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terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25051: Por onde andam os nossos fotógrafos? (16): António Murta, ex-alf mil inf MA, 2ª C/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) - Parte I: Em 16 de março de 1973 estávamos irremediavelmente a partir no N/M Uíge...



Foto nº 1

Lisboa  > Cais da Rocha Conde de Óbidos > 16 de março de 1973, meio da tarde >  Partida do Batalhão de Caçadores 4513 no navio Uíge rumo à Guiné.

(....) Estava repleto o navio e os militares alcandoravam-se nos locais mais improváveis, para além de escadórios e da amurada, na ânsia de serem vistos pela multidão de familiares que acenavam do cais. Era uma cena já de todos conhecida, militares e famílias, que ao longo dos anos a viram – e temeram – pela televisão e pelos jornais. 

"No que me toca, e depois de ter perdido de vista o meu pai no cais, apoderou-se de mim uma fria indiferença. Estava ali a começar uma odisseia, uma aventura no desconhecido, mas que haveria de ter um fim, que só podia ser o regresso. Recordo estas sensações porque as preparei antes e me agarrei a elas no momento crucial. 

"Apesar disso, foi no instante em que o bojo do navio se desencostou lentamente do cais, que tive o momento mais penoso e cruel. Não tinha pensado nesse detalhe tão significativo: o brevíssimo instante da separação. Estava quebrado, definitivamente, o fiozinho que ainda me ligava a casa, aos familiares, ao meu país e a uma esperança tola de que, até ao último instante, acontecesse algo de extraordinário, um cataclismo, uma morte bombástica, sei lá..., morreu o Amílcar Cabral e não aconteceu nada, mas podia morrer o Marcelo, cair a Ponte Salazar e o barco ficar ali encalhado!... Nada. Não aconteceu nada. 

"Afinal, estávamos irremediavelmente a partir. E não tinham partido milhares de outros antes de mim? (...) (Poste P14373 (***).

Foto nº 2 

Guiné > Região de Quínara > Nhala > 2ª C/BCAÇ 45143 (Aldeia Formosa, Buba e Nhala, 1973/74) > 1973 > O alf mil inf MA António Murta: "um estado d'alma"



Foto nº 3

Guiné > Região de Quínara > Nhala > 2ª C/BCAÇ 45143 (Aldeia Formosa, Buba e Nhala, 1973/74) > Pós-25 de Abril de 1974  > O alf mil inf MA António Murta, em primeiro plano, sentado no capô da Berliet MG-20-79.

Foto nº 4

Guiné > Região de Quínara >  Nhala (a nordeste de Buba) > 1974 > Agosto de 1974 > Os "Unidos de Mampatá", a CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74), em final de comissão, foram despedir-se dos "periquitos" de Nhala (2ª C/BCAÇ 4513)... À esquerda, assinalado por um quadrado amarelo, o nosso António Carvallho, o "Toni", mais conhecido por "Carvalho de Mampatá".  O nosso fotógrafo, o António Murta,  estava lá.

Um cartão de boas festas 2014/2015 original, criação do António Murta

Fotos (e legendas): © António Murta  (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Continuamos à procura dos nossos fotógrafos (*)


A fotografia é um dos recursos mais valiosos do nosso espólio. Não sabemos ao certo quantas imagens já publicámos no nosso blogue em vinte anos (desde 2004). Uma estimativa por baixo aponta para mais de 100 mil. Já publicámos mais de 25 mil postes, o que daria uma média de 4 fotos ou imagens  por poste. 

Fotógrafos (ou donos de álbuns fotográficos com grande interesse documental) são seguramente muitas dezenas. Alguns de nós tornaram-se até fotógrafos com talento, no CTIG ou até depois, na peluda. A maioria não tinham tirado fotografias. Comprou uma máquina em Bissau (em geral, de "made in Japan", e mais baratas do que na metrópole), e levou-a para o mato. (**)

As suas fotos  têm suscitado a curiosidade de cineastas, jornalistas, investigadores, etc., que de tempos a tempos recorrem ao nosso blogue para cedência de imagens. Temos uma política sobre esse assunto; cópia digital das fotos é cedida, para efeitos não-comerciais,  mediante acordo tanto dos edtores como dos titulares dos créditos fotográficos. Julgamos que, enquanto antigos combatentes, temos esse dever de serviço público. Mas também exigimos que respeitem a propriedade intelectual e não façam uso indevido do material cedido.

A mítica Olympus Trip 35, de que se terão
vendido10 milhões de unidades entre 1967
e 1984... Ideal para se tirar fotos em férias
(daí o nomedo modelo, "trip"),  
despreocupadamente
2. Hoje começamos a recuperar e a selecionar algumas das melhores fotos do António Murta, de seu nome completo António Manuel Murta Cavaleiro, ex-alf mil indf  MA,  2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74). 

Nasceu em Cantanhede, em 8 de janeiro de 1951, vive atualmente na Figueira da Foz. Está reformado há mais de 10 anos. Passou a integrar a Tabanca Grande em 12 de novembro de 2014.(***) 

Tem 105 referências no nosso blogue, sendo autor de uma notável série, "Caderno de Memórias de António Murta"...  de que se publicaram pelo menos 42 postes (****)

Não nos conhecemos pessoalmente mas já temos falado ao telefone (ainda ontem, data do seu aniversário). Não sei o que fazia profissionalmente, constato que tem um grande talento para o desenho (veja-se o cartão de boas fesats que nos mandou no final do ano de 2014) (vd. imagem acima) (*****).

Exigente consigo e com os outros, escreveu sobre a sua atividade de fotógrafo amador:

(...) "As minhas fotografias, no geral, não têm grande qualidade: quando fui para a Guiné nem máquina tinha. Usei uma emprestada por uma amiga, mas demasiado básica e pouco fiável. Nas primeiras férias comprei uma Olympus compacta e passei a fazer, quase sempre, slides. Digitalizados com um scâner normal, são uma triste amostra dos originais. Com muito deles optei por fotografar a projecção em suportes variáveis, com os inconvenientes que também isso acarreta." (...) (***)

(Continua)
_____________



(****) Vd.postes de:

16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14373: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (1): Embarque para a Guiné, 16 de Março de 1973


(*****) Vd. poste de 18 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14044: Sob o poilão sagrado e fraterno da nossa Tabanca Grande: boas festas 2014/15 (4): Cartão original de António Murta

terça-feira, 27 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24434: S(C)em comentários (10): eu vi morrer na IAO, no CIM de Bolama, em 10/7/1972, no treino de dilagrama, o alferes Carlos Figueiredo e o soldado José Mata (António Carvalho, ex-fur mil enf, CART 6520/72, Mampatá, 1972/74)

1. Comentário ao poste P24433 (*), que decidimos transformar em poste para a série "S(C)em comentários" (**). 

O autor é o nosso querido amigo e camarada António Carvalho, mais popularmente conhecido como o Carvalho de Mampatá, ex-fur mil enf,  CART 6250/72, "Os Unidos de Mampatá" (Mampatá, 1972/74), escritor, autor de "Um caminho de Quatro Passos", Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 2021, 218 pp., vive em Medas, Gondomar;  tem 76 referências no nosso blogue; é membro da Tabanca Grande desde 13/9/2008.


Caro Luís: Sinto-me grato por nos trazeres (mais uma vez) a narração sentida de uma das tuas páginas do "livro" das coisas imorredoiras do nosso tempo da Guiné. 

O modo como contas a morte "matada" de dois azarados, ainda por cima resultante de um misto de negligência e jactância de um pretenso guerreiro, leva-me a uma profunda reflexão que me permitem agora os meus setenta e três anos. 

Houve, estou certo, muitos acidentes decorrentes da formação militar feita à pressa e da graduação atribuída a jovens de 21 anos, no meu ponto de vista, sem a maturidade exigível a comandantes. Mas a guerra obrigava a distinguir com galões os mais aptos fisicamente. 

Eu vi morrer na IAO, na ilha de Bolama, ao 13º dia de Guiné, no treino de dilagrama, o alferes Figueiredo,  de S. Pedro do Sul,  e o Mata,  de Pinhel. (***) Não vou aqui culpar nenhum deles, aliás, presumo que o acidente se deveu a uma deficiência do grampo que segura a alavanca. 

Mas foi muito perturbador para mim e para todos os presentes a morte, no dia 10 de Julho de 1972,  desses dois jovens, sendo o comandante um ano ou dois mais velho que o comandado. 

A guerra, sendo primordial (como bem dizes), ela é a opção mais imbecil do ser humano, porque resulta da desistência do diálogo e da reflexão sobre a singularidade da condição humana, bem distinta da relação primária entre os outros seres vivos.


Carvalho de Mampatá |
27 de junho de 2023 às 17:24 

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24433: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (2): Que Alá te proteja dos teus amigos, que dos inimigos cuidas tu!

(i)  Carlos Manuel Moreira de Almeida Figueiredo, natural de São Pedro do Sul, alf mil art , CCS/BART 6520/72, CIM Bolama, 10/7/1972; porto pro acidente com arma de fogo: 

(ii) José António Mata, natural de Pinhel, sold at, CART 6520/72, CIM Bolama, 
 10/7/1972; porto pro acidente com arma de fogo: 


A CART 6250/72 fez a IAO no CIM Bolama, entre 10 de junho e 26 de julho de 1972.


Vd. também poste de 5 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21517: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (10): Relembrando a morte, por acidente com um dilagrama, no CIM de Bolama, em 10/7/1972, do alf mil Carlos Figueiredo


(...) Caro camarada Barros

Subscrevendo o que disse o meu irmão mais velho (combatente na Guiné) Manuel Carvalho, não posso deixar de acrescentar mais alguma coisa sobre esse terrível acidente ocorrido em 10 de julho de 1972, no décimo terceiro dia após a nossa chegada, porque assisti a toda aquela cena e ao que se lhe seguiu. 

A minha companhia, a  CArt 6250, do RAP 2, cumpriu a sua missão em Mampatá, sector de Aldeia Formosa, mas fez a IAO convosco. 

Depois da tragédia, ambos os corpos foram postos junto dos bancos laterais de um Unimog, procurando os soldados sentados nesses bancos ocultá-los com as pernas. Dali foram para a capela do cemitério de Bolama. Coube-me,  bem como a mais alguns voluntários, limpar e vestir esses corpos mutilados. Dispenso-me de mais pormenores. O Mata, da minha companhia,  está sepultado na aldeia de Valbom, concelho de Pinhel, o Figueiredo está sepultado no cemitério de S. Pedro do Sul, num jazigo tipo capela, junto ao passeio do lado esquerdo, em relação ao portão principal. Sempre que passo por essas terras visito esses cemitérios. Porquê ? Não sei. (...)

António Carvalho ex-Fur Enf da CART 6250 (Carvalho de Mampatá)
6 de novembro de 2020 às 20:40

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Guiné 61/74 – P23356: (Ex)citações (408): Da parte operacional, pouco sei para além do que os meus amigos, quando vinham a Bissau, me contavam parte do que por lá passaram e também do meu serviço no Centro de Mensagens do QG (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS/CTM/QG/CTIG)

1. Comentário do nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), publicado no dia 14 de Junho no Poste P23344: Agenda cultural (814): Tabanca dos Melros, 11 de junho de 2022: apresentação do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul" (2021) - Parte I: Intervenção de Luís Graça, representado pelo escritor António Carvalho, ex-fur mil enf, CART 6250 (Mampatá, 1972/74):

Caro e grande Camarigo Luís Graça
Primeiro que tudo os meus votos de boa recuperação do teu joelho que te deve ter obrigado a uma paragem sempre inconveniente em todos os sentidos, mas ao mesmo tempo te deve ter dado oportunidade para ires pondo a escrita em dia. Boas melhoras são os meus desejos sinceros.
joaquim costa
Agora quero dar-te os meus parabéns por esta magnifica apresentação, mesmo à distância, do livro do Camarigo Joaquim Costa “Memórias de Guerra de um Tigre Azul”, que foi uma autêntica lição de história que merecia ser bem divulgada, especialmente junto das entidades do poder, que ainda hoje não sabem, nem querem saber, que o País esteve em guerra durante 14 longos anos.

Como sabes e aliás desde o primeiro dia em que abriguei à sombra da Tabanca Grande, em todos os meus escritos sempre me referi a Bissau onde passei os meus 25 meses de comissão. Portanto, da parte operacional, pouco sei para além do que os camaradas meus amigos, quando vinham a Bissau, me contavam parte do que por lá passaram e também do meu serviço no Centro de Mensagens do QG, quando, infelizmente, eramos confrontados a qualquer hora do dia ou da noite, com os pedidos de apoio aéreo e pior do que isso, do pedido de evacuações derivadas da guerra.

Tenho lido muitos livros escritos por camaradas que passaram por lá as passas do Algarve como se costuma dizer, mas há um livro, “Nos Celeiros da Guiné, Memórias de Guerra” da autoria de Albano Dias Costa que em 1963, com a especialidade de Sapador de Infantaria e com o curso de explosivos, minas e armadilhas, foi mobilizado para a Guiné como Alferes Miliciano Atirador e de José Jorge de Campos Sá-Chaves que, como militar, frequentou o CEPM e estagiou no CIOE. Mobilizado em Julho de 1962 integrou a CCAÇ 413 tendo cumprido missão como Alferes Miliciano, na antiga Província Ultramarina da Guiné, (Dados retirados das badanas da capa e contracapa do referido livro) e Prefácio “Metamorfose dolorosa” do General Ramalho Eanes, que me escuso de transcrever na totalidade, apesar ser merecida a sua transcrição, porque são sete páginas, mas mesmo assim permito-me transcrever a 1.ª frase deste Prefácio, páginas 11 a 17:
“Poderia esta obra ter por titulo “Duas variações dramáticas sobre o mesmo tema”, dado que o tema, fundamental, são os jovens soldados na guerra – na guerra da Guiné -, que a guerra definitivamente marcou, roubando a uns, a vida, incapacitando, fisicamente, outros, marcando de angústia indelével o subconsciente e a memória não só destes últimos mas, também, a de todos os que lhe sobreviveram.” Mas permito-me ainda transcrever a última frese deste Prefácio: “Sentindo-me um irmão ex-combatente, destes ex-combatentes da CC 413, entendi não os abraçar com uma frase para a capa do livro, como me pediram, mas, sim, abraçá-los com este manifesto despretensioso, pequeno, mas sentido manifesto de solidariedade.” António Ramalho Eanes.

Sem querer ser fastidioso, ainda tenho que transcrever parte da “Dedicatória” dos autores, inserta na página 9, do citado Livro: “À memória dos camaradas da CC 413 que não envelheceram, tombados na Guiné, no cumprimento da comissão de serviço que lhes foi imposta, o Ataliba Pereira Faustino, o Francisco Matos Valério, o José Gonçalves Pereira, o José Basílio Moreira, o José Rosa Camacho, o José Pereira Rodrigues, o José Ramos Picão e o Joaquim Maria Lopes, em relação aos quais carregamos a culpa de continuarmos vivos.”

E refiro-me especialmente a este livro porque o mesmo, para além de tudo o mais, este livro regista a primeira morte, no conjunto dos três teatros de operações, de um conterrâneo meu, natural de Alcanena, o José Gonçalves Pereira, que despareceu em combate, cujos restos mortais vieram a ser recuperados mais tarde.

As minhas desculpas por este longo comentário
Um grande abraço.
Carlos Pinheiro
14.06.2022

____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 – P23247: (Ex)citações (407): Pedaços da vida militar. A tropa e o caminho rumo à Guiné. (José Saúde)

domingo, 12 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23344: Agenda cultural (814): Tabanca dos Melros, 11 de junho de 2022: apresentação do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul" (2021) - Parte I: Intervenção de Luís Graça, representado pelo escritor António Carvalho, ex-fur mil enf, CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74)


Gondomar > Fânzeres > Tabanca dos Melros > 11 de junho de 2022 >  
Apresentação do livro “Memórias de Guerra de um Tigre Azul”,  de Joaquim Costa (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2021, 179 pp). Teve uma assistência na casa das 7 dezenas de pessoas. Da esquerda para a direita, na mesa (*), 

(i) António Carvalho (ex-fur mil enf, CART 6250/72, "Os Unidos de Mampatá", Mampatá, (1972/74), escritor, autor de "Um caminho de Quatro Passos", Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora,2021, 218 pp.,  vive em Medas, Gondomar; representou o nosso editor Luís Graça, de quem leu um texto de apresentação do livro do Joaquim Costa; 

(ii) Carlos Machado, engenheiro técnico, a viver em Lisboa, e ex-furriel dos Tigres do Cumbijã, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74);

(iii) Joaquim Costa, o autor do livro;

(iv) João Carlos Brito, professor, bibliotecário e escritor, em representação da Editora: Lugar da Palavra. com sede em Rio Tinto, Gondomar.

Foto ( e legenda): © Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Os Tigres do Cumbijã 
e os trabalhos de Sísifo

por Luís Graça


Começo por saudar o nosso novo escritor, o talentoso Joaquim Costa, que nos honra a todos, antigos combatentes da Guiné, e em especial a Tabanca Grande, a que ele pertence, com mais 861 camaradas e amigos da Guiné, entre vivos e mortos. E saúdo naturalmente a Tabanca dos Melros que, generosamente, abriu as suas portas para este evento, na pessoa de um dos seus régulos, e nosso anfitrião, o Gil Moutinho.

Uma saudação muito especial para a família do Joaquim, de que ele muito se orgulha (os filhos Ricardo e Tiago, a “minha maior obra”, como ele diz, bem como a sua heroína Isabel e os seus netos).

Um alfabravo (ABraço) para os Tigres do Cumbijã, alguns aqui presentes, a sua “família da guerra”, os seus irmãos de “sangue, suor e lágrimas”, que vieram com o corpo e a alma tatuados com topónimos guineenses que levarão para a cova: Cumbijã, Nhacobá, Colibuía, Aldeia Formosa (hoje Quebo), Buba, Mampatá… 

 Ele é capaz ainda hoje de se lembrar de boa parte dos seus nomes ou alcunhas… Destaque para o Carlos Machado, que veio propositadamente de Lisboa, e que tem algumas divertidas e elogiosas referências no livro, não só pelos preciosos mapas, que levava consigo no mato, para eventuais pedidos de apoio de artilharia (do 2º Pel Art, que tinha 3 obuses 10,5 em Cumbijã), como pelo seu famoso bigode que era um autêntico sensor, capaz de farejar e detetar à distância a presença de inimigos nas redondezas.

Um abraço para todos os presentes nesta sessão, homens e mulheres de boa vontade, que aqui comparecem, e que tomam as necessárias precauções, não baixando a guarda face à maldita Covid que não desarma e continua por aí a fazer estragos.

Um Oscarbravo (OBrigado) ao António Carvalho, outro dos nossos escritores, vizinho do Joaquim, de Mampatá, que aceitou a ingrata mas solidária tarefa de me dar voz, nessa sessão, e de me representar nesta mesa: ainda com um mês de pós-operatório (fiz uma artroplastia total do joelho), e ainda a andar a quatro patas, ser-me-ia muito penoso fazer mais de 600 quilómetros, num só dia, para poder estar nesta festa. 

Recordo que no passado dia 11 de setembro de 2021 tive a honra de estar presente, na Tabanca dos Melros, entre os convidados que apresentaram o livro de memórias do António, “Um caminho de quatro passos”. Amor com amor se paga…

Mas também é com muita pena que não posso estar desta vez, para mais em dia de festa… E começo por recordar e agradecer as palavras calorosas que o Joaquim escreveu na dedicatória autografada no exemplar do livro que me mandou para casa. Cito-o textualmente:

“Para o ‘Pai’ putativo do meu (nosso) livro de memórias de guerra, amigo recente mas já sentado na primeira fila das pessoas que mais prezo. O meu obrigado pelo contributo decisivo no nascimento do meu terceiro ‘filho’, bem como da ‘nota final’. Joaquim Costa, s/d.”

Joaquim: faço aqui uma “declaração de interesses”, não vá qualquer sombra de dúvida ficar a pairar sob o céu da Tabanca dos Melros: a paternidade e a maternidade deste teu “terceiro filho” são todas tuas… Se quiseres ser generoso comigo, aceito ficar na fotografia como uma das várias parteiras-aparadeiras que te ajudaram a ter um parto eutócico, normalíssimo, feliz, não obstante as contrariedades da pandemia de Covid-19.

O livro saiu em dezembro de 2021, sob a chancela da editora Lugar da Palavra, aqui de Rio Tinto, tem 179 páginas, 30 capítulos, e é ilustrado com cerca de nove dezenas de fotos. Felicito o editor, ou representante da editora, João Carlos Brito, aqui presente também. 

E o preço de capa, meus amigos e camaradas, são dois maços de cigarros. A vantagem é que o livro faz bem à alma e os cigarros fazem mal à saúde. A mortalidade atribuível ao tabaco, num só ano, é superior à mortalidade por todas as causas (combate, acidente e doença) devida à guerra colonial, nos longos 13 anos em que decorreu (10 mil mortos, nos vários teatros de operações).

Em boa hora, e ainda em plena pandemia de Covid-19, o Joaquim começou a pré-publicar alguns excertos (mais de 2 dezenas) do livro que deu à estampa no fim do ano de 2021. Demos um título à série, “Paz & Guerra: Memórias de um Tigre do Cumbijã”… Publicaram-se até à data 27 postes, desde 2 de fevereiro de 2022. (**)

A série publicada no blogue e a versão final, agora dada à estampa sob o título definitivo, não são exatamente iguais. Todos ficámos a ganhar, a começar pelo autor, que, ao expor-se à crítica dos leitores, muitos deles antigos combatentes, receberia em troca cerca de duas centenas de comentários “a quente”.

E mais: teve mais de 3700 visualizações diretas, isto é, leitores, que propositadamente carregaram num ou mais mais links dos postes da série… O que quer dizer que o seu livro já foi lido, “on line”, por algumas centenas de pessoas…

Interessante este “making of” do livro… O que seguramente ajudou a melhorar a sua versão final.

Cabe-me enquanto fundador e editor do nosso blogue, saudar e engradecer este livro de memórias que vem enriquecer o património literário e documental da Tabanca Grande, que é uma tertúlia virtual centrada na experiência de uma guerra, a guerra colonial (1961/74), e em particular a da Guiné, sendo porventura a maior tertúlia do género, em português, quer pelo número de visualizações do blogue (cerca de 13,5 milhões, desde 2004, fora a página do Facebook) quer pelo número dos seus membros registados (= 862) quer ainda pelo volume de memórias partilhadas (mais de 23300 postes). Memórias mas também afetos. E este livro do Joaquim é sobretudo um livro de afetos.

O Joaquim Costa é mais um talento literário que o nosso blogue veio revelar, com a particularidade de, sendo um bom minhoto,  natural de Vila Nova de Famalicão, a terra adotiva do autor de “A Brasileira de Prazins”, a sua prosa ter também belos nacos do português camiliano, a começar pela ironia, o pícaro, o humor e até o sarcasmo, tão bem patentes na reconstituição de algumas das suas memórias de infância e na evocação da sua família, bem como na descrição de cenas da vida castrense (a tropa e depois a guerra), cenas por que passámos muitos de nós, antigos combatentes aqui presentes, e que vivemos tão intensamente, das Caldas da Rainha até Bissau.

Perpassa pelo livro um subtil mas corrosivo humor de caserna que funcionou, na Guiné, durante a guerra colonial, em todo o lado, e sobretudo nos piores momentos... Ajudou muitos de nós a sobreviver ao Suplício de Sísifo que foi aquela estúpida, penosa, absurda e inútil guerra que nos obrigaram a manter, durante anos, sem solução, militar e sobretudo política, à vista… Até que se chega à tarde do dia 26 de Abril de 1974… 

Os rumores de um golpe de Estado em Lisboa, já transmitidos pela “Maria Turra” (a voz mais famosa, e quase familiar, da Rádio Libertação, do PAIGC, que emitia a partir de Conacri), são confirmados por um camarada. Escreveu o Joaquim:

“ (…) Na tarde do dia 26, vinha eu com a minha cerveja e o meu Norte Desportivo na mão, quando o Martins se vira para mim e me diz, de forma perentória: Costa!, há mesmo ‘merda’ em Lisboa” (…) (pág. 154 )….

Com tanta excitação, o autor só se viria a lembrar do seu 24º aniversário (que foi a 27 de abril de 1974), uns dias depois, já nos princípios de maio…

O aquartelamento do Cumbijã (antiga tabanca abandonada nos primórdios da guerra), como muitos outros pela Guiné fora, do Cachil à Ponta do Inglês, de Gandembel a Mansambo, foi construído, a pá e a pica, a enxada e a motosserra, sem ajuda de máquinas e homens da Engenharia Militar… num esforço hercúleo, sobre-humano, um verdadeira epopeia que noutro país qualquer daria uma fabuloso filme...

Não é gratuito evocar-se aqui os trabalhos de Sísifo. Recorde-se que, segundo a mitologia grega, os deuses condenaram Sísifo a fazer rolar uma grande pedra de mármore, com suas próprias mãos,  até ao alto de uma montanha.... Uma vez alcançado o cume, a pedra rolava novamente pela encosta abaixo até ao ponto de partida, movida por uma misteriosa força irresistível. Tratava-se de uma condenação até à... eternidade!...

Por essa razão se diz que todas as tarefas que envolvem esforços gratuitos, inúteis e absurdos são trabalhos de Sísifo... A estrada (asfaltada) de Mampatá a Nhacobá, e que vinha de Buba e devia chegar a Mejo, fundamental para neutralizar a “corredor da morte” ou “corredor de Guileje” (também chamado, pelo outro lado, “caminho do povo”, “caminho da liberdade”) não chegou a ser concluída, com o fim da guerra… Foi um verdadeiro trabalho de Sísifo, tal com a ocupação de Cumbijã, Colibuía e Nhacobá….

O Joaquim escreveu um livro com uma parte da sua história de vida, dos seus verdes anos, história que é também a de muitos de nós, e fez questão dedicá-lo aos que o amam e o estimam. A sua narrativa tem momentos portentosos sobre a epopeia de Cumbijã e de Nhacobá, os seus bravos e as suas vítimas, os seus momentos mais dramáticos e trágicos.

Um dia, quando fizermos uma antologia dos nossos melhores textos, o seu testemunho, na 1ª pessoa, sobre a Op Balanço Final, a conquista e a ocupação de Nhacobá (17-23 maio 1973), por exemplo, terá que lá figurar, com toda a justiça.

A historiografia militar, a começar pelos livros da CECA – Comissão para o Estudo das Campanhas de África, pode, em meia dúzia de linhas secas, telegráficas, resumir aquela “guerra de baixa intensidade”, num contexto, altamente desfavorável a Portugal e às nossas forças armadas, contexto diplomático e geopolítico marcado pela guerra fria e o fim dos impérios, mas também pela crise económica de 1973 e a crescente contestação do Estado Novo, com o fim expectável do marcelismo. Não foi, em todo o uma guerra para “meninos de coro”, como todas as guerras...

Faltará sempre, à escrita do historiador, o nosso "sangue, suor e lágrimas", que no nosso tempo, na Guiné, não foi uma figura de retórica. E é bom que os nossos filhos e netos saibam, por fim, que ali não fizemos só a guerra mas também a paz. E que nenhum de nós escapou ao terrível dilema de matar ou morrer, incluindo os problemas de consciência que a violência armada impõe a qualquer ser humano.

Também, este livro tem belos apontamentos de grande lirismo em que o autor consegue abstrair-se da guerra e dos seus horrores ( as minas, as emboscadas, as flagelações, os ataques, o sofrimento físico e psíquico…), e ver beleza naquela terra e naquela gente, a começar pelas as lavadeiras (obrigatório ler e reler o cap. 11, “as nossas lavadeiras… e o furriel Pequenina, pp. 75 e seguintes).

Sem poder esquecer as intermináveis noites em que ficou emboscado na frente dos trabalhos de construção da estrada para Nhacobá, o Joaquim soube tirar algum prazer e encantamento da fruição da natureza. Vou citá-lo (vd. pág. 83):

  • “as noites escuras com o fresco do cacimbo limpando o suor dos 40º do dia, deixando-nos inebriar pelos sons da floresta húmida, ouvido os macacos ao longe e o ‘piar’ de uma ou outra ave;
  • “as noites de trovoada contínua, que nem nas festa da Sra. da Agonia, fazendo-se dia com as descargas elétricas violentas, de uma beleza indescritível;
  • “as noites de luar, lindas e quase românticas…, sublimando os pensamentos nas nossas namoradas ou madrinhas de guerra;
  • “as noites das primeiras chuvas que nos limpavam o corpo e a alma com o agradável cheiro a terra africana”…

Apesar de se sentirem permanentemente vigiados pelo inimigo, aos “Tigres do Cumbijã” ninguém lhes podia roubar aquele momento inefável da manhã: “ de manhãzinha, com banho tomado e roupa lavada e já seca, não disfarçávamos a alegria, ao vermos chegar a coluna com os dois grupos de combate que nos vinham substituir” (pág. 83).

Estamos gratos ao Joaquim por dar voz a muitos combatentes, não só do nosso lado, mas até do outro lado, que nunca tiveram nem terão oportunidade de escrever, e muito menos de publicar, sob chancela editorial, as suas “vivências” e “memórias doridas” (e algumas até boas) daquela guerra e daquela terra (que, estranhamente, acabou por ficar no nosso coração, contagiando até os nossos filhos, o Tiago Costa, o João Graça, e tantos outros).

E o problema é que muitas memórias vão morrer connosco...E por cada um de nós que morre, é um livro que não se escreveu…

Não quero acabar esta nota de apresentação sem referir os sucessivos “murros no estômago” que, metaforicamente falando, o autor evoca no seu livro, a começar pelo inevitável batismo de fogo, as primeiras minas e emboscadas, o primeiro morto...

Na realidade, aqueles de nós (e fomos muitos) que passámos por essa dura, trágica, traumática experiência, sabe dar valor às palavras do Joaquim onde há raiva e impotência mas também coragem e dignidade, quando ele fala do primeiro camarada que morre ao seu lado.

O batismo de fogo era sempre uma situação-limite... E cedo aprendíamos que um homem não pode uma guerra sem odiar ...Depois, era como tudo: a guerra (e a morte) banalizava-se, tornava-se uma certa rotina... Mas os "embrulhanços" eram sempre temidos, de um lado e do outro... As balas e os estilhaços das granada ou o sopro das minas (antipessoais e anticarro) não tinham código postal... Era a roleta russa...

Diga-se, por fim, que não é um livro panfletário. Mas, mesmo sem querer fazer juízos de valor sobre a legitimidade, a condução e o desfecho daquela guerra, o autor acaba por nos mostrar, com fino mas cáustico humor, que às vezes acontecia sentirmo-nos como um bando de cegos, comandados por outros cegos, à beira de um precipício.

Felizmente o Joaquim voltou, “são e salvo”, para escrever este livro, o seu “terceiro filho”, e dar mais valor e força à liberdade, à justiça, à paz e à solidariedade.

Joaquim, hoje é um dia importante na tua vida. E seguramente tens motivos de orgulho ao apresentar, oficialmente, na Tabanca dos Melros, o teu livro (que, diga-se de passagem merece uma segunda edição, revista, aumentada e melhorada).

Luís Graça, sociólogo, editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. (**)
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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 4 de junho de 2022> Guiné 61/74 - P23325: Agenda cultural (813): Afroencontro: fusão euroafricana de sonoridades... Camones CineBar, Bairro da Graça, Lisboa, sábado, 4 de junho, 21h00: Mamadu Baio, Avito Nanque, Sanassi de Gongoma e João Graça

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21942: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (8): O valor da seringa

1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos hoje a última estória desta série enviada a 7 de Fevereiro de 2021 ao nosso Blogue.


8 - O VALOR DA SERINGA

Faltava sempre alguma coisa, na hora da rendição, fossem os atacadores de umas botas, o testo de uma panela, uma cavilha da G3, ou até a culatra de um obus. Quando havia um ataque a um aquartelamento era relativamente fácil, no respetivo auto, incluir a perda de parte de um produto, de um elemento de um qualquer equipamento ou mesmo considerar a sua destruição integral. Na tropa chamava-se a isso o desenrascanço, umas vezes seria uma forma expedita de alguém se livrar da injustiça de pagar por algo de que não tinha sido responsável, mas, nalguns casos não era senão uma vigarice para encobrir furtos.

Quando cheguei a Mampatá tive que acusar a receção de uma série de equipamentos onde se incluía um atrelado sanitário, material para pequenas cirurgias, seringas e outras miudezas. O meu antecessor queria que eu assinasse tudo, quase sem ver e, não sei se propositadamente, deixou tudo para o último dia, o dia de todos as pressas. Fui muito claro e franco:
- Venho avisado para o comportamento costumeiro das rendições, sei que vão faltar algumas pequenas coisas, aliás de pouca monta, como já confirmei, também não sou pessoa para estragar a vida a ninguém, quero por isso que me apresentes uma relação escrita do que falta, só para meu uso pessoal.
Assinei então o auto de receção, confirmando a existência da carga sem qualquer falta, permitindo que o meu camarada regressasse a Lisboa sem problemas. Ele dizia-me que já assim tinha acontecido aquando, dois anos antes, da rendição, entre ele e o seu antecessor.

Nenhum prejuízo resultou da falta daqueles objetos, alguns deles já em desuso, razão pela qual não fazia sentido adotar outra atitude eventualmente mais rígida. Mais tarde, pensava eu, logo se veria a volta a dar ao problema. Os meses foram lentamente passando sem que eu me quisesse sujeitar a pedinchar ao Sargento e ao Capitão da Companhia a colaboração na elaboração de um auto de destruição de forma a que o material em falta fosse abatido à carga. Fui empurrando com a barriga, porque, naquelas circunstâncias, quanto mais tarde melhor, e eu até podia, com o meu dinheiro, comprar o material em falta, quando julgasse oportuno, que não era nenhuma fortuna.

A inesperada chegada do 25 de Abril, quase concomitante com o fim da comissão, veio, num primeiro momento, facilitar-me a vida, porque, julgava eu, que acabada a guerra, já não me teria que submeter à operação da transmissão dos materiais a nova companhia, mas, simplesmente, seria feita a doação de todo o equipamento e medicamentos remanescentes aos representantes do novo governo. Enganara-me, o material seria ainda entregue a uma companhia recém-chegada ao território. De pronto, evitando a sujeição aos trâmites burocráticos da tropa, encarreguei o meu amigo 1.º Cabo Enfermeiro Celso Mendes, de, na sua ida a Bissau para uma consulta, adquirir com o meu dinheiro, o material em falta, livrando-me de qualquer problema, aquando da rendição da nossa companhia ou de fazer a outrem o que não gostaria que a mim me fizessem. Por outras palavras: quando o dinheiro puder resolver não devemos, por causa dele, arranjar problemas de consciência ou outros.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

Nhacobá, entrada norte
© Foto: Vasco da Gama


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sétima.


7 - O MILAGRE DE NHACOBÁ

Naquele dia os medos não me deixavam dormir e as piores antevisões do que poderia acontecer, nas horas pesadas que se aproximavam inexoráveis, sucediam-se na minha corrente de pensamento, não deixando espaço para admitir um só cenário otimista que fosse. Se no primeiro dia da tomada daquela tabanca tinham morrido quatro camaradas, quem acreditaria que não morressem dois ou três mais, no dia seguinte. E podia até ser eu! Porque não? Ou então podia calcar uma mina, como tinha visto acontecer ao Albuquerque, ir pelos ares e voltar ao chão, já sem uma perna, sob uma espessa nuvem de pó. Depois viria o helicóptero para me levar para o Hospital Militar. Nesse caso podia até ter mais sorte que o Albuquerque, sobrevivendo sem uma perna, a direita ou a esquerda, tanto fazia. Mas, sem a perna, ainda jovem, a minha namorada gostaria de mim assim? Bem pior, muito pior, era ficar sem as duas pernas ou morrer mesmo. Porque é que me resignei em ir para ali, para o meio do mato de África, lutar numa guerra sem fim? Afinal, não havia ali brancos que precisassem que os defendêssemos das catanadas dos pretos. Aquilo era um verdadeiro suplício de Sísifo, a uma vitória de hoje sucedia amanhã uma derrota, numa interminável caminhada sangrenta, iniciada, naquela pequena colónia, em 1963, e sem fim à vista.

Tinha-me sentado, já a noite tinha feito adormecer as mulheres e as crianças daquela morança, numa espreguiçadeira igual a muitas que havia por toda a tabanca, nalguns casos mais do que uma por casa. Acordado estava só o More, o homem da casa, soldado do pelotão da milícia, combatente desde a primeira hora, do lado de Portugal. Era assim que ele gostava de dizer:
- Eu sou português, eu não quero governo de PAIGC, eu gosto de General Spínola.
Ele escutava-me pacientemente, como se não tivesse que se levantar antes das seis horas do dia seguinte. Não era um soldado qualquer, tinha sido condecorado pelo Governo de Portugal com uma Cruz de Guerra e era talvez o melhor combatente de Mampatá. Baixo e magro, aliava a sua destreza felina à experiência adquirida desde os primeiros recontros da nossa tropa com o inimigo Eu sabia que, na madrugada seguinte, ambos sairíamos a caminho da tabanca de Nhacobá, integrados numa força equivalente a duas companhias, que tinha sido tomada , no dia anterior, pela nosso exército, onde permaneceríamos por um dia e meio, até sermos substituídos por outras forças. Quem melhor do que ele me poderia fortalecer o ânimo, naquelas horas que precederam a arriscada operação. Dizia-me, na sua islâmica convicção, que tudo iria correr bem, porque eles tinham fugido deixando mortos no terreno e assim demorariam algum tempo até se recomporem da derrota.. Que me fosse deitar no meu quarto, porque no outro dia nem um tiro seria preciso dar.
Posição relativa de Nhacobá-Cumbijã.
Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné

E lá fui apalpando a escuridão por entre carreiros que me levaram até à solidão da minha cela que ficava justamente ao lado da enfermaria. Refrescado o corpo por um minuto debaixo do chuveiro deixei-me cair no catre onde já dormira cerca de trezentas longas noites. Mas, perturbado por pensamentos cheios de mutilações e morte, só por intermitentes momentos tinha passado pelo sono, durante aquela madrugada, quando ouvi, em frente à janela do meu quarto, o barulho que faziam os meus camaradas a levantar munições, granadas e algum armamento especial para aquele dia. Estava na hora de fazer a minha parte. Não podia dar sinais de fraqueza, por isso aprovisionei a minha bolsa de enfermagem, de tudo o que poderia ser precioso em caso de ferimentos graves, onde não poderiam faltar garrotes, soro fisiológico, ampolas hemostáticas, morfina, pensos e os mais diversos comprimidos. Carregaria ainda a minha G3, que um rapazinho da tabanca tinha lubrificado no dia anterior, as cartucheiras e uma caixa com a ração de combate. E aí vou, de medo disfarçado, ao encontro dos meus camaradas. Olhava-os como se fizessem parte da minha família, e eram mesmo, porque desde que o avião nos despejara, em Bissau, largos meses antes, estávamos ali entregues à nossa sorte, no meio do mato, sem que os nossos pais, irmãos, avós, esposas e namoradas pudessem imaginar as agruras dos nossos longos dias. Em camiões militares depressa percorremos aqueles quinze quilómetros, pela estrada recentemente concluída, até à tabanca nova de Cumbidjã, onde dois ou três meses antes se tinha instalado uma nova companhia. Empreendemos então, apeados, o trajeto até Nhacobá, pelo itinerário já desbravado pelas máquinas da engenharia, onde nos esperavam os camaradas de outras companhias que íamos render. Ante os nossos olhos havia um conjunto de casas de planta quadrangular cobertas de capim, abandonadas pelos seus moradores de etnia balanta. Era uma comunidade de gente dedicada à cultura do arroz de bolanha, ao contrário dos fulas, nossos amigos de Mampatá, que cultivavam o arroz de sequeiro. Se o ambiente era, aparentemente, seguro, para tanto contribuía a vastidão de mata capinada e terraplanada, permitindo abranger um extenso horizonte visual. O perigo, por certo, não viria enquanto a noite não chegasse e nos impedisse de vermos o inimigo, porque ele, escondido lá longe, aguardaria, pacientemente, pelo momento propício, como o leão espera pela gazela.

Segundo o plano previamente estabelecido, cada grupo de combate ocupou o seu lugar, no interior de valas, constituindo-se numa formação de quadrado defensivo, ficando no centro o espaldão das peças de artilharia e um abrigo subterrâneo onde o Capitão Marcelino, o More, o Pinheiro das transmissões e eu próprio iríamos passar aquela noite em alerta permanente. O More estava ali como guarda-costas e conselheiro do Capitão. Quem como ele conhecedor daquelas matas desde pequeno, habituado a distinguir os ruídos dos animais da mata, poderia melhor perscrutar os sons da selva e interpreta-los? Por isso estava ali, ao nosso lado e transmitia-nos confiança. Por momentos eu dormitava escudado pelo estado de vigília permanente do More, mas quando me tirava do sono ele dizia-me, em crioulo, quase paternalmente :
- Durme, perigo não tem gora.
As castanhas de cola, que continuamente mascava, mantinham-no arrebitado, como a todos convinha. Vi-o rezar, dentro do abrigo, balbuciando em palavras árabes, orações que sabia de cor. Não pediria a Deus, em absoluto, que o salvasse da morte, antes lhe rogaria que, caso morresse, o acolhesse no paraíso celeste. Pedi eu, igualmente, ao mesmo Deus, que me salvasse da morte, mas já não me importei em pedir-Lhe o paraíso celeste, caso não me quisesse ou pudesse livrar da morte. Na verdade o único paraíso que eu queria era o que eu conhecia bem, a minha família e aquela que eu desejava ardentemente constituir, nada de paraísos metafísicos. Ele era muçulmano, mas ambos sabíamos que o Deus de Moisés era-nos comum e que só Jesus Cristo e Maomé nos separaram nos catecismos que nos formataram na infância.

De repente, um tiro, dois, muitos, logo seguidos de rajadas, interromperam o sono de uns e as evocações e invocações de outros. O ataque tinha começado. Os clarões dos rebentamentos de granadas faziam da noite dia e ouvia-se gritaria indecifrável no meio da trovoada das armas. O Pinheiro, da Vila das Aves, deixou o rádio e saiu do abrigo, indo instalar-se a fazer fogo num sector que lhe pareceu mais desprotegido, sendo secundado pelo More.

No fim, caladas as armas, só por milagre não teríamos um ou mais mortos, e, por certo, muitos feridos, pensava eu. Na verdade só arranhões! Um milagre!

O More, esse fidelíssimo e intrépido soldado do exército português, admirado e protegido por nós, foi fuzilado pelo PAIGC, passado pouco mais de um ano, por ter apostado no lado errado – aquele que lhe parecia o certo.

A razão é sempre a dos vencedores, ávidos de vingança, ciosos, das suas conquistas e dos seus despojos, os do lado certo.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados

HM 241 de Bissau

1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a sexta.


6 - O SOLDADO DOS PÉS INCHADOS

O rapaz apareceu-me tão cedo, na enfermaria, que me tirou da cama. Aquele assunto era mais do que urgente para ter que esperar pela hora oficial da abertura dos serviços. Dentro de poucos minutos ele tinha que estar na formatura, incorporado no seu grupo de combate, ali junto à árvore grande dos passarinhos, bem no centro da tabanca, fardado, com a arma, cartucheiras, cantil e ração de combate. A saída para o mato incutia-lhe algum receio, porque tinha já ouvido o alferes, no dia anterior, à noite, avisar que iriam montar uma emboscada num carreiro, onde era altamente provável a interceção de um grupo inimigo.
Há dias assim, em que mesmo o combatente mais afoito, nas suas elucubrações, tem uma premonição que o adverte para uma desgraça fatal. E foi isso mesmo que o atormentou a noite toda. E como havia ele de se livrar do mato, pelo menos naquele dia que lhe parecia poder ser o último dos seus verdes vinte anos? Tinha que engendrar um plano. E quando acordei, atordoado, com aquelas pancadas repetidas na janela, ao mesmo tempo que chamava por mim como se estivesse com muitas dores, foi só o tempo de calçar os chinelos e abrir-lhe a porta.
- Então, que se passa Sousa, perguntei-lhe?
- Olhe para os meus pés. Acha que eu estou em condições para sair para o mato, assim, com os pés inchados?

O problema parecia-me grave, até porque ele não me ajudava mesmo nada a diagnosticar o mal. Na verdade isso era o que menos lhe interessava. Que não estava em condições de cumprir aquela missão era a única certeza que eu tinha. E era isso, apenas, que interessava ao Sousa. Apressei-me a comunicar ao Alferes que aquele homem não estava operacional, partindo o grupo para a operação, sem ele.

Não me achando capaz de debelar aquele mal, nem lhe conhecendo a origem, encaminhei-o para o médico, colocado na sede do batalhão que, por sua vez, na ausência de meios complementares de diagnóstico o fez evacuar para o Hospital Militar de Bissau. Ao fim de alguns dias regressou o Sousa a Mampatá, já sem inchaço.

Só há meia dúzia de anos o Sousa me contou como me enganou, assim como ao Alferes médico. Naquela noite ele tinha aplicado uma espécie de garrote em cada perna, que desapertou imediatamente antes de me bater à janela, “aflito”.

Não fiquei agastado com o Sousa, nem tinha que ficar. Afinal, na operação em que ele não participou correu tudo bem, mas podia ter corrido mal.

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Uma manada de vacas, cambando o Rio Udunduma... Possivelmente pertencentes a um notável fula da região (Amedalai, por exemplo, que era a tabanca mais perto)... Só com muita relutância os fulas vendiam cabeças de gado à tropa... O gado era, tradicionalmente, um "sinal exterior de riqueza", um símbolo de "status" social...

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quarta.


4 - A VACA

Para além dos sofrimentos da alma, dos perigos sempre no horizonte mental, das agruras do clima, da omnipresença dos incomodativos insetos, havia, ainda, uma alimentação monótona e quase sempre imprópria para seres humanos.

Os alimentos e quase tudo o que consumíamos estava dependente do seu transporte, desde Lisboa até ao local recôndito onde estávamos instalados, com recurso a sucessivas operações de carregamento e descarregamento, por entre navios, barcos mais pequenos, camiões, aviões e outros meios, suportando dias de exposição ao calor e à chuva, chegando ao destino, muitas vezes já afetados no seu estado de conservação ou literalmente adulterados.

Os aquartelamentos implantados junto à margem dos grandes rios ou braços de mar tinham um abastecimento mais regular, visto que recebiam diretamente, por barco, as suas provisões, mas aqueles, como era o caso de Mampatá, que tinham que organizar colunas de reabastecimento, sofriam os constrangimentos quer de eventuais ataques da guerrilha ou rebentamento de minas, quer das indiscritíveis condições de transitabilidade por caminhos que pareciam rios, na estação das chuvas.
Nalguns casos o transporte planeado para certo dia era adiado, porque numa situação de guerra de guerrilha, o espaço não era ocupado apenas por um dos beligerantes, mas sujeito sempre à presença, ainda que esporádica, do inimigo. Havia aquartelamentos implantados bem perto de tabancas habitadas por população que tinha um comportamento duplo, ora connosco ora com o inimigo. Nestes casos, ocorriam operações em que eram roubadas vacas que depois eram abatidas para abastecimento do depósito de géneros da companhia. Não era o nosso caso.

Estávamos em setembro de 1973, em plena estação das chuvas, e talvez por isso a chegada de géneros alimentícios tardava, e parecia que não havia mais nada que comer para além daquela fastidiosa massa com rodelas de chouriça de colorau, ao almoço e ao jantar. Para ser mais exato havia uma variante, arroz em vez de massa. Mas que fazer? O caçador da milícia bem se esforçava, saindo de noite para a zona periférica do quartel onde esperava horas pelo aparecimento de uma gazela ou de um porco do mato. Mas nada! Nem para ele nem para nós.

Um dia, mais uma vez, interpelei o meu Capitão, dizendo-lhe que até na enfermaria se repercutiam as consequências de uma dieta tão monótona promotora de um agravamento generalizado do estado de saúde da rapaziada. Ele, farto de me ouvir, e não tendo solução para um problema que também o trazia preocupado, propôs-me:
- Ó Carvalho, você, que até se dá muito bem com a população, veja se consegue convencê-los a venderem-nos uma vaca!

Pois o desafio era esse, convencê-los a venderem-nos uma vaca, e se não resolvia o problema estrutural, amenizava-o, pelo menos.

Os Fulas, grupo étnico predominante naquela região, no sul da Guiné, tinham muita relutância em vender uma das suas vacas que pastavam capim no lado exterior da cerca de arame farpado que nos protegia dos ataques do inimigo. Na verdade, a nossa perspetiva eivada de etnocentrismo impedia-nos de perceber que, para eles, as vacas constituíam a sua propriedade que geriam de forma muito parcimoniosa.

Devido às altas temperaturas tropicais e à ausência de meios de frio, os fulas matavam, para consumo próprio, uma vaca de cada vez, numa escala rotativa por entre todos os possuidores de cabeças de gado, sendo que toda a carne de um animal era distribuída em doses proporcionais ao número de membros de cada agregado, para consumo num único dia. Para eles, a venda de uma vaca não lhes interessava, porque alterava todo o esquema estabelecido no seio da comunidade. Era então preciso sentarmo-nos à mesa, como se diz em Portugal, para tentarmos convencer os donos daquelas vacas pequenas e magras a venderem-nos uma.

Confiante na minha facilidade de comunicação com a população de Mampatá, primeiro falei com o Régulo, Aliú Baldé, só depois com alguns dos homens grandes da terra. O régulo é assim uma espécie de presidente de Junta, mas com mais autoridade, talvez um misto de presidente de junta e regedor.
Disse-me ele, naquele seu modo seguro mas ponderado, que o assunto iria ter um bom desfecho, mas que era preciso fazer uma reunião com a presença dos proprietários das vacas, cerca de uma dúzia, e nós os dois.

No dia seguinte, pelas três horas da tarde, lá estávamos todos na morança do Régulo Aliú. Ele próprio, com a paciência de Fula, num tom monocórdico, expôs o objeto da reunião, no dialeto local, permitindo-me, mesmo assim, perceber que argumentou em favor da minha pretensão, dando-me, de seguida, a palavra.

Em rigor aquela reunião não decorria à volta de uma mesa, mas simplesmente nos encontrávamos sentados, cada um sobre uma esteira, no chão de terra. E foi assim, naquela roda democrática, que intervim aduzindo argumentos em favor da minha companhia, usando palavras em crioulo mescladas com muitos termos do dialeto fula. Disse-lhes que estávamos ali todos irmanados no mesmo objetivo, que também, inúmeras vezes colaborávamos com a população nas suas atividades agrícolas e que, por isso, agora que tínhamos problemas de saúde pela falta de uma alimentação variada, precisávamos que nos vendessem uma vaca.

Todos quiseram dar a sua opinião, mas eu estava certo que nenhum deles se iria opor. Na verdade apenas havia que se cumprir aquele ritual, e a mim nada custava deixar passar o tempo e as cerimónias próprias daquele ato diplomático.

Os Fulas eram quase todos boas pessoas e eu sentia-me bem em tratar daquele assunto. No dia seguinte uma vaca foi sacrificada, e centena e meia de soldados tiveram uma refeição melhorada.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

1. Lembremos a mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2021:

Meus caros amigos, combatentes.

O que vos mando é mais um capítulo do meu livro, para, caso entendam, o publicarem no nosso blog. Como é bastante volumoso poderá ser publicado de modo fatiado, admitindo até que algumas partes possam ser desinteressantes, logo não publicáveis.

Um abraço vos mando por esta via, com votos de saúde.
Carvalho de Mampatá.



3 - O CANHANGULO

O Samba era um soldado da milícia de Mampatá. Fazia parte do grupo de três ou quatro dezenas de civis armados da povoação, cuja missão principal era a defesa da população civil, perante um eventual ataque do inimigo. Todos eles tinham as suas famílias na localidade e ocupavam-se, paralelamente, dos seus afazeres, quase sempre, na cultura do arroz e do amendoim. Recebiam uma remuneração modesta do Exército Português, por participarem no esforço daquela guerra. Algumas vezes o dinheiro não lhes chegava até ao fim do mês, por isso, era frequente pedirem algum emprestado com a promessa de o devolverem, logo que voltassem a receber.

O Samba era um dos que me batiam à porta sempre que o mês se tornava mais longo que o dinheiro. Quando a importância era de valor muito residual fazia de conta que me esquecia, coisa que lhe agradava.
Da última vez tinha-me pedido setenta pesos, com a promessa de mos devolver, logo que recebesse, no fim desse mesmo mês. Passaram-se dias, semanas e até meses, e o Samba, sempre que o interpelava, respondia-me com aquela ingenuidade de quem acha que os prazos só são de cumprir quando se pode:
- Não pode ainda, eu tem filho doente, mulher está mal, espera mais.

Não tinha eu outro remédio, senão esperar.

Quase a acabar a minha comissão, já convencido que aquela dívida não seria mais cobrável, numa das minhas digressões pela tabanca, passei pela morança do Samba. Conversávamos do meu regresso a Lisboa, do fim da guerra, da revolução do 25 de Abril, abrigados pela sombra da cobertura de capim daquela casinha construída da forma mais primitiva que se possa imaginar, quando uma espingarda de fabrico artesanal, encostada a um canto me despertou a atenção. Pelo seu aspeto, coberta de poeira e um pouco desconchavada, não me pareceu que lhe merecesse muito apreço nem que lhe servisse de alguma coisa.
Para mim, aquele objeto ferrugento teria algum valor, se o mandasse restaurar por mãos habilitadas, quando regressasse às Medas. Mas era preciso que ele mo vendesse, coisa que me parecia muito provável quer pela amizade que havia entre nós quer por já não lhe servir de nada. Tomando-a nas mãos, como a mostrar-lhe o meu interesse por aquela arma inerte, perguntei-lhe se ma queria vender. Admirado pelo meu interesse numa arma que já não fazia fogo, agradado por me fazer feliz, como se me quisesse manifestar gratidão, recusou vender-ma, como se isso manchasse a nossa amizade.
- Se tu quer essa arma, leva ela pro Lisboa, eu não vendo, eu dá para ti.

Não tendo que lha pagar, sempre achei oportuno, declarar-lhe que, no mínimo, considerasse que já não me devia os setenta pesos, amortizados por aquele ato generoso e desprendido de sua parte. Só então, perante o seu ar de espanto, percebi que teria sido melhor não fazer referência à sua dívida, porque ele tinha-se desligado dela e só me pagaria num qualquer dia, se eu precisasse daquele dinheiro e a ele não fizesse falta.

Obrigado, amigo Samba, por me teres ensinado, que existem no mundo, outros paradigmas culturais, para além dos nossos conceitos ou preconceitos judaico-cristãos.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2021:

Meus caros amigos, combatentes.

O que vos mando é mais um capítulo do meu livro, para, caso entendam, o publicarem no nosso blog. Como é bastante volumoso poderá ser publicado de modo fatiado, admitindo até que algumas partes possam ser desinteressantes, logo não publicáveis.

Um abraço vos mando por esta via, com votos de saúde.
Carvalho de Mampatá.




2 - DESPEJADO NA GUINÉ

Aos dezoito meses de tropa fui convocado para me apresentar no Quartel da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, onde me havia de juntar à Companhia de Artilharia n.º 6250 e seguir por avião para o território da Província da Guiné, no dia 27 de junho de 1972. 

Era o pior local aquele que me coube, poderia ser Moçambique, melhor ainda Angola, e muito melhor qualquer um dos outros territórios do Portugal Ultramarino onde a guerrilha não se tinha imposto. Mas era aquele e não outro. Pensei ainda, num ou noutro momento, dar o salto para França, manobra muito mais arriscada agora do que se o tivesse feito antes dois ou três anos. Pode ser que tudo corra bem, cogitava eu, lembrando-me do meu irmão mais velho, o Neca, que já por lá tinha passado quase incólume. É certo que ele me tinha feito alguns “desenhos” sobre a realidade guineense e que não eram muito agradáveis, mas pode, caros leitores, uma reportagem sobre uma realidade ser compreendida inteiramente, sem a presença do corpo e da alma?

Falava-me de patrulhamentos sob temperaturas escaldantes, de milhões de mosquitos e outros insetos incomodativos, de noites inteiras debaixo de chuvas torrenciais, de sede, de péssima alimentação e também de gritos de feridos e outras cenas tétricas. E era ele, segundo me disse mais tarde, e eu próprio vim a perceber, muito contido nas descrições.

Passadas quatro horas, desde a partida do aeroporto de Lisboa, lá estávamos nós a divisar, por entre as nuvens, as coberturas de zinco da maioria das casas da cidade Bissau, o que nos dava por antecipação uma ideia de pobreza da cidade capital. As portas abertas do avião, logo que se imobilizou na pista, deixavam entrar uma aragem muito quente e húmida que nos fazia ensopar o corpo e a farda de abundante suor. Estávamos já em plena época das chuvas que se inicia em maio e acaba em novembro, com temperaturas muito altas de dia e de noite. 

Depois de uma apressada formatura ainda na pista para a apresentação da praxe às autoridades militares, seguiu-se uma deslocação, em camiões, daqueles cento e cinquenta soldados para o Quartel dos Adidos, onde esperaríamos por nova etapa. O Quartel dos Adidos destinava-se precisamente a acomodar tropas em trânsito quer inseridas em unidades inteiras, como era o caso, quer no acolhimento individual de soldados. A estadia era normalmente muito curta e em péssimas condições. No nosso caso ficámos ali deitados no chão de cimento, sobre malas ou roupas, até que, pelo meio da madrugada, fomos acordados aos gritos, porque estavam já no exterior alguns camiões que nos conduziriam ao cais de Bissau, onde embarcaríamos com destino à Ilha de Bolama.

O Zé Manel da Régua não foi só um dos soldados da minha companhia, ouvia-lhe opiniões e leituras das realidades exóticas daquela terra e das suas gentes e gostava da sua autenticidade e honestidade, sobretudo da sua humanidade e do seu espírito generoso e disso tudo resultou uma amizade para toda a vida. 

Hoje julgo que as vivências em situações extremamente difíceis como é a guerra constituem o cadinho ideal para a consolidação da amizade. Tinha ele aquele ar de despreocupado (que ainda mantém) muito marcante, algumas vezes desligado da realidade, quiçá a congeminar um dos seus poemas. Estivesse ele, naquela madrugada de 28 de junho a dormir profundamente, ou às voltas com o conteúdo e a forma de mais uma poesia, a verdade é que ele ficou ali no chão da caserna sem dar conta da nossa partida e só quando estávamos já no meio da boca gigante do rio Geba, a caminho da ilha de Bolama é que ele acordou. Apareceu no dia seguinte, com umas botas emprestadas, por ter perdido as suas, numa boleia de uma avioneta que algum amigo lhe arranjou, com o ar mais despreocupado que se pode imaginar.

Permanecemos nesta ilha durante cerca de trinta dias, em exercícios de aperfeiçoamento operacional. Bolama era de certo modo o espaço ideal para o efeito, porque tinha características de vegetação idênticas às que iríamos encontrar e era território insular e, por isso, sem guerra. Como é sabido, numa ilha é quase impossível a sobrevivência de guerrilha por ausência de apoios externos e caminhos de fuga. 

Mas havia de ser nessa ilha, durante um exercício com arma de lançamento de granadas, que havia de assistir, a poucos metros de distância, à morte de dois soldados, no fatídico dia 10 de julho de 1972 quando contávamos apenas treze dias de presença na Guiné: o Soldado José Mata e o Alferes José Carlos Figueiredo, o primeiro jaz sepultado no cemitério de Valbom – Pinhel, o segundo tem o seu corpo depositado no cemitério de S. Pedro do Sul.

Bolama tinha sido capital da Guiné, entre 1879 e 1941, por isso deslumbrava-me com alguns exemplares do seu património arquitetónico, apesar do seu estado de abandono e ruína, como o antigo Palácio do Governador, o edifício dos Paços do Concelho e as desativadas instalações do Banco Nacional Ultramarino. Nada que me mitigasse a saudade dos que tinha deixado por cá, como da minha namorada com quem, se não fosse o execrável estorvo da guerra, teria já casado, dos meus pais, dos irmãos, da minha tia materna, dos avós, dos amigos, das coisas boas da vida normal sem sobressaltos nem medos. 

E naquela noite, mais triste que qualquer outra que tivesse já vivido, em pleno cemitério de Bolama, à luz de velas, amortalhava os corpos dilacerados daqueles dois soldados, cujas vidas se tinham esvaído nesse dia, num mar de sangue, vertendo irreprimíveis lágrimas por entre soluços de revolta. Como era bem pior a guerra do que dela me contara o meu irmão Neca! E imaginava eu, enquanto, ajudado por outros, depunha nas urnas, com o maior respeito, quase veneração, aqueles camaradas martirizados por uma causa inútil: como seria o sofrimento dos pais destes jovens com promissores projetos de vida, quando lhes baterem à porta os arautos da indizível desgraça dos seus filhos!?

No dia seguinte uma avioneta fez o transporte dos dois combatentes, para Bissau e, passados alguns dias ou poucas semanas, estariam os sinos das suas terras a chamar os amigos e vizinhos para o enterro destes jovens que tinham perdido a vida pela Pátria. Nós sairíamos daquela ilha, integrada no chamado arquipélago dos Bijagós, no dia 28 desse mesmo mês de julho, com destino ao sector onde devíamos substituir outra companhia e aí permanecer durante cerca de vinte e quatro meses.

A viagem teve duas etapas, porquanto saímos de Bolama numa embarcação idêntica à que nos trouxera de Bissau, uma LDG (Lancha de Desembarque Grande) que nos levou por um braço de mar até à povoação de Buba e só ao segundo dia partimos de Buba para Mampatá, o nosso destino, no dia seguinte. Uma LDG servia para transportar tudo: camiões, materiais de qualquer tipo e tropas, e tinha a particularidade de pode acostar em qualquer ponto da costa ou da margem dos rios, mesmo que desprovidos de cais. 

Pois seguimos então do canal de Bolama para a embocadura do rio Grande Buba, na verdade um dos muitos braços de mar muito comuns no território guineense, avistando ambas as margens de floresta cerrada para onde, de vez em quando, os tripulantes da embarcação disparavam alguns tiros aleatoriamente, com o intuito de dissuadirem eventual tentativa de ataque por parte dos guerrilheiros do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). 

Passado um dia e uma noite lá nos aparecia, ao longe, a povoação e aquartelamento de Buba e à medida que nos aproximávamos, mais nítidos se tornavam os contornos dos edifícios e depois as silhuetas dos soldados da companhia aí instalada. Logo depois a vozearia festiva da nossa chegada quando a LDG abriu a sua bocarra para deixar sair camiões, tropas e materiais como chapas de zinco, madeiras serradas, cimento, cerveja, arroz e outros géneros alimentícios. Ainda nem todos tínhamos abandonado a barcaça mas a festa da receção aos periquitos prosseguia com a passagem, na nossa frente, de camiões transportando supostos soldados feridos, numa encenação em que a companhia instalada em Buba pretendia assustar-nos. Não teria transcorrido mais que uma hora, quando nos preparávamos já para o início da segunda etapa, por estrada, num percurso de cerca de vinte e cinco quilómetros, rebentou uma emboscada no itinerário por onde deveríamos passar, e logo depois começaram a chegar soldados dessa companhia de Buba, feridos reais, numa reedição autêntica daquilo que tínhamos visto, anteriormente, a brincar.

Logo ali, ainda antes de chegarmos ao nosso sector, fui solicitado para colaborar na assistência ao soldado Bento que estava entre a vida e a morte. A enfermaria estava instalada dentro de um abrigo subterrâneo e eu auxiliava o furriel enfermeiro da companhia de Buba na tarefa penosa de mantermos vivo aquele jovem que tinha um estilhaço alojado no tórax. Por entre gemidos do ferido e os estrondos das saídas das granadas das nossa peças de artilharia instalava-se, entre nós os recém chegados, a sensação de que tínhamos vindo parar a um dos piores sítios da Guiné. O contacto com os guerrilheiros tinha ocorrido quase no fim da tarde e, em pouco tempo, a escuridão sobreveio e por isso não mais foi possível a evacuação aérea do ferido para o Hospital Militar de Bissau. 

No outro dia, pela manhã, lá apareceu a avioneta que transportou o Bento para o hospital. Debalde porém. O Bento fenecia gradativamente e nem os melhores cirurgiões de Bissau o puderam salvar. Está sepultado em Ferreira das Aves - Concelho de Satão.

No dia seguinte iniciaríamos a nossa jornada de vinte e cinco quilómetros até Mampatá, alquebrados de corpo e de espírito pelos acontecimentos do dia anterior. Nos camiões que nos transportavam seguiam também materiais de construção, munições e víveres. Ao meu lado, sentado sobre um saco de arroz, olhos perscrutantes sobre a mata cerrada, um soldado do recrutamento local, o More. Magro e baixo não parecia nada o guerreiro destemido que vim a conhecer na convivência quotidiana, em Mampatá. Dizia-me o More :
- Não preocupa, aqui perigo não há, se PAIGC atacou ontem, hoje não vem mais. 

Trinta e sete anos mais tarde havia de procurar este soldado da milícia do exército de Portugal, em Mampatá, quando aí voltei para rever o sítio onde penei e as pessoas que me suavizaram o sofrimento. Alguns ainda ali viviam e com eles recordei, com indizível emoção, os vinte e quatro meses mais longos da minha vida. 

Mas o More, aquele soldado condecorado com a Cruz de Guerra, cujas cavaqueiras me adoçavam os dias compridos, já não fazia parte do mundo dos vivos. Pouco tempo depois do fim da guerra, aquela Cruz de Guerra que recebera do governo de Portugal, enaltecedora dos seus feitos, tornou-se, por traição da história e vingança dos fracos, a prova da sua culpa. Pouco depois da independência acordada entre Portugal e o PAIGC, os novos governantes ajustaram contas com todos os que serviram o exército de Portugal, escapando apenas os que fugiram. Tribunais improvisados presididos por desumanos guerrilheiros sedentos de vingança, prendiam e matavam a esmo. O More foi, assim, barbaramente assassinado.

Os meus olhos focavam-se na mata densa procurando entrever qualquer sinal de perigo no espaço marginal à picada, preocupado com a iminência de uma emboscada e pouco interessado na beleza da floresta de onde se ouviam apenas os guinchos dos macacos. Estariam eles a avisar-nos de algum perigo ou, pelo contrário, tendo celebrado um acordo com o inimigo, anunciavam antecipadamente o nosso massacre. Estes e outros pensamentos fluíam da minha imaginação como se houvesse alguma relação lógica entre aquela guincharia e a nossa sorte. 

E passadas algumas horas, talvez quatro, por entre buracos cheios de água, viaturas atascadas na lama e paragens por desconfiança de alguma emboscada ou porque os soldados apeados tivessem assinalado alguma mina, lá chegámos a Mampatá, onde uma ruidosa companhia constituída maioritariamente por açorianos nos recebeu em ébrio delírio. Não era motivo para menos, porque, com a nossa chegada, iniciar-se-ia a sua partida de regresso à paz de suas casas. 

 Mampatá era uma tabanca habitada por cerca de trezentas pessoas e nós ficaríamos ali instalados por entre moranças cobertas de capim, numa perfeita amálgama entre civis e militares, sem qualquer barreira entre as instalações militares e as casa dos civis. De certo modo esta familiaridade amenizava o ambiente e permitia-nos uma convivência quase sempre fraterna. Na verdade será errado chamar civis aos moradores daquela povoação, porquanto, excetuando as crianças e as mulheres, quase todos estavam mobilizados para a guerra: uns incorporados numa unidade militar local – o Pelotão de Caçadores Nativos n.º 68, outros integrados no Pelotão de Milícias e, finalmente, todos os homens tinham uma espingarda do género das que até ainda há pouco tempo equipavam a GNR de Portugal. 

Já havia uma escola básica naquela aldeia, construída por uma companhia anterior mas, como se tornasse insuficiente, fomos incumbidos de erigir uma segunda escola. Os professores eram dois militares que faziam o melhor por aquelas crianças e até pelos adultos que queriam aprender a ler e escrever. Ademais, naquele tempo, muitos soldados do recrutamento metropolitano não tinham a quarta classe e era obrigatório que voltassem à vida civil com esse diploma. 

De certo modo, aquelas duas escolas e os sorrisos das crianças que as frequentavam, pintavam aquele cenário distópico, de cores esperançosas, apesar da fogueira da guerra sempre presente e reavivada de tempos a tempos. Um dia, à noite, quando estava a substituir um camarada professor, corri para o exterior, seguido pelos alunos, procurando abrigo deitados junto ao muro do recreio. Tinha sido o tiroteio provocado por uma emboscada a um pelotão nosso, a um quilómetro ou dois do arame farpado que nos tinha feito sair apressados. A atividade operacional, para além da defesa daquela povoação, era constituída por patrulhamentos, montagem de emboscadas e segurança do itinerário entre Mampatá e Buba. 

Esta era a rotina dos dias mas, ainda em 1972, com o início dos trabalhos da abertura e pavimentação de uma estrada, tudo se alterou. A Engenharia Militar precisava de constante proteção enquanto as máquinas de terraplanagem revolviam o solo. Esse trabalho de proteção era absolutamente desgastante porque obrigava a uma presença constante durante o dia e da noite para se impedir os ataques aos trabalhadores e a montagem de minas.

Se alguém fazia anos havia sempre cerveja e algum vinho a regar uma refeição melhorada, com a presença dos amigos mais chegados. Normalmente os furriéis comemoravam em conjunto com os alferes e vice-versa. Os cabos e soldados festejavam normalmente por secção. Nalguns casos, os militares de especialidades com poucos componentes, como os mecânicos, os enfermeiros e os transmissões juntavam-se nos festejos de aniversário em função da respetiva especialidade. 

No dia 17 de fevereiro de 1973 coube-me comemorar o meu próprio vigésimo terceiro aniversário, na companhia do capitão, dos alferes e dos furriéis, e não faltou um cabrito assado no forno com batatas, nem faltou cerveja e vinho naquela noite, cuja despesa era assumida na totalidade pelo aniversariante, porque era assim que estava estabelecido. Os mais poupados, aqueles a quem nós apelidávamos de forretas, naquele dia bebiam muito mais do que o habitual. 

Nessa noite demorei muito tempo até chegar ao meu quarto. Peguei no sabonete e reguei-me durante algum tempo debaixo do chuveiro, e lembro-me de o ter segurado nos dentes enquanto me refrescava. Cheguei ao quarto e deixei-me cair sobre a cama. Só me lembro de acordar aflito, já dia, com o barulho de um mango a cair sobre a cobertura de chapa.

Passados três dias coube-me sair para o mato com um pelotão. Não era frequente sair, o meu trabalho estava diariamente ligado à enfermaria que dava assistência a militares e à população civil. Talvez estivesse algum cabo enfermeiro de férias e cumulativamente um outro doente. Certo é que, pelas seis da manhã, como era comum nas operações de segurança aos trabalhos da construção da estrada, lá estou eu com um grupo de combate a caminho da frente da estrada, logo a seguir à tabanca de Colibuia. 

A missão era percorrer cerca de um quilómetro até nos internarmos na orla da mata onde nos deveríamos manter em alerta até às catorze horas, quando os trabalhos eram interrompidos para prosseguimento no dia seguinte. Quando já estávamos a chegar à orla da floresta rebentou um grande “fogachal” proveniente da nossa frente, de onde não divisávamos o inimigo. 

Quem já esteve debaixo de fogo há de perceber o que sentíamos, naquele ambiente de berros, de pó que se levanta, de ramos traçados por projeteis a cair sobre nós, da sensação de que aquilo nunca mais acaba, de que é impossível não haver mortos ou feridos graves, de que a todo o momento alguma bala ou estilhaço nos vai furar. Do desespero evoluímos para a certeza de que, se não fizermos fogo, se não reagirmos, podemos até ser apanhados à mão, como se diz em linguagem de guerra. Havia mais tropa ali por perto, pelo que chegariam reforços certamente. À minha esquerda, o António Carola do Nascimento, apontador do morteiro, grita-me por ajuda porque estava ferido. Olhei-o e perguntei-lhe onde era o buraco. Que era nos tomates, respondeu-me. Disse-lhe eu, num rasgo que hoje me causa admiração: 

- Nascimento, se falas é porque não estás muito mal, faz fogo com o morteiro senão morremos aqui todos

Respondeu-me ele como se esquecesse milagrosamente do seu ferimento:

 - Mande-me para cá granadas que eu mando-as para aqueles gajos

Assim é que era falar, pensei eu. Rolava sobre mim mesmo, bem colado ao chão, e trazia mais duas granadas dos camaradas do meu lado direito que o Nascimento se encarregava de remeter por via aérea. Já o fogo do inimigo parecia estar a diminuir, quando um dos soldados do grupo que acorreu em nosso auxílio se acerca de mim e, numa atitude que nunca esquecerei, carrega-me com as mãos sobre os ombros e preocupado intima-me:

 - Deita-te tu estás ferido

Dava ele importância ao sangue que me escorria do dedo mínimo da mão esquerda e me tingia todo o antebraço, mas que ele julgava provir do tórax. E de seguida, de pé, atrás de mim, com um destemor singular, aquele soldado do Pelotão de Nativos n.º 68, Ussumane Buaró, islâmico, disparou alguns dilagramas com a sua arma, contribuindo de forma que julgo decisiva para a fuga do inimigo.

Em 2009, quando fui à Guiné, numa caravana solidária, transportando alguns bens preciosos para o povo de Mampatá, procurei o Ussumane Buaró, dele só já pude ver a campa onde seus restos mortais foram sepultados no redor da tabanca. Ao seu filho mais velho deixei uma recordação num modesto gesto de homenagem e gratidão a alguém que se preocupou com a minha sobrevivência. No dia 16 de março de 1973, saiu, pelas seis horas da manhã, um grupo de combate da minha companhia, com destino à frente de trabalhos das obras de abertura e pavimentação da estrada entre Mampatá e Nhacobá. A cerca de um quilómetro o soldado Albuquerque pisou uma mina antipessoal e com o estampido uma nuvem de pó visível de longe, fazia crer o pior – a perda de uma perna, na melhor hipótese. Transportado de helicóptero para o Hospital de Bissau e operado, morreu passados cinco dias. Está sepultado no cemitério de Barcelos.

Um poema de homenagem ao Albuquerque – Autor: Josema, pseudónimo do meu amigo e camarada da companhia José Manuel Lopes:

Puseste o pé em sítio errado
um som violento o pó levantado
escondeu por algum tempo
o teu corpo violentado

sem pensar em outras minas
correram em teu socorro
o sangue fugia do teu corpo
e o “hélio” não chegava

tua cara ainda de criança
ficava cada vez mais pálida
tudo num silêncio angustiado

apesar dos teus vinte anos
a vida fugiu-te em golfadas
porquê tanto sangue derramado?


Concluída a primeira estrada foi preciso construir uma outra, ligando o nosso destacamento ao importante quartel de Buba, ficando quase toda a atividade operacional condicionada pelo lema spinolista: "Por Uma Guiné Melhor". O General Spínola tomou posse como Governador e Comandante Chefe da Província da Guiné em 1968, e na tentativa de subtrair a população do controlo dos guerrilheiros organizou os chamados congressos do povo que eram assembleias consultivas constituídas por régulos, chefes religiosos e pessoas com ascendência social relevante que funcionavam como câmaras de eco das aspirações da população. Ao mesmo tempo desenvolveu um grande esforço no domínio da construção de estradas e de escolas. 

No plano estritamente militar ele implantou um programa de africanização da guerra, recrutando cada vez mais tropas naturais do território. Este plano pareceu inicialmente dar alguns bons resultados, mas o PAIGC tinha cada vez mais apoio internacional e o seu apetrechamento, em 1973, com lançadores de misseis térmicos, capazes de derrubar os nossos aviões mais modernos, tornou a guerra insolúvel. E a declaração unilateral de independência por parte do PAIGC, em 24 de setembro de 1973, foi o corolário dessa mudança de curso da guerra, quando os nossos aviões começaram a ser derrubados.

Naquele primeiro semestre de 1973 a situação militar piorava cada vez mais, e o abandono do quartel de Guileje bem como o massacre a que foram sujeitas as nossas tropas em Gadamael, no Sul e em Guidage, no Norte, resultavam sobretudo da grande dificuldade que os pilotos da Força Aérea Portuguesa sentiam agora, face ao uso dos novos misseis, pelo PAIG. Esse constrangimento repercutia-se não só num desempenho menos eficiente, por parte da Força Aérea, na proteção das nossa tropas, como também, na evacuação de feridos e no transporte aéreo de víveres, tabaco e correio. Este era absolutamente fundamental para o estado psicológico da maioria dos soldados e a falta de correspondência escrita, durante muitos dias, provocava desânimo. 

A carta ou o chamado aerograma, que dispensava selo, eram os únicos meios de comunicação disponíveis, naquelas circunstâncias. Havia ainda o telegrama para o envio ou receção de mensagens curtas, como a que recebi em meados do mês de outubro informando-me do falecimento do meu avô, mas que eu considerei ser a minha avó porque, erradamente, alguém trocou o acento circunflexo por um acento agudo e, por isso, andei cerca de um mês a pensar que tinha perdido a avó e não o avô. Em novembro Spínola, descrente quanto à possibilidade de se ganhar a guerra e impedido pelo governo de Lisboa de negociar um plano de autonomia para a província, abandonou o seu posto, sendo substituído pelo General Bettencourt Rodrigues. Com o início da estação das chuvas a situação estabilizou um pouco, mas a atividade militar iria recrudescer em 1974, fazendo aumentar o número de feridos e mortos e acrescer inúteis sacrifícios a todos, o que me angustiava cada vez mais.

Houve dois grandes momentos de eufórica alegria, durante a comissão: a notícia da revolução do 25 de Abril e o dia do regresso a Portugal em 24 de agosto de 1974. Naquela manhã, aparentemente igual a tantas outras, depois de ter já cumprido a minha rotina na assistência aos doentes da população civil, passando pelo bar para tomar alguma bebida fresca, vi junto ao posto de transmissões alguns camaradas que dialogavam entre si, com gestos e expressões de espanto e notável felicidade. 

Que caso seria aquele? Não era nada de trivial. Ao aproximar-me logo me envolvi naquela atmosfera de esperança, de quase certeza quanto ao fim daquele calvário. Não haveria retrocesso, Spínola estava por trás daquilo, agora era mesmo a sério, não era um arremedo, como tinha sido o golpe do dia 16 do mês anterior, desta vez era mesmo o derrube do regime, uma mudança radical de política, negociações imediatas com o PAIGC, e fim imediato da guerra com regresso antecipado a Lisboa. 

Não foi bem assim, porque as hostilidades ainda prosseguiram por mais algumas semanas embora em decréscimo e a nossa partida não foi antecipada. Mas a convicção de que tudo estava a acabar era geral e, por isso, quando a noite chegou, nesse mesmo dia, com a confirmação de notícias mais consistentes sobre o sucesso definitivo da revolução, em Mampatá, perante o espanto e algum entusiasmo da população, os soldados extrovertiam toda a sua alegria com algum álcool à mistura. E assim estaria a acontecer por todos os aquartelamentos da Guiné. 

Estariam os guerrilheiros do PAIGC tão felizes quanto nós? Não sei. Os eventos inimagináveis, um mês antes, surpreendiam-nos a cada semana: 14 de maio teve lugar uma reunião entre representantes do MFA e oficiais e sargentos das unidades do sector da qual resultou a certeza inequívoca de que a guerra era para terminar; nos primeiros dias de junho recebemos em Mampatá um Comissário Político do PAIGC que reuniu com a população e com os militares guineenses integrados no Exército Português; no dia 26 de junho cerca de uma centena de guerrilheiros do PAIGC, inimigos de ontem amigos agora, entraram na povoação e trocaram connosco crachás e outros adereços. Estava assim garantido o estabelecimento definitivo da paz. 

Depois foi só a paciência de esperarmos mais dois meses, já sem a pressão da guerra, mas com o peso dos dias vagarosos que pareciam não mais acabar. No dia 24 de agosto, com aqueles 150 camaradas dentro do Boeing 707, parecia que nunca mais levantávamos voo ao encontro de quem tínhamos por cá deixado, mas quando, finalmente, a força dos reatores nos despregaram do chão, a alegria sem peias brotou exaltada do coração de todos nós. Perdiam-se gradativamente do alcance dos nossos olhos as ruas de Bissau e a floresta frondosa envolvente, eram já os grandes rios parecidos com regatos e depois só nuvens que tudo encobriam menos os dias amargos que deixávamos e até, porque não dizê-lo, também uma imperecível marca de convivência com culturas diferentes que nos proporcionaram o conhecimento de outras religiões, outras culturas e uma visão plural da humanidade.

Tinha assistido ao fim de um conflito evitável e sem qualquer proveito para ambas as partes, no qual perderam a vida, nos três territórios de Angola, Guiné e Moçambique 8831 jovens portugueses, num total de 800.000 militares mobilizados durante 13 anos. E aos que propagam a teoria de que a guerra de África não era uma causa perdida e que até já estava quase ganha responde o silêncio de 98 jovens mortos, só na Guiné, no período decorrente entre 1 de Janeiro e 25 de Abril de 1974. 

E são estes números apenas os das nossas hostes, mas não são, nem nunca a minha sensibilidade o aceitaria, desprezíveis os milhares de mortos, do lado dos que combateram pela independência, entre militares e civis. Caberá aqui evocar uma reflexão de Pirro, rei de Epiro, depois de sair vitorioso de vários confrontos com exércitos da península itálica, no decurso de século terceiro a.C. nos quais perdeu, ainda assim, algumas dezenas de milhar de soldados: Se formos mais uma vez vitoriosos, numa batalha contra os romanos, perdendo idêntico número de soldados, ficaremos arruinados. Julgo que terá sido esse pensamento do rei de Epiro, reportado pelo historiador grego Plutarco, que norteou a decisão histórica do General Spínola, quando fez saber ao governo de Lisboa da sua indisponibilidade para prosseguir numa guerra de vitórias pírricas.

As guerras deverão ser sempre o último recurso das nações civilizadas, nunca uma opção estratégica. Dirão outros que aquele era um território português e como tal tinha que ser defendido. A esses asseverarei que os estados têm como dever prioritário não propriamente a defesa do território, mas a defesa de todas as pessoas que nele habitam, assegurando que todos tenham direito à satisfação das suas necessidade básicas, à liberdade, à democracia e à justiça.
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 12 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...