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sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21796: Os nossos enfermeiros (13): em louvor do ex-fur mil enf Urbano Silva e do ex-1º cabo aux enf Silva (Jorge Fontinha, ex-fur mil inf, CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)


Guiné > Região de Cacheu > Teixeira Pinto > CCAÇ 2791 (1970/72) > O fur mil Jorge Fontinha a ser assistido pelo 1º cabo aux enf Silva, no decurso de uma operação na zona de 


Foto (e legenda): © Jorge Fontinha (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Esta história do Jorge Fontinha, publicada pelo nosso coeditor Carlos Vinhal, há quase 10 anos atrás (*), merece ser "desenterrada" e reproduzida na série "Os nossos enfermeiros"... 

Estamos justamente "com a mão na massa", a falar dos serviços de saúde militares durante a guerra, e da crónica  escassez de recursos humanos e técnicos que foram superados, em grande parte, pela grande abnegação, coragem e altruismo dos nossos médicos e enfermeiros (**). 

Nesta altura, no CTIG, em 1970/72, parece que a regra geral era 1 médico por batalhão, e não 1 médico por companhia, como previa originalmente o dispositivo sanitário.


Os nossos enfermeiros

por Jorge Fontinha


[Foto ao lado: Jorge Fontinha, foi fur mil inf,  da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72; é membro da nossa Tabanca Grande desde 2008 (***); tem  mais de três dezenas de referências no nosso blogue]


A CCAÇ 2791, "Força",  foi uma Companhia, cujos Especialistas e não só os Operacionais, foram de verdadeira excelência.

Hoje vou falar da equipa de enfermagem cuja competência e dedicação não tiveram limites. Superiormente liderada pelo Furriel Miliciano Urbano Silva, os Cabos e maqueiros divididos pelos 4 Grupos de Combate, foram uma equipa de respeito.

O Urbano era incomparável, tanto na sua Especialidade como ser humano, voluntarioso, competente e rigoroso. Ninguém escapava às suas seringas nem aos seus comprimidos. Protagonizámos, os dois, muitos episódios, alguns deles já nem sequer os consigo lembrar. Há todavia um que jamais vou esquecer.

Quando a Companhia se reúne em Teixeira Pinto com o nosso 4.º Grupo, alguns dias passados, há uma operação programada para o Balangarez. Na véspera tive uma entorse no pé direito e,  como nunca me havia baldado em circunstância alguma, fui ter com o Urbano para que ele me desse a sua opinião. 

Depois de revisto, aconselhou-me a consultar o médico do Batalhão [,  
BCaç 2928], que me aconselhou a descansar 3 a 4 dias, passando-me uma baixa para 3 dias. 

Como era da minha obrigação, dei conhecimento ao Alferes Gaspar e dirigi-me ao gabinete do Capitão Mamede, informando-o da situação. Aconteceu o impensável!

O Capitão Mamede acusou-me de caras de ser oportunista e de estar a forjar a  situação. Nunca havia sido tratado, por um superior hierárquico, da forma que estava a ser e com a indignação, disse que não ia à operação, bati com a porta e fui para o bar meter uns gins com água tónica pelas goelas abaixo.

Foi quando apareceu o Urbano. Não o enfermeiro, mas o ser humano que todos nós na Companhia lhe reconhecíamos. Agarrou-me por um braço e convidou-me a ir até à enfermaria pois queria falar comigo. Aí, mandou-me descalçar a bota, fez o seu próprio exame, mexeu, remexeu, massajou durante alguns minutos, com milagrosas pomadas, ligou-me o pé com todo o vigor e obrigou-me a engolir um comprimido, dando-me outro, para ser tomado ao levantar.

Fur mil enf Urbano Silva
Perguntei-lhe para que era aquilo tudo, se já tinha decidido não ir à operação. Aí,
sem que nada o fizesse esperar, faz uma pirueta no ar, dá dois ou três passos de dança e diz três ou quatro palhaçadas, provocando um ambiente hilariante e de boa disposição. Foi a táctica dele. 

- Vais à operação ou não? 

- Vou, mas levo a dispensa no bolso. Se tiver de ser evacuado, alguém a vai ver!

Hoje digo: obrigado,  Urbano!

No decorrer da operação senti alguma dor que estoicamente fui ignorando. A dada altura e já no período de emboscada, para passar a noite, comecei a ter tremuras e febre, tendo passado um mau bocado. 

Valeu-me na altura a minha companheira de emboscada, a inseparável garrafa de whisky, duas goladas e a colaboração do 1º Cabo Auxiliar Enfermeiro Silva, que com o restante me massajou, pondo-me a transpirar abundantemente. Ao raiar do dia, preparamo-nos para regressar à estrada e sermos recolhidos para voltarmos para Teixeira Pinto.

A febre e as tremuras passaram, o pé ainda bastante dorido, mas felizmente com evidentes melhorias ajudaram o resto.

Assisti mais assiduamente às intervenções do Cabo Enf Silva. Foi ele que quase em simultâneo assistiu ao acidente que mutilou a perna do Nunes, nosso primeiro ferido de toda a Companhia. Foi também ele que assistiu em primeira mão ao acidente que provocou o primeiro morto do Grupo de Combate e da Companhia, tendo tido a sorte, ele e todos nós, de seguir na viatura que ia à nossa frente e era comandada pelo Furriel Chaves.

Curiosamente, o Chaves esteve também ele ligado ao episódio seguinte, quando em Mato Dingal, o Cabo Enf Silva, foi chamado de urgência á Tabanca para ajudar a um parto difícil. Coincidiu com a hora de almoço mas o Silva interrompeu, veio avisar-nos a nós e preparou-se para ir. O Chaves que era homem para grandes rasgos, também interrompeu o almoço e igualmente,”meteu as mãos nas luvas” e também foi.

Entretanto eu e o Alferes Gaspar continuamos a almoçar, comer a sobremesa e continuamos à mesa, com os respectivos digestivos, aguardando a chegada de ambos. Assim, o Chaves mal se livra das luvas e se lava, vem para a mesa, acabar de almoçar. 

Quem estava de frente para a porta de entrada era o Gaspar, que de imediato começa a vomitar, provocando-me a mim próprio, igual reacção. O Chaves ao lavar-se, esqueceu-se de mudar a camisa, que vinha ensanguentada e com vestígios da placenta. Resta dizer que o desempenho do Silva, foi exemplar.

O Cabo Enfermeiro Silva era adorado pelo pessoal daquela Tabanca pois tinha sempre uma seringa mágica que curava toda a gente!…

Aos meus bons amigos,  ex-Furriel Urbano e ao ex-1º Cabo Silva, o meu abraço eterno.

Foi apenas mais uma Estória verdadeira, vivida na Guiné.

Aquele abraço para toda a Tertúlia.
Jorge Fontinha

2. Ficha de unidade > Companhia de Caçadores nº 2791

Identificação: CCaç 2791
Unidade Mob: RI 16 - Évora
Cmdt: Cap Mil Art Mamede José de Sousa | Cap Inf Joaquim Humberto Rodrigues Teixeira Branco | Cap Inf Manuel Estêvão Martinho da Silva Rolão | Cap Inf Joaquim Humberto Rodrigues Teixeira Branco
Divisa: "Força"
Partida: Embarque em 19Set70; desembarque em 020ut70 | Regresso: Embarque em 28Set72

Síntese da Actividade Operacional


Após realização da IAO, de 50ut70 a 290ut70, no CMl, em Cumeré, seguiu, em 300ut70, para Bula, a fim de efectuar o treino operacional e sobreposição com a CCav 2487, sob orientação do BCav 2868. 

A partir de  1Dez70, foi integrada no dispositivo e manobra do BCaç 2928, como subunidade de intervenção e reserva do sector, com vista à realização de acções nas regiões de Choquemone, Ponta Matar, Bofe e outras e ainda de reconhecimentos,
patrulhamentos, emboscadas e escoltas na zona de acção do batalhão.

Após ter destacado, temporariamente, um pelotão para Teixeira Pinto, em
reforço do BCaç 2905, outro para Bissum, em 2Mar71, em reforço da CCaç 2781,
e ainda outro para Pache, em 19Mar71, foi deslocada para o subsector de Binar,
em 13Mar7l.

Em 25Mai71, mantendo um pelotão em Bissum, foi transferida para
Teixeira Pinto, reagrupando então o pelotão ali destacado do antecedente, a fim
de colaborar na segurança e protecção dos trabalhos da estrada Teixeira Pinto-
-Cacheu, ficando na dependência do CAOP 1 e depois do BCaç 2905. 

De 30Jul7l a 19Ag071, entretanto, esteve atribuída temporariamente ao COMBIS,
deslocando-se no período para Bissau e regressando em seguida a Teixeira
Pinto, com excepção de um pelotão que só recolheu em 30Ag071.

Em 250ut71, mantendo o pelotão destacado em Bissum, foi deslocada para
a base temporária de Capó, para protecção dos trabalhos da estrada Teixeira
Pinto-Cacheu até 06Dez71.

Após a recolha do pelotão destacado em Bissum em 2Nov71, para Bula e seu deslocamento para Ponta Augusto Barros em 16Nov71, a subunidade foi deslocada para Ponta Augusto Barros, com pelotões destacados em João Landim e Mato Dingal, substituindo nos respectivos reordenamentos a CCaç 2790 e assumindo a responsabilidade do subsector em 8Dez71, na dependência do BCaç 2928.

Em 30Jun72, foi rendida no subsector de Ponta Augusto Barros pela CCaç 3328, por troca, sendo colocada em Bula como subunidade de intervenção e reserva do BCaç 2928 e depois do BCav 8320/72, destacando um pelotão para Nhamate, em 30Jul72 e sendo utilizado em acções de emboscadas e patrulhamentos de contrapenetração.

Em 19Set72, foi rendida no subsector de Bula pela 3ª Comp/BCav 8320/ 72 e recolheu seguidamente a Bissau para o embarque de regresso.

Observações
Tem História da Unidade (Caixa n." 89 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas de unidade: Tomo II - Guiné - (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002), pp. 395/396.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12167: Blogoterapia (238): Descansa em paz, Luís Faria (1948-2013), meu amigo, meu camarada (António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas, CCAÇ 2790, Bula, 1970/72)

1. Comentário do António Matos (ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72) (*):


À laia de discurso fúnebre e para os amigos e conhecidos comuns, deixo aqui a minha homenagem póstuma ao Luis Faria que a emoção não permitiu verbalizá-la in loco.

"Luís,

A bombástica e surpreendente notícia do teu falecimento tolhe-me o discernimento para articular as palavras que gostava de te dirigir aqui e agora.

Contudo, recordo que bastos foram os bons 
e os menos bons momentos que passaram a constituir o acervo da nossa amizade.

Foram várias as fases das nossas vidas que, ao se cruzarem, alicerçaram essa amizade e a tornaram muito sincera, verdadeira, fraterna e sempre condimentada com o sal das nossas diferenças comportamentais, os feitios e a postura face às agruras e felicidades do momento.

Recordo-te desde os tempos liceais em Guimarães onde, um dia, te "contratei" para fazeres parte dum número musical numa récita de finalistas atendendo à tua mestria no domínio da viola...


Posteriormente, viemos a encontrar-nos aquando dos nossos tempos militares...

Apresentámos-nos ambos nas Caldas da Rainha mas logo nos separámos com o meu ingresso em Mafra...

Com os preparativos da ida para o ultramar, fui para os Açores de onde embarquei.

Um dia, na viagem a bordo do Carvalho Araújo, alto mar, descubro que seguias também nessa odisseia ...




Uma vez na Guiné, fomos para locais diferentes; tu para Teixeira Pinto e eu para Bula mas em 1971/72, voltamos encontrar-nos fazendo parte da equipa de montagem (e posterior desmontagem) daquele imenso campo de minas ao longo de cerca de 10 kms ...

Foram tempos terríveis mas que executámos com a perícia, a garra e a sorte que só a frescura dos nossos 20 anos permitiu ...

Regressados e com arraiais montados na zona de Lisboa, cada um a seu tempo casou, apareceram os filhos, e partilhámos vidas ...

Integrámos os nossos familiares no núcleo duro do nosso habitat ...

Conheci os teus pais, os teus sogros, conheço os teus irmãos, cunhados, sobrinhos ...Apadrinhei o teu filho ...

O tempo passava ...

Mantivemos sempre o contacto quer pessoal quer através das redes sociais quer mesmo através das intervenções que ambos fazíamos no blog da Guiné ...

Hoje, sem aviso prévio, de surpresa, com a saudade a instalar-se em todos nós, foste embora ...

Descansa em paz, Luis Faria !" (**)

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12157: In Memoriam (162): Faleceu ontem, dia 15, o Luís Sampaio Faria, que foi Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72; tinha 65 anos (1948/2013), era natural de Felgueiras, vivia em Paranhos, Porto. O funeral é 5ª feira, dia 17, pelas 15h00, na igreja de Paranhos (Magalhães Ribeiro)

(**) Último poste da série >  14 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12149: Blogoterapia (236): Sê feliz, Cátia (Paulo Santiago)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12157: In Memoriam (162): Faleceu ontem, dia 15, o Luís Sampaio Faria, que foi Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72; tinha 65 anos (1948/2013), era natural de Felgueiras, vivia em Paranhos, Porto. O funeral é 5ª feira, dia 17, pelas 15h00, na igreja de Paranhos (Magalhães Ribeiro)

1. Camaradas: 

Acabei de ver há pouco, no meu e-mail, uma mensagem proveniente do António Matos [ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72] dizendo simplesmente “Eduardo, publica por favor, urgente, a notícia do o falecimento do Luís Sampaio Faria [, foto à esquerda] . Obrigado.” 


Ainda estava a acabar de “digerir” esta tristíssima e chocante notícia, e procurava algum modo de a confirmar, não porque duvide da palavra do Matos, como é óbvio. mas porque não consegui reagir de imediato ao desgosto, quando pelas 00h50, via facebook, vejo surgior uma mensgaem desta vez do Jorge Fontinha: “Olá, Magalhães Ribeiro. Venho dar-te uma notícia das últimas horas. Morreu o meu grande amigo e camarada da CCAÇ 2791, o Luís Faria. Julgo que não ficaste contente mas agradecido por te informar. Gostaria que, no Blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné, saísse a notícia. Não sei pormenores, liguei à filha Daniela e só me disse que o funeral seria quinta feira, na zona de Paranhos (cidade do Porto). Amanhã saberei mais qualquer coisa.”

INFORMAÇÃO ÚLTIMA HORA (por António Matos): 

1º - o corpo será levado para a Igreja da Paranhos ( Porto ) hoje por volta das 14 horas / 14h30.
2º - o funeral será amanhã, dia 17, às 15 horas no cemitério de Paranhos


2. O nosso camarada Luís Sampaio Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72) era um dos mais produtivos contadores da sua história de vida na Guiné. Tem cerca de 80 referências no nosso blogue. O seu último poste foi o P12053, relativo ao 60.º episódio da sua formidável série: VIAGEM À VOLTA DAS MINHAS MEMÓRIAS (60) 1 - Nos “trilhos da guerra”.

Entrou para o nosso blogue em 31/10/2008: vd. poste P3388. As suas primeiras palavras foram as seguintes:

"Luis Graça:  Cumprimentos e parabéns pelo Blogue que de há uns tempos para cá tenho visitado com agrado. Quem me deu a dica foi o Jorge Fontinha, meu grande amigo e camarada de armas na mesma CCAÇ 2791 (FORÇA). Vi também que o Júlio César, meu amigo, também camarada de armas e conterrâneo, faz parte da Tabanca. Óptimo

Sou : Luis Miguel C Sampaio Faria, Furriel Miliciano, CCaç 2791, Mobilizado na Guiné, de Outubro 1970 a Setembro 1972 (embarque a 19 de Setembro no Carvalho Araújo)"(...)


No 1º convívio da CCAÇ 2791, em setembro de 2002, o reencontro dos ex-fur mil Jorge Fontinha (à esquerda) e Luís Faria (à direita) com o ex-soldado Mário Lobo (ao centro). Foto do Jorge Fonbtinha.
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Setembro de 1970 >  Escala do T/T Carvalho Araújo, a caminho da Guiné No cais, com o Monte Cara ao fundo....
Guiné > Bolama > CCAÇ 2791 (1970/72) > Outubro de 1970 > Luís Faria, à civil, na marginal... Em Bolama ia-se fazer a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional)...
Guiné > Bula > CCAÇ 2791 (1970/72) > O operacional, na Ponta Matar

Fotos: © Luís Faria (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


3. Em nome do Luís Graça, editores, colaboradores e demais camaradas desta Tertúlia, resta-nos por agora enviar à família enlutada as nossas mais sentidas condolências e dizer que, com a súbita falta deste nosso Amigo, sentimos esta nossa família muito mais pobre, bem como o sentirão os Camaradas da sua CCAÇ 2791. Que Deus o guarde no seu infinito e misericordioso reino!


Eduardo Magalhães Ribeiro

PS - Natural de Felgueiras, o Luís Sampaio Faria nasceu em 14 de abril de 1948. Completou  este ano os 65.
____________
Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:


terça-feira, 17 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12053: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (60): Nos trilhos da guerra

 


1. Em mensagem do dia 14 de Setembro de 2013, o nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72) enviou-nos o 60.º episódio da sua série Viagem à volta das minhas memórias.




VIAGEM À VOLTA DAS MINHAS MEMÓRIAS (60) 

1 - Nos “trilhos da guerra”

Introdução

Vinte e cinco longos meses passados na Guiné, em defesa da Bandeira Portuguesa, tiveram a sua origem em todo um trajecto preparatório que se espraiou por diversas regiões do, à altura, ”Portugal do Minho a Timor”.
No meu caso metropolitanas, essas andanças em aprendizagens diversas, que se estenderam por uns quinze meses, levaram-me por ordem cronológica, a Caldas da Rainha, a Lamego, a Tancos, a Évora e a Oeiras (Espargal) de onde saímos uma madrugada, para embarcar no Carvalho Araújo, que nos levaria num “cruzeiro” em mares por vezes alterosos, excursando por duas ilhas nos Açores e por Cabo Verde até nos largar no destino: Guiné

 “Viagem à volta das minhas memórias” ficará com certeza menos incompleta se nela forem incorporadas lembranças deste período preparatório, também ele longo e recheado de momentos e peripécias que me ficaram retidos em memória, e que por vezes relembro com saudade e prazer.

Com um filho já a prestar serviço militar na Guiné, na hora da minha ida à inspecção, minha mãe dizia que a guerra não chegaria até mim, ao que meu Pai retorquia com um “vamos a ver…,vamos a ver?!”.
Filho “caçula” de cinco, quatro rapazes e uma rapariga, quatro anos me separavam do irmão seguinte, que estava mobilizado na Guiné (Alf - 3ª CCmds) e dez da irmã, a mais velha.

Com o filho ainda na Guiné, meus Pais viram o mais velho dos rapazes avançar para Angola (Alf -médico), ao que me parece saber em opção à faina do bacalhau que lhe teria sido proposta.
Entrementes, se não erro, o filho do meio, Alf Eng fica-se por Beirolas (material de guerra?).

Depois… bem, depois as dúvidas de meu Pai confirmaram-se e arranquei eu para a Guiné estando ainda meu irmão em Angola, a par do outro na Metrópole. Só dos Açores dei conhecimento por Bilhete Postal, o que quererá dizer que já estaria n Guiné quando meus Pais souberam! Achei, talvez mal, melhor assim. Explicarei posteriormente!

Assim, de 66 a 72 tiveram quatro filhos a prestar Serviço Militar, sendo que, em permanência e com sobreposições temporárias, um de três filhos mobilizado no Ultramar. Se fosse Enfermeira se calha nem a filha teria escapado! Não há dúvidas que, como tantos outros, a minha família deu um bom contributo para o esforço de guerra na defesa de um Hino e de uma Bandeira, símbolos que se sentiam.

Tendo “chumbado” a Matemática e Física no sétimo ano e como “manobra de recurso“ não ter corrido nada bem a prova de desenho no Instituto Engª Porto (?) (actual ISEP), não me foi possível ingressar na Medicina ou na Engenharia Técnica. Ponderada a situação, com possibilidade de adiamento de incorporação e já a trabalhar, optei por me voluntariar para a tarefa militar, já que a guerra parecia estar para durar. Ganharia tempo e como militar passaria a poder ter mais uma época de exames (mais facilitados?), creio que em Janeiro, o que acabou por me não ser possibilitado.

É facto que, se tudo tivesse corrido normalmente, minha Mãe acabaria por ter tido razão e eu não teria talvez ido para aquela guerra, já que estaria a cursar. Assim, o meu destino imediato: 

CALDAS DA RAINHA - RI 5
Chegado antes da hora estipulada, um magote de Mancebos aguarda ao portao de entrada, mirando-se na esperança de reconhecimentos. Claro que os houve, alguns até seriam das mesmas terras. Quanto a mim, conterrâneo e amigo, julgo que só o A. Varela.

Não recordo já o seguimento, talvez partes burocráticas e apresentação distribuição por Companhias. A mim coube-me a 3.ª
Giacomino Mendes Ferrari era o Comandante do RI5.
Distribuída a Companhia, houve que escolher o beliche e respectiva cama, situação que me parece recordar, resolvida sem conflitos, pela generalidade da Mancebagem!

Nova fase da vida:
INSTRUENDO
Dos Instrutores recordo o nome do 1.º Cabo Mil Op Esp Henrique(s), nariz meio ”apapaigado”, inicialmente incisivo e meio duro mas… compreensivo. A mandar ”encher"… era useiro e vezeiro!! Até que gostei dele! Do Capitão e do Alferes, não lembro nada. Do outro Cabo Mil, recordo as feições ao tempo arruivado, mas do nome???

Começam as formaturas, a Ordem Unida, as aulas em semicírculo de armas e outras…
A injecção mata-cavalo a uma 6.ª feira e o recambiamento para casa com instruções para mexer bem o braço!!!
Depois, as marchas, os obstáculos… enfim a dureza vai aumentando gradualmente, a par de um entrosamento mais confiante entre os deveres e obrigações e a própria hierarquia.

A minha/nossa guerra havia começado e estaria para ficar durante longos meses.

Luís Faria
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11142: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (59): "Está na mala", azimute: "peluda"

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11142: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (59): "Está na mala", azimute: "peluda"

 


1. Em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72) enviou-nos mais este episódio para a sua série.




Viagem à volta das minhas memórias (59) 

“ESTÁ NA MALA”

Azimute: “PELUDA”

CUMERÉ, derradeiro estacionamento da FORÇA que aguardava regresso à Metrópole, depois de honroso e meritório desempenho que se deveu à generalidade dos seus Homens, a quem pertenci de parte inteira e com orgulho, muito orgulho.

Acabados os “trabalhos” que me prenderam por Bula e tendo a sonhada pré-peluda “ido pelo cano”, creio que na antevéspera de embarcarmos nos TAM rumo à PELUDA acabei por me reunir à minha CCAÇ 2791, que havia já tempo aguardava embarque no Cumeré.

Destas instalações não me recordo absolutamente nada, talvez pelas poucas horas que por lá estive, divididas ainda por uma ida a Bissau para umas poucas compritas de última hora.

Mal pareceria regressar a casa de mãos a abanar, já que nem a roupa civil ou militar traria. À excepção da camisa e calça número dois, respectiva boina e cinturão personalizado que traria vestido na viagem de regresso à metrópole e do famigerado pólo “Lacoste” azul-marinho (ex-pertença do Fur. Trms. Lourenço e que por birra mútua lhe andei a pagar durante a comissão inteira, até ao último dia) todos os meus pertences tinha já ficado por Bula, ofertados. Só o meu lenço vermelho, as minhas botas “mineiras” e o meu camuflado de mato - espécie de amuletos da sorte e da vida - ficaram já no Cumeré com o Sá, Fur. ”Pira” por quem senti amizade logo aos primeiros contactos e que achei merecedor do “legado”. (Posteriormente foi incorporado, creio não errar, na CCAÇ 13 onde teria passado por momentos complicados e viveu a transição. Ao fim de trinta anos de o procurar, reencontramo-nos e a partir daí, volta e meia, a par de mais uma dúzia de Companheiros juntamo-nos numas petiscadas, em convívio saboroso.)

Assim e no final da ida às compras, como o patacão se foi esgotando noutros bens “mais prementes e essenciais” … os “recuerdos“ ficaram pelas intenções e acabei por só comprar uma “Gillette” para a barba, já que teria de a desfazer à maneira no dia seguinte, para embarque que se efectuou pela tarde num Boeing dos TAM.

Da viagem ficou-me na lembrança o servirem vinho num canecão em alumínio e a chegada a Figo Maduro onde um personagem entrou de aspersor nas mãos, borrifando a cabine com uma bomba tipo “Sheltox”, como que a desinfestar-nos (bem sei, Vinhal, bem sei que não era a nós) enquanto na “montra elevada exterior” familiares e amigos expectantes e ávidos de reconhecimento aguardavam que colocássemos os pés em terra.

Depois foi o embarque nas viaturas rumo ao RAL 1,onde de entre outros procedimentos se acertaram contas (recordo que ainda recebi algum dinheiro) e se deu por findo o nosso contributo militar à Pátria, ficando desde esse momento e por mais uns bons anos obrigatoriamente disponíveis para novo “chamamento” em caso de necessidade. Íamos pois passar à chamada disponibilidade.

Consoante a Rapaziada entrava na “peluda”, a maioria desaparecia rápido da vista, não dando tempo a despedidas ou quaisquer trocas de informações. Salvo excepções, queríamos era ir ter com quem nos aguardava lá ou e em casa. Aquele passado recente era para começar a esquecer (?!). “Estava na mala”! Vida nova começava a despontar!

Pelo que me toca e lembro, aguardavam-me alguns familiares, para além da já minha noiva e futuro sogro (italiano) que, talvez por ter sido veterano da guerra da Abissínia, me deitou a mão à camisa nº 2 que vestia, estraçalhando-ma, fazendo com que a única peça de roupa que trazia na maleta, o “bendito” pólo azul “Lacoste”, viesse a recompletar a roupagem na ida à “Churrasqueira do Campo Grande” para uma jantarada de boas vindas.

(Foto LF) Quadro-recordação

Tinham-se passado vinte e quatro longos meses vividos em terras sob desígnio da Bandeira Nacional a que prestáramos um juramento que cumprimos da melhor maneira que soubemos e conseguimos, usando as nossas capacidades humanas físicas e psicológicas para ultrapassar o dia-a-dia nas suas incertezas, nos seus receios e medos, no cansaço, nas saudades…, apoiando-nos na Fé e na Esperança, na amizade e na camaradagem, na confiança e na disciplina.

Foram meses de vivências que rápida e extemporaneamente levou rapazes a transformarem-se em homens de juventude interrompida e futuro incerto, que se apoiavam entre si como verdadeiros Camaradas de armas no cumprimento do dever e na persecução do objectivo sobrevivência.

Também meses de ganhos em Amizades desinteressadas, melhor dizendo desinteresseiras, que prevalecem até aos dias de hoje e que parecem renovar-se a cada reencontro mais ou menos intervalado no tempo (que alguns imbecis apodam depreciativamente “… de saudosistas decrépitos…!?”), onde também se recordam e por vezes parece reviverem-se momentos de situações boas e más, que por um ou outro motivo ficaram retidos nas nossas memórias e que se complementam, eventualmente formando perspectivas mais abrangentes do que foi vivido em conjunto.

A força da vida levou-nos por caminhos diversos mas deixou-nos ligados por elos que de novo se unem, remoçando-se nestes reencontros que só pecaram a meu ver, por norma tardios, já que poderiam ter contribuído mais cedo para eventuais expurgos de “fantasmas” psicológicos inibidores de uma vida mais sã.

Luís Faria
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10662: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (58): Bula - Pré-peluda

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10662: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (58): Bula - Pré-peluda

 


1. Em mensagem do dia 10 de Novembro de 2012, o nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72) enviou-nos mais este episódio para a sua série.
 




Viagem à volta das minhas memórias (58)

Bula – Pré-peluda

Surpresa

Perguntava-me o José Dinis sobre Bubaque, em comentário ao meu “poste” anterior…

Terminados os “festejos” pelo final do trabalho de “mineiro” e recuperado dos seus efeitos, começava a ser hora de iniciar a preparação para a entrada na pré-peluda, ou seja abalançar-me para uns diazitos na sonhada e ansiada Bubaque, o que envolveria alguns trâmites de ordem burocrática e logística, a começar pela efectiva autorização superior e respectiva guia de marcha (?) assim como a procura e espera de transporte. Tudo isto levaria talvez dois ou três dias, com sorte.

Estando já no Cumeré a “FORÇA”, incluso creio o pessoal administrativo, já não recordo a quem me reportava, se ao Comando antigo, se ao novo, se a alguma das Companhias que nos foram substituir. Não sei.

Sei é que nos entretantos e sem que minimamente estivesse a contar, me incumbiram de um novo trabalho que me fez ficar ”puto da vida”. Demonstrar o meu desagrado protestando em nada resultou !!! Ordens… eram para ser cumpridas! Tinha é que interiorizar a situação, mentalizar-me e na hora não deixar que qualquer sentimento de revolta afectasse a concentração no trabalho a desenvolver.

Qual o mancomunado trabalho? Um “convite”, ao que recordo em exclusividade à minha pessoa, para levantar um campo de minas, relativamente pequeno é certo, lá para as bandas esquerdas de S. Vicente, nas bordagens de uma bolanha.

Era certo, lá se me iria a ante-gozada “pré-peluda” pelo cano abaixo. Ordens… eram ordens e estas vinham de cima. Porquê a mim? À altura apeteceu-me mandar tudo “p´ro car… ” e fugir… achei injusto, na minha óptica era injusto.

Assim, no dia e hora aprazados, vestido e calçado para o efeito e munido com a “ferramenta” habitual monto-me na viatura juntamente com a rapaziada da segurança comandada pelo então Cap. Salgueiro Maia.

Chegado e referenciado o campo, surpresa… era quase só lama e água!!!

Comecei a sentir a vida a andar para trás… logo nos primeiros lançamentos… a pica nada detectou na localização assinalada nem nas proximidades. Reconfirmadas as referências e diversificadas as experiências… manteve-se a situação. De repente, talvez a um passo ao lado do pé avisto uma e na proximidade… uma outra… plásticas, digamos a boiar, completamente deslocalizadas, que lá não estavam!!! A movimentação dos pés tê-las-iam feito deslocar? Assim sendo quereria dizer que mesmo picando centímetro a centímetro estava sujeito a pisar uma vadia.

Não, não ia “entrar numa fria”. Senti que não havia a mais pequena hipótese com e naquelas condições de levar a bom termo a empreitada, pelo que não estava nada disposto a arriscar na sorte e só na sorte.

Não, nem pensar, decidi. Já havia tido que bastasse.

Chamado o Capitão… mostro-lhe as “boiadoras” - que acabei por neutralizar - e o estado em que está o campo. Esclareço-o (como se fosse necessário?!) da periculosidade e exemplifico-lhe a quase impossibilidade da detecção que só por sorte, muita sorte mesmo, seria possível sem que houvesse um acidente.

Procura dar-me ânimo e incentivar-me ao levantamento. Para além do já explicado e demonstrado, refiro-lhe o estar a poucos dias de embarcar, ao que responde com um incisivo (do género) ”tem que ser feito”, que não me agradou nada, mesmo nada.

Já decidido pelo não, ao sair-me um agressivo (quase sic), “então levante-as o meu Capitão”, vi-me de imediato com uma porrada e a prolongar a comissão num qualquer “burako” do território. ”Fod…” devia ter sido diplomático… ou fingir que torcia um pé… ou um jeito nas costas… mas o que já tinha saído, ficava… paciência, assumiria as consequências como me tinham ensinado e desde miúdo cumpria.

Se bem recordo ficou a olhar para mim surpreso e bastante “chateado”, mas não tenho ideia de quaisquer mais palavras agressivas ou ameaças… estou em crer que nada disso houve. Fiquei à espera e a mentalizar-me para a “pancada”, coisa mais que natural por ter virado costas e me ter recusado a uma ordem directa, ainda para mais vinda de “cima”.

Bem, mas como havia aqueles meus pensamentos secretos (meter o xico)… não iria ter que me esforçar a decidir, já que após o que se passara, na certa ficaria decidido por “inerência”.

Daí a uns poucos dias e sem ter vislumbrado Bubaque, estava no Cumeré sem que tenha tido conhecimento de qualquer evolução sobre o acontecido, não sei porque… talvez pelas consciências terem trabalhado… apontando a clarividência.

Julgo que três dias depois e com uma ida a Bissau pelo meio, estaria a embarcar no “Boeing” dos TAM juntamente com a Rapaziada, rumo à PELUDA.

E José Dinis, assim foi a tal pré-peluda. BUBAQUE… nem por um canudo… só um sonho relaxante e lindo!

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10544: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (57): Bula - A guerra das minas (7): Bula - Minas, fim do suplício

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10544: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (57): Bula - A guerra das minas (7): Bula - Minas, fim do suplício

 

1. Adivinha-se o fim desta série que o nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72) tem mantido com tanta regularidade.

Este episódio chegou até nós no dia 16 de Outubro de 2012:



Viagem à volta das minhas memórias (57)

Bula – Minas, fim do suplício! 

Vista parcial de Bula
Foto: © Victor Garcia. Todos os direitos reservados


Bubáque e “Peluda” à vista ?!

Os dias certamente pareceriam querer ficar cada vez mais longos e penosos, como que a querer resistir a um final de comissão de data marcada que se ia avizinhando.

Para além das actividades atribuídas e como sinal de final de comissão próximo, o Pessoal ia-se entretendo a fazer os caixotes em madeiras diversas mais ou menos valiosas e com volumetrias condicentes com a carga prevista, por norma grande. Desde gravuras, estatuetas, peles, panos, artesanato, roupas, rádios, máquinas, ventoinhas e sei lá que mais,… “coca-cola” verdadeira, “Perrier”… até peças de mobiliário nacarado asiático… tudo era encaixotado para ser despachado via marítima para a Metrópole. Claro, não podiam ser esquecidas as garrafas - distribuídas a pagantes e acumuladas ao longo dos meses - de uísques e licores, por vezes às dezenas e alguns de gabarito! Havia até negócio à conta das ditas, do tipo duas por uma ou até venda inflacionada devido à já inexistência ou à escassez de abastecimento em tempo útil. Depois de despachada, creio que pela Companhia, a caixotaria seria levantada em Alcântara (?).

Em data prevista, a CCAÇ 2791 no seu todo ou faseada, já não recordo, arrancou para o Cumeré onde iria aguardar o embarque para a Metrópole, rumo à “peluda”, deixando-me de certo modo “desenquadrado e abandonado ao destino” lá por Bula, ainda no exercício de funções mineiras. Mais tarde e se não protagonizasse um qualquer acidente, ir-me-ia juntar à Rapaziada da minha “FORÇA”.

Em dia que não registei, acabou finalmente o trabalho no campo de minas que havia estropiado uns tantos, demasiados, que deu cabo dos nervos a alguma boa gente que por lá cirandou e até a outra que por lá não tinha sequer posto os pés. Muitos milhares tinham sido levantadas. Tendo o meu contributo sido de mil e trinta e duas, a sensação de alívio, paz, tranquilidade e de certezas num futuro, só sentida se poderá entender!

Era hora de festejar o fim do suplício! Depois… dois ou três dias de recuperação e preparação já que de seguida… Bubaque,- que me tinham contado paradisíaca – se perfilava no horizonte próximo do meu pensamento como destino de uns poucos dias de descanso prometidos e a meu ver merecidamente ganhos. Com alguns “pesos” economizados no bolso iria ser, sonhava, uma pré-peluda à maneira, de “papo ao sol”, águas mornas e límpidas, peixinho fresco grelhado, bebida a contento, na certa boa companhia… enfim uns diazitos a não esquecerem! Seguir-se-ia o reencontro no Cumeré e o ”Boeing” dos TAM para a PELUDA!

Entremeados por bons momentos, aqueles meses tinham sido duros, bastante duros mas o passado já era e como se diz, ”tudo está bem quando acaba bem”. Pelo menos até ao momento assim acontecera comigo que, comparativamente, tinha sido um felizardo. Tirando uns sustos ou melhor, “cagaços” valentes e uma morteirada que mandei e me pôs a mão como uma bola, nem sequer um paludismozito apanhei.

Dizia, antes de começar a divagar (?!), que a data era para festejar e assim foi. Claro que o conceito de festejo, programado ou não, é subjectivo e variável em função do estado de espírito, dos meios e do meio, do momento e outros elementos susceptíveis de o condicionar. Para além dumas cervejolas frescas, não foi programado e foi acontecendo ao sabor dos impulsos e dos ditames mentais no momento, deixando-me em memória uma ou outra situação, se calhar para muitos e à luz de hoje, pouco próprias. Naquele contexto, aconteceram!

 Luís Faria em Bula num momento musical

Terminado o trabalho e chegado ao quartel, talvez uma das primeiras coisas que aconteceram foi tomar uma banhoca. Sim, uma banhoca, já que não resisti ao impulso de me enfiar completamente vestido no bidão de água omnipresente à porta do quarto, talvez perante as bocas de alguns e espanto de outros.

Depois de certamente ter ido ao petisco civil e regressado ao quartel, já pela noite recordo acabar no bar a pedir um “cocktail” especial, composto por uma medida de tudo o que continha o vasilhame exposto nas prateleiras do bar. Em conformidade com o pedido e sob meu controlo, foram entrando no agitador medida após medida de diferentes uísques e licores, de águas-ardentes, brandies, bagaço… até que é dado por terminado. A única medida que não foi considerada foi a do “Elsève Balsam” (?) - champô de ovo. Sob protesto e incredulidade (?!) do “barman”, não recordo o nome, e ante a minha ordem… acabou por ser também incluído na mistura, talvez deva antes dizer… mixórdia! Os passos seguintes foram emborcar a mistela, perante a expectativa dos presentes.

Tempos após e já noite adentro vejo-me meio zig meio zag , em cuecas, a jogar um jogo a céu aberto, em que o objectivo era manter à raquetada uma bola em movimento circular à volta duma haste vertical a que estava ligada por um cordão ou corrente (?).

Claro que a “mixórdia” já fazia os seus efeitos e os rodopios que os falhanços na bola me obrigavam a fazer, levavam-me a por vezes percorrer uns metros em busca do equilíbrio, acabando sentado no chão! Por fim o apelo da cama acabou por ser mais forte.

Ao acordar pela manhã seguinte senti um mal-estar horrível e uma agitação mais que anormal, parecendo-me que as veias iam rebentar. Estou f… é a merda do champô que me anda no sangue, pensei resolvendo ir tomar um banho na tentativa de acalmar. Qual quê, pareceu-me ficar pior… as veias pareciam rebentar… assustei-me de verdade e não recordo se acompanhado ou não dirigi-me para o posto-médico ali próximo. Só lembro que de imediato abri (arrombei?) a porta do médico Alf. Cruz e… acordei fresco e firme como o aço, não sei quanto tempo depois, como se nada tivesse acontecido.

Nova vida estava prestes a começar. Pensamentos secretos de “meter o chico” iriam esperar resolução mais tarde. Iria depender de auto análise mais aprofundada e da situação a encontrar na Metrópole.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10360: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (56): Bula - A guerra das minas (6): A "sentinela"

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10360: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (56): Bula - A guerra das minas (6): A "sentinela"

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 4 de Setembro de 2012:

Amigo Carlos
Diziam-me e penso ser verdadeiro que, naquela guerra os “Unimog” e outras viaturas militares, à falta de gasolina aceitavam qualquer tipo de álcool como combustível. Vinho inclusive! Parece-me que tinham até um comutador?
Bom, vem isto ao caso porque o tipo de combustível que tem sido gasto nesta “Viagem à volta das minhas memórias” está a entrar nas reservas que e aproveitando as descidas só irão permitir-me chegar ao destino. A ser verdade as viaturas poderem usar combustível do tipo “tintol verdasco” de que gosto e havendo postos de abastecimento… bom, talvez me disponha e consiga conduzir-me numa outra viatura mais ligeira em passeio à aventura, sem destino e ao destino.
Como se dizia na minha terra em troca do ver-se-á: “depois verá-se!”

Espero que tenhas tido e aproveitado umas boas e calmas mini-férias.
Um abraço para ti e outro para a Rapaziada, com votos de saúde e qualidade de vida.
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (56)

Bula- guerra das minas 6

A “sentinela!”

Como de outras vezes em que recordo estes momentos, revivo-os e um arrepio percorre-me o corpo.
Na minha perspectiva e à altura, no intuito e esperança de se conseguir viver com alguma normalidade a anormalidade daquele enfileiramento de dias e mais dias em que palmilhávamos na monstruosidade de extensão e densidade daquele campo de minas, julgava que o melhor a fazer era assumir e mentalizar que o momento ou o segundo seguinte podia marcar a diferença numa vida ainda jovem mas já envelhecida.

A par, havia que interiorizar fortemente as já anteriormente abordadas medidas preventivas e não condescender na sua aplicação, pois eram fatores de esperança na ultrapassagem de obstáculos e desastres recorrentes, na não paralisação por receios ou medos, no acreditar e seguir em frente.

Vem isto ao caso pela especificidade de uma situação vivida conjuntamente pelo António Matos (P4296 de 7MAI09) e por mim, que passarei a referir com alguns pormenores que na certa continuarão a ter registo vivo na minha memória ao longo do tempo.

Já bem avançados no campo e com o final da campanha mineira de certo modo à vista, já não recordo por qual dos dois, a mina metálica portuguesa (fragmentação) procurada é localizada. Era um valente “cú de boi” que se apresentava meio escondida por um tufo de vegetação e bastante incrustada no “sopé da encosta” dum bagabaga que por ali tinha nascido naqueles passados anos. Parecia até que as formigas, cientes dos tempos que se viviam, tinham construído ali a sua nova cidadela com o fito de aumentar a sua segurança contra intrusos e acabaram por envolver esta “sentinela” assassina num abraço de reciprocidade protectora!

Por oferecimento altruísta de ajuda expresso por um de nós, creio que do A. Matos, o certo é que nos achamos de facas nas mãos a esgravatar minuciosamente e em conjunto o condomínio formigueiro em volta da “sentinela”, com o intuito da sua neutralização e posterior “sequestro”!

Era uma acção difícil e de risco, sabíamo-lo bem e como tal usamos de toda a precaução e tempo exigível em conformidade. Creio que não nos passou sequer pela cabeça e como tal não nos questionamos sobre a hipótese do rebentamento provocado sob controlo. Não sei porque, talvez por não ser possível ou outra razão qualquer, não recordo.

De volta da mina, o primeiro passo seria cavilha-la logo que possível, o que se tornou um bastante moroso e dificultado por parte do sistema de percussão e até os orifício superior (primário) de cavilhamento estar parcialmente obstruído não permitindo meter a cavilha e o inferior lateral (secundário) não estar visível.

Com paciência, muita sensibilidade e calma, fomos aligeirando o abraço desbastando o bagabaga, acabando por desobstruir o orifício primário e conseguir espaço para enfiar a cavilha, se bem que não correctamente, por impossibilidade ao momento. Continuamos o trabalho atento e meticuloso de desencastamento do engenho, acabando por pôr a descoberto o orifício lateral de segurança secundária. De seguida dou início a introdução da cavilha que finalizaria a neutralização do percutor do engenho e nos permitiria desencarcerá-lo à vontade. Aponto-a mas não chego a coloca-la…!

“CLICK” … este som macabro em simultâneo com uma ligeira pancada sentida nos dedos, transporta-me (nos) a um silêncio absoluto… talvez do “Além”?

O sangue fugiu para os pés deixando a lividez espraiar-se num suor gelado que nos alagou. Olhamo-nos mudos e incrédulos. Onde estávamos? Ainda por cá? Como? O que tinha acontecido de errado?

Os cigarros começam a queimar-se. Olho para a mina e vejo que a cavilha superior, que por impossibilidade só estava parcialmente enfiada, está completamente torcida e vergada de viés pelo percutor. Por milagre aguentou!

Julgo que sentados e mudos com olhar distante e incrédulo, vão-se somando cigarros. Ninguém se terá apercebido do acontecido.

Muito… pouco? O tempo vai passando e os cigarros sucedem-se.

O Cangalhas, Alf OE em comando local por mais velho, atira-nos um mais ou menos “vamos a levantar…!?”

“Que o pariu!”…depois… depois consumamos o “sequestro” e recomeçamos a levantar minas!

Na sua memória o António Matos tem registado que a mina não detonou por envelhecimento, apodrecimento. Talvez!

Na minha e conforme narro, ainda que deficientemente colocada a cavilha não saltou e aguentou, ficando toda torcida de viés mas empancando o percutor que realmente desceu um pouco na manga guia. Teria descido o suficiente para percutir?

Hoje, como à altura, não tenho resposta para o disparo ter acontecido mas… aconteceu, simplesmente!

Luís Faria
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Notas de CV:

Foto: © António Matos (2009). Direitos reservados - Com a legenda: O nosso camarada António Matos manuseando uma mina portuguesa.

Vd. último poste da série de 15 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10268: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (55): Bula - A guerra das minas (5) - Um jogo de "apanhadinha"

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10268: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (55): Bula - A guerra das minas (5) - Um jogo de "apanhadinha"

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 8 de Agosto de 2012:

Amigo Carlos
Envio-te mais um troço de “Viagem…”que, como sempre, foca e retrata o mais fielmente possível a realidade de momentos e pormenores talvez subjectivos, que não foram e julgo não serão esquecidos, neste caso talvez não tanto pelo acontecimento em si mas pelo insólito (?) das envolventes. Costuma dizer-se que …”não lembra (va) ao diabo”? Pois neste caso… pelo visto, lembrou!

Como julgo que andas por “férias aos bocados” como eu, cá te mando o meu abraço com amizade e votos de saúde e bem-estar.
Para a Rapaziada atabancada um outro abraço e tudo de bom.
Luís Faria


Vista parcial do Quartel de Bula

Viagem à volta das minhas memórias (55)

Bula - guerra das minas (5)

Um jogo de “apanhadinha”

Creio que nenhum dos “Eleitos” gostava e muito menos queria, abandonar a procura de uma mina e dá-la como detonada ou perdida sem esgotar, em seu entender, todas as hipóteses viáveis de a encontrar e neutralizar. Muitas vezes acontecia andar-se tempos infindos à procura de um desses engenhos deslocalizado, situação potencialmente perigosa que obrigava a redobrados cuidados e domínio sobre emoções. Nesse espaço de tempo podia ser relativamente fácil acontecerem estados de espírito que iam do desânimo ao eufórico. A meu ver, nestas e noutras situações o autocontrolo e descanso eram essenciais na ajuda à prevenção do desastre.

Disse no (P9850 de 4 de Maio) …Nos ”cú de boi” era bom tomarem-se estas precauções preventivas, eu tomava-as, pois uma das coisas passíveis de acontecer e que não queria, seria por exemplo, exasperado pelo esforço e ao mesmo tempo contente por ter conseguido encontrá-la e levantá-la, agarrar na mina e “fungá-la” no chão ou no caixote de recolha acompanhada talvez dum “cabrona f.d.p.” ainda por cima sem antes a neutralizar, ou pinchar em cima dela a chamar-lhe nomes feios, dar-lhe uma biqueirada à guarda-redes… exagero o que digo ?… pois será, mas aconteceu!

Estávamos ao que me parece recordar, já para finais do campo quando num jogo de “apanhadinha” andavam uma “italiana” fugida e escondida e atrás dela procurando-a sem descanso e resultado, um Furriel “Eleito” que ia gastando o tempo, esgotando a paciência e julgo que a serenidade também. Expressões caserneiras na certa iam sendo sibiladas, maneira fácil e normal de aliviar alguma tensão acumulada, enquanto a busca continuava e se ia prolongando pelo tempo.

A dada altura é bem audível a quem trabalhava nas proximidades, manifestações de entusiasmo e regozijo fazendo com que “vizinhos” como eu desviassem o olhar e atenção para o que se estava a passar e lhe visse na mão a “italiana” finalmente apanhada e a expressão de contentamento vitorioso e de “dever cumprido” estampada no rosto.

Sol de pouca dura para este amante da bola, escalabitano e por isso mesmo alcunhado de Santarém, já que de imediato e surpreendentemente, atira a mina ao ar e acompanhado de algo como um “cabrona” bem sonoro, desfere-lhe uma biqueirada à guarda-redes!

O “BUMM …” é em simultâneo e o Santarém cai por terra.

A mina era de sopro, plástica e não teria sido neutralizada . A pouca sorte ajudou, dadas e a meu ver , as poucas (?) probabilidades de acertar no percutor, como julguei ter acontecido. Ninguém mais se feriu, a não ser psicologicamente.

Ajudo a levá-lo para a estrada para receber os primeiros cuidados médicos. A perna estraçalhada daquele jeito não é bom nem fácil de se ver. Os odores misturam-se e as moscas vindas do nada e atraídas aparecem como que a querer coreografar pela negativa mais uma tragédia em cena.

Lívido e calmo pelo menos aparentemente, não se lhe ouve praticamente um queixume, um gemido. A dada altura diz com serenidade e com um meio sorriso que recordo, como que aceitando sem revolta o resultado de um acto da sua e só sua responsabilidade(?!):

(quase sic) “…nunca mais vou poder jogar futebol!...”

Interveniente no drama e talvez emocionado perante o espectáculo, o Enfermeiro pareceu-me hesitar na procura do melhor sitio na perna onde espetar a agulha para administrar a injecção (morfina?) e julgando que ele estava com receio de causar dor(?) falo-lhe, à minha maneira, mais ou menos assim:
- Espete em qualquer sitio… ele não vai sentir nada!

É evacuado com destino ao aquartelamento donde seguirá para Bissau. Acompanho-o na ambulância, o que virá a influenciar e alterar o meu dia-a-dia durante tempo e levará a fazer-me uma pergunta que até hoje continua, e na certa continuará, sem resposta! Talvez me venha a referir a este assunto mais tarde, a ver vamos!

Nunca mais soube nada deste homem de têmpera, espero que a vida lhe tenha sorrido e que possa ter dado e ainda dar umas biqueiradas na bola, jogo de que ele gostava!

Luís Faria

Foto: © Victor Garcia  (2009). Todos os direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10117: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (54): Bula - A guerra das minas (4) - Imprevistos

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10117: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (54): Bula - A guerra das minas (4) - Imprevistos

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 1 de Julho de 2012:

Amigo Carlos Vinhal
Como deverás estar a ir de férias e para que descanses um pouco da “fazedura” das malas e te entretenhas (?!), cá vai mais um troço de “Viagem…” que mandarás para a valeta, assim o julgues.

À rapaziada que à falta de melhor faz (ia dizer goza, mas se calha era chato!!) férias… saúde, boa viagem, boa estadia, bom descanso e DIVIRTAM-SE

Abraços
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (53)

Bula - guerra das minas (4)

Imprevistos

Logo aos primeiros dias no campo minado, estou em crer não estar muito errado ao dizer terceiro, um “Eleito” não esfacela um membro mas é crivado por estilhaços na cara.

Mais BUMMM… iriam acontecer por aqueles dias de inferno e altura houve em que a incerteza e o receio provocados pelas dificuldades na detecção de muitas minas começou a fazer com que a moralização que animava(?) o grupo “mineiro” praticamente caísse por terra para muitos, acabando por acontecer um “Briefing” com o Comandante e os “Eleitos”, onde se tentou ajuizar dos porquês e procurou arranjar uma solução de modo a serem minimizados os danos. O maior problema eram as bastantes e pequenas minas plásticas italianas que estavam deslocalizadas à toa e muitas das vezes difíceis de encontrar dada a sua dimensão e só serem detectáveis pela pica ou pelo pezinho, sendo claro que neste ultima situação relativamente fácil de acontecer, perdoem a ironia, se economizava tempo e trabalho na sua neutralização !!

É bom de ver que a reunião não passou de uma sessão de “psícola” não se encontrando solução alguma ou por outra, como “perguntar não ofende (?)” ainda aventei, santa ingenuidade a minha, da possibilidade de um veículo rebenta – minas, aquele do género bulldozer com correntes rotativas que já à altura existiam, pelo menos noutros exércitos e que poderia ser usado na maior parte do campo. É claro que fui logo perguntado “você está maluco…?” para propor uma tal solução e em pensamento na certa, se era parvo ou imbecil! Para além de não ter achado graça nenhuma, fiquei foi com a impressão de que o homem me “tirou o azimute”! A ver iria.

Perante a resposta e o tom, deduzi que a nossa Engenharia não tinha essa maquinaria nem outra, que um brinquedo desses seria muito caro e como tal, havia substitutos bem mais baratos tais como a nossa cabecinha pensante, as nossas mãozinhas c’as picas e facas em conjugação c’os nossos pezinhos, à mesma eficientes na resolução do problema, mas de manutenção e eventual “oficina” talvez bem mais em conta! A relação custo – benefício era (é?) normalmente decisora da opção.

Pelo meio de BUMM… e mais BUMM, sinónimos de estropiação e mais estropiação, situações que não tenciono abordar à excepção de uma, por a meu ver ser inédita, lá fomos carpindo e digerindo muito mal os dias negros que nos iam assolando. Mais não aconteceram por, sei lá, até porque para alem das contingências “normais", imprevistos potenciadores de desastre aconteciam. Um que hoje recordo e tentarei descrever, pode talvez fazer rir ou pelo menos sorrir ao imaginar-se a cena, mas à altura… podia bem ter descambado em tragédia, bem grande se a dimensão fosse outra.

No meio do campo minado e em dia acalorado andam os “Eleitos” atarefados nas suas lides. Por lá me encontro também, armado com faca e pica e ataviado só com calção e as omnipresentes nessas situações, botas em couro de meio cano alto.

Em pé e peganhento de suor olho para o céu limpo, talvez num daqueles descansos em que era useiro para descompressão, quando dou por uma “formação” de abelhinhas logo ali, que velozmente se aproximam.

Aviso mas não sei se alguém me ouve já que de imediato a minha plena atenção se fixa na visita indesejada de todas ou pelo menos uma parte delas, que começam a passear-se umas pela cabeça e tronco a nú, outras esvoaçando e zunindo em prevenção e algumas fazendo explorações mais alongadas. Destas, uma mais militante, talvez com óculos de visão nocturna ou sensibilizada por qualquer odor atractivo (?) resolve inspeccionar mais a fundo e entra pelo parco e escuro(?) espaço entre o cano da bota e a canela.

Já tinha estado em situações idênticas, quer na minha terra como na Guiné em Capó (P-4031 de14 de Março de 2009) e conforme os ensinamentos adquiridos sabia bem que a hora era do ficar estático e “não pestanejar sequer” ou em gíria castrense “não mexe nem que um cara… lhe passe pela boca”(!) . Seria a única hipótese na tentativa de não sofrer ataque.

Concentrado ao máximo, um dos meus grandes problemas era conseguir ficar estático de modo a evitar que a “bendita que entrou pelo cano” fosse apertada e me brindasse com uma ferroada que em sequência provocasse um movimento instintivo que incitasse as outras ao ataque e aí podia estar feito, já que para alem das ferroadas, para o BUMM… era só preciso descontrolo e umas passadas ou nem tanto!

Após breve tempo que me pareceu infindo, as “queridas” deram às asas sem causar mossa, tendo a inspectora ainda ficado um pouco mais talvez a verificar algo de pormenor ou nauseada, obrigando-me a manter a postura de respeito submisso! Quanto aos “Eleitos” nada recordo mas creio que acabaram por não ser alvos e se calha ficaram a “gozar (!!) o prato”, digo eu !?

Imagine-se agora se o ataque tivesse sido em grande escala e múltiplo, como aconteceu em “Capó”, originando a debandada quase geral… podia causar um verdadeiro desastre. Felizmente assim não aconteceu e mais um dia que podia ter sido negro, foi ganho.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10006: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (53): Bula - A guerra das minas (3) - Acontecia... Bummm!!!

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10006: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (53): Bula - A guerra das minas (3) - Acontecia... Bummm!!!

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 3 de Junho de 2012:

Caro amigo Vinhal
Um abraço com desejo que a saúde e o bem-estar te assistam.
Por saber que o trabalho dá saúde e promove o bem-estar, espero contribuir para tal enviando-te mais um apontamento de “Viagem…”se calhar merecedor de “rodinha” para alguns eventuais leitores mais emocionáveis, talvez até “Eleitos” no mesmo ou noutros cenários e a quem desde já peço desculpa por eventualmente interferir em campos guardados na memória.

Saúde e um abraço para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (53)

Bula - guerra das minas (3)

Acontecia

BUMMM!!!

O estrondo de um rebentamento ali muito próximo deixou-nos expectantes…

Os dias iam-se acumulando vagarosamente no depósito dos passados e no dos a ultra-passar, estes com recortes de dor e sofrimento para uns, de mágoas e tristezas para outros, de inseguranças e receios para uns outros, julgo de esperança para todos.

Eram dias encimados em dias, que se iam transpondo na fragilidade de um “arame suspenso” e em tensão de alto risco, esticado e sem rede de segurança por sobre uma arena também ela potenciada de riscos sérios.

A “barra de equilíbrio” usada para ir dando passos e conseguir transpor esse arame, era basicamente feita de serenidade, atenção e contenção, ingredientes que dada a natureza humana, nem sempre sendo conseguidos vinham a causar a perda de equilíbrio que provocava o desastre, podendo o mesmo também acontecer e sem se conhecer o porquê, ou pura e simplesmente o “arame” rebentar e sem aviso, o BUMMM… do rebentamento inesperado ali ao lado deixava-nos expectantes do e a quem tinha acontecido!

Os dias negros em que situações destas aconteciam, continuo a falar por mim, em que o estropiamento de um companheiro acontecia e nos marcava, tinham que ser arrumados não no depósito dos passados mas no dos a ultrapassar e fechados com as chaves da Fé e da Esperança, único modo de se ir conseguindo enfrentar e viver os vindouros.

A acontecer o desastre, esperava-se ao menos ficar com a articulação do joelho, de modo a acabar por do mal, o menos, poder andar sem muleta! Daí e nestas lides eu usar sempre as minhas botas em couro de meio cano alto e ajustadas, que acreditava poderem vir a contribuir na protecção e nesse sentido.

Botas que usava nas minas

Dizia-se até que na desdita (aos “felizardos” certamente) seriam aplicadas próteses na Alemanha, que imitavam a carne e que até permitiam correr e jogar futebol. Para as caneladas deveria ser óptimo, este incentivo de truz!!!!

Em confrontos nas matas daquela terra já tinha presenciado e vivido diversas situações em que companheiros ficaram feridos com gravidade e de morte. Foram momentos difíceis que houve que ultrapassar mas que se não esquecem e ficam para sempre na memória pormenores (?) subjectivos gravados com nitidez, de imagens que se vão esbatendo ao longo do tempo.

Honestamente, por maior que fosse o choque sentido não era de me deixar abater e de deixar transparecer emoções ou constrangimentos na presença dos feridos, fosse qual fosse a sua gravidade. Achava e continuo a achar que esse tipo de reacções, naturais e comuns é certo, provocavam um efeito negativo no ferido e até em expectantes, podendo levar inclusive a laxismos e desorientações que não podiam ter lugar nessas ocasiões, pelo que e a meu ver, em especial quem exercia funções de comando deveria conseguir controlo sobre essas emoções

Nesses momentos de dor e incerteza para o ferido, julgo até que agravada de solidão em ausência da família, a hora deveria ser de tentar interromper esse estado de espírito, de incentivar não demonstrando preocupação em demasia, quiçá “chistando” até com o acontecido ou com as consequências.

Recordo a propósito uma “converseta” sic ou quase, com “eleito” estropiado:
- Oh Faria, dá-me água...
- Bai -te f…Queres água p’ ra quê? Entra-te pela boca e sai-te pela perna…”!??! (segundo o que parecia saber, naquelas situações não deveriam beber?)

Usei-o a meu ver com resultados positivos. Se o ferido fosse eu, não gostaria de sentir a meu lado a imagem do “carpidor” que olhava o desgraçadinho do coitado, do que pena, do que está f…! Quereria era sentir iniciativa, confiança, segurança, naturalidade, despacho. Bom, mas como disse era assim que pensava e sentia e como tal adoptava esse tipo de conduta que poderia ser criticável, bem sei. Ainda hoje assim acontece.

À excepção da morte ocorrida no Balanguerez (P7172) provocada por um RPG directo, digo com sinceridade, o que sentia em presença dos feridos pelas minas era diferente, bastante diferente e mais intenso do que os acontecidos nas matas, em combate. Eram ferimentos ”feios” que impressionavam pelo estado e aspecto.

A vista do membro estraçalhado, à mistura com aquele odor a sangue e carne queimada a explosivo era realmente perturbador e continuo a falar por mim, difícil de encarar e esquecer, desencadeava um turbilhão de emoções. Na verdade para se conseguir controlar e manter o equilíbrio emocional em presença, havia que fazer um grande esforço de “alheamento” e contenção para não deixar transparecer essas emoções.

Posteriormente e a mais das vezes, podia-se extravasar toda essa contenção. O bar não fugia, a viola repousava pelo quarto, o abraço, palavras de amizade e apoio aconteciam!

No quartel a ambulância era esperada e recebida com ansiedade, curiosidade, comoção e até por descontrolo emocional causador de distúrbios psíquicos (?), como chegou a acontecer causando para a vida feridas nunca bem cicatrizadas.

Já o disse, para mim foram os tempos mais desgastantes e dos mais difíceis porque passei nessa guerra, que por Graça acabou por me poupar e ao que sinto até ver, não me deixou feridas mal cicatrizadas do corpo ou psicológicas.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9850: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (52): Bula - A guerra das minas (2) - Os "eleitos"

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9850: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (52): Bula - A guerra das minas (2) - Os "eleitos"

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 28 de Abril de 2012:

Olá amigo Carlos Vinhal,
Bom, acho que já te chega de folgas e comesainas, ao que parece bem animadas por sinal, nesse belo pedaço do ainda nosso Portugal.
É hora de trabalho para ti, que és um ”Mouro do mesmo” e de que estou certo, por norma gostas.
Como tal, cá vai mais um lanço de “Viagem…”que, já sabes, varres para a valeta se assim considerares.

Um abraço para ti e um outro para a”Juventude de outrora” e de agora que nos vai seguindo
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (52)

Bula – guerra das minas ( 2 ) Os “ Eleitos ”

Apeados dos Unimog, após a segurança estar montada e percorrida a pouca distancia até à zona de trabalho estabelecida no campo minado, os ”eleitos” munidos do equipamento preparavam-se para umas horas de trabalho de alto desgaste, onde a atenção e tensão seriam quase constantes, intervaladas por momentos de descanso e descompressão individuais e subjectivos na escolha do momento e duração, que só o próprio poderia e saberia determinar e quantificar.

Mentalização feita, azimutes tirados, zona de actuação definida e localização primária conseguida, era chegada a altura de a atenção não se dispersar. Depois e em seguimento do “lançamento” da “vara-medida” que deveria localizar o engenho ou a sua proximidade, a pica ligeira de verga de aço começava a funcionar com sensibilidade e moderação de força - de modo a não provocar inadvertidamente um eventual rebentamento caso acertasse em espoleta mais sensível (como veio a acontecer) - explorando a faixa de terreno que íamos pisar no curto trajecto até consumar a localização do engenho, dando então lugar à actuação da faca.

Com a atenção no máximo e tensão controlada em função da menor ou maior dificuldade do que se nos parecia apresentar, começava o manuseamento da faca (a minha tinha-a comprado na “Casa Barral”- Porto), uma espécie de “arte” que deveria ser executado com respeito e desapaixonadamente, com sensibilidade, sem facilidades e aplicando os saberes adquiridos, “desbagando” os cachos em quadrado com “AUPS” nos vértices e uma portuguesa ao centro, enfileirados e sequenciais.

Disposição das minas e dos cachos 
(parece-me ser o posicionamento dos cachos)

Sendo que grande parte das minas estava localizada nos locais previstos ou na proximidade, muitas havia no entanto em situação para todos os gostos: umas afastadas e completamente a descoberto, outras com camadas de terra encimada e difíceis de detectar, outras desviadas q.b., outras enterrados de viés (bem perigosas por sinal) muitas enraizadas em tufos e arbustos, outras incorporadas em formigueiros … enfim, tornando-se variadíssimas vezes um trabalho “cú de boi” encontrá-las, desactiva-las e levantá-las.

Os intervalos de descanso para esticar o corpo e aliviar as costas, falo por mim, faziam-se quando se achasse mas eram por norma de pouca duração, tempo de uma golada de água e uma cigarrada enquanto o pensamento esvoaçava por outras bandas. O trabalho tinha que ser feito.

Quando um desses “cú de boi” aparecia, bom aí podia acontecer que a paciência se começava a esgotar, os suores davam para alagar, os palavrões sucediam-se, a atenção começava a querer dispersar-se, o desânimo ameaçava rondar, o facilitismo começava espreitar. Era chegado o momento de espairecer, de descomprimir e travar tendências negativas para aquela função onde o perigo estava sempre à espreita. Demorasse o tempo que demorasse, só nós próprios é que podíamos sentir e saber o momento de recomeçar a labuta, não podendo haver lugar a pressões e muito menos a imposições. Éramos, continuo a falar por mim, os decisores em causa própria e não devia nem podia ser de outra maneira, sob pena de acontecimento grave.

Nos ”cú de boi” era bom tomarem-se estas precauções preventivas, eu tomava-as,  pois uma das coisas passíveis de acontecer e que não queria, seria por exemplo, exasperado pelo esforço e ao mesmo tempo contente por ter conseguido encontra-la e levanta-la, agarrar na mina e “fungá-la” no chão ou no caixote de recolha acompanhada talvez dum “cabrona f.d.p.” ainda por cima sem antes a neutralizar, ou pinchar em cima dela a chamar-lhe nomes feios, dar-lhe uma biqueirada à guarda-redes… exagero o que digo?… pois será, mas aconteceu!

Devíamos dar o nosso melhor contributo para a nossa própria segurança e para isso também era, sempre o soube e pratiquei, indispensável manter o equilíbrio físico e mental em todos os momentos, na tentativa de minimizar os riscos de um trabalho extenuante por ser em contínuo, num campo de minas com aquela dimensão e densidade. Daí e a meu ver, a importância dos descansos autónomos.


Deitados, acocorados ou de joelho no chão conforme as situações, os “mineiros encartados” iam avançando com e ao seu ritmo, “lavrando” os seus terrenos com minúcia e destreza por norma consciente, descobrindo e colhendo uma a uma as sementes de mutilação, neutralizando-as de imediato, ao que me parece recordar apondo-lhes as protecções de segurança, tampas nas plásticas, cavilhas nas metálicas portuguesas retirando-lhes depois o sistema de detonação e acomodando-as de seguida e separadamente em recipientes de recolha próprios .

Esta espécie de rotina, que não deveria ser rotineira, sucedia-se mina a mina, cacho a cacho durante horas a fio até final da jorna, altura em que se regressava às viaturas que nos levariam de regresso ao quartel onde a tarde e a noite eram nossas, pois tínhamo-las ganho e bem ganho. Era chegada a hora dum belo “banho à Nharro”(sem ofensa), duns bons canecos, talvez do dedilhar na viola, de escrever um “bate-estradas”, duma bela sorna com leitura à mistura e à fresca do ar movimentado pela ventoinha… pois na manhã seguinte teríamos que estar recuperados e frescos para mais do mesmo, tendo sido esta a nossa vida durante dias e mais dias nos finais de uma comissão que já não tinha sido fácil.

Faca de mato em acção e mais uma "AUPS" recuperada

© Foto de Carlos Vinhal

No dia a dia renovava-se a esperança de que não houvesse qualquer acidente, o que nem sempre aconteceu. Logo nos primeiros dias do início, inadvertidamente o primeiro desastre aconteceu e infelizmente mais se seguiriam ao longa daquela ”caminhada” não ocorrendo outros por… sabe-se lá porquê!

Sorte, destino? Cá por mim acredito que por Graça Divina.
Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9690: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (51): Bula - A guerra das minas