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quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24924: Historiografia da presença portuguesa em África (397): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Maximin Astrié, comerciante francês por conta de outrém, anda pelos Bijagós, numa altura em que a presença portuguesa estava praticamente reduzida a Bolama. Decide-se por visitar Orango, é confrontado com as crueldades de um rei déspota, exalta as belezas da natureza e só espera por uma oportunidade para sair dali, já foi espoliado, teme pela sua vida, felizmente que gente da sua equipagem lhe apela ao bom senso, até agora está tudo a correr bem, deixamos para o terceiro e derradeiro texto o desfecho da história, é claro que o comerciante francês saiu são e salvo, agora o leitor fica a perceber que uma coisa foi a pacificação de Teixeira Pinto, em 1915, os Bijagós fizeram a vida negra aos portugueses e Canhabaque só se rendeu em 1936. No meio de toda esta hostilidade, fazia-se imenso comércio na região, tive a possibilidade de estudar a documentação do BNU da Guiné e a agricultura bijagó tinha o seu peso. Os comerciantes sediados em Bolama tudo fizeram para que a capital não fosse para Bissau, sabiam bem porquê.

Um abraço do
Mário


Viagem ao arquipélago dos Bijagós, 1879 (2)

Mário Beja Santos

A Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa possui um exemplar de Viagem ao Arquipélago dos Bijagós, por Maximin Astrié, negociante francês em Bolama, Luchon, 1880, o exemplar foi uma oferta de Godefroy Gairaud, vice-cônsul de Portugal em Carcassonne. Lembro-me perfeitamente de ter deitado uma vista de olhos a este texto, mas não me recordo de o ter traduzido no essencial, tem elementos até de caráter antropológico do maior interesse. E ficamos claramente a perceber que em 1878 a nossa presença nos Bijagós era por demais ténue. Vamos então ao essencial do texto. Como se escreveu no texto anterior, o rei déspota de Orango, depois de consultar os seus deuses matando um galo que enquanto estrebuchava se afastava do mercador francês, anunciaram-lhe que estava preso. E um conjunto de peripécias mirabolantes irão ter lugar, conforme ele vai escrever no seu testemunho.

Uma centena de bijagós dirigiu-se para a minha embarcação e dela tudo retiraram. Eu estava suficientemente aterrado para me opor ao saque. Resistir não tinha sentido, este povo estava submisso a este déspota, se reagisse seria trucidado. Resignado com a minha sorte, pedi à minha gente que esperasse pacientemente o evoluir dos acontecimentos. O meu cozinheiro, com a maior serenidade, trouxe-me um prato de galinha com arroz. A minha refeição foi interrompida com a chegada do touro que fora degolado diante dos meus olhos. O rei comunicava que fizera matar o touro em minha intenção e pedia-me que lhe oferecesse um quarto, é claro que prontamente concordei. Parecia que a situação não era tão má como eu inicialmente supusera. Respondi que oferecia dez galões de aguardente, logo se ouviu um murmúrio de congratulação. Até o rei veio pessoalmente agradecer-me. E através do meu intérprete fez-me saber que eu era livre de percorrer toda a ilha e que, entretanto, se iriam preparar festividades públicas.

Estava desorientado com este rei que me mantinha prisioneiro e que oferecia ao mesmo tempo presentes e festividades, tudo me parecia incompreensível, embora tenha vindo a constatar, no seguimento das minhas viagens, que era um procedimento bastante comum a alguns dos reis destes países.

No dia seguinte dirigi-me para o interior da ilha. Após ter atravessado muitos campos de milho, de inhames e de batatas, entrámos numa floresta que cobre grande parte da ponta oeste de Orango. Já tinha visto muitas florestas, lido numerosas descrições, mas nunca tinha lido nem visto nada que se parecesse com esta prodigiosa natureza. Encontrávamo-nos debaixo de uma abóbada de árvores gigantes da costa africana, cujo tronco serve para construir as pirogas. Lianas com as formas mais bizarras e as mais variadas envolviam-se à volta dos troncos vigorosos, trepando até ao topo. Estas árvores, cuja altura ultrapassa em muito os nossos maiores carvalhos, estão cobertas de uma folhagem de tal modo espessa que os raios solares não podem penetrar, e, por isso, não há nenhuma vegetação no solo. Atravessámos livremente uma clareira que me parecia infindável e que era dominada por uma vasta cúpula de verdura onde vibravam os gritos, os cantos, os meados e os uivos de milhares de animais. De quando em quando, numa aberta de luz, apareciam goiabeiras inclinadas sob o peso dos frutos amadurecidos. Estes frutos têm um gosto saboroso. Viam-se misturados o caju, o bambu, a palmeira; esta é objeto de muitos usos, desde vestuário a cordame, dela se extrai o vinho de palma e o óleo. Avançávamos muito lentamente, numa contemplação muda. Subitamente, chegou-nos o ruído de vozes humanas misturada com golpes de machado e sons guturais estranhos, entre o riso e o urro. Logo nos apercebemos, como numa visão fantástica, uns cinquenta negros agrupados à volta de um mesmo tronco, faziam uma piroga destinada ao rei. A construção de uma piroga exige não só meses inteiros de trabalho, mas uma quantidade considerável de braços, pois os indígenas estavam munidos de instrumentos grosseiros de trabalho que exigiram apenas alguns dias a um trabalhador europeu. Explicaram-me que esta piroga se destinava a substituir a piroga de guerra que ficara danificada pelo mais recente maremoto. Esta nova piroga destinava-se a uma expedição contra o rei de Oul. A piroga é considerada pelos bijagós como o mais importante sinal de poder e riqueza. O que parecia ser o chefe dos trabalhadores fez-me sinal que tinha qualquer coisa de especial a mostrar-me. Segui-o através de um tufo de bambus onde me foi dado ver a cabeça de um touro em madeira com grandes cornos, este objeto deveria ser colocado à frene na piroga, à maneira dos emblemas que vemos nos navios europeus. Veio, entretanto, um negro avisar-me que o meu cozinheiro tinha preparado uma refeição.

Seriam duas horas e estava em a fazer uma sesta quando vi entrar o ministro da Justiça que me convocava para eu ir a casa do régulo. Oumparé esperava-me deitado numa esteira, o rosto inchado, os olhos injetados de sangue, pareceu-me fatigado e nauseado pelas orgias da noite anterior. Anunciou-me em primeiro lugar que na minha ausência fora visitar as minhas mercadorias e que retirara para si os objetos que mais lhe agradaram. Adiantou que passara a dispor do meu barco que fora transferido para outro ponto da ilha, perto dos bancos onde naufragara o navio austríaco. Acolhi a notícia com uma indiferença aparente. Seguidamente o rei quis saber a maneira como os brancos procedem para fazer a guerra, para praticar a justiça e receber os impostos. O seu espanto foi imenso quando lhe falei de exércitos permanentes, de cavalaria, de metralhadoras. Manifestou imediatamente o desejo de possuir estas armas para combater contra o rei Oul. Devo confessar que as informações que lhe dei sobre o modo de praticar a justiça em França lhe causaram uma admiração muito limitada. Teceu considerações que me comprovaram que Oumparé tinha o sentimento do poder pessoal muito desenvolvido, seria considerado num país civilizado um déspota. Não me perguntou nada quanto ao modo de vida nos nossos países, o que comemos, as festas que fazemos, tudo o que se prende com a civilização material deixava-o absolutamente frio. A nossa conversa foi interrompida porque trouxeram ao rei cinco enormes talhas cheias de vinho de palma. Explicou-me que era hora das libações, estas duravam cinco horas até à meia-noite. Bebia até cair na esteira. Despedi-me e fui ver o que o rei apresara das minhas mercadorias. Servira-se das minhas mercadorias à grande.

No dia seguinte, testemunhei um acontecimento bizarro que vos vou contar aqui com todos os pormenores. Alguns dias antes da minha chegada à ilha, um pobre diabo chamado Outapa tinha sucumbido a uma doença misteriosa, que é designada na Senegâmbia por doença do sono. Os infelizes tocados por este mal perdem o uso das suas faculdades intelectuais, ficam autênticos animais. Parece que só obedecem ao supremo instinto de conservação, movem-se, falam e alimentam-se maquinalmente. Incapazes de trabalhar, caem na extrema miséria. Atribui-se este mal a um veneno vegetal que será muito comum nas florestas onde cresce a borracha. A questão não está medicamente esclarecida.

A mulher de Outapa, Tchiourra, era acusada de lhe ter acelerado a morte. Como saber a verdade? Em França, ter-se-ia simplesmente procedido à autópsia. Estes selvagens atuam de outra maneira. O chefe religioso manda construir um manequim que se pensa representar o defunto Outapa. Este manequim é colocado num ponto alto da tabanca preso por cordas ligadas a quatro estacas fixadas no solo. Evoca-se a alma do morto e cada um pode perguntar publicamente, na presença de divindades, quem é o verdadeiro culpado. Após a sesta, Samba Salla veio avisar-me que tudo estava pronto para a cerimónia. O chefe religioso pronunciava palavras misteriosas que me parecia evocar a alma do infeliz Outapa. Estendeu as mãos para o manequim e gritou bem alto: Outapa, porque morreste, fui eu que te matei? O manequim não respondeu. Vieram os principais habitantes da ilha fazer as mesmas perguntas ao manequim. Veio depois Tchiourra, uma negra de grande beleza, fez as mesmas perguntas e ocorreu um fenómeno inexplicável para mim, o manequim pareceu estremecer e balançou-se duas vezes como se estivesse a dizer sim. Houve grande clamor da multidão, Tchiourra foi levada à justiça do rei.

Deu-se uma cena de uma ferocidade selvagem. A um sinal do rei, um negro, hercúleo, aproximou-se munido de um martelo parecido aos nossos martelos de forja e com uma corrente que tinha em cada extremidade dois aros informes, a condenada foi algemada. Apareceu um cepo sob o qual foram colocados os braços de Tchiourra, esta estava energicamente presa por quatro bijagós. A rebitagem das cadeias de ferro provocou um enorme sofrimento à condenada, um martelo acidentalmente quebrou-lhe um antebraço, ela caiu inanimada.

Não pude suportar mais tempo esta carnificina e esquecendo que estava eu próprio à mercê destes selvagens, tirei de um bolso um revólver, mas senti que me prendiam vigorosamente a mão, era Samba Salla que antevendo as consequências da minha loucura me afastou deste horrível espetáculo. Tchiourra foi levada para a prisão, um buraco que mais parecia o inferno escondido de Dante. Já lá estavam dois condenados e com Tchiourra eram agora três condenados destinados a uma morte lenta roídos pela febre e fome.

Costumes bijagós, imagem publicada em Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, n.º 10/11, 1954
Régulos bijagós, fotografia de Luís Paulo Ferraz, com a devida vénia
Escultura bijagó
Máscara bijagó, Museu Nacional de Etnologia, com a devida vénia
Rapaz bijagó em cerimónia de iniciação

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24897: Historiografia da presença portuguesa em África (396): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 27 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24172: Notas de leitura (1567): "Guinéus", por Alexandre Barbosa, um dos últimos grandes títulos da literatura colonial (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Alexandre Barbosa terá sido administrador colonial ou representante de alguma grande empresa, conheceu bem o Sul, deixou-nos páginas expressivas de literatura colonial, estava atento a um islamismo que cultivava (como continua a cultivar) práticas animistas, exalta a natureza pródiga, deixa-nos um glossário onde nos fala da baguiche (planta comestível) do bentém (estrado feito de troncos ou bambus e que serve de ponto de reunião), da bicuda (peixe abundante nos rios de água salgada), do bindé (arado gentílico usado por Balantas), do bushel (medida que era então vulgar na Guiné, nome decorrente dos contatos com comerciantes ingleses, hoje substituído pelo termo alqueire), do cibe, do falar mantenhas, do fritambá (pequeno antílope), do guarda-de-corpo, da má-fé, da proroca ou macaréu, do terçado e do trabalho cansado. Histórias de êxito mas também tragédias, tudo redigido num português bem cuidado e quase vernacular, destacando o indígena que obteve por conta própria de muito trabalho a cidadania portuguesa. Páginas para reter no último ciclo da literatura colonial guineense.

Um abraço do
Mário



Guinéus, por Alexandre Barbosa, um dos últimos grandes títulos da literatura colonial

Mário Beja Santos

Alexandre Barbosa, que viveu décadas na Guiné, publicou em 1962 os contos, narrativas e crónicas que anteriormente dera à estampa no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, bem como também em Ecos da Guiné e no Bolamense. Não é a primeira vez que se fala do trabalho de alguém que prometia para breve um romance intitulado "Feitoria", tanto quanto se sabe jamais publicado. Alexandre Barbosa, na esteira de Fausto Duarte, gostava de um português castigado, com recurso ao castiço, deixou diversas estampas acerca da espiritualidade de diferentes etnias, terá conhecido com profundidade a região Sul, mas não deixará de destacar uma festa rija de Felupes. Gosta de palavras sonoras, tem um entusiasmo muito especial quando fala das danças, como exemplificou: “No terreiro os corpos movimentam-se em dança estranha. Há passos sinistros de corpos arqueados, bamboleantes, desengonçados, como que a desarticularem-se; cabeças que ora descaem ora são bruscamente atiradas para trás; braços pendentes, em oscilação amortecida, e pernas que se requebram ao jeito de pedestrianistas que vão acabar exaustos”. Tudo se avoluma em sonoridades, é o empolgamento dos tantãs e depois o silêncio, a multidão exausta descansa, pelo adiante a farra continuará, celebra-se o estímulo dos êxitos agrícolas, há para ali um comerciante português, o senhor Antunes, alguém que não fez fortuna e que já não está bem de saúde. E quem esteve na farra volta a descansar, no novo dia haverá mais regabofe.

Haverá páginas de tristeza, como aquele acidente em que se destrava uma arma e uma criança inocente é brutalmente atingida, o pai, conhecido caçador, desata a correr a caminho da missão à espera de um milagre, dá-se bem com o Dr. Ferrer da doença do sono, acompanha-o muitas vezes nas artes venatórias; corrida dramática pela estrada fora, a criança ao colo a pingar como torneira gotejante. É um autor que não mascara o fascínio que tem pela natureza, socorre-se de um português antigo, profundamente telúrico, para cantar a chegada de um novo arrozal, houvera medidas de bom-senso para que o povo se organizasse e fizesse uma barragem, os Balantas lançaram-se ao trabalho, a terra fértil germinou:
“Agora cabia ao sol esterilizar o raizame e aberta que estava a quadra pluviosa competia à chuva a saturação e dessalga das leivas em poisio, enquanto arrastava do mato a lixeirada vegetal, o adubo para a futura e grande bolanha. Corridos uns dois anos, na época própria, seria a lavra definitiva: valas abertas, camalhões levantados, pequenos ouriques compostos, estes a servirem de passadiço e traçado a marcar propriedades. Era chegada a vez da transplantação da gramínea, criada em alfobres, tabuleiros verdejantes resguardados pelo arvoredo, obstáculo à ventania e ao sol forte que cresta quando no auge. Então, em toda a interminável planura, havia de desenvolver-se o arrozal, vasto relvado a esconder a água estagnada que as purgas da barragem consentissem”.

Alexandre Barbosa fala-nos dos lutadores Felupes, as imagens falam por si, usam-se técnicas antigas que lembram a luta greco-romana:
“O mancebo Felupe sente pela luta uma paixão irresistível. A natureza dotou esta singular e sedentária raça guineense com apreciáveis dotes físicos, força notável e agilidade espantosa. Os prélios são disputados quase por via de regra, entre os elementos das povoações vizinhas e da mesma raça. O bombolon – telégrafo gentílico – anuncia o programa e, em complemento, as virtudes plásticas e aguerridas dos contendores. De todos os caminhos que riscam o mato surgem homens e mulheres, jovens e velhos, achegando-se ao terreno da competição. Forma-se o círculo mano a vedar a arena e até os felupezitos já sentem na guelra o sangue presente, acomodam-se nas pernas dos adultos. Os lutadores entram no terreno. Há principiantes desejosos de medir forças; há desforras de compromissos e há, principalmente, certos despiques a arrumar entre rivais que aspiram a mesma graça feminina. As claques incitam os lutadores e estes, inebriados pelos incitamentos, rondam o círculo em passadas ritmadas e coleantes até que fixam inexoravelmente o adversário... Está lançado o repto! Então reptador e desafiado lançam-se em volteios, aproximando-se lentamente com modos de serpente magnetizadora e num repente os braços atrelam-se vigorosamente e as cabeças unem-se rígidas como uma só peça, no estudo subtil de golpes de antecipação ou de contra-ataque ao flanco desprotegido. É o início da luta aberta entre rígidas e educadas contexturas musculares impondo violentos golpes ofensivos ou paradas firmes, corpos em rebuliço entre nuvens de poeira”.
Tudo terminará quando um deles bater com as costas no chão.

Diversos autores têm tecido hossanas sobre caçadas e caçadores, não há povoação na Guiné que não disponha de um ou mais caçadores, é desporto, é bravura e é meio de subsistência, este caçador tem jus a uma posição de prestígio, reconhecem-lhe as façanhas no mato, o sangue-frio e a mestria na pontaria. Não esquecer que estes relatos terão sido redigidos na década de 1950, daí falar-se do uso generalizado da Longa, espingarda de carregar pela boca, de acabamento grosseiro, fabricada parcialmente pelos melhores ferreiros da tribo. O caçador tem ao seu dispor uma infinidade de armadilhas, pode servir-se das queimadas, no mínimo interessa-lhe em abater pequenos antílopes, mas anseia por abater gazela ou javali, o sim-sim, o boca-branca e o búfalo, o maior sonho é prostrar o hipopótamo. Abater o leopardo é também uma ambição, até porque a pele é cobiçada.

Descreve a morte e as pompas fúnebres de Sampa, um importante Mancanha da ilha de Bolama, tinha 22 mulheres e 180 vacas; 3 foram abatidas para dar dignidade ao choro. Noutro apontamento, Alexandre Barbosa exalta os pescadores Bijagós, exímios a remar as suas canoas, no caso concreto fala-nos de ilhéus Canhabaques que viajam de ilha em ilha para comerciar.

Inevitavelmente, temos a história de um indígena que fez tropa em Bolama, Abu Camará, destacou-se na instrução, no manejo das armas ligeiras, nos rudimentos cívicos e militares, patenteou qualidades de assimilação. Foi dado como exemplo, frequentou a Escola de Cabos, ganhou amizades, quando o seu destacamento percorre Bolama ele vai na escolta de honra da bandeira, sempre garboso.

Teremos também páginas sobre músicos Mandingas e Fulas, fala-se obrigatoriamente do corá, mas também da viola e nhanhéru (violino) e também dos tambores. Há um pequeno agricultor, Sajá Camará, que irá percorrer a estrada do êxito, um lavrador Beafada que soube triunfar no Forreá, partiu com a mulher e filho, criou morança e lavrou os terrenos. Foi bem-sucedido. “O administrador vindo de Fulacunda e o chefe de posto de S. João nas suas visitas periódicas à Ponta de Sajá encontram o lavrador com a família e os trabalhadores Balantas nos mandiocais ou arrozais, ora limpando mais terreno ou a plantar mais pomares”. Passaram os anos, a Ponta de Sajá é hoje uma propriedade agrícola a sério, o filho de Sajá frequentou a escola primária das missões católicas, a sua formação coexiste sem tensões com o Corão. Sajá Camará, que tinha estatuto de indígena, é hoje cidadão português. As últimas páginas da coletânea de Alexandre Barbosa são dedicadas ao rio Corubal, a obra finda com um glossário de expressões de uso local e falares crioulos. Sem dúvida, textos significativos do último período da literatura colonial guineense.

Dança Felupe
Pescador Bijagó
Dançarino Bijagó
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Notado editor

Último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24167: Notas de leitura (1566): "Guineidade & Africanidade - Estudos, Crónicas, Ensaios e Outros Textos", por Leopoldo Amado; Edições Vieira da Silva, 2013, mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23273: Historiografia da presença portuguesa em África (317): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Fica provado que estes Anais do Conselho Ultramarino ajudam a provar e comprovar o que era a Senegâmbia Portuguesa neste período do século XIX: aquisições de território, a precariedade da vida nas praças e presídios, uma colónia sem fronteiras e com tensões permanentes. Leia-se com atenção o que escreve o capitão Ventura ao Visconde de Sá da Bandeira em 1857 e confirme-se o que era a vida em sobressalto, as benesses dos arrematantes das alfândegas que por sua vez pagavam ao Exército, o estado deplorável de quase tudo, e a imagem de uma Guiné potencialmente fértil mas muito esquecida pela governo de Lisboa.

Um abraço do
Mário



Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (4)

Mário Beja Santos

Perguntará o leitor que importância se pode atribuir às matérias constantes nestes anais. A primeira parte da resposta passa por atribuir importância ao Conselho Ultramarino, um órgão que iniciou a sua vida em tempos de Filipe II, teve interrupções, e mesmo com outras designações chegou a abril de 1974. As obras que estão em consulta na Biblioteca da Sociedade de Geografia referem-se concretamente ao período encetado na governação de Fontes Pereira de Melo e que irá durar até à década seguinte. Iniciei a consulta na série 1.ª, vai de fevereiro de 1854 a dezembro de 1858, a edição é da Imprensa Nacional, 1867. Tem-se a sensação quando se folheia estes anais que têm qualquer coisa a ver com o Diário da República colonial, o Conselho Ultramarino funcionava junto do Paço, refere nomeações, condecorações, composição de comissões, autorização de despesas… No artigo anterior, detetei agora, cometi o erro ao considerar que a parte oficial destes anais incluíam pareceres e até estudos, é redondamente falso, a parte oficial contempla a legislação, toda a outra matéria é versada na parte não oficial.

E agora, uma breve explicação sobre a vida neste período do Conselho Ultramarino que os investigadores consideram um dos mais brilhantes e dinâmicos da sua história. Ele insere-se no período da Regeneração, este conselho teve este período áureo entre 1851 a 1868. Deve-se a quê? Em julho de 1851, tendo triunfado a Regeneração, Fontes Pereira de Mello decretou um novo Conselho Ultramarino, a fonte inspiradora terá sido Almeida Garrett. Era composto por sete vogais efetivos e sete extraordinários. No seu trabalho sobre a história do Conselho Ultramarino, Marcello Caetano, em publicação da Agência Geral do Ultramar datada de 1867, fala das suas amplas competências: tinha de ser necessariamente ouvido sobre importantes matérias legislativas, governativas e da administração, e tinha poder para emitir consulta nos recursos contenciosos entrepostos para o Governo dos atos dos governadores coloniais; podia tomar a iniciativa de estudar e propor providências a adotar pelo governo, fiscalizar e recrutar o funcionalismo ultramarino. Missão especial era a de velar pela execução das leis sobre o tráfico da escravatura e de estudar a colonização, dirigindo para o mundo ultramarino a emigração que se encaminhava para o estrangeiro. As resoluções do Conselho eram convertidas em consultas, provisões ou portarias, conforme os casos. Em 1854, iniciou-se a publicação do boletim e anais do Conselho Ultramarino. Os anais eram a parte oficial contendo os atos do Governo e da administração, consultas do Conselho, resoluções dos tribunais superiores, relatórios, etc., e a parte não-oficial era constituída pelo acervo de memórias, notícias, narrativas e quaisquer estudos sobre matéria colonial.

Deixamos para este último trabalho referência a dois documentos, o primeiro tem a ver com a Ilha das Galinhas e o seu possuidor, tem a data de 1830, o segundo é assinado por José Ventura, Capitão do Exército, é dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira, ministro da Marinha e Ultramar e a sua data é 1857. O primeiro documento esclarece as condições ajustadas entre o rei de Canhabaque, Damião, e Joaquim António de Matos, pelas quais este último toma conta da referida ilha (posteriormente, Joaquim António de Matos ofereceu a Ilha das Galinhas à Coroa. A Ilha das Galinhas é cedida em junho de 1828, no mês seguinte Matos mandou construir uma propriedade de casas. O rei Damião, como doador, ficou obrigado a fazer saber a todos os reis de Canhabaque e das diferentes ilhas dos Bijagós que dera a referida ilha a Matos.

E seguem-se aspetos curiosos que merecem registo. “No caso de ataque de qualquer gentio vizinho, será obrigado (como fica desde já) o dito rei Damião a repeli-lo com os seus soldados e vassalos, auxiliando o novo possuidor por toda a maneira a que não seja invadido, obrigando-se Joaquim António de Matos a fornece-lo de bala e pólvora a defender, no caso de desinteligência, o que Deus não há de permitir. Obriga-se mais o dito rei Damião a não consentir que estrangeiro algum possa em qualquer ponto da dita ilha fazer casa e estabelecer-se, e a repelir por meio de força qualquer tentativa para esse fim; declara-se que são ingleses, franceses e espanhóis os estrangeiros. Sendo de costume, no tempo de inverno, passarem alguns gentios de outras ilhas à dita ilha para lavrarem terrenos, e montear elefantes, de ora em diante o farão com permissão do novo possuidor; havendo, como há, muitos elefantes na ilha, os dentes dos que se matarem, metade fica pertencendo ao rei Damião e a outra metade a um novo possuidor; o novo possuidor, depois de obter a licença de Sua Majestade, obriga-se a mandar construir uma capela e ter um padre zeloso no serviço de Deus e d’El Rei”. Lavrou-se esta declaração que aparece assinada pelo tabelião José Francisco da Serra, assina o rei Damião e juntam-se o nome de várias testemunhas. Dado em Bissau em 9 de março de 1930.

Décadas depois, o Capitão Ventura dirige-se ao Visconde de Sá da Bandeira: “Tendo servido na Guiné Portuguesa por espaço de quatro anos e meio, sendo Governador de Cacheu e Comandante do Destacamento de Artilharia de Primeira Linha em Bissau, tenho a honra de submeter à consideração de Vossa Excelência alguns esclarecimentos acerca daquelas nossas possessões, por saber o quanto Vossa Excelência se interessa no aumento e prosperidade das colónias do Ultramar”. Reconheça-se que o Capitão Ventura é pragmático e não faz redondilhas, a saber: em Cacheu é importante a substituição da paliçada por muro de pedra e cal; o quartel do destacamento, estava coberto de palha deve ser telhado para maior solidez e conservação; é telegramático a explicar a economia de Cacheu: o seu maior e principal comércio consiste em arroz, cera e couros, que os negociantes vendem aos ingleses, franceses e norte-americanos, em troca de outras fazendas, tais como tabaco, pólvora, aguardente e outros; no distrito de Cacheu a abundância de boas madeiras para a construção de navios; em Bissau acha-se em péssimo estado o cais do desembarque, e a casa de alfândega ainda não foi edificada; retoma uma matéria que outros iam enfatizando quanto ao funcionamento da alfândega: o sistema de serem arrematados os rendimentos das alfândegas da Guiné tem produzido desfalque para os interesses da Fazenda e bastantes lucros aos arrematantes, seria da maior conveniência para o Governo que as ditas alfândegas fossem administradas por conta do Estado; no rio Grande de Bolola, dado o facto de haver muitas feitorias, conviria que se estabelecesse um posto fiscal; tinha sido decretado aumento de vencimento para a tropa que serve na Guiné só que a medida não fora posta em execução; as igrejas de Bissau, Geba, Cacheu, Farim e Ziguinchor tinham párocos, mas os padres das igrejas de Farim e Ziguinchor achavam-se em Cacheu devido às reparações nas respetivas igrejas, convinha que se concluíssem os reparos necessários para não privar aqueles povos do culto divino.

E muito curioso é o final da exposição do Capitão Ventura, vale a pena reproduzi-lo na íntegra:
“O clima de Guiné é mau, e muito principalmente no tempo das águas, que é de maio a novembro. Os europeus que para ali vão servir sofrem bastante na sua saúde, e quase sempre ficam padecendo do baço, fígado e outras moléstias interiores, sendo eu também um dos que muito padeci; contudo, tendo bastante regularidade de vida, abstendo-se da cacimba que tanto mal causa de noite, e do ardente sol, quanto as circunstâncias o permitirem, isto logo no começo da sua residência naquele clima, porque passado certo espaço de tempo, se adquira estar, por assim dizer, aclimatado, julgo que se pode existir sem grande receio, procurando fugir na prática de quaisquer excessos sempre ruinosos.
É o que posso informar por alguns conhecimentos que ali adquiri dos costumes daqueles povos e das suas necessidades, sentido não poder fazer igual informação pelo que respeita a algumas das ilhas do arquipélago pela pouca residência que nelas tive, o que melhor poderão fazer indivíduos que ali tenham residido e permanecido por mais tempo”
.

É patente que o investigador e o curioso não perdem tempo em folhear demoradamente estes Anais do Conselho Ultramarino.

Guiné Portuguesa, mapa do século XIX, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Bissau, José Luís de Braun, 1780, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Rio Grande de Bissau, Planta da foz, desde a ponta de Bambe até à ponta de Balantas, com o ilhéu dos Pássaros, ilha de Bissau e Ilhéu do Rei, José Luís de Braun, 1778, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P23255: Historiografia da presença portuguesa em África (316): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23259: Notas de leitura (1445): “Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp; Editorial Inquérito, 1994 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Uns dias passados na Biblioteca Nacional deram-me oportunidade para reler e confirmar o valor deste trabalho de Eva Kipp, uma holandesa que andou enfronhada em vários projetos de divulgação da cultura tradicional da Guiné. Sente-se à vista desarmada o seu deslumbramento pela cultura bijagó, nomeadamente nas vertentes da antropologia, etnografia e etnologia. Trata-se de uma revisitação, em 2011 publicou-se aqui no blogue uma recensão que saudava o trabalho de Eva Kipp, ele era e é bem merecedor de ser reeditado.

Um abraço do
Mário



Revisitar um belo texto etnográfico e etnológico, com fotografia ímpar:
“Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp


Beja Santos

Em 2011, aqui se fez uma primeira menção ao livro de uma perita holandesa que colaborou com o Governo da Guiné-Bissau em vários projetos de divulgação da cultura da Guiné com publicação da Editorial Inquérito, 1994. Reler pode significar nova iluminação, desapontamento, descoberta de uma apreciação excessiva ou injusta. Confesso-vos que valeu a pena voltar ao livro de Eva Kipp: pela organização, pelo deslumbramento, pelas pistas que abre sobre a arte dos Bijagós, a sua religião, as suas pinturas murais, as suas práticas funerárias, a vivência da mulher guineense no trabalho.[1]

Quanto à arte dos Bijagós, diz a autora que segundo uma lenda Bijagó, a vida começou assim: Deus, o Criador, existiu sempre e, no início da vida, foi criada a primeira mulher – Orango, que era o mundo. Uma lenda que dá uma interpretação para o influente papel da mulher na sociedade Bijagó. A arte Bijagó está estritamente ligada à religião. A representação dos Irãs encontra especial relevo na escultura em madeira, a qual se alarga à representação de outras cenas da vida quotidiana e mesmo à produção de objetos de uso comum, caso de colheres ou bancos.

Uma religião que assenta nos Irãs e nos seus santuários. Os Irãs Grandes, chamados Irãs do Chão, são os mais poderosos da tabanca. Além de forma humana, eles são multiformes. O Irã Grande da tabanca de Entiorp, em Canhabaque, por exemplo, tem uma forma abstrata. Faz lembrar uma panela com a tampa decorada e envolvida num pano vermelho.

Em princípio, os Irãs Grandes devem estar na chamada “baloba dos defuntos”, que é o santuário das mulheres. Ficam depositados em casa dos régulos por motivos de segurança. Com o Irã Grande da tabanca é possível realizar muitas cerimónias pessoais, como para pedir que alguém tenha saúde ou sucesso no trabalho.

Não se pode falar de arte Bijagó sem relevar as suas pinturas murais. É sobretudo nas ilhas de Canhabaque, Bubaque e Formosa que existem pinturas murais em santuários e em casas. Na atualidade estas pinturas podem ser encontradas sobretudo nas balobas (santuários) e nelas retratam-se cenas do dia-a-dia da sociedade local. Assim, encontramos imagens de Irãs, feiticeiros, defuntos e animais.

O pequeno fanado é um acontecimento iniciático que tem uma profunda envolvente religiosa. Em cada período de seis ou sete anos, realiza-se nas ilhas dos Bijagós o fanado das raparigas. São cerimónias de iniciação em que participam raparigas de idade compreendida entre os 17 e os 25 anos. Essas raparigas são chamadas aos “defuntos”, pois nessa cerimónia vão receber a reencarnação do espírito de uma pessoa já falecida.

Continuando nos aspetos religiosos, Eva Kipp refere os djambacós ou curandeiros. São mediadores procurados por pessoas que precisam de conselho, possuem artes de vidência e poderes de curandeiro. Realizam cerimónias com conchas, orientam sacrifícios de animais; casos há em que os djambacós praticam a cartomancia ou prescrevem tratamentos para pessoas doentes.

Os aspetos da reencarnação são crença inabalável das sociedades animistas da Guiné-Bissau, pois as pessoas continuam, para além da morte, a participar na vida diária dos que permanecem vivos. Eva Kipp estende estas considerações de índole religiosa que abarcam, por exemplo, o funeral de um Homem Grande, o fanado, o Kussundé, que é dança tradicional de algumas etnias animistas, e não esquece o papel dos “mouros”, que são os sacerdotes muçulmanos. No Islamismo, a religião está no centro da organização social, e ela refere a mesquita, a peregrinação a Meca para a obtenção do título de El Hadj e o jejum por altura do Ramadão, tudo está presente na vida diária do crente muçulmano. Aliás, os mais novos são induzidos à aprendizagem dos versículos do Corão em escolas. Nessas escolas corânicas inicia-se a criança. A criança deverá fazer os dois níveis que compõem a escola corânica, ela memoriza, através da repetição cantada, os versículos e aprende a escrever os mesmos em curiosas tábuas. Os mouros mais famosos reúnem em si o filósofo, o conselheiro familiar e político, o curandeiro e a autoridade religiosa.

Na recensão aqui publicada em 2011 concluiu-se dizendo que se tratava de um livro de grande valor fotográfico e que bem merecia ser reeditado. Mantém-se o apelo, é evidente que tem continuado a investigação da sociedade dos Bijagós mas há aspetos essenciais inquestionáveis: na religiosidade, na arte, no papel do djambacó ou curandeiro, nas práticas funerárias, até no fanado.

Durante muito tempo correu a lenda de que a sociedade Bijagó era patriarcal, hoje sabe-se que não é assim, a despeito da mulher Bijagó ter um desempenho relevante e incomparável face às outras etnias. No quadro geral da mulher guineense no trabalho, quando a família é poligâmica, é a mulher mais velha a dona da casa, é ela que atribui, no dia anterior, a distribuição das tarefas pelas outras. Mas na sociedade bijagó é bem claro que a mulher não goza da submissão das mulheres das outras etnias, tem plena liberdade, por exemplo, de manifestar o desejo de divórcio, que exterioriza pondo os tarecos do marido à porta, é deste modo que se torna evidente no local a sua decisão.

Não se pode estudar a sociedade Bijagó sem dar atenção ao belíssimo trabalho de Eva Kipp. E ponto final.


Barco Bijagó: estatueta de Bubaque.
O Irã Grande da tabanca de Angura, em Canhabaque, rodeado de objetos sagrados. À esquerda está o Irã de Mão do régulo.
Em frente do Nan, o régulo da tabanca de Angura com o tridente numa mão e o Irã de Mão na outra.
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 7 DE JANEIRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P7567: Notas de leitura (185): Guiné-Bissau, Aspectos da Vida de um Povo, de Eva Kipp (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23248: Notas de leitura (1444): "Histórias da História da Guiné-Bissau", por Manuel Grilo, obra financiada pela Fundação do BCP para o Comissariado-Geral da Guiné-Bissau da Expo 98, 1998 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 20 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22390: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte III: Lendas bijagós





Lendas bijagós - ilustrações do pintor guineense Ady Pires Baldé, p´p. 17 e 19

In: Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



1. Transcrição das págs. 15 a 22 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato  > Lendas e contos 
da Guiné-Bissau

[Foto à esquerda: o autor, Carlos Fortunato, foi fur mil arm pes inf, MA, CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga]



Lendas bijagós (pp. 15-22)


Segundo uma das mais populares lendas bijagós, Deus ao criar o Mundo criou primeiro a ilha de Orango, e depois colocou ali uma mulher,  Acapacama, e o seu marido.

Eles tiveram quatro filhas. A primeira foi Orácuma, a seguir nasceu Ominca, e depois Ogubané e Orága.

Cada uma delas teve vários filhos, dando origem a quatro grandes famílias, às quais foram transmitidos os privilégios da avó. Orácuma recebeu a terra e a religião. Foi ela quem fabricou o primeiro Irã, e permitiu que as suas irmãs o reproduzissem.

Ominca recebeu o mar e a sua família dedicou-se à pesca. Contudo os hipopótamos eram muito ferozes, pelo que tiveram que fazer várias cerimónias, para conseguirem ir para o mar. Ogubané recebeu o poder de controlar o vento e a chuva, o que lhe permitiu gerar boas colheitas. rága recebeu as plantas, as árvores e os animais, o que lhe trouxe muita riqueza.

Cada família passou a viver à sua maneira.

Esta é a lenda (5) das gerações, e à semelhança de outras, explica a origens das quatro famílias a que pertencem todos os bijagós, mas mostra também o importante papel que a mulher desempenha no mundo bijagó.

As origens dos bijagós não são claras e existem muitas versões. Algumas são fantasiosas e sensacionalistas, chegando a colocá-los como tendo origem na Atlântida (6), mas provavelmente estes seriam escravos de beafadas que para ali fugiram (7).

O navegador, André Alvares d´Almeida, foi o primeiro a dar uma descrição das Ilhas Bijagós em 1594, e com base nos relatos dos seus habitantes, refere que antigamente não eram ilhas, pois faziam parte do continente, “parece que antigamente eram terra firme” (8), escreve Alvares d´Almeida, o que foi depois confirmada por investigações científicas (9).

Entre as mulheres bijagós que fizeram história, destaca-se a famosa “Rainha” Oquinca Pampa, ou Oquinca Pampa Kanjimpa (reinou de 1910-1930). Embora seja referida como Rainha, na verdade não existem rainhas entre os bijagós, Oquinca Pampa era uma sacerdotisa que ascendeu ao poder.

***

Oquinca não é um nome, mas uma palavra da língua bijagó, que significa sacerdotisa, é um título, do mesmo modo que Oronhom significa rei, mas na voz do povo, ela é a “Rainha” Oquinca Pampa.

Oquinca Pampa faz parte da linhagem Orága, e está ligada ao Reino de Orango.

Segundo os costumes bijagós, apenas os homens podem ser reis, mas quando morre o rei e enquanto não se realiza a sua sucessão para um homem, o reino pode ter uma mulher no seu lugar como regente, a Oquinca, sendo aconselhada pelo Conselho dos Grandes (10).

Na tradição dos Orága, esta regência pode ser prolongada, e pode ir até à morte da regente. Foi isto que aconteceu com Oquinca Pampa. Quando o Rei Issor, que era seu pai, faleceu, ela ficou como Regente do Reino.

A regência de Oquinca Pampa destaca-se pela sábia forma como soube governar, nomeadamente por ter conseguido manter intacto o seu Reino, por manter a paz, pelo seu espírito humanitário, e por ter conseguido manter a “independência” (11).

Num tempo, em que o poder colonial tudo queria submeter ao seu domínio, conseguir negociar uma governação independente desse poder, apenas contra o pagamento de um imposto, é também um reconhecimento do Governo da Colónia, à inteligente governação que Oquinca Pampa fazia.

A luta de Oquinca Pampa pela paz não foi fácil. Por um lado tinha a ameaça do poder colonial e a sua vontade de dominar totalmente o seuReino, e por outro lado muitos bijagós queriam revoltar-se, e desencadear uma guerra, pois não aceitavam pagar impostos.

Uma das situações de maior tensão que Oquinca Pampa enfrentou, foi quando um grupo (no qual se incluíam membros da sua família) se revoltou, decididos a enfrentar o exército colonial.

Os revoltosos fizeram uma vala de um quilómetro, ao longo da estrada do porto de Orango, para que ali escondidos e protegidos, pudessem emboscar as forças coloniais, quando estas desembarcassem. Mas Oquinca Pampa, com a sua influência, conseguiu acabar com a revolta.

A ilha de Canogo encontra-se separada de Orango apenas por um rio, equando os seus habitantes decidiram não pagar qualquer imposto, preparando-se para a guerra, Oquinca Pampa interveio mais uma vez, pagando o imposto de Canogo com o seu gado, evitando assim a guerra.

Interessante e original, foi o sistema de comunicações que Oquinca Pampa criou para comunicar com os comandantes dos barcos, que chegavam ao porto de Orango para negociar, colocando um homem de cinco em cinco metros, para através deles falar com o comandante do barco, de modo a assegurar que tudo decorria sem incidentes.

Ao contrário de seu pai, que era um rei cruel, Oquinca Pampa revelou-se uma rainha com um elevado espírito humanitário, acabando com práticas desumanas e com algumas situações de escravatura, que ainda existiam no seu Reino, restos de um passado em que os prisioneiros de guerra eram vendidos como escravos.

Oquinca Pampa, apesar de ser de pequena estatura, é considerada a grande “Rainha”, e é sem dúvida a mais popular, pois a memória da sua regência contínua viva entre os bijagós, que contam a sua história à volta da fogueira, e os artesãos bijagós continuam a fazer estátuas suas.
Os restos mortais de Oquinca Pampa estão no mausoléu real em Eticoga, na ilha de Orango, onde repousam outros reis e rainhas. Com ela foi enterrado o seu valioso tesouro, do qual fazem parte muitas peças em ouro, e que desde então ali repousam guardados pelos espíritos.
Quem tocar na porta do mausoléu terá que pagar uma vaca, se não o fizer, os espíritos irão persegui-lo, esteja onde estiver.

***

Outra “Rainha” famosa é a “Rainha” Juliana Canhabaque, do Reino de Canhabaque (ilha Roxa), devido à guerra ali havida em 1925.

Canhabaque  só pagava impostos quando lhe apetecia e pagava pouco, e isso levou ao desencadeamento de uma campanha militar pelo exército colonial. Após alguns preparativos, a 20 de Abril de 1925 uma força militar desembarcou em Inorei e Bine, para colocar definitivamente a ilha sob o seu domínio

Tratava-se de uma força militar numerosa com cinco oficiais, 240 sargentos e polícias nativos, e 1496 auxiliares na sua maioria fulas e mandingas (12), o seu armamento incluía 800 espingardas, três metralhadoras e três canhões hotchkiss.



Guiné-Bissau > 2002 > selo comemorativo do voo Lisboa - Bolama, realizado em 1925, por um avião Bréguet XIV A2, do 1º Grupo de Esquadrilhas de Aviação da República,  o GEAR, antecessor da FAP. A tripulação do "Santa Filomena" (, nome da aeronave,) era constituída pelo tenente Sérgio da Silva, pelo capitão Pinheiro Correia e pelo 1.º sargento António Manuel. Partindo do campo de aviação da Amadora, em 27 de março de 1925,  "Santa Filomena" chegou a Bolama em 2 de abril de 1925, depois de percorrer a distância de 4.070 km em 31 horas e 31 minutos de voo, em 7 etapas:  m 7 etapas: Amadora – Casablanca; Casablanca – Agadir; Agadir – Cabo Juby; Cabo Juby – Vila Cisneros; Vila Cisneros – S. Luís do Senegal; S. Luís do Senegal – Dakar e, finalmente, Dakar – Bolama. (**)

Imagem: Cortesia de Colnect.com


Aproveitando a presença de um avião militar, que tinha realizado pela primeira a viagem aérea Lisboa-Bolama, o governador Velez Caroço pediu 
que este bombardeasse os revoltosos.
Foi assim usado pela primeira vez um avião militar na Guiné. Tratou-se do Breguet XIV A2 do 1º Grupo de Esquadrilhas de Aviação da Republica (GEAR).

Apesar de o avião estar com problemas mecânicos, durante dois dias, foi desencadeado um bombardeamento, tendo sido lançadas manualmente granadas de artilharia, depois de adaptadas para o efeito.

Os guerreiros de Canhabaque ficaram surpreendidos com aquele ataque, pois nunca tinham visto um avião, nem conheciam o seu poder destruidor, mas a sua resposta à incursão militar não vacilou, e foi com determinação, que decidiram continuar a combater o invasor do seu Reino.

A “Rainha” Juliana possuía 2.000 guerreiros, que estavam armados com arcos, catanas, lanças e algumas espingardas longas. Alguns possuíam uma longa história de combates, o que fazia deles guerreiros experientes e ferozes.

A ilha de Canhabaque  [também conhecida por ilha Roxa] é pequena, tem nove por 15 quilómetros, o que era uma desvantagem, mas por outro lado tem uma vegetação cerrada e caminhos que apenas os guerreiros de Juliana conheciam bem; alguns eram caminhos estreitos e difíceis, e pouco adequados ao exército colonial, com as suas metralhadoras e canhões.

A “Rainha” Juliana organizou a sua defesa, colocando vigias no alto das árvores, criando zonas de emboscadas, com atiradores com longas nas árvores e construindo covas com tampas cobertas com ervas, para os guerreiros se esconderem e poderem atacar os invasores, quando estes menos esperassem.

Foi travada uma luta feroz com muitas baixas, nomeadamente da parte dos guerreiros da “Rainha” Juliana, mas as tabancas dos revoltosos foram sendo vencidas uma a uma.

A pequena ilha estava isolada nesta luta, não podia contar com reforços ou reabastecimentos.
A 3 de Maio de 1925, os últimos resistentes concentraram-se em Indema, no centro da ilha, e entre eles está a “Rainha” Juliana. Eram poucos para fazerem frente aos invasores e também eram poucas as munições que lhes restavam.
 
Os guerreiros de Canhabaque defenderam Indema enquanto puderam, mas acabaram por se render, pois não tinham meios para conseguirem fazer frente, a uma força militar tão poderosa.

Indema foi incendiada, e a “Rainha” Juliana presa e enviada para Bolama (13) mas não foi o fim da luta dos bijagós, pois em 1935 haveria uma nova revolta e seria necessária uma nova incursão militar.

No século XX o poder colonial deixou de ser algo fraco e vago, tornando- se numa força poderosa e determinada que impunha a sua vontade, foi um novo ciclo que se iniciou.


[Adaptação, revisão/fixação de texto e inserção de fotos e links para efeitos de edição deste poste no blogue: LG]
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Notas do autor:

(5) Lendas bijagós - pag. 34, Danielle Gallois Duquette, no seu livro Dynamique de L´art Bidjago, faz uma descrição desta e de outras lendas.

(6) Bijagós - pag. 145, “A babel negra”, de Landerset Simões.

(7) Bijagós - pag. 15, “Organização Económica e Social dos Bijagós”, de Augusto J. Santos Lima.
 
(8) Bijagós - pag. 81, “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo-Verde”, do capitão André Álvares d´Almeida.

(9) Bijagós - pag. 14, “Organização Económica e Social dos Bijagós”, de Augusto J. Santos Lima.

(10) Bijagós - pag. 77, “Organização Económica e Social dos Bijagós”, de Augusto J. Santos Lima.

(11) Oquinca Pampa - pag. 186, “História da Guiné II”, de René Pélissier.

(12) Juliana - pag. 212, “História da Guiné II”, de René Pélissier.

(13) Juliana - pag. 212, “História da Guiné II”, de René Pélissier.

2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP


Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 10 de julho de  2021 > Guiné 61/74 - P22359: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II A: Comentário adicional sobre os balantas: "Nhiri matmatuc Fortunato. Nhiri cá ubabe. Nhiri god mara santa cá cum boim. Udi assime?"...Traduzindo: "O meu nome é Fortunato. Eu sou branco, não sei falar bem balanta. Percebes o que estou a falar?"... Uma conversa com Kumba Yalá, em Bissorã, a dois dias da sua morte, aos 61 anos

Vd. postes anteriores:

9 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22354: "Lendas e contos da Guiné-Bissau" : um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II: Ficha técnica, prefácio de Leopoldo Amado, lendas balantas (pp. 1-14)

8 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22349: "Lendas e contos da Guiné-Bissau" : um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte I: Vamos dar início a uma nova série, um mimo para os nossos leitores

(**)  Vd. postes de:

26 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18780: Historiografia da presença portuguesa em África (119): O primeiro voo, ligando Lisboa a Bolama, em 1925, e a primeira tentativa de usar a aviação com fins militares naquele território (Armando Tavares da Silva) (Parte I)

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20948: Historiografia da presença portuguesa em África (208): “Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Digamos que não se encontra aqui um relato singular de alguém que anteriormente percorrera o território com responsabilidades no levantamento topográfico, a configuração das fronteiras da Guiné Portuguesa, trabalho que, como é sabido, se prolongou até à primeira década do século XX, com vários contenciosos luso-franceses pelo caminho. É um escritor marcado pelo formalismo mas o que mais entusiasma e nos faz sorver estes parágrafos aparatosos é o fascínio africano, ilimitado, viera com medos, até de escaramuças ou de encontrar pela frente antropófagos, rende-se à paisagem, inclusive a humana, uma bela flor de 13 anos fê-lo subir ao Sétimo Céu...

Um abraço do
Mário




“Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (1)

Beja Santos

No descritor reservado à Guiné-Bissau, na Biblioteca Nacional (com centenas de obras consultáveis), dá-se nota de uma obra que nunca se vira referenciada em nenhuma bibliografia. Trata-se de uma edição da Parceira António Maria Pereira, a data é 1891, tem ilustrações primorosas para os três territórios visitados, acicata-se a nossa curiosidade, a Guiné autonomizara-se recentemente de Cabo Verde, que surpresas nos reserva este autor, que se descobrirá, mais adiante, que colaborou no levantamento das fronteiras da Guiné Portuguesa?

É comprovadamente um autor culto, bom observador, de escrita clássica, como se mostra, depois de nos ter falado exaustivamente da Madeira e de como aqui se tratavam os tísicos e o feitiço que lhe provocou o arquipélago cabo-verdiano:
“Três dias depois demandávamos a Guiné; e ao aproximar-nos desta terra fantasticamente delineada pelas tradições, onde a muitas milhas de distância o prumo marca seis a oito braças no seu contar de vaticínios, ao sulcarmos estas águas turvas e eriçadas de escolhos, onde os receios parecem receber o baptismo de realidades, encarando a expressão triste do espectáculo que se alarga de fronte, essa ondulação monótona de águas correntes onde apenas se desenha alguma ilhota verdejante, respirando o ar abafado em que parece errar a exalação quente de um resfolegar cansado, arreigou-se-nos por tal modo o convencimento das terroristas narrativas, que, como em caleidoscópio gigante, começámos a divisar pela imaginação, emboscadas sem número, através de matagais sem eco, feras hercúleas em rixas de estremenho, azagaias multiformes molhadas em venenos subtis… cobras despedaçando bois… crocodilos fazendo soçobrar embarcações… E como fundo deste quadro de uma compostura dantesca, os pântanos dormentes.”

João Augusto Martins é conhecedor do que fala, não há encómios ocos nem entusiasmos convencionais. Chegam a Bissau e daqui partem para Bolama numa baleeira, diz que foram acolhidos principescamente, fizeram piqueniques, visitaram tabancas de Fulas e de Brames e de Mouros, participaram em caçadas e ficaram hospedados em Bambaya, feitoria da casa Blanchard. Escreve enfeitiçado, galvanizado: “Atravessámos ao impulso entusiástico das caçadas magníficas florestas dez vezes seculares, guarnecidas de campinas tapetadas por vegetações colossais, onde a gazela salta com o frémito da sua fuga vertiginosa, e bandos de pássaros de todos os tamanhos e de todas as espécies matizam o horizonte com as cores vivas das suas penas brilhantes”.
E alarga-se no seu êxtase:
“Uma paisagem severa, calma e selvagem, grandiosa de toda a espontaneidade de um sol virgem, onde o caminhar, por mais que se estenda, não encontra um traço de cultura, e a vista, por mais que se alongue, não enxerga vestígios da presença do homem. Por todos os lados, a distâncias que se não podem calcular, cumeadas espessas de árvores elevando-se a alturas prodigiosas, e, em seguida, sem transição, subitamente, enormes tufos de verdura dessas esplêndidas espécies tropicais; lagoas mostrando meandros infinitos; riachos arrastando arcadas de folhas e de flores… e aqui e ali, escondidos à sombra de ervas curtas e espessas, pântanos traiçoeiros, onde a sanguessuga e a rã se espreguiçam aos raios ardentíssimos de um sol abrasador”.

E se a paisagem possui este fulgor, a beleza feminina não fica atrás:
“Foi numa dessas excursões extraordinariamente impressionistas que deparámos em África, onde a mulher geralmente pelas formas nos faz pensar nos manipanços, que nos foi dado ver a mais extraordinária beleza de mulher, realçada por tudo que há de mais irresistível nas atracções do seu sexo.
Era uma Fula: tipo indiano caldeado nas forjas incandescentes da África. Tinha apenas 13 anos, e a adolescência irrompia nas indecisões do seu sexo com toda a destreza da vida com que desabrocha uma flor. Seus grandes olhos pensadores, de uma expressão meiga e inquieta, a cor cuprina metálica de suas faces, as linhas suaves da sua fisionomia, seus lábios carminados que se entreabriam em risos de uma tristeza sedutora, os longos cabelos de um negro azulado que pareciam envolvê-la em cintilações de desejos, o seu talhe esbelto, nu, de movimentos graciosamente ondulados, a harmonia das suas formas esculturais, a lubricidade das suas curvas e a têmpera vibrátil das suas carnes, tudo enfim… tudo se resumia nesta criatura como em síntese de encantos, de onde irradiava a sensação das místicas simpatias e as horripilações dos loucos desejos”.

Gravura que mostra o canal de Bolama.

O autor diz tratar-se de uma paisagem da Senegâmbia.

Legenda lacónica: Guiné Portuguesa, uma tabanca.

Quase não precisa de comentário, vê-se como o autor se assombrou com a baga-baga.

Uma bela gravura mostrando o régulo de Canhabaque e dois fiéis com longas

Descreve-nos Bissau, convém não esquecer um conjunto de documentos já aqui referenciados, alguns deles em depósito nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Vejamos o que nos diz João Augusto Martins:
“A vila de Bissau, sede do concelho, que por decreto de 4 de Julho de 1883 compreende o presídio de Geba, Fá, S. Belchior e todos os mais pontos ocupados e por ocupar nas margens do rio Geba, é uma pequena cidadela, de população limitadíssima, cercada ao norte, este e oeste por um fosso já semi-atulhado que acompanha paralelamente da banda de fora uma muralha de quatro metros de altura, a qual se liga ao centro à antiga fortaleza de S. José e termina nos flancos por pequenos torreões de estilo gótico, que fazem sentinela permanente ao rio. Essa fortaleza, construída, segundo uns, pela Companhia de Cacheu e Guiné, segundo outros pela Companhia do Grão-Pará, ampla, arejada, e altiva de toda a imponência dos poilões gigantes que lhe marcam os ângulos protegendo-a com as sombras benéficas da sua ramagem tufada, é guarnecida por peças velhíssimas de ferro, montada sobre reparos do mesmo metal que apenas servem hoje de armamento histórico e de espantalho aos gentios.
Entretanto, essas paredes arqueológicas, essa artilharia muda e esses baluartes vazios continuam a inspirar as frases sonoras com que os magnates da localidade, retórica oficial e os repórteres levianos, fazem acreditar urbi et orbi que o gentio é feroz e que nessas muralhas carcomidas pelo tempo e pelo abandono que reside ainda toda a garantia da propriedade e um esteio seguro ao comércio aí estabelecido.
A vila, pequena, acanhada, de construções raquíticas e vulgares, imunda de todo o indiferentismo das municipalidades de África, somada a todas as inalações do lodo, da catinga e do azeite de palma, adubada pelo paludismo, dizimada pelas febres, constitui ainda assim o último reduto da vitalidade da Província, o centro mais importante do comércio da Senegâmbia Portuguesa.
Existem aí casas francesas, alemãs, americanas e inglesas, além de muitos pequenos negociantes, na maior parte de Cabo Verde, e concorrem à praça todos os dias, não só os povos que a avizinham mas muitas das tribos afastadas que a abordam em grandes canoas sui generis pela construção, os quais vindo permutar por tabaco, aguardente, fazendas, etc. os produtos de agricultura e objectos originais da indústria indígena, dão um cambiante nitidamente selvagem a esse limitado quadro da vida africana, curiosíssimo pela variedade de penteados e costumes de seus personagens, interessante pela tatuagem com que se enfeita o preto, pitoresco pela diversidade dos tipos, dos penachos, das gesticulações e das vestimentas, profundamente impressionista no género grutesco, e constituindo no todo um espectáculo original pelo tumulto da selvajaria e da embriaguez, poetizado pela coloração verdejante de árvores colossais, enfeitado todo ele pelas cores vivas de habitações dissimilares que parecem banhar os pés nesse lodaçal extenso onde dezenas de canoas esguias se espreguiçam indolentemente como crocodilos gigantes fustigados pela calma.”

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20919: Historiografia da presença portuguesa em África (207): Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20465: Feliz Natal de 2019 e Bom Ano Novo de 2020 (7): Paulo Salgado (ex-alf mil op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72)


Guiné-Bissau >  s/l > s/d >  A  São e o Paulo


Guiné-Bissau > Região de Bolama / Bijagós >  Ilha de Canhabaque (ou ilha Roxa) > s/d


Guiné > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Os rápidos do Saltino  > s/d > Foto tirada da ponte...


Guiné> s/l >  16 de setembro de 2005 > Uma bolanha


Guiné > s/d > s/ l> Belos nenúfares num afluente do rio Geba... Sempre deslumbrante esta Guiné - a da Natureza!

Fotos (e legendas): © Paulo Salgado (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Paulo Salgado no regresso ao Olossato,
em 2006
1. Mensagem de Paulo [ Cordeiro] Salgado, [ex-alf mil op esp,  CAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro (, o mais recente,) "Milando ou Andanças por África" (Torre de Moncorvo: Lema d'Origem, 2019); africanista no sentido nobre do termo; administrador hospitalar reformado,  com um vasto currículo, que inclui a Guiné-Bissau e Angola; é casado ocm a Conceição Salgado, também nossa grã-tabanqueira, natural de Torre de Moncorvo;  tem mais de 9 dezenas de referências no nosso blogue]


Data: domingo, 15/12/2019 à(s) 21:35
Assunto: Natal

Amigos e Familiares,

Aproveito o que tem de bom a tecnologia de comunicação, esta ferramenta, que globaliza e aproxima. Às vezes embrutece e afasta, é certo. Faço-o por duas razões: a primeira, porque quero lembrar-me de pessoas que vou conhecendo, vim conhecendo, ao longo da vida (claro que incluo aqui os familiares porque eles merecem o poema): a segunda, porque junto excertos de um belo poema de um grande poeta e jornalista - meu amigo de sempre - falecido há cerca de dois meses, cuja obra tem força, é telúrica: Rogério Rodrigues. Leiam-no. Por favor.

Por isso, junto estes excertos.

Feliz Natal, com um abraço - nesta festa de família (e de amigos).

Paulo Salgado
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QUANDO O NATAL CHEGAR…

Quando o Natal chegar
liberta o pirilampo e liberta a luz
arruma a ternura e arruma a casa.
E areja o sótão da tua infância.

Quando o Natal chegar
dá música aos surdos
e palavra aos mudos
afaga laranjas nas mãos frias
e figos secos ao luar
e amêndoas de Agosto a quem chegar
e limões, e ácidos limões, em teu lugar.


Quando o Natal chegar
adormece à beira dos violinos
com a loucura dos deuses
e a tristeza de Mozart.

Que os deuses devem estar loucos
porque a lareira está-se a apagar.


Quando o Natal chegar
Talvez amor e amar.
Dádiva por dádiva,
aceita, é de aceitar.


Pedro Castelhano (pseudónimo de Rogério Rodrigues)
In (Re) Cantos d' Amar Morto. Lisboa,  Âncora editora, 2011.
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20462: Feliz Natal de 2019 e Bom Ano Novo de 2020 (6): Patrício Ribeiro, no calor(zinho) de Bissau... (às 17h00 de hoje o céu estava limpo e faziam 32 graus)