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segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24595: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (1): Das salinas de Tavira ao CTIG

 

Foto nº 1 >  Tavira >  CISMI >  1972 >  António Alves da Cruz,  em farda nº 3, junto às salinas, tendo o antigo Convento das Berrnardas ao fundo....


Foto nº 2 > Tavira > CISMI >  4ª Companhia >  3º Pelotão >  16/6/1972 >  Salinas... O antigo Convento das Bernardas ao fundo... O António Alves Cruz, atirador de infantaria, em farda nº 2


Foto nº 3 > Tavira > CISMI >  4ª Companhia >  3º Pelotão >  16/6/1972 >  Salinas... O antigo Convento das Bernardas ao fundo... Um pelotão com 38 elementos...

Comentário do editor LG: 

(...) As famigeradas salinas, o terror do instruendo... E ao fundo o Convento das Berrnardas, com a chaminé da moagem, que ainda funcionava no meu tempo (1968)... Hoje é um magnífico e monumental edifício recuperado pelo nosso prémio Nobel da Arquitetura (ou Pritzker), o "morcão" do Eduardo Souto Moura, da grande escola de arquitetura do Porto!...

Que viva Tavira, que tem sabido estimar, preservar e valorizar o seu património edificado, contrariamente a outras terras algarvias onde a especulação desenfreada, a ganância, o camartelo camarário, o 'lobby' imobiliário e o desastre urbanístico é quem mais (des)ordena. (...)



Foto nº 4 >  Tavira, CISMI > c. maio / junho 1972 >  Ilha de Tavira > O instruendo António Alves da Cruz ao centro: "À minha direita, o Machado, à esquerda, não me recordo o nome"...

Foto nº 5 >  Tavira >  CISMI  >   Outubro de 1972 > Fim do CMS >  O António Alves da Cruz  é o terceiro, da segunda fila, de pé, a contar da esquerda para a direita... Contamos 17 infantes... O António seguiu depois para o BC 8, Elvas, como 1º cabo miliciano,  onde foi dar instrução e de onde fui mobilizado para o CTIG, indo formar batalhão (o BCAÇ 4513/72) em Tomar.

Fotos (e legendas): © António Alves da Cruz  (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Damos início à publicação de uma seleção de fotos do álbum do António Alves da Cruz, novo membro, nº 880, da Tabanca Grande. Já em 2014 tínhamos descoberto a sua página do Facebbok, e publicámos dois postes (*). Na altura fizemos o convite, formal, para se juntar ao nosso blogue, mesmo não sabendo a unidade ou subunidade a que ele pertencia: 

(...) "Para já convido-te a sentares-te à sombra do poilão da Tabanca Grande, o mesmo é dizer, integrares este blogue coletivo que conta já com 650 membros, entre vivos e falecidos... Gostaria que aceitasses o nosso convite, e fosses o  nosso grâ-tabanqueiro nº 651... És nosso amigo do Facebook, mas queremos que sejas também camarada... aqui, no blogue. 

(...)  Dei uma salto à tua página, no Facebook, e explorando os teus álbuns encontrei mais fotos que gostaria de poder divulgar e partilhar com os nossos camaradas da Guiné. Tens fotos de Buba, Aldeia Formosa.

(...) Tens por certo histórias para contar. E a gente nem sequer sabe a que unidade pertenceste... Só sabemos que fechaste a guerra e que estiveste na entrega de Buba ao PAIGC presumivelmente em julho ou agosto de 1974. Fala-nos desses tempos, que não foram fáceis, dos últimos soldados do império... Como eu entendo o teu amargo comentário: "Tanto sofrimento para quê ?!... A  entrega de Buba ao PAIGC, o arrear da nossa bandeira nacional,  e o hastear da bandeira do PAIGC" (...)

Por qualquer razão, o António na altura não nos respondeu, mas tentou  contactar-nos... Hoje sabemos que pertenceu à 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Bula, 1973/74). E, a partir de 25 do corrente, passou a sentar-se à sombra do nosso frondoso, fraterno, icónico e simbólico poilão... porque não há tabanca sem poilão (**).
___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


(**) Vd. poste de 25 de agosto de 2023 : Guiné 61/74 - P24588: Tabanca Grande (552): António João Alves Cruz, ex-fur mil, 1ª CCAÇ/BCAÇ 4513/72 (Bolama, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, mar1973 / set1974); senta-se sob o nosso poilão no lugar nº 880

sábado, 8 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24459: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (3): Um tiro de misericórdia!

Contos com mural ao fundo (3)> Um tiro de misericórdia! 

por Luís Graça


1. Conheceste-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheceste-o, de Tavira, do CISMI, do Centro de Instrução de Sargentos Milicianos. Haviam pertencido, ambos, à Companhia de Instrução comandada por uma figura impagável, um tenente gordinho, que, dizia-se, tinha-se coberto de “honra & glória” no Norte de Angola. Já esqueceste o seu nome, para bem da tua higiene mental.

Em Bissau, estavas hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite. (Era assim que, na época, se chamavam, “en français, comme il faut!”, todas as espeluncas da noite, em Lisboa e,  onde se bebia uísque marado, "de Sacavém", e havia umas miúdas de minissaia e cueca vermelha, peludas,  que te faziam olhos remelosos, e cócegas no pescoço… Tinham unhas compridas, como os felinos, pintadas de um verniz vermelho horroroso. Faziam, pela vida, coitadas. E viviam nas periferias de Lisboa que cresciam então como cogumelos, em arredores como a linha de Sintra, começando na Reboleira.)

O raio da espelunca de Bissau tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi, “Em tua casa” … Convidativo ao voyeurismo: "entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa, não importa que seja a 4 mil quilómetros de distância de Lisboa"… Era já uma antevisáo do bar de alterne...

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de patacão, que não viam há meses um pedaço de chicha (leia-se: carne de fêmea, branca, “comestível", em linguagem de "cabra-macho"), o Chez Toi devia ter um especial encanto que tu nunca conseguiste saborear nem descortinar…

Enfim, trazia aos machos solitários, tugas, que vaguegavam por Bissau, como baratas tontas,  algumas vagas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa e Porto, que o resto era paisagem, no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato, tão triste, tão desolador, tão deprimente, tão… (Porra, já chega!)

Uma deusa chamada Sophia tinha, em 1962, descrito no seu  “Livro Sexto” (um livrinho de poemas de cento e poucas páginas),  esse país liliputiano, onde quem mandava era um velho abutre:

“O velho abutre é sábio e alisa as suas penas, / A podridão lhe agrada e os seus discursos / Têm o condão de tornar as almas mais pequenas.”

Já não sabes como lá foste parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Indicação do turismo local, ou de um algum "proxegeneta" da 5ª Rep (o café  Bento), enfim, não te recordas. Para o caso também não interessa. Andavas desenfiado, há uns dias, em Bissau, antecipando o gozo do início da licença de férias na Metrópole. Tu e outro gajo da tua companhia. Aguardavam o avião da TAP para Lisboa. Tinham vindo com alguma antecedência, de noite, no "barco turra", rio Geba abaixo, outra pequena grande aventura...

Sim, era assim que se dizia: o gozo da licença de férias!... Eram as primeiras férias pagas da tua vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Farias questão de dizer, mais tarde, já "paisano", que não tiveste problemas de consciência nem devolveste, à Pátria, o dinheiro, sujo, de “mercenário”, saudação a que tiveste direito à chegada, num dos primeiros grafitos que te lembras de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa: “Não sejas otário, / muito menos mercenário; / isto vai mal, / diz não à guerra colonial”).

Otário, mercenário?!
... Confessaste depois que te sentiste mal. Insultado, mesmo com as tuas reservas em relação à puta da guerra em que estavas metido. Sentiste que era um insulto a quem, como tu e os teus soldados, não deram o salto para o estrangeiro de fora, e cumpriam em África, longe de casa, uma missão em nome da Pátria, a qual estava acima de todos os regimes... Santa ingenuidade, a tua!

Estava-se em plena época das chuvas, talvez julho de 1970, já não te recordas bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E tu deixavas para trás um ano de intensa atividade operacional. Nessa noite foste dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, arranhava o francês de praia ou, pelo menos usava expressões, coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris que tu nunca viverias. ) Mas o bas fond em Bissau era, para a tropa-macaca, o Pilão, com má fama e bom proveito.

2. Abra-se aqui um parênteses, para explicar que tu tinhas feito uma aposta, tu e o teu parceiro do Chez Toi, coisas de machos solitários, bravatas, que fazem parte dos ritos de passagem da rapaziada da época: ir "dormir uma noite ao Pilão", antes de embarcar no avião da TAP; o primeiro a “desemparar a loja" e a "cavar", pagava o almoço no restaurante Pelicano, no dia seguinte. Era um teste de resistência, de virilidade e de coragem física... Pobres diabos!...

Ficaram os dois numa espécie de "casa da mariquinhas” lá do sítio, de toscas tabuinhas e telhado de zinco, e cada um foi com a sua “bajuda", cabo-verdiana, os quartos lado a lado, e com a "saída de emergência" por ali perto, mentalmente assinalada, para o que desse e viesse... Trajavam à civil e andavam... desarmados.

Às duas da noite, tu levantaste-te, vestiste as calças, deixaste a nota de 100 pesos que havias combinado com a rapariga, em cima do caixote que servia de mesinha de cabeceira, e saíste...

A atmosfera era sufocante, o zinco transformava as casas em estufa quente, as paredes de tabique deixavam passar os ruídos, de fora e de dentro, e sobretudo não aguentaste o choro de uma criança que dormia debaixo da cama, ao lado do balde do mijo, e em quem tu nem sequer tinhas reparado quando entraste, à luz mortiça de uma vela... Era demais para o teu estofo!...

Bateste à porta do outro quarto onde estava o teu parceiro, três toques secos, com os nós dos dedos, como combinado, e, passada meia hora, regressavam os dois, ao Chez Toi, meio "almareados" (o termo era do teu companheiro de viagem, oriundo do baixo Alentejo, Ourique ou Odemira, já não te lembras ao certo) e bêbados de sono.

3. Logo por azar nessa noite alguém arrombara a porta do teu quarto no Chez Toi, forçara o cadeado da mala de cartão e fanara-te uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, Old Parr e Dimple, para oferecer a quem devias favores, lá na terra, eram toda a riqueza que tu levarias a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionavas comprar no Taufik Saad na véspera do embarque.

Foste de imediato falar com o gordo do gerente do Chez Toi, que estava a aviar copos ao balcão. A conversa tornou-se logo desagradável: sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa, o gerente começou por pôr em dúvida a tua versão. Mas acabou por aceitar ir averiguar o sucedido, face aos veementes protestos, teus e do teu parceiro de aventuras...

As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, ali do "chão de Papel", que fazia o serviço de quartos. Em Bissau, não havia criadas, só criados, como no resto da África colonial ou pós-colonial.

Gerou-se algum burburinho. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque ou gin tónico na mão, juntaram-se a ti e ao teu solidário parceiro do Pilão.

O clima, no barzeco, que tinha música ao vivo, começou a ficar propício à pancadaria e até ao linchamento, depois dos teus protestos perante o gerente, por causa do arrombamento da tua mala de cartão. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais. Toda a gente, afinal, se sentiu lesada...

Tu e o sabujo do gerente já tinham chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque, que andava a servir às mesas, suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum álibi (nem porta, a não a ser a principal, para fugir). Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de insultos de teor racista:

– Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... A culpa é do Caco Baldé, que obriga aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, provavelmente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que tu, mas mais entroncado. Estava visivelmente eufórico, para não dizer embriagado. 
Tiveste então a infeliz ideia de o tentar acalmar, respondendo cilizadamente à sua provocação:

– Ó amigo, vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com os meus camaradas que arriscam todos os dias a vida…

O tipo não te deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça, de garras afiadas, direitinhas à tua carótida… Foi a primeira (e única) cena de porrada, de luta corpo a corpo, em que tu te viste envolvido no teatro de operações da Guiné… De facto, nunca tinhas sentido o "inimigo" tão perto, olhos nos olhos… Foram os dois ao chão, mas os gajos do conjunto (caixa, guitarra elétrica e voz) continuaram a tocar, no meio da algazarra, o "All you need is love"...

Providencialmente foi nessa altura que “ele” apareceu, fardado... "Ele", o teu anjo da guarda... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-te daquela situação de embaraço, apuro e aflição.

Escusado será dizer que o teu agressor também eram afinal,  militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, ou em trânsito para o mato, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar prontamente até ao cais apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a "ramona"… Quando te deste conta, eram já três ou quatro da madrugada…




Excerto do desdobrável publicitário do "Chez Toi", restaurante, pensão e "boite", sita na rua eng Sá Carneiro. Exemplar da coleção do nosso coeditor Carlos Vinhal. Data: Bissau, 15 de fevereiro de 1971. Parece que em 1973 também era conhecido por "Gato Negro"...

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



4. “Ele”, o teu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que "o teu conhecido de Tavira", com quem de resto tu ainda tinhas umas velhas contas por saldar…

Resumidamente, aqui a vai a tua versão dessa história que te estava atravessada e que remontava ao quarto trimestre de 1968, em Tavira.

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da instrução da malta, levaste dele uns socos valentes nos queixos. Tu tinhas adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto "nem a aleijar nem a ser aleijado"… Esperavas, com a tua ingenuidade e boa-fé, que o teu parceiro, com mais cabedal do que tu, 10 ou 12 cm mais alto do que tu, entrasse no jogo do faz-de-conta… Como muitos dos instruendos do CISMI faziam, de acordo com um "tácito código de honra" mais ou menos assumido, se não por todos, por muitos, para quem Tavira era apenas mais uma estaçáo do calvário...

Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. E que pontuava. Estava sobretudo  obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos três melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar, como era o seu sonho…

Ficaste-lhe com um pó dos diabos!... Ainda hoje te doem os queixos da “porrada” que apanhaste, segundo confidenciaste mais tarde… Não tinhas, pois, grandes razões para te lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabaste por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as vossas duas companhias para a Guiné. Trocaram um olá, meio embaraçados ou "encavacados", já o navio tinha passado as Canárias.

– O que lá vai, lá vai. Boa sorte! – foram as únicas palavras de despedida que vocês disseram um ao outro, nos Adidos, em Bissau, depois de relembrarem o episódio de Tavira.

– Sem ressentimentos! E agora, que Deus e os santos te protejam!– terás gracejado tu.

5. Voltaste a reencontrá-lo, por um bambúrrio, nessa noite, no Chez Toi. Afinal, iam ambos de férias. Ficaram com os contactos um do outro. Ele ia para Bragança, sua terra natal. E foi aí que o procuraste, quase cinquenta anos depois, na sequência de uma estadia em Montesinho onde tu passaras uns dias, em turismo. 

Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem que esperavas encontrar precocemente envelhecido, como alguns dos antigos combatentes que tu conhecias, uns já viúvos, solitários e amargurados, a lidar mal com a reforma, as doenças da idade e os fantasma do passado. Mas, não, o Carvalho (era o seu apelido) tinha ganho um novo fôlego, uma "alma nova",  entregando-se agora às delícias da natureza (fazia visitas guiadas no Parque Natural de Montesinho).

(...) “Talvez não acredites, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné. Lá, e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não conseguia, aliás ainda não consigo…

“Sem surpresa, vejo agora que afinal alguns gajos também tinha o seu… diário secreto. Num dos últimos almoços da nossa companhia, lá em baixo, no Sul, tínhamos combinado levar fotos e papéis da Guiné e houve vários camaradas que trouxeram os seus apontamentos, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… No meu caso, eram simples notas,  esboços, rabiscos, até recortes de jornal e revista e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida quotidiana das tabancas por onde andei… Uma forma, afinal, de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo. (Acho que tinha algum talento para a ilustração, que acabei por não desenvolver, depois da "peluda".)

“Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...

“Sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa), tive a veleidade de retomar os meus papéis. Mas a escrita é algo de muito penoso. E eu, afinal, prefiro dar os meus passeios pela serra.

“Tentei voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Não acreditas, mas não tenho mail. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros, pelos meus filhos e netos, pelos amigos, pela malta do grupo dos amigos de Montesinh0

"Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no 'front office'. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província, até me fixar na minha terra natal (sou daqui perto de Bragança, da mesma aldeia da nossa amiga comum que que te deu o meu número de telemóvel. no posto de turismo).

 Enfim, uma vida a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil, de especulação, corrupção e negociatas, trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes das agências a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…

"É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Municipal. Voltei a Bragança, sim, bom filho à casa torna. A minha mulher é professora primária e reformou-se primeiro do que eu... 

"A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade como Lisboa ou Porto. Lisboa, por exemplo, deprime-me. Lá sinto-me como um lobo solitário, encurralado, apanhado pelo Fojo do Lobo.

"Pois é, voltei à folha de papel A4, e ao caderno de linhas, como na 4.ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou me arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de básquete, tal como fui um não menos candidato falhado a Polícia Militar. Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.


"Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei, antes da tropa, com um conhecido advogado aqui da praça que, depois do 25 de abril, haveria de chegar a deputado por um dos partidos do arco do poder. Eu fazia a biscatagem de aprendiz de solicitador. Bati muitos requerimentos em papel selado…

“Ainda te lembras do papel selado?!... Quando o chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um 'Vou-te embrulhar em papel selado!'…


“Mas agora acabou. A minha velha máquina de datilografia está arrumada a um canto.  Foi das primeiras máquinas portuguesas, a aparecer no mercado,  com teclado HCESAR. Não me perguntes a marca... Messa, dizes tu?...Ah, sim, seria uma Messa... De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.

"Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro com as minhas memórias da Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.


“Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invetiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.

"Nasci em 1947  
  como tu, suponho, somos da mesma colheita, não?! – muito longe do mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira, o cardeal-patriarca de Lisboa ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.

"Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher mais nova do régulo, que tinha muitas)… 

"Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais, e em que fui educado na catequese e no seminário. Tive uma educação cristã, como toda a gente na minha terra. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí!).

“Matei, não matei?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. Na realidade, matei, na guerra; não sei das balas que disparei; a matar, de certeza, foi apenas por razões humanitárias, ou em autodefesa... Matei, sim, conscientemente, para abreviar o sofrimento de um  homem ferido de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.

'Medo?', perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, algumas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN, em que estávamos mais expostos. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné. Perdi cedo as ilusões!...


"Se bem te lembras,  fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive,  foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo, na margem esquerda do Rio Corubal, não longe já da foz… Ainda era 'periquito' e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanas da companhia, 'meias-lecas', filhos da mãe...

"Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lados de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Estavam em contraluz, não nos viram... Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta (ou biafada, não te sei dizer ao certo),  mais ou menos da minha estatura, estava por um fio… 

"Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava à beira de um ataque de nervos, e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o 'turra' ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu, nem sequer o sacana do alferes 'ranger', comandante do meu pelotão.

"Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão, o 1.º pelotão, olhava, constrangida, ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. 

"Ainda 'periquitos' com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.

"Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista como eu, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos 'jagudis' e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV, a DO 27, com o sacana do major de operações do batalhão de Tite, nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar por sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...

"Nos olhos do 'turra' pareceu-me ler uma última súplica: 'Depressa, 'tuga', dá-me o tiro de misericórdia... E que o teu deus te pague!'

"Fui tocado, acredita, por aquele olhar de humanidade! Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera e sangrara de imediato, havia dois meses atrás, numa caçada noturna. (Como transmontano, nado e criado no planalto, eu era caçador, não direi exímio, mas era bom caçador.)

"Não, não era um porco, era um homem que estava ali a morrer, igual a mim, exceto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava, na bandeira por que lutava... Trazia amuletos no peito e nos braços, tal como eu que usava um fio de ouro com o crucifixo. Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, as tripas de fora, o sexo esfacelado, gemendo baixinho, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror, piedade e compaixão...


"E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu... A sua cabeça estoirou, a massa encefálica misturou-se com a lama das minhas botas de lona… Nunca mais esquecerei aquela cena atroz. E nunca mais usei aquelas botas, conspurcadas!

"Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDM que nos esperava no tarrafo, no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, no 'gosse-gosse', mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no Leste. 

"Durante semanas, os olhos vidrados do 'turra' não me saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica, injusta e repugnante, de 'Furriel Ca...rrasco'. (Como eu gaguejava um pouco, quando me enervava, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...

"É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. Só vias o rosto dos prisioneiros ou de um ou outro guerrilheiro abatido junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate.

“Só mais tarde, muito mais tarde, li o conto do Miguel Torga, 'O Alma Grande', o gajo de manápulas compridas que era chamado, na aldeia, para apressar a morte dos moribundos. Chama-lhe eutanásia, se quiseres. Neste caso, ele usava o travesseiro para sufocar o moribundo. Tudo isto a pedido da família, que devia ser cristã-nova, e que queria evitar com isso que viesse o abade com os últimos sacramentos, a extrema unção…

"Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma vez ou duas vezes. Numa ocasião, recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da política do Spínola. E isso deu-me algum consolo. Noutra ocasião, o capitão que achava que eu daria também um bom torcionário, e poderia  pôr a 'cantar' um  gajo suspeito da população...  Recusei-me, indignado, o suspeito, um mandinga,  foi entregue à PIDE de Bafatá.

"Não, nunca usaria a faca de mato, se é isso que queres saber. Daquela vez (e única, juro) preferi o tiro na nuca... Fiquei com má fama, dentro e fora da companhia. E, no fim, nem uma merda de um louvor me deram, a começar pelo safado do capitáo, que depois meteu o chico...

"Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo 'uppercut' que te ia pondo KO... Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos que tiveste de desenvolver para te saberes defender melhor... Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti. E acho que estamos quites,  pensando no apuro de que eu te livrei em Bissau, no tal Chez Toi... (já não me lembrava do nome).

"Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos, nem sequer à minha mulher. Um deles até é juiz, ainda pior. Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de perder a sua estima... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... Há um pacto de silêncio em relação âs merdas que cada um fez... Hoje tratam-me pelo meu apelido Carvalho (sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o 'Furriel Ca...rrasco', que era uma coisa que me irritava solenemente. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.


(...) "Como te disse, deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, transmontano como eu, o 'Alma Grande',  da colectânea 'Novos Contos da Montanha', se não me engano... 

"De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do 'abafador', a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos ou terminais... E em que só se chamava o médico, como ainda acontecia na minha aldeia, no tempo dos meus avós e dos meus pais... para passar o atestado de óbito!”...

6. Despediram-se com um grande abraço apertado, com a promessa de tu voltares, em setembro, a seu concelho, para ele te levar a  ver e a ouvir a brama dos veados no Parque Natural de Montesinho... 

Ele por lá ficou, em Bragança, a fazer aquilo que lhe dava gozo, que era ser guia da natureza e levar grupos a descobrir a sua região... Tu voltaste ao Porto, não sem ficares por um bom par de horas, ao longo da autoestrada, a A4, com um nó na garganta não menos apertado que o teu abraço...

© Luís Graça (2019). | Última revisão: 7/7/2023
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Nota do editor:

domingo, 27 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23821: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte II - Tavira e Leiria


1. Continuação da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.


II - tavira…

Depois de uns dias de férias na Figueira da Foz, intervalo da recruta para a especialidade, a sequência natural: Tavira.
Comboio da linha do Oeste, até ao Rossio, passar o Tejo de barco e apanhar outro comboio no Barreiro - aventura!

Cheguei ao Barreiro, final do dia, e disseram-me que só teria comboio para Tavira de manhã cedo.
Como lá estavam mais dois instruendos que também iam para Tavira, fazer a especialidade, trocámos ideias sobre como passar a noite, até à hora do comboio.
Entrámos numa ‘tasca’, jantámos umas coisas e pedimos aos donos que nos deixassem lá dormir, com sucesso, e dormimos apoiados nas mesas.
Isto fez-me lembrar os meus tempos de boleia…

De manhã, bem cedo, acordaram-nos, tomámos o pequeno-almoço e lá fomos apanhar o ‘quim’ para Tavira.
No comboio, cada um procurou o melhor lugar para descansar, até Tavira.
Fui dormitando, dormitando, até que sou acordado por um senhor revisor, dizendo-me que tinha de sair, pois era fim de linha - estava em Vila Real de Santo António!
Ainda perguntei se mais alguém tinha ficado no comboio, mas disse-me que só eu, pelo que concluí que os outros nem repararam que eu tinha ficado dentro do comboio!
Conclusão: espera mais um comboio, para voltar para trás e chegar ao destino, Tavira.

Chegado a Tavira, apresentação no CISMI (centro de instrução de sargentos milicianos de infantaria) e inserção na 1ª Companhia de Atiradores de Infantaria, cujo comandante fiquei a saber que era o célebre ‘muleta negra’, porque andava apoiado numa espécie de pingalim, resultado de ferimentos no ultramar.
Também tive oportunidade de conhecer e conviver com o célebre ex-alferes Robles, agora, capitão, com uma ‘pancada’ de alto nível, fruto de experiências de guerra colonial em Angola e Guiné.
Curioso, termos concluído que tínhamos conhecimentos comuns de Coimbra, de onde era natural.

Entretanto, a minha tia Jú telefona-me a dizer que o primo Jaime Abreu Cardoso estava à minha espera, pois eu fazia parte de uma lista dos instruendos seleccionados nas Caldas da Rainha para seguirem para Lamego.
Claro que eu disse logo à tia Jú que não ia para lá e até já estava em especialidade, em Tavira, e nem sabia que o Jaime era oficial do quadro e estava lá, pensava que tinha feito a tropa normal e mais nada.
Ela, com razão, respondeu-me que era pena, pois teria a protecção do Jaime, já capitão e com medalhas, além de poder ir com ele passar os fins de semana a Vieira do Minho.
Realmente, uma pena, pois poderia ter uma tropa melhor e, quem sabe, até retomar a vida académica, no Norte, com as facilidades, além de considerar-me nos ‘meus domínios’…

Voltando a Tavira, tive a sorte de conseguir autorização de ‘pernoita fora’, pelo que logo arranjei um quarto, do lado de lá do rio, mas bem perto do centro da cidade.
E não esqueci a rua: Dr. Augusto Silva Carvalho, 15. A dona da casa era viúva e tinha uma filha que tocava piano, interessante, naquele tempo, e tinha amigas que se juntavam a nós, nos serões, bem divertidos.

Eu estava habituado a controlar as aplicações e exercícios militares, principalmente, os nocturnos, de forma a safar-me, o mais possível, desta vez, com o sentido no meu quarto, para tirar a farda e vestir a roupa de civil.
Uma das primeiras formaturas, com revista, o capitão ‘muleta negra’ toca-me nas pernas com a bengala, ordenando que passasse pelo gabinete, dentro de uma hora, com o cabelo rapado, para grande aflição do comandante do pelotão, o alferes Soares, um porreiríssimo.
Sim, ninguém acreditava que eu andava na tropa, pelo menos, pelo tamanho do meu cabelinho.
E até evitava pôr bem a boina para não estragar o cabelinho.
E o ‘muleta negra’ ainda hoje está à minha espera para me ver com o cabelo rapado!…

Um dos companheiros de arma que lá conheci, o Pedro, de Santo Tirso, passou a ser o meu parceiro de farras, como Luz de Tavira, Faro, Vila Real de Santo António,…
Em Luz de Tavira, conhecemos umas miúdas bem engraçadas que passaram a ser a nossa companhia, sempre que podíamos, principalmente, alguns finais de dia e fins de semana - uma óptima forma de passarmos o tempo.
No entanto, sempre éramos avisados do risco de termos de casar em plena parada do quartel…
E o Pedro ficou ‘maluquinho’ com uma daquelas miúdas, lamentando-se, pois tinha a namorada em Santo Tirso.
Não posso deixar de lembrar o esquema que montei, sempre que tinha exercício nocturno, normalmente, na serra.
Formávamos na parada do quartel e saíamos pelo portão sul, que dava para a Atalaia, um espaço livre que ficava nas traseiras do quartel, onde fazíamos exercícios, de dia.
Quando chegava ao portão sul, já eu tinha a G3 quase desmanchada e metida dentro da farda, após o que virava à esquerda, enquanto o resto do grupo virava à direita.
Com passo rápido, atravessava a Atalaia e seguia em direcção ao outro lado do rio, onde tinha o quarto!
No dia seguinte, um esquema parecido, com a G3 desmanchada dentro da farda e reentrada no quartel, para mais um dia jeitoso…

Um dia, chegados ao quartel, depois de exercícios no exterior, um cheiro horrível inundava o quartel!
Toca para o almoço e a malta entra no refeitório, onde o ar era irrespirável, tal a intensidade do cheiro, o que nos levou a rejeitar a refeição, logo, levantamento de rancho!
Como era a segunda vez, o quartel seria fechado, pelas informações que nos chegaram.
Acto imediato, a população de Tavira à porta do quartel, suplicando que não avançássemos com o processo.
O oficial de dia, em pânico, pede-nos para ficarmos por ali, sujando os pratos, sinal de que não haveria levantamento de rancho, mas reconhecendo o erro da cozinha.
Afinal, ele também era responsável, pois era obrigado a provar e aprovar a refeição, logo, conivente.
O que tinha acontecido: o almoço era peixe, mas tinha chegado atrasado e sem a quantidade adequada, pelo que foram arranjar dobrada, à pressa, metida nas panelas, sem a operação de lavagem completa - dobrada com feijão branco, com condimento especial…

Tirando este episódio, posso afirmar que foi o meu melhor tempo do serviço militar, sem qualquer dúvida.
Terminada a especialidade, apresento as minhas opções de colocação, para dar instrução, por ordem de preferência, Figueira da Foz, Coimbra, Leiria.

"Pelo menos, Adolfo, aproveitou bem esse tempo no Algarve.
Se tivesse ido para o Norte, mesmo sabendo que lá tinha o seu primo, talvez não tivesse sido tão bom."


Sim, Daniel, aproveitei bem aquele tempinho, no Algarve!
Mas, se eu adivinhasse o que me estava destinado, acredite que nunca teria deixado de fazer a especialidade em Lamego, independente do facto de lá ter o meu primo…


leiria…

Colocado em Leiria, no RI 7 (regimento de infantaria), apresento-me uns dias depois e sou inserido na 1ª companhia de instrução, cujo capitão era um ‘gajo’ aceitável.
Naturalmente, procuro um quarto na cidade, muito importante, para mim, apesar de ficar distante do quartel, sete quilómetros, mas havia muitos táxis…
E os trabalhos militares começaram, já com tudo organizado, sempre atento a todos os momentos que eu pudesse aproveitar fora do quartel, pois o ambiente era propício a aventuras e distrações…
Entretanto, surge o sinal de uma amizade, não só pelas circunstâncias de estarmos no mesmo barco, mas pelo facto de constatar que era uma pessoa educada e digna de confiança, o Vilas Boas Soares, do Porto.
Como mostrou interesse em ter um quarto na cidade, dei-lhe a indicação da minha casa e lá foi, tendo conseguido.
Passámos a parceiros de aventuras, nomeadamente, frequentando a pastelaria Soraya, no centro, junto ao cinema, local de encontro de malta jovem, principalmente, das meninas do lar que ficava junto ao outro quartel, o RAL 4 (regimento de artilharia ligeira).
Sempre que em dias de folga ou que conseguíamos ‘desenfiar-nos’, o ponto de encontro era na Soraya, de onde partíamos para as festinhas particulares.

Eu continuava sem grande jeito para cumprimento de normas e regras militares, o que se traduzia em algumas inconveniências, principalmente, para o comandante da companhia, um capitão do quadro.
Mas os homens a quem eu dava instrução eram tratados como homens que eram, não como bichos, pois os meus princípios e valores reinavam, sempre atento a uma ligação saudável, respeitadora.
O mesmo não se passava com alguns outros instrutores, com necessidade de afirmação, com recalcamentos ou complexos, que usavam as divisas ou galões para satisfazerem as suas necessidades de afirmação.
Por isso, todos aqueles a quem dei instrução me tratavam com carinho e respeito, o que nos enchia o ego, naturalmente.

Além da instrução militar e dos serviços de escala ao quartel, outras tarefas me eram atribuídas, como comandar um pelotão de piquete, para promoção e defesa da ordem militar, fora do quartel, assim como para a protecção do património nacional, nomeadamente, Mosteiro da Batalha.
Claro que viria o dia em que estas tarefas me seriam confiadas, que remédio…
Para aquele segundo caso, chega a minha vez e toca a formar o pelotão e sair do quartel, pelas oito da manhã, com chegada ao Mosteiro da Batalha e organização imediata da operação, com distribuição dos homens pelos pontos estratégicos.
Era um dia inteiro nestas circunstâncias, o que causava algum mal-estar aos homens, pois não tinham possibilidade de se ausentarem do seu posto, por muito tempo.
A meio da tarde, um dos homens, aflito da barriga, resolve fazer uma necessidade num canto do interior do Mosteiro, supondo-se livre de ser descoberto.
Uma denúncia, talvez de alguém em visita ao Mosteiro, acaba por fazer com que eu seja solicitado pelo presidente da câmara, para registo e responsabilização pelo acto.
Depois de algum tempo de conversa e mais conversa, a coisa ficou por ali, entre nós, pessoas bem-intencionadas, tolerantes e compreensivas.
Não deixei de notar a satisfação do presidente da câmara pela forma como lhe apresentei o pedido de desculpas, reacção que me deixou sensibilizado.
O homem em questão, confrontado por mim, não sabia onde se meter, coitado.
Chegados ao quartel, antes de entrarmos, tive uma conversa com ele, sosseguei-o e recomendei-lhe mais atenção e cuidado, a partir daquele momento, quer na vida militar, quer na etapa seguinte, a vida civil.

Mais um dia de rotina se iniciava, as companhias formadas, na parada, o meu grupo sozinho, pois eu tinha-me atrasado, o que obrigou o capitão como que a apresentá-lo a ele mesmo.
Mas a coisa foi notada pelo major de instrução, um militarista em toda a linha, temido por todos, desde a família até aos seus superiores.
Chamou o capitão e perguntou-lhe por que razão o grupo estava sem o graduado e ele próprio formou o grupo, ao que respondeu que o graduado tinha ido à caserna tratar de qualquer coisa…
Vá ao meu gabinete, após o destroçar das companhias.
E o capitão levou uma ‘piçada’, como dizíamos, um raspanete, uma chamada de atenção, nem sei se registada!
Mandou chamar-me e só me disse que eu pagaria caro o que acabara de acontecer.


dez dias de detenção…

Alguns dias passaram e eu sou escalado como comandante de piquete, logo, vinte e quatro horas de serviço, retido no quartel, sempre pronto para qualquer emergência.
Tinha uma festa na cidade e saí do quartel, a seguir ao jantar.
Estava muito bem na Soraya, com a malta, preparados para a festinha, cerca das dez da noite, toca o telefone e chamam pelo meu nome.
Eu nem queria acreditar que havia, por ali, alguém com um nome igual ao meu!
Repetem o meu nome, mas referem o RI 7.
Dei um salto e fui ao telefone: era do quartel, realmente, e logo me dizem que tinha tocado a piquete, que não saiu, pois faltava o comandante…
Desculpei-me e lá tive de ir ao quarto mudar de roupa.
Cheguei ao quartel, por volta da meia-noite e, quando me preparava para entrar, sou recebido pelo oficial de dia, que era, nem mais nem menos, o capitão da minha companhia:
- Eu não lhe disse que iria pagar caro?

Limitei-me a pedir desculpa pela infracção, mas não respondeu, claro.

Entrei e fui direitinho às instalações onde estava a equipa de piquete e logo alguém me disse que tinha havia desordem na cidade e, por isso, o piquete tinha sido requisitado, mas não saiu, pois eu não aparecia…
No dia seguinte, sou chamado ao segundo comandante do quartel que me dá conhecimento dos dez dias de detenção, com manobras militares fora do quartel, mas com um processo que daria despromoção e, até, possibilidade de imediata mobilização para o ultramar.
Falei com um sargento-ajudante da secretaria-geral que me aconselhou a falar com o capelão, pois poderia dar uma palavrinha ao primeiro comandante do quartel, a última palavra no veredicto.
Tudo correu bem, pois o primeiro comandante não permitiu a despromoção, limitando-se a confirmar a detenção.
E lá fui fazer os dez dias de manobras, em que executei diversas tarefas, dentro de algumas especialidades, incluindo saltos livres de helicóptero alouette, carregado de material de campanha, parte dos exercícios, na zona do pinhal de Leiria.
E não podia recusar nada!
Último dia, regresso ao quartel, pelas cinco horas da manhã, saturado e cansado, barba de dez dias, farda número três cheia de lama e pó, com o resto do grupo nas mesmas circunstâncias, sou recebido por um 1.º cabo, que estava de serviço, com um papel na mão:
- Desculpe, mas tenho aqui uma nota para si.
- Não estou com cabeça para notas!
- Pois, mas isto é importante…
Sim, ‘importante’: mobilizado para a província da Guiné!...

Dei instruções para que tratassem do espólio, entregassem as viaturas e recolhessem às casernas.
Não quis saber de mais nada, nem tomei banho e saí do quartel, com destino ao meu quarto, na cidade, após o que zarpei para a Figueira.
Lá fiquei duas semanas, alta recriação, sem nada dizer.
E as duas semanas passaram depressa…

Regresso a Leiria e, quando entro no quartel, logo na porta de armas, disseram-me que andavam à minha procura há muito tempo, com avisos constantes pelos altifalantes.
Dirijo-me à secretaria-geral e logo o sargento-ajudante me vem falar:
- Afinal, o que pretende da vida?! Vai continuar com essa postura pelo resto do seu tempo militar?! Acabou de apanhar um castigo, safou-se da despromoção e desaparece de cena?! A sua companhia está à sua espera, há muito tempo, em Abrantes!
- Tem razão, mas fiquei tão decepcionado com aquela nota que me deram: mobilizado para a Guiné.
- Eu vou tentar limpar as ‘nódoas’ que tem registadas, mas tem de me prometer que guardará só para si. E sabe porque o faço? Porque tenho um filho da sua idade e gostaria que fizessem o mesmo por ele! Veja se encontra o seu caminho certo e não se distraia, durante a comissão, na Guiné, pois aquilo é sério… E, quando voltar, não retome a sua vida civil com este comportamento, pois pode sofrer desgostos…’

Manifestei o meu agradecimento e lá fui direito a Abrantes.

"Realmente, Adolfo, vejo uma mistura de desleixo, de ingenuidade, para não dizer imaturidade! Desculpe a minha franqueza…"
- Sim, reconheço um pouco de tudo isso…

(Continua)

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Nota do editor

Poste anterior de 24 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23814: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte I - "e toma lá com o edital!"

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23750: Tabanca Grande (538): João Silva (1950-2022), ex-Fur Mil At Inf, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (1973/74), grã-tabanqueiro n.º 866, a título póstumo


João Pedro Candeias da Silva (1950-2022)


João Silva, fur mil at inf, de rendição individual, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (1973/74)


O João Silva e o Abibo Jau, o "gigante" da CCAÇ 12, mais tarde fuzilado em Madina Colhido, em 1975,  como já foi referido no Blogue. (Fuzilado com o ten 'comando' graduado Jamanca, ambos então da CCÇ 21).


O 2º sargento Vital (ajudava na secretaria), o João Silva, de t-shirt preta, e o Abibo Jau


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Bambadinca > CCAÇ 12 > 1973 > Os 4 furriéis da foto são da CCAÇ 12 e estamos sentados em Bambadinca, junto à nossa messe... Da esquerda para a direita: o Morgado, o Garrido, eu (António Duarte) e o Candeias da Silva.


Guiné > Ilha de Bolama > CIM de Bolama (c. 1973/74) > O João Candeias da Silva é o segundo a contar da direita em Bolama no CIM. O furriel de bigode foi citado há pouco tempo num poste e/ou fotos do CIM atual. Tinha nome de "Roupa Velha" (?)... ou "Curta (?)...



Guiné> Ilha de Bolama > CIM de Bolama (c. 1973/74) > Numa praia em Bolama. O João é o segundo a contar da direita.


Guiné> Ilha de Bolama > CIM de Bolama > Natal de 1973 > Foto de grupo, cada militar segura uma garrafa de espumante que, se presume, foi-lhe oferecida.

Fotos (e legendas): © João Candeias da Silva / António Duarte  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Faleceu no passado dia 14, o nosso camarada João Silva, um dos últimos soldados do império (*). Aos 72 anos. Vivia em Santiago do Cacém. Furriel Miliciano Atirador de  Infantaria, passou por Cabuca (CCAV 3404, 1972), Bambadinca e Xime (CCAÇ 12, 1973) e Bolama (CIM, 1973/74). 

Entra agora, a título póstumo, na nossa Tabanca Grande, apadrinhado pelo seu grande amigo e camarada António Duarte. E por mim próprio, editor do blogue. Nós, os três,  fomos furriéis milicianos da CCAÇ 12, eu da "1.ª geração", a dos fundadores (Contuboel e Bambadinca, junho 1969 / março 1971), eles da "3.ª (e última) geração" (Bambadinca e Xime, 1973/74).

Não o cheguei a conhecer pessoalmente, muito menos na Guiné: eu regressei a casa em março de 1971, ele foi para a CCAV 3404, em Cabuca, em janeiro de 1972. Era de rendição individual. Mas ele tem um dúzia de referências no blogue, e sempre que intervinha, em geral sob a forma de comentários, fazia-o para falar da sua condição de graduado da CCAÇ 12, subunidade de guarnição normal, constituída por graduados e especialistas metropolitanos e praças do recrutamento local, de que muito se orgulhava. 

Esteve 7 meses na CCAÇ 12, antes de ser colocado no CIM de Bolama com a missão de dar instrução a militares do recrutamento local. Já passou o Natal de 1973 em Bolama. E em maio de 1974, regressou à metrópole, pagando, do seu próprio bolso, a viagem na TAP.

Passou, desde anteontem, a ser o grã-tabanqueiro n.º 866. Prometemos honrar a sua memória (**). E republicar, em próximos postes, alguns dos seus valiosos e sempre oportunos comentários (**). Tem 13 referências no nosso blogue.

2. Comentário do António Duarte, de 29/10/2022, 18:12

Boa tarde Luís.

Sugeri a  entrada do João Silva na Tabanca Grande atendendo a que ele acompanhava o blogue e participava, embora através de comentários a postes. Inclusivamente, e com alguma frequência, mostrava ao filho e à filha textos do blogue, conforme os dois me contaram no dia do funeral.

Não formalizou o pedido por mero "deixa andar".

No entanto, decide como melhor te parecer, mas penso que se justifica, precisamente face ao acompanhamento do blogue e às participações nos comentários.

Se necessário posso fazer a pesquisa de mais comentários. (...)
 
Se necessitares de algo que eu possa ajudar apita sff
Abraço
Duarte


3. Dois comentários do João Silva 

(i) CISMI, Tavira. Terceiro turno de 1971.

Depois da recruta no Hotel das Caldas, rumámos a sul até Tavira para fazermos a especialidade de atirador de infantaria.

A viagem longa e demorada foi feita sem paragens em vilas onde pudéssemos dar ao dente, a excepção era para fazer xixi no meio do mato.

Em Tavira, no CISMI, destaco 3 personagens:

(a) Tenente Moleiro, que no primeiro dia apareceu no campo da feira, conhecido por Atalaia. O pelotão formou e depois do blá, blá da retórica, tirou o quico e disse: "é este o corte de cabelo da companhia";

(b) Caifás, o barbeiro onde nos iríamos apresentar e dizer "corte à tenente Moleiro":

(c) O capitão capelão que dava palestras aos sábados ao fim da manhã no refeitório.

O pessoal estava exausto, sentado e com o queixo apoiado ao cano da G3, não tardava em adormecer. A palestra que alertava para o "respeito" pelas meninas e ameaçava que,  quando tal não acontecia,  terminava em casamento na parada. E dava como exemplo o que, na recruta / especialidade anterior, tinha acontecido.

Depois era ouvi-lo: "tu aí ao fundo,  levanta-te e castiga-te a ti próprio".... "Sim tu que estavas a dormir"...

A malta como não sabia a quem ele se dirigia, levantavam-se dois ou três. Então dizia: "não és tu, ele sabe quem é". À segunda ou terceira acertava.

A malta que sabia tocar e cantar e fosse "actuar" na missa de domingo,  tinha tratamento VIP. Também havia outros VIP por serem futebolistas, destaco o Vaqueiro, um dos chamados bebés do Varzim. Havia mais.

A salina era onde os mais tesos eram humilhados por resistirem onde não havia hipótese de vencer. Terminava quando todos estávamos encharcados de água podre e mal cheirosa. O cheiro ficava presente por dias.

Na Guiné, onde fui dos primeiros a chegar por ir em rendição individual, encontrei vários camaradas. Destaco o Penedos, que tocava trompete e em Tavira já tinha um Renault.

João Silva, terceiro turno de 1971, com passagem por Beja, Depósito de Adidos e Guiné. (***)


(ii) Quem não entrou na equação do 25 de Abril foram os africanos que juraram bandeira e a defenderam ao nosso lado.

Camarada Luís Mourato: Ao ler o teu testemunho das lágrimas que viste nos olhos do militar que servia a bandeira portuguesa na Guiné,  trouxe-me à memória um episódio que recentemente foi aflorado aqui a insubordinação da 12 em Bambadinca em Março de 1973.

Hoje acredito que eram os primeiros sinais do fim da capitulação do exército português naquela longa e desgastante guerra.

A Bambadinca, na companhia de Spínola, chegaram para "resolver o assunto" 3 oficiais africanos garbosamente fardados de camuflado e galões reluzentes, que vieram para credibilizar o empenho do Governador e Comandante
-Chefe.

Depois da CCAÇ 12,  o meu destino foi Bolama e lá, entre os oficiais subalternos, era evidente o tema do livro "Portugal e o Futuro",  Spínola vem a Lisboa e não regressa. Almeida Bruno e Otelo já tinham regressado. No final de 73 regressam Salgueiro Maia e Luís Moura, meu capitão na CCAV 3404 em Cabuca,  e pouco conhecido, mas foi ele que veio de Estremoz a comandar a coluna que se juntou no Carmo na rendição de Marcelo.

Tudo bem pensado e organizado e o correcto. Fazer, o que tinha que ser feito, o Golpe de Estado. Quem não entrou na equação foram os africanos que juram bandeira e a defenderam ao nosso lado.

Foram, sem o mínimo pudor, depois de desarmados, deixados ao Deus Dará para serem vítimas de violenta chacina.

Quando será que todos nós nos retratamos por termos assistido de braços caídos e em silêncio?

João Silva
Ex-furriel mil at inf
Cabuca, Bambadinca, Xime, Bolama, Abril de 72 a Maio de 74. (****)
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(**) Último poste da série > 13 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23704: Tabanca Grande (537): José Moreira de Castro Neves, ex-Fur Mil Arm Pes Inf da CCAÇ 1551 / BCAÇ 1888 (Bambadinca, Fá Mandinga e Xitole, 1966/68)... Natural de Valongo, senta-se no lugar n.º 865, sob o nosso poilão

(***) Vd. poste de 31 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21719: (Ex)citações (382): Tavira, CISMI, por quem nenhum de nós morreu de amores... (João Candeias da Silva / Carlos Silva / Luís Graça)

(****) Vd. poste de 23 de dezembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21679: (In)citações (174): Apesar de agnóstico, ainda conservo, na cabeceira, um crucifico-talismã que alguém deixou na tabanca onde eu pernoitava: Ká pudi larga mezinho qui pudi salvar kurpu (Luís Mourato Oliveira, o último comandante do Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22765: Tabanca Grande (528): Victor Manuel Ferreira Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974). Senta-se no lugar n.º 855, à sombra do nosso poilão


Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Victor Manuel Ferreira Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72, com data de 27 de Novembro de 2021:

Camarada Luís Graça:

Há cerca de dois meses que tenho conhecimento desta vossa iniciativa e desde então que tenho seguido uma pequena parte das vossas publicações, mas nem preciso de ver mais para considerar este trabalho muito importante para que se escreva a verdade histórica sobre o que foi a Guerra Colonial e em particular na Guiné.

Não há em Portugal consciência da coragem manifestada por estes combatentes neste teatro de Guerra, apesar da insuficiência quer em quantidade quer na qualidade do nosso equipamento Militar, comparado ao do IN.

É também a nossa obrigação, darmos a conhecer aos nossos netos este período da nossa vida, resistirmos e denunciarmos a manipulação dos factos feita por alguns jornalistas sobre os nossos heróis com o intuito de apagar a história, nomeadamente o 25 de Novembro de 1975.

Todos nós temos opiniões diferentes sobre os vários temas abordados, mas ainda bem que é assim, da discussão nasce a luz e já temos idade suficiente para sabermos ouvir mantendo as nossas convicções.

Penso ter em meu poder alguns documentos classificados sobre o MFA na Guiné do período pós-25 de Abril, que ainda não vi publicados. Se acharem que o tema tem algum interesse, estou à vossa disposição para os dar a conhecer.

Sinto que pertenço a esta cruzada e pretendo entrar nesta casa desde que o permitam.

O meu nome é Victor Manuel Ferreira Costa, sou natural da freguesia de S. Julião da Figueira da Foz e resido na freguesia de Lavos do mesmo concelho, nasci a 17 de Abril de 1952, fui recenseado pelo DRM 12 de Coimbra, com o NM  01271573.

Fui incorporado em 26 de Abril de 1973 no RI 5 das Caldas da Rainha, que constam da minha Carta Militar.

No fim da recruta, fui transferido para o CISMI de Tavira, tendo completado o curso de Sargentos Milicianos de Infantaria na especialidade de Atirador de Infantaria e de acordo com a minha classificação passo à categoria de rendição individual.

Colocado no CICA 2 da Figueira da Foz, exerço a função de instrutor, durante 4.º Turno de 73 e o 1.º Turno de 74.

Mobilizado em 4 de Março de 1974 para a Guiné, beneficio de 10 dias de licença e no dia 16 de Março do mesmo ano, a bordo de um Boeing 727 da FAP, chego ao aeroporto de Bissalanca e daí em transporte rodoviário para Bissau, a fim de render um camarada Fur Mil, morto em combate na região de Bafatá.

Fico instalado no QG e aguardo ordens, que chegam uns dias depois. Fazer o espólio de guerra do camarada acima citado.

No final do mês de Março sou colocado na CCaç 4541/72 em Safim.

Nesta Unidade é-me atribuído o comando de uma Secção constituída por mim, 3 Cabos e 7 praças e dou início à minha actividade operacional realizando patrulhas e controlos em João Landim Sul, Impernal, arredores da BA 12 e Capunga. A Norte do Rio Mansoa no destacamento de João Landim Norte, segurança e patrulhas do Rio Mansoa até Bula.

Em Maio de 1974, fui eleito membro da Delegação do MFA na CCaç 4541/72.

Regresso à Metrópole a 3 de Outubro desse ano em avião da FAP.

Com os melhores cumprimentos,
Victor Costa


BI Militar


Certificado Internacional de Vacinação ou de Revacinação contra a Cólera
Declaração de passagem à disponibilidade a partir de 1/11/74

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Comentário do editor:

Caro Victor, sê bem-vindo à nossa tertúlia. Ficas no lugar n.º 855, bem à sombra do nosso poilão.  Ficas registado como Victor Costa, como podes verificar na coluna estática do nosso blogue, lado esquerdo, na  TABANCA GRANDE - LISTA ALFABÉTICA DOS 855 AMIGOS & CAMARADAS DA GUINÉ.

Quase, quase te libravas da chatice da guerra. Foste dos camaradas que fecharam o conflito, e daqueles que felizmente não sofreram uma sombra daquilo que nós os mais velhos sofreram. Ficámos felizes por isso.

Como dizes, queremos que o nosso Blogue, além de um repositório de memórias, seja um sítio onde se possa discutir abertamente o problema da guerra na Guiné, particularmente, sem prejuízo de se abordar genericamente o que se passou nos outros TO. Só pedimos às pessoas que respeitem as diferenças de opiniões. Une-nos o mais importante, o enorme rol de sacrifícios passados, a incerteza do regresso, o temor de cada passo dado, a fome, a sede, etc.

Aceitamos o teu desafio pelo que ficamos à espera que nos envies a documentação que tens e aches importante para retratar os últimos dias de guerra que antecederam a paz na Guiné.

Estamos ao teu dispor nos e-mails constantes na aba da nossa página.


Para ti, um abraço dos editores e da tertúlia.
CV

PS - Temos, no nosso blogue, duas referências a um camarada da tua companhia, o José Guerreiro, natural de Portimão, e que procura camaradas como tu... Será que te lembras dele? Vê aqui (**). 

Ele ainda não respondeu ao nosso convite para integrar a Tabanca Grande, tu és pois o único representante da CCAÇ 4541/72 que antes de ti andou pelo sul, pela região de Tombali: Caboxanque, Jemberém, Cadique, Cufar. O José Guerreiro tem conta no Facebool, desde 31/3/2010.
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Notas do editor

(*) Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22661: Tabanca Grande (527): António G. Carvalho, a viver em Ponta Delgada, ex-fur mil op esp, CCAÇ 2592 / CCAÇ 14 (Bolama e Cuntima, 1969/70). É Deficiente das Forças Armadas. Senta-se no lugar nº 853, à sombra do nosso poilão

(**) Vd postes de: