antigo que o próprio general Spínola. Era um homem conhecedor em matéria de justiça e disciplina, mas confessou, de imediato, a impossibilidade de resolver o problema na sua área e alegou:
– Não há nada a fazer. Eles agora põem a boina com as fitas para frente e dizem que estão malucos. Os médicos não sabem o que fazer e dão cobertura. Que é que se há-se fazer?

Ainda contei algumas aventuras do meu substituto, insistindo na sua inabilidade para compreender a administração e a logística da companhia e o seu comportamento em mais um acidente no campo de minas, mas ficámos por ali. Saí desmoralizado de uma reunião tão inconclusiva. O problema da minha rendição adensava-se, mas, para além disso, eu não via como seria resolvido o problema do comando da CArt n.º 3567 que, certamente, não merecia ser assumido por um homem cuja sanidade mental tinha de ser seriamente posta em causa.

Sei que não fui efectivamente substituído por ele. Julgo que voltou a Mansabá e aí manteve os seus comportamentos insólitos até que lhe terão dado a comissão por terminada. O alferes Serras ficou a comandar a CArt  até à chegada de um capitão miliciano que a conduziu até ao regresso, já depois do 25 de Abril.

Eu embarquei para Lisboa, a 4 de Agosto, com 26 meses concluídos, depois de ter elaborado uma declaração sobre o estado dos campos de minas e engenhos explosivos implantados no meu sector. O processo da minha substituição por um homem que a estrutura se recusara a tratar como legalmente era devido, por razões que não conheço mas suspeito, levou-me a concluir que o potencial humano da “Metrópole” estava esgotado, indício técnico de algo estava a correr mal, numa área que até aí se tinha como inesgotável. Hoje penso que, se houve tarefa inútil que cumpri na “Guerra”, uma delas foi o lançamento daquele campo de minas.
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Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

4 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8505: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (5): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - I Parte
e
5 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8507: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (6): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - II Parte

Vd. último poste da série de 29 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10206: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (7): Um casal estranho

segunda-feira, 5 de março de 2012

Guiné 63/74 – P9565: Convívios (398): Pessoal da CART 3567 (Mansabá, 1972/74), Penafiel, dia 24 de Março de 2012

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Valdrez que prestou serviço na CART 3567, Mansabá, 1972/74:

Caro amigo
Vivi os anos de 1972 / 1974 na Guiné.
Dia 24 de Março vamos fazer um encontro com quem estiver disponível. 
Será possível divulgar no blogue a existência desse encontro?


Dia 24 de Março os camaradas da CART 3567 - 1972/74 - Mansabá, promovem um encontro de amizade. 40 Anos depois.

Concentração Quartel RAL 5 - donde partiram para a Guiné há 40 anos.

Os meus contactos: Manuel Valdrez - 939 026 434 e Facebook - https://www.facebook.com/manuel.valdrez

Obrigado pela disponibilidade
Manuel Valdrez
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 – P9517: Convívios (318): Comemoração do Dia do Combatente de Gondomar, dia 3 de Março de 2012 (Carlos Silva)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7880: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (4): Em Mansabá, os últimos tempos de guerra

1. Mensagem de António José Pereira da Costa*, Coronel, que foi comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, com data de 16 de Junho de 2010:

Camarada
Aqui vai mais um texto meu.
Tive dificuldade em o construir e por isso saiu uma série de personagens esboçadas.
À consideração "superior".
Um Ab


A Minha Guerra a Petróleo (4)

Em Mansabá, os Últimos Tempos de Guerra

 Vista aérea da povoação e quartel de Mansabá
Foto de Carlos Vinhal

Conheci Mansabá em finais de Novembro de 1972. O quartel vasto era agora guarnecido por uma Companhia de Artilharia – a CArt 3567 (“Os Insaciáveis") – e duas Secções de Artilharia (obuses 8,8 cm), quando já fora sede de Batalhão e depois de um COp. Levar-nos-ia longe a análise da constituição dos Comandos Operacionais (COp), em diversos locais da Guiné e não cabe aqui discutir soluções tácticas, mas antes falar de pessoas. Dos que ali foram parar e dos que ali viviam o seu dia-a-dia. Hoje, passados todos estes anos, creio que ninguém tinha uma ideia acerca do que pretendia. Todos esperavam. Os nascidos e criados naquela terra e arredores deveriam ter dificuldade em entender o que se passara e o que se passava para que tivessem de viver circunscritos a uma localidade, sem puderem deslocar-se livremente e contactar com os seus, que residiam noutros locais, cultivar a terra um pouco mais longe, comerciar, em resumo: viver.

Mal ou bem, mas labutar no dia-a-dia. E, o que era pior, sabiam que, se fossem “apanhados”, teriam de passar a viver em condições muito mais difíceis quando não em situações de dolorosa inferioridade. É que, se a vida de guerrilheiro e da população que o apoia é duríssima, a vida de um prisioneiro será sempre um calvário. Não sabe onde e como estão os que teve de deixar para trás e, na sua nova situação, ser-lhe-ão sempre atribuídas as tarefas mais humilhantes, para além da desconfiança que sentirá sempre à sua volta. E não adianta tentar “comprar” o ex-inimigo…

Naquela altura os campos já estavam extremados. Quem estava de um lado sabia que não tinha possibilidades de se inserir e sobreviver no outro.

Não contactei muito intimamente com a população. Senti mesmo uma certa distância dela em relação a mim, ou seria a todos nós? Sim, nós, os outros, os que fôramos daqui para lá para… para quê? Para combater pela Pátria, pois claro! Para proteger aquelas populações da barbárie, das garras do “comunismo internacional” e assegurar o desenvolvimento pacífico daquela terra e (quem sabe?) “assegurar a passagem a uma maior autonomia”. Enfim, íamos fazer o que se dizia e era sabido que íamos fazer…

É, no mínimo, estranho que a guerra se constitua como factor de aceleração do desenvolvimento e de autonomia. Será que, se não houvesse guerra o desenvolvimento económico e social não se daria? Ou seria retardado? É-me difícil admitir outra forma de desenvolvimento que não seja assente na paz. No fundo, estamos a dizer que quem se revoltou tinha razão e assim conseguiu que a população vivesse melhor, embora pagasse caro essa melhoria. Verdadeiramente insanável esta contradição.

A “guerra” levava, naquela altura, dez anos e, hoje, parece-me que aquela terra e aquela gente padeciam de uma espécie da gangrena que as apodrecia cada vez mais. Os guerrilheiros faziam a guerrilha. Era o seu dever patriótico de homens que queriam ser livres. Imolavam-se, se necessário fosse, em combates curtos, mas intensos, contra um número considerável de conterrâneos seus e contra os que, vindos da “Metrópole”, os perseguiam por vezes com grande violência. Saberiam eles bem porque lutavam? Direi que sabiam.

Naquele tempo, parece-me que todos tínhamos (muitas) certezas. No meio estavam uns que suportavam, que aturavam as vicissitudes daquela situação sem puderem invertê-la. É o drama habitual das grandes massas de um povo que, não sabendo ou não achando necessário participar activamente, limitam-se a tentar sobreviver, oscilando, como um ponteiro desgovernado sobre o painel do momento. Normalmente, a História não regista o seu sofrimento, nem justifica a sua acção… ou falta dela.

Ao contrário da primeira comissão, desta vez, também nunca falei com nenhum guerrilheiro, nem com alguém que com eles tivesse vivido.

É certo que algo melhorara nos últimos tempos de guerra. Agora havia uma estrada asfaltada que levava a Bissau ou a Farim, estava montada uma rede de assistência médica e medicamentosa como nunca existira e o arroz era vendido a um preço simbólico: “cinco pesos e meio”. Ainda me recordo de uma grávida, em trabalho de parto, que foi evacuada para Bissau, por via aérea pelo, hoje general Martins de Matos.

Actualmente, nada disso por lá existe e, mesmo cá, as transmontanas têm os filhos nas ambulâncias…

Vivia-se em paz no interior da tabanca. Contudo numa tensão permanente. Havia que manter o inimigo à distância. Inimigo de quem ou de quê, isso é que era mais complicado de dizer… Para isso lá estávamos, mais de centena e meia de jovens – sim éramos jovens, é bom que se diga – que, com uma certa regularidade, faziam demonstrações de força e, com elas, garantiam que “os outros” não se aproximavam.

Vivia-se numa espécie de equilíbrio tenso e susceptível de se alterar ao menor sopro do acaso. Era a tal gangrena que minava e, cada dia, agudizava mais a situação. Uns já não, outros ainda não. Mas já não ou ainda não, o quê? O que é que cada um de nós, homem ou mulher, velho ou novo, nascido ali ou vindo de outro local, queria, em última análise? Dava a impressão de que aquela situação de equilíbrio iria alterar-se a qualquer momento. De que modo?

Andávamos todos à procura de sermos felizes. Cada um à sua maneira, construindo o seu amanhã à medida dos seus anseios e, quando não os identificava claramente, pelo menos queria que “aquilo” acabasse. Não me peçam estatísticas, percentagens ou tendências. Isso são abstracções de sociólogos ou de políticos carreiristas a justificarem – uns e outros – a marcha de um fenómeno que decorria naquele momento e não era possível parar nem condicionar.

O que pensaria o “Moisés Tchombé”, o chefe do posto, daquilo tudo? Chamávamos-lhe assim pela semelhança física com o ex-dirigente congolês. Será que exercia as suas funções a pensar no dever quotidiano a cumprir ou na simples sobrevivência, esperando que, quando “aquilo” acabasse, pudesse continuar tranquilamente a ser um bom “chefe de posto”? E os dois funcionários da Casa Gouveia, já aliciados para o “Partido”? Que esperariam eles, quando tudo acabasse, se acabasse? Claro que teria de acabar, mas… de que maneira? E o comerciante libanês (outro membro do “Partido”) que vivia como os seus colegas de profissão, num dia-a-dia de compra e vende toda e qualquer coisa que fosse necessária? E os velhos da tabanca, dotados da sabedoria que a idade sempre traz, o que pensariam daquilo? Como visualizariam o fim? Pensariam que o PAIGC, estava condenado a vencer e a tomar conta de tudo e, nesse caso, qual seria o papel deles? E se fosse a “Tropa” – reparem na expressão que usei e que usávamos – a ganhar, como ficaria todo o resto?

Há um indício técnico que, confesso, negligenciei: o Pelotão de Milícia estava incompleto e, embora o método de recrutamento estivesse modificado, centralizando-se num período de recruta num centro de instrução (que chegou a funcionar em Mansabá), parecia não haver interessados em recompletá-lo…

Estranho, para quem tinha que se defender diariamente de um inimigo que não se pode dizer que fosse muito contemplativo, como se viu naquele ataque “ao arame” em que arderam 21 casas. O que pensaria a população, em geral, das possibilidade de evolução da guerra? Valeu-nos naquela altura a Companhia de (instrução) Comandos Africanos que estava em formação e que fez as vezes dos bombeiros, apagando o incêndio, com baldes e bacias. Pedi às instâncias superiores cerca de 250 contos para reabilitar as casas e repor os bens daqueles que tudo tinham perdido. Nem um tostão veio. Não compreendi, na altura, a dificuldade em se aceitar que, em cada casa, houvesse pouco mais de dez contos em bens e alimentos. O PAIGC, vindo dos lados do Morés, atacou ostensivamente a tabanca e incendiou os telhados das moranças a tiro de RPG. O Amadu fala deste ataque, no seu livro e também não o entende(1). O conjunto tabanca mais quartel era grande e tinha um perímetro bem conhecido dos guerrilheiros. Um ataque cirúrgico, como hoje se diz, e que me pareceu um “ajuste de contas”, uma espécie de “perda de estado de graça”. Depois, veio o ataque à coluna de Cutia, a emboscada à coluna da CArt e à própria coluna grande de Bissau a Farim e volta. Terá sido o virar de uma situação de “equilíbrio”.

Uma morança de Mansabá atingida por fogo IN em 12 de Novembro de 1970
Foto de Carlos Vinhal

Tive contacto com o chefe da tabanca, logo no dia da minha chegada e, depois, só me pedia apoio para satisfazer qualquer necessidade da sua gente. Vi que os habitantes da tabanca viajavam pouco. Poderiam ir a Mansoa nas colunas da CArt. e daí a Bissau ou a Farim, na “coluna grande”, mas inexplicavelmente… não iam. Que se passaria para que tal sucedesse?

Dentre os habitantes da tabanca havia uns que não consegui entender. Não eram africanos. O senhor Zé, a mulher, D. Olinda, e uma filhota de três para quatro anos que tinham. Ele tinha explorado a Serração, alguns quilómetros a Sul, à beira da estrada, e hoje ainda abatia uma ou outra árvore que arrastava numa espécie de chassis que normalmente “até andava” fazendo uma fumarada de gasóleo não queimado. Ela cuidava da horta de casa e fazia funcionar um “restaurante barra café”. A filha enervava-se muito com os tiros da artilharia e com os ataques e o filho, com onze anos, acabara por obrigar os pais virem deixá-lo a casa de familiares, em Leiria.

Mansabá > 13ABR71 > Festa de Batisado da filha do senhor José Leal e dona Olinda > Nesta foto, da direita para a esquerda: Cap Mil Jorge Picado, senhor José Leal, Chefe de Posto (“Moisés Tchombé”) referido no texto, a esposa e uma das professoras ou filha do casal.
Foto de Jorge Picado, com a devida vénia.


Mansabá > OUT71 > A D. Olinda, esposa do senhor José Leal, e a filha de ambos no dia da festa do 1.º aniversário da menina
Foto de Carlos Vinhal

A dado momento, colocaram ali duas professoras “de primeiras letras”: a Sérgia, cabo-verdiana, gorda e que não parecia muito interessada na sua actividade e a Maria do Socorro, balanta, já havia concorrido ao título de miss Guiné, mas o júri teve de a eliminar por falta de qualidades estéticas… Tinha uma outra atitude e parecia querer dinamizar o funcionamento da escola. Suspeitei dela por evitar sistematicamente as colunas da CArt e procurar sempre seguir na “coluna grande”. Um dia impedi-lhe o embarque numa delas e, então, não tive dúvidas. Aos saltos em cima do unimog desatou a gritar “que estava farta dos cães colonialistas portugueses”. Então detectei “as malhas que o Império tecia”. O comandante do Batalhão ameaçou-me e obrigou-me a soltá-la. A rapariga estava fortemente “apoiada nas NT” e eu estava a pouco tempo de me vir embora. Após a independência, talvez em consequência dos “apoios” foi funcionária do Exército, no Estado-maior do Exército e na Repartição de Oficiais. Sei que continuou muito preocupada com o que não tinha – a beleza – ao ponto de comprar a uma daquelas vendedoras que frequentavam as unidades militares e as empresas, o bronzeador mais caro. Ao que me disseram assassinaram-na numa das viagens que fez à Guiné. O móbil do crime terá sido o simples roubo.

Que pensariam estas duas mulheres que viviam numa casa anexa à escola. Esta, que tinha sido um posto de comando e um centro de transmissões, era um edifício, de paredes sólidas, construído no “ano dos centenários” – 1946. Há fotos deste tipo de edifícios. Este era contemporâneo do Posto Administrativo, onde o “Moisés” vivia e cumpria as suas obrigações burocráticas, que eu, devo confessar, nunca entendi bem. Por despacho do General Spínola, o director da escola era eu e o segundo comandante do Batalhão era o inspector da circunscrição escolar na sua área. Por mim, nunca intervim no “processo de alfabetização em curso” a não ser para transmitir as instruções que me davam, prontamente contestadas pela Socorro. A escola foi inspeccionada uma vez, durante as férias e na ausência das professoras. Os resultados foram hilariantes e até deram direito a uma música com letra do alferes Rui Serras e música do Yellow Submarine. Prometo que conto um dia destes…

O que pensariam estas mulheres jovens, na altura, do que se passava à sua volta e o que terá sido feito da Sérgia?

E a “malta”? O que pensariam e como aceitariam aquilo tudo, os alferes – nunca tive mais de três devido à escassez de pessoal – os sargentos – entre os quais também existiam faltas, pelo mesmo motivo – e as praças?

Corro o risco de ser injusto, mas a avaliação que faço hoje é fruto de análise de pequenas situações que foram sucedendo então e que me sugerem que se tratava de uma unidade de “homens independentes”. Havia, penso, um núcleo de mentores que lideravam naturalmente. O primeiro-sargento Cipriano Canelas, amigo de outras situações, homem sensato, competente e dedicado, tinha uma característica que pode ser considerada uma forma de resistência: procurava vestir sempre bem, fardado ou à paisana. Aglutinava à sua volta o alferes Silva, ex-seminarista e, por consequência treinado para liderar, como todos os padres; o Bateira, furriel atirador com a valentia própria de quem conheceu os “ambientes do Brasil” e que manejava a MG 42; o Rui Serras, estudante falhado de medicina, angolano de Portalegre ou portalegrense de Angola, persuasivo e alegre que, como vi mais tarde, sabia bem congregar vontades; o Mota e Silva furriel atirador eficaz e reservado.

Depois havia outros, como os malogrados Vale das Transmissões, Sá Lopes, Ranger, sempre pronto a fazer jus à sua qualificação e o Costa, gigante atirador e marido da Júlia. Ainda me lembro do Ramos, magro e louro, meu companheiro naquela coisa das minas… e o Antero Paiva. E o Carvalho, o furriel “Enfermeiro”, que fazia os possíveis por assistir a população e a “malta”, com cuidado e a qualidade possível. Havia também o Alves da Artilharia, sempre sisudo, mas pronto na “hora do aperto” e eficaz no desempenho das tarefas que lhe tocavam.

Entre os soldados, relembro o “Boxista” que tinha andado a aprender a “Nobre Arte” mas com resultados modestos, o Pilo (é nome e não alcunha) pescador do bacalhau e que preferia estar ali com os pés no chão a andar aos tombos num dóri; o Valdez das Transmissões que tocava, na flauta de bisel “El Condor Pasa” acompanhado à viola pela Sousa Pinto da mesma secção.

Todos cumpriam e bem, mas sem entusiasmo excessivo. As coisas, faziam-nas porque era necessário fazê-las, desde a guerra às tarefas de guarnição. Dir-se-ia que resistiam à provação que lhes era imposta.

Não creio que “sofressem de patriotismo exacerbado”. A Pátria, para eles, não era ali… Não notei que odiassem o inimigo, mas distanciavam-se dele. Defendiam-se e faziam a guerra porque a isso os obrigavam e não detectei que nutrissem ódio pelo inimigo, mas também não me pareceu que tivessem qualquer simpatia ou compreensão pela parte contrária. Esta atitude de reserva vinha desde a primeira baixa sofrida pela Companhia, quando tinham pouco tempo de Guiné e eu ainda não estava com eles. Fora um ferido com mina lá para os lados de Manhau. Penso que se sentiram injustiçados e daí nasceu em espécie de revolta surda de quem não teme, mas que também não acredita e, sem outra saída, mantêm uma atitude de fria independência e de liberdade escondida.

Sem grandes alardes de valentia tive prazer em os comandar, mais como cidadãos do que como soldados.

(1) - Djaló, Amadu Bailo, "Guineense, Comando Português", (pág. 246 e 247), Ed. Associação de Comandos, Col. Mama
Sume, Lisboa, Março de 2010.
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Notas de CV:

Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7874: Em busca de... (157): Camaradas da CART 3567 (António J. Pereira da Costa)

Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6614: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (3): Gente de Cacoca e outros