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sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23621: Notas de leitura (1495): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Começo por pedir desculpa por demorar a publicação do final da história do BCAÇ 513, a que atribuo enorme importância pela natureza do relato, francamente não sei porque não concluí a recensão ao tempo, voltei à biblioteca da Liga dos Combatentes, fiz a necessária releitura de fio a pavio, compulsei as operações das três companhias de artilharia, a de caçadores, os relatórios dos pelotões de reconhecimento, e sou levado a considerar que quem queira estudar a guerra da Guiné irá ficar com uma imagem bastante rigorosa do Sul em 1963, todo o comércio se desarticulou, a Casa Gouveia e a Ultramarina fecharam as portas, tudo foi saqueado e incendiado e coube particularmente à BCAÇ 513 e às suas diferentes unidades o esforço hercúleo de procurar contrariar o que ninguém podia prever, sobretudo numa Guiné de 1962 tinha escassíssimas unidades militares.

Um abraço do
Mário



Um documento eloquente, peça de historiografia: A história do BC 513 (3)

Mário Beja Santos

Por que motivo atribuo tanto relevo a este documento? Publicado em 2000, numa verdadeira edição para amigos, a História do BC 513, da autoria de Artur Lagoela, abre luz sobre o primeiro ano da guerra, o estado do conflito na região Sul, os colonos e os comerciantes já tinham desaparecido e as populações, espavoridas ou rapidamente afetas ou constrangidas, com maior ou menor brutalidade, pelo PAIGC, tinham-se disseminado pelas pequenas vilas à sombra das tropas portuguesas, ou nas matas ou na República da Guiné.

Peça de historiografia, pelo acervo informativo, mas igualmente um documento de ternura e de respeito pela memória, basta pensar na dedicatória do exemplar oferecido à Liga dos Combatentes: “De todos nós, combatentes do BCAÇ 513, que prestou serviço na Guiné entre 25 de julho de 1963 e 25 de agosto de 1965, daqueles que por lá perderam a vida e daqueles que voltaram deixando lá parte dela, aqui fica um muito pouco de nós, num livro chamado História do Batalhão, e também um grande reconhecimento que os combatentes sabem ter por quem nunca os esquece. Mas a nossa história, essa, ficará sempre por contar. Ela seria o enorme somatório de todas as histórias de todos nós, amalgamadas com todos os nossos sentimentos, todas as nossas indignações, angústias, inquietações, desesperos, raivas, medos, coragens, esperanças, desilusões, amizades, amores, tudo como unido pela fortíssima argamassa que é a irmandade que nasce e perdura entre aqueles que foram combatentes.” Assina o antigo Alferes Miliciano Sapador José Filipe da Cunha Fialho Barata.

Recapitulando, este BCAÇ irá agregar várias companhias de artilharia (494, 495 e 496), uma companhia de caçadores (411) e um pelotão Fox (888), um pelotão de morteiros (979), entre outros. Coube-lhes a região Sul, uma extensão enorme, incluindo a fronteira, Buba, Aldeia Formosa, Cacine, Mapatá, Ganjola, e mais, tudo abandonado, uma falta total de instalações, tudo para construir, não havia pistas para aviões; a guerrilha implantada na região de Incassol, nas margens do rio Corubal, nas margens do rio Cumbijã (em Bantael Silá) e em Cacine (Campeane), para além das zonas de passagem como Ganturé-Guileje. É o período em que se intensifica o uso de minas antipessoal e anticarro, se reagrupam as populações Fulas, que tinham sido atacadas e expulsas nos itinerários Guileje-Mejo-Nhacobá-Buba-Fulacunda, todas as casas de construção europeia pertencentes a comerciantes tinham sido destruídas, as da Casa Gouveia e as da Ultramarina. Não havia, na época em que o Batalhão chegou ao Sul, ainda destacamento em Guileje. Os grupos da FLING foram rapidamente ultrapassados pelo PAIGC, a população Beafada aceitou colaborar com este partido.

Cada vez que leio estes relatos que se copiam uns aos outros sobre a passividade ou a incapacidade de resposta das nossas tropas à extensão da guerrilha, interrogo-me se essas mentes iluminadas que destratam o trabalho de Louro de Sousa e Arnaldo Schultz que se deram ao trabalho de ler relatos como este, em que se fala da ocupação de Gadamael ou de Guileje, a abertura do itinerário Guileje-Gadamael, do itinerário Sangonhá-Cacoca, Cacoca-Cacine e a ocupação de Cameconde irá ser frequentemente flagelada.

Artur Lagoela vai apensando relatórios de operações, uns referentes à ocupação de localidades abandonadas, outros à abertura e limpeza de itinerários, a presença contumaz, não faltam emboscadas, flagelações, a guerrilha já dispõe de metralhadoras, bazucas e estão a chegar os morteiros, não há qualquer referência ainda a canhões sem recuo. Aspeto curioso que merece relevo é a permanente participação das autometralhadoras nas atividades operacionais, bem como os pelotões de morteiros. Em novembro de 1964, Guileje é já um alvo que o PAIGC não poupa. Não deixa de impressionar como o autor dispõe cronologicamente as operações, mês após mês, já não se está só na fase de abrir itinerários, pretende-se ir mesmo às bases do PAIGC, aonde há população, caso de Bantael Silá ou Darsalame, destroem-se estas populações provisórias, mas nas operações subsequentes descobre-se que a guerrilha e a população voltaram. Há parágrafos que ajudam o investigador a perceber que o dispositivo da guerrilha estava fortemente implantado no Sul, as posições ocupadas eram muito vigiadas e de difícil acesso, em abril de 1965, por exemplo, Os Fantasmas já fazem aqui operações. Há registo da ação psicossocial na região de Buba, procura-se conquistar a confianças dos Nalus de Cacine, dá-se apoio às populações dos regulados de Guileje e Gadamael, há postos de socorro em Cacoca e Sangonhá.

De maio a agosto de 1965, o Batalhão permanece no setor de Bissau, procede a patrulhamentos, não se detetam atividades subversivas. E Artur Lagoela despede-se com a listagem das baixas e louvores, agradece o auxílio da Força Aérea e da Marinha e o Tenente Coronel Luís Gonçalves Carneiro no seu relatório não deixa de mencionar que o PAIGC apresentava o Sul como região libertada, propaganda contraditada pela presença das nossas tropas, disseminada por muitos quartéis, destacamentos e tabancas em autodefesa. Como é evidente, o retrato que aqui se fixa é de um Sul onde se iniciara uma grande desarticulação já no segundo semestre de 1962, onde as populações fugiram ou aderiram ao PAIGC, fizeram crescer povoações como Buba, Fulacunda ou Aldeia Formosa, o BCAÇ 513 participou nesta operação de contrariar uma extensa terra de ninguém e é por isso com imenso valor que este trabalho de Artur Lagoela e os seus amigos, mais de meio século passado.

Para quem quer estudar a guerra da Guiné, obra de leitura obrigatória.


Bem-vindos a Sangonhá, imagem do blogue
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Notas do editor:

Vd. postes anteriores de:

15 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23526: Notas de leitura (1475): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (1) (Mário Beja Santos)
e
19 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23539: Notas de leitura (1476): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23610: Notas de leitura (1494): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20144: Controvérsias (137): Craveiro Lopes em Bolama, em visita de Estado... Era presidente da câmara municipal o Júlio [Lopes] Pereira, que passa, em dez anos, de cidadão respeitável a proscrito social... (Recorte de imprensa: "Diário Popular", Lisboa, 6 de maio de 1955)















Notícia do "Diário Popular", de 6 de maio de 1955, relativa à viagem do Chefe de Estado,  general Craveiro Lopes, à Guiné, com passagem por Bissau e Bolama e depois visita ao interior. Em Bolama, era presidente da Câmara o Júlio Lopes Pereira, colono e comerciante em Bolama, condecorado em 1947, ao tempo do governador Sarmento Rodrigues,  com o grau de Cavaleiro da Ordem do Mérito - Classe de Mérito Industrial. (Decreto de concessão publicado em D.G. de 29 de abril de 1947). Já nos anos 30 estava radicado em Bolama.


1. Presumimos que seja o mesmo Júlio [Lopes] Pereira, morto em novembro de 1965, em Farim... Foi acusado pela PIDE e pelas autoridades militares de Farim (comando do BART 733) de ser o "autor moral" do atentado terrorista de 1 de novembro de 1965, em Farim.

A tratar-se da mesma pessoa, o Júlio [Lopes] Pereira,  radicado em Bolama,  desde os anos  30 e depois em Farim (nos anos 60), seria o pai da jornalista Ana Emília Pereira (,"Milocas" Pereira, para os amigos), jornalista e docente universitária da Guiné-Bissau, a viver em Luanda desde 2004 e entretanto desaparecida, "misteriosamente", em 2012.

A tratar-se da mesma pessoa, verifica-se terá passado de cidadão respeitável a "proscrito social", tendo sido morto às mãos da PIDE em Farim, na sequência do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965. cuja autoria nunca foi reivindicada.(*)

As circunstâncias da morte do Júlio [Lopes] Pereira, de Farim, já aqui foi relatada por Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai" (n. 1929), seu amigo (**):

(...) "Em 1964, requeri terreno onde se encontram as minhas actuais instalações e iniciei as obras. Então o número de contactos aumentou. Concentrávamo-nos frente às minhas obras, com o perigo a aumentar passamos a organizar jantares e mais festas. O grupo engrossou, com Júlio Pereira (que vinha de Farim), Armando Lobo de Pina, Domingos Maria Deybs, João Vaz, Elisée Turpin, Pedro Pinto Ferreira, Duarte Vieira, Aguinaldo Paquete, eu, Carlos Domingos Gomes, etc.

Estes encontros organizavam-se sempre que o Júlio Pereira vinha de Farim para nos trazer as notícias da evolução da luta, que já estava muito avançada. Tudo estava sob perigo, sob vigilância da PIDE.

(...) Como uma bomba soou-nos a notícia da prisão de Júlio Pereira em Farim, na sequência de uma granada atirada a um ajuntamenmto numa festa de tambor em Farim. Foi sovado que nem um animal e obrigado numa cela a lutar com um companheiro até à morte.

Eu era vereador da Câmara Municipal de Bissau, com o velho companheiro Benjamim Correio, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela. Ninguém me fazia acreditar que seria preso, dada a forma isolada como actuava durante a distribuição de arroz. Atendia tudo e todos, até às pessoas que desmaiavam oferecia arroz, punha no meu carro e levava-as a suas casas, mas sempre de cara amarada (sic), porque sabia que a minha actividade estava sendo vigiada.


(...) Com a morte de Júlio Pereira, a raiva que gerou,  atingiu-nos a todos, Benjamim Correia que era meu colega, também vereador da Câmara [de Bissau], todos muito vigiados, colocou-me os anseio da filha, Luisa Pereira, esposa do  Júlio Pereira, de pedir o corpo do marido. 

Dirigi.me ao gerente da casa onde trabalhava, a Ultramarina, de nome Figueiredo, a transmitir-lhe a mensagem de Benjamim Correia e da filha. Telefonou para o director da PIDE, e este para me perguntar quem nos informou da morte. Situação que aumentou ainda mais as suspeitas da minha atuação, isto já no decorrer dos anos 1965/66. Esta onda passou." (...)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá >  Saltinho > Ponte General Craveiro Lopes > Lápide, em bronze, evocativa da "visita, durante a construção" do então Chefe do Estado Português, general da FAP Francisco Higino Craveiro Lopes, acompanhado do Ministro do Ultramar, Capitão de Mar e Guerra Sarmento Rodrigues, em 8 de Maio de 1955. Era Governador Geral da Província Portuguesa da Guiné (tinha deixado de ser colónia em 1951, tal como os outros territórios ultramarinos...) o Capitão de Fragata Diogo de Melo e Alvim... Craveiro Lopes nasceu (1894) e morreu (1964), aos 70 anos.  Foi presidente da República entre 1951 e 1958 (substituído então pelo Almirante Américo Tomás). Não morria de amores por Salazar.

Como se pode ler na página do Museu da Presidência da República:

(...)  Após a eleição de Américo Tomás para a Presidência, em 1958, Craveiro Lopes é, em Novembro desse ano, promovido a marechal.

Apesar da promoção, torna-se progressivamente crítico do regime. Logo em 1959, alguns militares que lhe são próximos, participam activamente no "golpe da Sé", movimento militar revolucionário, promovido por oficiais ligados a Humberto Delgado, desmantelado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Esta mesma polícia não deixará de o manter sob apertada vigilância, controlando todos os seus movimentos até ao final da sua vida. É com total envolvimento que o vamos encontrar ligado à chamada "Abrilada" de 1961 ("golpe de Botelho Moniz"). Craveiro Lopes é um dos militares presentes no plenário dos comandantes militares, na Cova da Moura, convocado por Botelho Moniz. O plano delineado previa que Craveiro Lopes voltasse a ocupar a chefia do Estado, e que Marcelo Caetano pudesse vir a tornar-se chefe do Governo. Considerando a situação irremediavelmente perdida, e perante a desistência dos outros implicados na conspiração, o marechal é um dos poucos que defende a desobediência e o confronto militar com as forças fiéis ao regime.

(...) O seu ressentimento em relação a Salazar e a certas figuras do regime será (...),  até ao fim da sua vida, profundo e irremediável. (...) As suas últimas intervenções com peso político dão-se em 196[2]: o prefácio que aceita fazer ao opúsculo da autoria de Manuel José Homem de Mello "Portugal.  o Ultramar e o Futuro", no qual defende a necessidade de se encontrar uma "solução verdadeiramente nacional" e promover uma "livre discussão", para o que uma maior liberdade de imprensa constituía factor fundamental; a entrevista que concede, meses depois, ao Diário de Lisboa, publicada na edição de 10 de Agosto, onde leva as suas críticas mais longe, defendendo a livre discussão dos principais problemas do país, "a evolução gradual do regime", a abolição da censura" e a "liberdade de expressão e discussão", apelando ainda à "coragem" e ao "bom senso", no âmbito da política ultramarina, a fim de que se reconheçam "as realidades da hora presente". (...)

Foto: © Albano M. Costa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20142: Controvérsias (136): Não consta que o Amílcar Cabral, o "pai da Pátria", tenha reivindicado a autoria (moral e política) do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim, e muito menos denunciado ou condenado esse ato monstruoso... Pelo contrário, até lhe convinha, para memória futura, que as criancinhas de Farim continuassem a repetir, em coro, estes anos todos, na escola, que esse ato foi obra maquiavélica e tenebrosa dos "colonialistas portugueses"...

(**) Vd. poste de  10 de agosto de  2010 > Guiné 63/74 - P6843: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (5): Júlio Pereira, preso, torturado e morto na prisão pela PIDE, suspeito de estar por detrás dos graves acontecimentos de Farim, em 1/11/1965

sábado, 7 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20130: Controvérsias (133): Os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, de 1 de novembro de 1965, um brutal ato de terrorismo, cuja responsabilidade material e moral nunca foi apurada por entidade independente: causou sobretudo vítímas civis, que estavam num batuque: 27 mortos e 70 feridos graves


Guiné > Região do Oio > Mapa de Farim (1954)  > Escala de 1/50 mil > Posição de Morocunda, bairro de Farim.



Guiné- Bissau > Região de Oio > Farim > Março de 2008 > Cádi ou Cati, uma sobrevivente dos trágicos acontecimentos de 1 de novembro de 1965. O António Paulo Bastos conheceu-a, ma Missão Católica, na altura da sua 3ª viagem à Guiné-Bissau.

Fotos (e legenda): © António Paulo Bastos (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Excerto de relatório sobre o período de 1 a 30 de novembro de 1965,  inserido na história do BART 733, Bissau e Farim, 1964/66). Cortesia do nosso camarada e grã-tabanquerio António Paulo Bastos,
ex-1º Cabo do Pelotão de Caçadores 953 (Cacheu, Bissau, Farim, Canjambari e Jumbembem, 1964/66) (*).

1.  Ainda está envolta em controvérsia a responsabilidade material e moral dos trágicos acontecimentos de 1 de novembro de 1965, em Morocunda [e não Morucunda...], nas imediações de Farim (**), aqui relatados em primeira mão pelo António Bastos, em 2009, em 3 postes (*) mas já referidos antes pelo Virgínio Briote (***)... 

Só conhecemos a versão da PIDE e do BART 733,  atribuindo a responsabilidade do atentado a "elementos subversivos"... Tanto quanto sabemos, o PAIGC nunca reivindicou a autoria deste horrendo atentado, que teve um balanço trágico, segundo o documento acima reproduzido: 27 mortos e 70 feridos graves, além de feridos ligeiros, entre a população civil; um ferido grave, entre as NT. 


(i) Poste P5203, de 3 de novembro de 2009:

CARNIFICINA EM FARIM

1 de Novembro de 1965

Camaradas,

No passado dia 1 [de novembro de 2009]  completaram-se 44 anos, sobre um ataque que me marcou profundamente. Tenho duas fotos de uma das sobreviventes e lembrei-me de enviar para serem publicadas no blogue.

Tudo aconteceu em Farim, resultante do rebentamento de um engenho explosivo, em pleno batuque na tabanca do Bairro da Morocunda.

Eram 21h30, quando um elemento da milícia lançou um fornilho (uma granada embebida em pregos, lâminas e bocados de ferros), para o meio do pessoal presente.

27 mortos e 70 feridos graves, uma deles era uma senhora que podem ver nas fotos e que, nessa altura, era ainda uma criança de 10 anos. Chama-se Cáti, mora atualmente em Farim e, em março de 2008, fui encontrá-la numa festa na Missão Católica em homenagem a um grupo de turistas “tugas”, que por ali passaram 2 dias.

Como tudo aconteceu: eu pertencia ao Pelotão Caçadores 953 e estava nesse dia de passagem por Farim, a caminho de Canjambari. No momento da explosão,  eu estava junto à porta da caserna do pelotão de morteiros. Logo de seguida, começaram a passar viaturas com corpos em cima, a caminho das enfermarias civil e militar.


A maioria das vítimas eram crianças e, entre elas,  estava a Cáti. Foi chamado um Dakota e recorreu-se à iluminação da pista de aterragem, com os faróis das viaturas, para se evacuar aquela gente toda.

Agora, passados estes anos, fui encontrar uma das sobreviventes e, como não podia deixar de ser, estivemos a falar do assunto, tendo ela permitido que eu obtivesse as 2 fotos do seu cicatrizado corpo. (...)

(ii) Poste P7205, de 1 de novembro de 2010:

 (...) Neste fatídico Dia 1 de novembro de 1965, pelas 21:30, horas estava eu de passagem por Farim esperando transporte para Canjambari, quando se dá um rebentamento no Bairro da Morocunda em Farim que causou a morte a 27 pessoas, 70 feridos graves e vários ligeiros, todos civis. As NT sofreram 1 ferido grave e um ligeiro.

O engenho, duas granadas reforçadas com explosivos, pregos e lâminas, foi lançado para o meio do batuque onde era suposto estar muita tropa, o que não aconteceu, porque se tinha feito uma operação e o pessoal estava ainda a descansar.

Pela primeira vez na Guiné um Dakota levantou de noite para proceder à evacuação dos feridos.

No dia seguinte já se encontravam presos na 1.ª Companhia de Caçadores em Nema (Farim), 60 indivíduos entre eles: Pedro Mendes Fernandes, Bernardo da Cunha, Raul Teixeira Barbosa, José Maria Jonet, Dionísio Dias Monteiro, Pedro Tertuliano, Dionísio da Silva Pires (este empregado dos CTT)  e muitos mais, todos empregados das repartições públicas e casas comerciais.

As prisões foram feitas pelo agente da Pide, de nome Prodízio e militares da CCS do BART 733. (...)



(...) No relatório falam de um agente da PIDE. O seu nome era Prodísio (nunca mais me esqueci) e, em conversa com a Cáti (ou Cádi,  não me lembro exactamente), ela confirmou-me que, depois de recuperada dos graves ferimentos que sofreu, regressou a Farim, tendo sido empregada na casa dele.
No mês de narço de 2008, ao passear com a Cáti em Farim, ela disse-me onde tinha morado o tal PIDE e onde trabalhava.

Sobre relatórios, tenho em meu poder, ainda, os do BART 733 e do BCAV 490, pois foram os batalhões onde estive adido. (...)


Em 2007, o Virgínio Briote já se te tinha referido a este ato de terrorismo,  citando o testemunho de um preso político entrevistado pela historiógrafa Dalila Cabrita Mateus (**): Pedro Pinto Pereira, nascido em Bissau, em 1926, preso e desterrado para São Nicolau, Angola (1966-1969), libertado no tempo do Spínola. Será mais tarde preso depois da independência da Guiné-Bissau, acusado de colaboracionismo.

O Virgínio Briote também estava lá nessa altura, em Farim (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


4 de novembro de  2009 > Guiné 63/74 - P5211: Efemérides (32): 1 de Novembro de 1965 – Relatório Oficial da Carnificina em Farim (António Paulo Bastos)

(...) Que assistira ao fabrico de uma bomba. Quando eles (PIDE) é que tinham deitado uma bomba em Farim, onde mataram muita gente,

(...) (quem lançou a bomba?) Foi a PIDE que mandou, tenho a certeza disso. Lançou a bomba para depois dizer que nós até matávamos africanos. Ali não havia quartéis, só havia casas comerciais, onde era fácil lançar bombas e fugir. Porque é que não lançavam as bombas nos quiosques, frequentados pelos militares portugueses? E iam deitar onde só estava a população? Queriam arranjar pretexto para fazer prisões. Havia, então, uma festa numa tabanca e morreram mais de cem pessoas. Isto passou-se no dia 1 de Novembro de 1965. (...)

(...) Nota da historiadora: Confirmado o incidente, a PIDE, em mensagem por rádio existente nos arquivos de Salazar, afirma que, no dia 1 de Novembro de 1965, cerca das 20 horas, fora lançado um engenho explosivo para o meio dos africanos que se encontravam num batuque em Farim. A explosão teria provocado 63 mortos e feridos, na sua maioria mulheres e crianças.

Foi detida meia centena de pessoas. Confissões obtidas levaram à detenção de um tal Issufo Mané, que declarou pretender atingir militares (?). Para o fazer, teria recebido 14 contos de Júlio Lopes Pereira, o qual, por seu lado, actuara por indicação do chefe da Alfândega de Farim, Nelson Lima Miranda. E este teria vindo a declarar que a bomba fora lançada a mando da direcção do PAIGC.

(AOS/CO/UL- 50-A, Informações da PIDE, 1965-1966, 86 subdivisões, pasta 2, fls. 636, 637, 638, 641 e 642).

domingo, 21 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11433: Álbum fotográfico do Leopoldo Correia (ex-fur mil, CART 564, Nhacra, Binar, Teixeira Pinto, Mansoa, 1963/74) (1): Bafatá nos finais dos anos 50 (ainda hoje lá tem familiares ligados ao comércio)


Foto nº 241 > Guiné >  Bafatá >  c. 1958/59 >  Armazém da Casa Gouveia: manga de amendoim…


Foto nº 242 > Guiné >  Bafatá > 1958 >  Equipa do SCB [Sporting Clube de Bafatá]


Foto nº 243 >  Guiné >  Bafatá  >  c. 1958/59 >  Empregados da Casa Gouveia no armazém




Foto nº 244 > Guiné  >  Bafatá >  1957 >  Jónác na S. C. Ultramarina




Foto nº 245 > Guiné >  Bafatá >  c. 1958/59 > Bombas da gasolina da Casa Barbosa



Foto nº 246 >  Guiné > ; Bafatá >  1959 >  Helder Barbosa




Foto nº 247 > Guiné >  Bafatá > 1958 > Rua Principal de Bafatá




Foto nº 248  >  Guiné > Bafatá  >  c. 1958/59 >   Bajudas em frente ao S. C. Bafatá




Foto nº 249 >  Guiné > Bafatá >  1959 >  Piscina de Farim


Fotos (e legendas): © Leopoldo Correia (2013)  Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]


1. O Leopoldo Correia (ex-fur mil da CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65), enviou-nos "mais fotos de outros tempos, Bafatá 1958/59" (sic).

Presumimos que o álbum seja do mesmo familiar seu, que trabalhou na Casa Gouveia, em Bafatá. de que já publicámos dois postes (umsobnre Bafatá e outro sobre o Olossato).

São uma preciosidade: ajudam-nos muito a reconstituir a época anterior à guerra colonial... As fotos falam por si. Os anos 50 são de relativo progresso económico e social na colónia... Particularmente deliciosa é, para mim, a foto da piscina de Farim (nº 249): há uma dúzia de nadadores e umas dezenas de mirones locais ao longo do muro... Era também uma época em que se viajava, com segurança, por toda a Guiné: ia-se facilmente de Bafatá a Farim para dar um mergulho na piscina (então um luxo e uma novidade)... Além disso, Bafatá era um importante vila comercial, com várias casas importantes como a Casa Gouveia e a Casa Ultramarina. Ainda vi velhos camiões como o da foto nº 241 (pu parecidos) fazerem colunas logísticas de Bambadinca ao Saltinho, em 1969...Alguns não voltaram...

Obrigado, mais uma vez, ao nosso camarada e ao seu familiar, que ele não identifica.

Recorde-se aqui alguns factos da história de vida do Leopoldo:

(i) Nasceu em Lisboa em 14/3/1941;

(ii) Por motivos de saúde e pela situação do após guerra, a família transfere-se para Estarreja, terra natal do pai;

(iii) Lá crescei e se fez gente, como ele próprio nos diz... Tirou o Curso Industrial de Electricidade na Escola Industrial do Infante D. Henrique, no Porto;

(iv) O curso deu-lhe a a oportunidade de entrar na CNE - Companhia Nacional de Eletricidade, criada em 1947, na sequência da aprovação do plano de eletrificação do país (hoje REN);

(v) Em 1963 é incorporado no Curso de Sargentos Milicianos, passando por Mafra e Tavira;
(vi) Seguiu para a Guiné em Outubro do mesmo ano;

(vii) Fez parte da CART 564 que na Guiné, como companhia independente, teve um ano os seus militares espalhados por diversas zonas;

(viii) Pela sua parte, esteve em Nhacra, Binar, Teixeira Pinto, Mansoa;

(ix) Regressou em 1965; [e tenho ideia, por uma conversa telefónica, que ainda viveu e trabalhou em Angola antes da independência;]

(x) Ainda hoje tem familiares ligados ao comércio em Bafatá;

(xi) Está reformado da EDP;

(xii) Vive em Águas Santas, Maia.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6856: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (Fim): Prisão e tortura pela PIDE em 1967, libertação no tempo de Spínola em 1968, refúgio em Portugal em 1973 e regresso ao país depois do 25 de Abril de 1974

Publicação da sétima e última parte das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, que o autor me facultou um exemplar, em Bissau, em Março de 2008,  tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

A partir de hoje, o empresário e nacionalista Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai, pai do actual 1º Ministro da Guiné-Bissau, Carlos Gomes Júnior, também conhecido por Cadogo Júnior, nascido em Bolama, em 1949) passa a integrar a nossa Tabanca Grande. Desejamos-lhe muita saúde e longa vida. E estamos-lhe gratos por nos ter disponibilizado o texto policopiado  com as suas memórias que vão de 1946 até 1974. Cadogo Pai nasceu em 1929, terá portanto 81 anos. Foi conselheiro de Estado no tempo de 'Nino' Vieira. Teve também funções governativas antes do golpe de Estado do 1998 (L.G.)

Parte II (pp. 13-17)

Num belo domingo à tarde, numa visita a casa de uma amiga no Bairro da Ajuda, a Dona Micteia, encontrei dois amigos, Eugénio Peralta e Valdemar Oliveira. À chegada encontrei-os na rua. Um deles disparou-me:
- Já sabe que prenderam o Pipi Pereira ? - respondi, dizendo que sabia. Informaram-me que foi preso de madrugada. Sem resposta mais a dar, traí-me de emoção, disparei para casa do Sr. João Vaz, para obter a confirmação. Bati à porta, ele saiu e confirmou-me a notícia da prisão do nosso companheiro Pedro Pinto Pereira, dando-me a notícia de que a seguir seríamos nós. Ele, João Vaz, eu e António Augusto Carvalho (ANCAR).

24. Tudo aconteceu no domingo. No dia seguinte, segunda-feira, encontrei o nosso companheiro António Carvalho, dei-lhe a notícia da prisão do Pedro Pinto Pereira, e a informação que tinha, que a seguir seríamos nós. Alarmou-se, foi informar a esposa, uma senhora portuguesa. Sem controlo, decidiram ir pedir protecção ao Sr. Tenente Castro, que era elemento ligado à PIDE. Este levou-os à PIDE para serem ouvidos em declarações, o que nos complicou a vida a todos após as declarações prestadas.

25. O Sr. António Carvalho, reconheço que não tinha intenção de me prejudicar, porque a seguir às suas declarações, veio-me avisar que eu seria chamado para ser ouvido em declarações. Só que ele não sabia, por motivos de segurança como já disse, cada um só sabia os contactos que tinha. Eu não podia ser ouvido, sem avisar o João Vaz e ele aos que ele sabia dos seus contactos.

26. Informei a minha mulher da situação e da aflição que tinha de contactar os companheiros dos meus contactos. Que tinha de partir de João Vaz ou de um deles. Sugeriu-me sair à rua. Deparei por sorte com o Sr. Armando Lobo de Pina, de passagem, vindo do serviço da [Casa] Ultramarina onde era empregado. Informei-o da situação e da urgência de contactos com os companheiros e da resposta. Aconselhou-me, cerca das 11h45, para estar à porta, que estaria de passagem. Assim aconteceu, a senha foi para eu suportar tudo e não mencionar nomes, porque seria perigoso. Aceitei porque eram muito graves as declarações do Sr. António Carvalho, comprometiam altas figuras que não nos convinham que fossem figuras tocadas, caso do  Mário Lima, Artur Augusto Silva [, pai do nosso nosso amigo Pepito, preso pela PIDE em 1966, no aeroporto de Lisboa, encarcerado na Prisão de Caxias durante 5 meses sem culpa formado, libertado por influência de Marcelo Caetano, impedido de regressar à Guiné], Severino Gomes de Pina, etc.

27. Eram 15 horas e mais alguma coisa, apareceram dois agentes da PIDE, abordaram-me, que me me queriam falar, disponibilizei-me, mas deram-me a entender que não era no meu escritório, mas sim lá em cima. Quando perguntei em cima, aonde, virou a gola da camisa, um deles, de nome Silva, para me mostrar o distintivo da PIDE. Foi assim que se deu início ao que iria ser a prisão do nosso alargado grupo, alguns dos quais só na prisão viríamos a conhecer.

28. A seguir à prisão do Pedro Pinto Pereira, prenderam o João Vaz, deixando todos alarmados, a aguardar os acontecimentos, cada um nas suas ocupações. Deram-nos o tempo de passar as festas de Natal e Novo Ano, eram fins do ano de 1966.

29. Já em 1967, certo domingo, dia 16, estava eu de volta das obras das minhas actuais instalações, apareceu-me o Sr. Domingos Maria Deybs, com um jornal na mão, a anunciar um convite para almoço de confraternização dos amigos do Inspector da PIDE. Perguntou-me se eu ia tomar parte no almoço. Naturalmente a minha resposta foi desabrida, a perguntar a que título iria tomar parte em tal almoço!!!

Afinal era a senha, o mesmo aparato de força ocorreu com os companheiros a seguir citados e, a partir do nosso mesmo conterrâneo, contactou os camaradas: Armando Lobo de Pina, Elisée Turpin, Milton Pereira de Borja, Lindolfo, ex-empregado de Mário Lima Wanon. Assim fomos todos presos na madrugada do dia 17 de Janeiro de 1967, os quatro camaradas contactados e comigo cinco prisões.








_________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste anterior:

13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6848. Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (6): 1966, o ano das prov(oc)ações

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6807: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (1): Encarregado de uma empresa francesa, em Bissau e depois Bolama (1946-1951)









Conheci Carlos Domingos Gomes (nickname, Cadogo, Cadogo Pai ou Cadogo Velho), há mais de dois anos, em Bissau, no decurso do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008).

Estava ainda no poder o ‘Nino’ Veira. Era presidente do PAIGC Carlos Gomes Júnior (também conhecido na sua terra como Cadogo Júnior, ou apenas Cadogo), e que chegou a ser considerado como delfim do próprio ‘Nino’ Vieira até ao conflito de 1998.

Dez meses depois do Simpósio, o filho de Carlos Domingos Gomes, no final desse ano, seria indigitado para o cargo de Primeiro-Ministro, lugar que ainda hoje ocupa.

Carlos Gomes Júnior nasceu em Bolama em 1949. É filho de Carlos Domingos Gomes e de Maria Augusta. Sabemos que, antes de entrar na política, e chegar a dirigente máximo do PAIGC, o actual primeiro ministro foi um empresário e gestor de sucesso. Não participou na luta armada como combatente.

O Cadogo Pai, em contrapartida, reclama-se da condição de Combatente da Liberdade da Pátria, sem todavia nunca ter pertencido ao PAIGC, e muito menos combatido na guerrilha. Considera-se um nacionalista, embora tenha colaborado com o poder colonial, como autarca, o que lhe trouxe alguns alguns amargos de boca nos primeiros tempos, após a independência. Era amigo de Aristides Pereira. Em contrapartida, teve problemas com Luís Cabral que “tentou impedir a minha candidatura às primeiras eleições legislativas realizadas em Bissau, após a Independência” (1ª Parte, p. 2).

Hoje dou início à publicação da história de vida de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai, a partir de um texto autobiográfico, policopiado, de que ele me ofereceu uma cópia em Bissau. Conheci-o por acaso, na sala de conferências do hotel onde estava a realizar-se o Simpósio. Na mesma altura conheci o Joseph Turpin (*), sobrinho do Élisee Turpin, esse sim um histórico do PAIGC (**).

Prometi, ao Cadogo Pai, publicar-lhe no nosso blogue as suas memórias, pelo menos alguns excertos ou um versão adaptada. Cumpro essa promessa ao fim de dois anos... Em Bissau, ele ofereceu-me um exemplar autografado. Deu-me inclusive o seu número de telefone de Bissau, onde reside. Daqui vão, para ele, os meus votos de boa saúde e longa vida.

O documento, de 26 páginas, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

O texto está dividido em duas partes, com numeração autónoma: 1ª parte (9 pp.): Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai, Galardoado com a Medalha de Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Luta de Libertação Nacional. Guiledje, Simpósium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008; a II parte (17 pp): Simpósium Internacional, História da Mobilização da Luta da Libertação Nacional: Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai.

Cada uma das partes está estruturada por parágrafos, numerados de 1 a 23 (1ª Parte, pp. 1-9) e de 1 38 (2ª Parte, pp. 1-17). O autor assina o documento, no final como “Administrador” e como “Membro do Conselho de Estado” (sic). Não parece haver uma clara separação temática ou uma sequência lógica e cronológica entre as duas partes.

Devo acrescentar que ele não fazia parte dos oradores do Simpósio Internacional de Guiledje. Estava lá, ao que julgo, apenas como participante ou convidado.

Este evento terá sido um bom pretexto para o autor escrever, eventualmente retocar e sobretudo divulgar as suas memórias, quer como cidadão quer como empresário, balizadas entre os anos de 1946 e 1974:

“1. O evento [, o Simpósio,] galvaniza todo o meu pensamento, para tentar arrumar elementos da minha vida política, participativa, na luta pelo desmantelamento do sistema colonial em África” (Parte I, p. 1).

Em 1946, aos 17 anos (nasceu portanto em 1929), o autor era “paquete de escritório da família Barbosa, junto do Grande Hotel”. Ganhava 120 escudos de salário mensal. Essa família Barbosa incluía Antoninho Barbosa e César Barbosa, tios do Caló Capé.

Achando que não era lugar de (ou com) futuro, candidatou-se a (e ganhou) o lugar de auxiliar de escriturário numa firma francesa, SCOA – Sociedade Comercial do Oeste Africano (proprietária do edifício onde está hoje a Pensão Berta), com várias lojas pela Guiné (Bissau, Bolama, Bissorã…).

Estamos em Agosto de 1946. A escrituração das receitas da loja era feita em francês, língua que ele não dominava, mas iria contar com a ajuda (inesperada) do empregado que fora substituir, nada menos que o José Costa, colega de escola, entretanto transferido para Bissorã. Ele próprio, Cadogo,  será transferido, meses depois, a 24 de Dezembro de 1946, para Bolama. Em Bissau ganhava 250 escudos. Em Bolama, passou a ganhar 300, “quantia exígua para tomar conta da minha vida” (1ª Parte, p. 3).

Fica em Bolama três anos. Em 26 de Dezembro de 1949 é convidado “para vir ocupar o posto de chefia da loja nº 2 em Bissau”, enquanto o José Costa, regressado de Bissorã, chefia a loja nº 1. Tinha 20 anos, “ainda era menor”, só fazendo os 21 em Maio de 1950. É em Bolama que nasce o seu filho, hoje 1º ministro, em 19 de Dezembro de 1949 (conforme consta da biografia oficiosa de Carlos Gomes, no sítio do PAIGC).

Volta a Bolama, em Março de 1951, como chefe operacional da mesma empresa, a Sociedade Comercial Oeste Africana (onde trabalhou como contabilista, de 1942 a 1956, Elisée Turpin, um dos fundadores do PAIGC).

“Foi em Bolama que conheci o camarada Aristides Pereira, muito reservado. Fizemo-nos amigos. Em quase todas as tardes , entre um greupo de amigos, encon trávamo-nos na marginal” (1ª Parte, p. 4). Além de Artistides Pereira, são citados os nomes de Alcebíades Tolentino, Barcelos de Lima, Adelino Gomes e Afredo Fortes. Falava-se de tudo, “mas sobre a política africana nada”

A seguir, o autor conta-nos como foi “parar à política”, isto é, como se tornou um nacionalista, próximo do PAIGC…

“Com a posição do importante posto de emprego, encarregado da operação da SCOA, casa comercial importante na concorrência, fui empurrado muito novo para a política e manutenção [sic]de uma personalidade rija em luta com os encarregados da Gouveia, Ultramarina, Pinto Grande, Ernesto Gonçalves de Carvalho, etc., Europeus. Cabo Verdiano era o falecido Carolino Barbosa” (1ª Parte, p. 4). O “nacionalismo” de Cadogo Pai remontaria a esta época (reconhecido pelo próprio Aristides Pereira, no seu livro, a p. 79).

Terá sido através do Elisée Turpin, seu colega em Bissau, que lhe chegavam a Bolama as notícias das primeiras “movimentações”, de “cariz político”, que surgiam em Bissau. “Pode fazer-se ideia de como foi fácil a minha mobilização em confrontação com as empresas europeias que tentavam espezinhar-me e discriminar-me no importantre posto do meu emprego”. Ou seja, europeus [, leia-se: portugueses,] e caboverdianos  possivelmente não viam com bons olhos que um filho da Guiné fosse encarregado numa empresa francesa…

(Continua)

[ Revisão / fixação  de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.]

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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 27 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3246: Simpósio Internacional de Guileje: Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, saúda António Lobato, ex-prisioneiro (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC (Élisée Turpin)

terça-feira, 18 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sector de Contuboel > Contuboel > Ponte sobre o Rio Geba > 16 de Dezembro de 2009 > Foto de João Graça, médico e músico, membro da nossa Tabanca Grande. O Cherno Abdulai Baldé, o Chico de Fajonquito,  é natural de Fajonquito, que pertence ao Sector de Contuboel, Região de Bafatá. Entre os de Fajonquito (na fronteira com o Senegal) e os de Contuboel (que,  no meu tempo,  Junho/Julho de 1969, era centro de instrução militar, foi lá que foi formada a futura CCAÇ 12...) havia (ou ainda há) uma certa rivalidade... nomeadamente em termos futebolísticos (diz-nos o Cherno).


Foto: © João Graça (2010). Direitos reservados

1. Mensagem do guineense Cherno Baldé, amigo e membro do nosso blogue, com data de 17 do corrente

Caro Luis Graça,

Na continuação das crónicas de Chico (Cherno Baldé,  de Fajonquito), envio mais esta, esperando que suscite reacções mais positivas do que as anteriores.

De notar, entretanto, que não existe nenhuma motivação, pró ou contra relativamente ao nome de Mortágua ou de outras possiveis conotações.Tudo foi fruto do simples gosto de escrever recordações e de partilhar pontos de vista. Como poderão notar, não conheço esta localidade ou freguesia e nunca convivi com outra pessoa que tivesse estas origens salvo o soldado a que me refiro e do qual me lembro vagamente.

Cherno Abdulai Baldé - A partir de Bissau.


2. Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15):  O Mortágua (*)


Para todos aqueles que conhecem minimamente terras Lusas, Mortágua deve significar uma aldeia, vila, freguesia ou cidade,  situadas algures no centro norte de Portugal. Para as crianças "rafeiras" do quartel de Fajonquito por volta de 1970/72 (**), Mortágua era o nome dado a um dos soldados cozinheiros da messe dos oficiais,  situada nas traseiras da casa comercial Ultramarina, onde trabalhava o meu pai. 

Por detrás desta cozinha, encontrava-se o salão de futebol de cinco, onde passávamos a maior parte do tempo a brincar ou a observar aquelas crianças adultas, como lhes chamava a minha avó, que eram, nesse caso, os soldados portugueses, a jogar a bola no meio de gritos e, quase sempre, como que para impor a ordem, um ou outro oficial espectador junto ao murro que circundava o salão.

Indiferente, sorumbático e a destoar de tudo e de todos,  estava o Mortágua ocupado nos seus afazeres de todos os dias. O homem não era muito vulgar, a começar por seu tamanho que saltava fora do comum dos portugueses. Era alto e possuía enormes pés,  sempre descalços,  ou em chinelas que mais pareciam trompas de elefante, pintados de nódoas pretas da caldeira da cozinha e o corpo invariavelmente habitado por cascas de batata, penas de galinha e restos de comida. 

Tanto o víamos ocupado à volta da sua cozinha que pensávamos que ele passava lá as noites. Quando matava as galinhas, não se dava ao trabalho de cortar a garganta e segurá-las até esfriar para não saltitarem enquanto lutavam entre a vida e a morte, momentos que todos os seres humanos devem respeitar, como mandam as regras. Ele, ao contrário, segurava nelas e batia a cabeça das pobres criaturas contra as bordas salientes de um tanque e, de seguida deixava-as rolar no chão até perderem a vida. 

Esta crueldade da parte de um homem, certamente, criava um misto de medo e de ódio contra ele da parte das crianças e por extensão da aldeia, também. Não era dado a passear ou a brincar, nem tão pouco frequentava a aldeia, plantada mesmo ao pé do quartel,  doutro lado da estrada para além da vedação de arame farpado. A sua postura de homem solitário, triste e cruel,  fazia pensar numa alma infeliz.

Ora, ai é que estava o cerne da questão, e que me intrigava sobremaneira. Na minha opinião, era difícil imaginar que pudesse haver pessoas infelizes num sítio com tanta abundância de alimentos e de vida, jovem e saudável. Certamente, estes brancos não sabiam a felicidade que Deus lhes tinha concedido ao enviar-lhes neste mundo sem as mazelas que atormentavam a população nativa, pensava eu. 

Se não vejamos: Não tinham bebés para amamentar e levar as costas, aliás não eram obrigados a aturar as birras das mulheres que diariamente engendravam mil e um conflitos nas nossas moranças criando fissuras na coesão social e familiar com as suas histórias trelelé, sem pés nem cabeça, nascidas da sua eterna insatisfação sexual; não tinham velhotas intrometidas como a minha avó que queria saber e controlar tudo e todos ao pormenor só para se manter ocupada e não definhar; não tinham doenças, pelo menos, nunca tinha visto sequer um soldado que o estivesse, salvo algumas diarreias que entupiam as casas de banho em certas ocasiões.

Desde o primeiro contacto, para mim, o quartel transformou-se irremediavelmente num local atractivo porque era o lugar ideal, quase perfeito, para viver, longe das misérias do mundo. Os homens em geral têm tendência natural para justificar as suas fraquezas. Foi assim que, confrontados com a força conquistadora e dominante dos Portugueses, os nossos velhos encontraram uma forma subtil e engenhosa de explicar a supremacia e também, a sorte dos brancos. Diziam: "A eles, Alá (Deus) deu tudo o que desejavam neste mundo e a nós, pretos, Deus nos reservou o paraíso na eternidade, na condição de sermos pacientes e cumpridores das obrigações contidas nos cinco pilares da religião". 

Todavia, não era assim tão simples no espírito de uma criança que tinha fome e muita curiosidade. E mais, a fome podia ser enganada ou controlada mas era mais difícil ocultar a evidência, para lá das barreiras e dos dogmas.

Desculpem pois, estava a falar do Mortágua. Pensava eu ser esse o seu nome, todos o chamavam assim. Não raras vezes, gritávamos, escondidos noutro lado do murro do pequeno salão: 
– Mortábua !!! Mortábua !!!

Era uma festa de risos e assobios, após uma breve escapada, seguros da nossa impunidade. Mais que a zombaria, era a sonoridade do nome que nos divertia. Mas ele nunca reagia as nossas provocações, continuando impávido a descascar batatas ou a depenar as suas galinhas dessacralizadas.

Num dia em que me tinha levantado mais cedo que o habitual como que empurrado pelo Satanás, fui ao centro da aldeia, onde se situava a única escola e, como não estava ninguém naquela hora do dia, desci para os lados do quartel. No refeitório cruzei-me com o sempiterno Zeca Mané, auxiliar da cozinha, ainda com os vestígios da bebedeira de ontem, a lavar as panelas e a pôr lenha no fogão para o café da manhã, acompanhado de algumas crianças que o ajudavam a troco dos restos de comida da véspera. Do forno da padaria, situado entre a cozinha e a caserna dos condutores, saia o cheiro agradável do pão a cozer mas, ainda a maior parte da malta estava dentro das casernas a preparar-se para o novo dia que começava.

Encostado ao murro do refeitório, para não ser visto por Matos,  o Chefe da cozinha, que por razões que não sei explicar, não simpatizava comigo, dirigi-me aos colegas suplicando-lhes que me dessem um pouco dos restos de comida, para segurar a barriga . Talvez devido à vida de rafeiros que levavam no quartel, normalmente nenhuma das crianças cedia em tais condições em oferecer comida aos outros. Nenhum deles sequer olhou para mim. Como não respondiam, dirigi-me para o local onde sabia estar escondida a comida e então chamaram o patrão:
- Xô Matos, olha o desenfiado!

O Matos era um brutamontes e, sabendo do perigo que corria, deixei o refeitório e afastei-me para os lados do salão. Estas circunstâncias salvaram-me de uma morte certa mas, vamos por partes.

Sem saber ao certo o que fazer perante a recusa dos colegas que sabia ser irreversível mas ainda com a barriga vazia, dirigi-me para os lados do salão de futebol e, aí, avistei uma figura conhecida, era o Mortágua nas suas lides diárias. Inclinado sobre um caixote de madeira semi-aberto, ele apanhava com uma das mãos as batatas inglesas munido de uma faca de cozinha. Talvez devido a monotonia da hora e, sem pensar nas consequências, chamei:
- Mortábua!

Como que picado por uma vespa, o homem levantou-se com uma facilidade que não suspeitava nele e lançou-se na minha direcção com a faca em punho. Com a surpresa do momento, ainda perdi alguns segundos sem reagir. Pensei em fazer marcha atrás mas, na cozinha estava o Matos mais um grupo de soldados da companhia de operacionais, que não hesitaria em caçar-me. Pensei em fugir e entrar na caserna dos condutores mas ainda alguns estavam na cama e arriscava-se a levar dupla porrada. A única saída eram os arames farpados.

Com o medo à flor da pele, dei meia volta, como que a querer dirigir-me a cozinha, de seguida virei na primeira porta do refeitório e que dava para a padaria, tendo voltado de novo ao salão do qual saltei o primeiro e o segundo murro sem dificuldades, tendo-me, depois, lançado em grande velocidade, em direcção ao cercado mais distante, situado ao sul e que dava acesso ao morcunda, bairro Mandinga. A distância a correr era razoável e convinha fazê-lo rapidamente e em ziguezague senão arriscava-me a ser atropelado pelo monstro.

O Mortágua não cedia um passo. Não podia supor, nem por um triz que aquele calmeirão fosse tão ágil e resistente na corrida. Sentia o bafo de ar quente por cima da minha cabeça e eu corria e corria. No quartel, já se tinha perfilado um certo número de curiosos a observar a corrida. Só pedia a Deus que a sentinela estivesse a dormir, senão... Sentia que as pernas estavam cada vez mais pesadas e as mãos do gigante me arranhando as costas no desespero de me agarrar. Socorro!

O que o Mortágua não sabia era que tudo estava calculado, de antemão, assim como fazem os animais que vivem sob ameaça permanente. Havia sítios onde tínhamos feito aberturas com as pontas redondas do arame viradas para cima, de modo a permitir a passagem de um corpo minúsculo e, foi por ai que me escapuli, deixando cair o corpo a terra e rolando por baixo, da mesma forma que nos tinha ensinado o nosso "instrutor militar". 

O Mortágua, incrédulo e impotente,  começou a mandar vir com imprecações acompanhadas de mil ameaças caso voltasse a pisar o quartel. Atirou-me ainda algumas pedras mas a partida já estava perdida para ele, pelo menos, desta vez. Pelos vistos, era preciso mais que a fúria de um gigante para encurralar um rafeiro.

Como se nada tivesse acontecido, com o corpo riscado de arranhões e a camisa em tiras, juntei-me ao grupo de rapazes que seguia para Morcunda. Agora era preciso encontrar os mantimentos necessários e juntos partir para a bidal, ponto de encontro da malta jovem nos períodos matinais. Devíamos preparar alguma provisão em mangas que íamos roubar no bairro mandinga. E foi ai que começou o desenrolar do drama que dava sequência ao episódio do refeitório e que viria a ceifar a vida de alguns dos nossos colegas.

Os primeiros sinais foram de náuseas e vómitos mas não tardou a que todos aqueles que tinham passado pelo refeitório e que se tinham servido da comida da véspera no quartel, estivessem estatelados no chão sem forças. Pusemo-los dentro dos caixotes que nos serviam de carros para os arrastar mas as cordas cediam e, então,  fomos obrigados a carregá-los nas costas até à casa Gouveia, no centro da aldeia, onde funcionava o hospital ou o que fazia passar por tal. Antes de chegarmos ao local já uma das crianças estava morta. As outras, ainda receberam alguma assistência e medicamentos mas muitas vieram, mais tarde, a sucumbir. Os mortos foram enterrados e a vida continuou, era o destino.

O que tinha acontecido? Segundo as informações que depois circularam, eles tinham comido carne de atum em mau estado de conservação que as tinha intoxicado. Esta carne vinha em latas largas e redondas. Verdade ou não e, como não podia avaliar do seu estado, nunca mais voltei a comer atum, pelo menos, enquanto durou a presença das tropas em Fajonquito.

Durante algum tempo, impediram a entrada dos civis no quartel, mas a medida durou pouco e não teve o efeito desejado pois, apesar disso,  nós entrávamos no quartel violando as ordens com conivência dos nossos amigos e os soldados que, também, continuavam a fugir a coberto da noite para visitar as suas bajudas nas nossas moranças. Era inútil.

Este acontecimento ilustra, se necessário fosse demonstrá-lo, a grande capacidade de sofrimento humano e de perdão de que são imbuídas as populações Africanas e, também da sua força espiritual na crença em Deus ou algo de transcendência superior. Quantas vezes, estes comportamentos passivos, lentos e conformistas,  não foram entendidos como sinais de fraqueza e de incapacidade. Uma vez, o meu pai, que raramente entrava em conversas inúteis, quando ouviu falar da chegada dos brancos à Lua, falou naqueles seus monólogos que nos tinha habituado, dirigindo-se a nós: 
- Estes brancos, sempre apressados, para onde nos hão-de levar?

Ainda hoje pergunto-me a mim mesmo, o que teria feito ao Mortágua para suscitar tanta raiva nele? Seriam as nossas provocações infantis ou o facto de o chamar pelo nome que, suponho, não seria o dele mas da sua terra de origem? Ou então, foi Deus que quis salvar-me por seu intermédio?

Ainda, passados muitos anos, estas questões me habitam e, esteja onde estiver, quero que saiba que ele salvou-me de uma morte quase certa, mesmo que o tenha feito de uma forma muito estranha. Espero, também, que,  com idade madura, ele tenha percebido da importância de lidar com a vida com a simplicidade e o sacramento que a nossa existência como humanos nos impõe. Obrigado,  Mortágua.

Bissau, Abril de 2010.

Guiné-Bissau > região de Gabu > Fajonquito > c. 1975 > "A nossa equipa de futebol de salão no quartel de Fajonquito entre 1974-1975, podendo-se ver em pé: Mamudo, Algássimo e o professor António Tavares; sentados: Eu (Cherno) e Aruna (filho do antigo padeiro) à minha esquerda" (CB)

Fotos: © Cherno Baldé (2009). Direitos reservados

3. Comentário de L.G.:

Obrigado, Chico,  grande rafeiro de Fajonquito, e sobretudo obrigado  meu amigo e irmãozinho Cherno. Já conquistaste o coração destes tugas que nos idos tempos de 1963/74 tu conheceste e admiravas, com um misto de reverência, terror, curiosidade, simpatia e compaixão... Já aqui escreveste páginas admiráveis, e únicas (que nenhum de nós poderia escrever), sobre a inocência em tempo de guerra, sobre a condição dos meninos guineenses dentro e fora do arame farpado, sobre o quotidiano dos soldados portugueses visto pelo desarmante e fascinante olhar infantil, sobre a vida e a morte das crianças numa tabanca fronteiriça  militarizada, sobre a atracção e a repulsa da cultura europeia... 

Cherno, as tuas crónicas, pela emoção que nos provocaram, pela autenticidade do teu testemunho, pelo fascínio das tuas memórias de infância e pela beleza literária da tua narrativa,  já bem merecem um editor português. Não tenho dúvida, não temos dúvidas: és um talentoso escritor de língua portuguesa. E o nosso blogue orgulha-se de estares entre nós, como guineense, como homem, como amigo, como lusófono. Espero que esta crónica chegue ao conhecimento do Mortágua, onde quer que ele esteja, dos Mortáguas que tu conheceste e que, como dizia a tua avó, não eram mais do que crianças crescidas que a guerra veio roubar às suas famílias e às suas tabancas...  
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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6244: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (14): Cap Figueiredo: Capiton Lelö dahdè ou capitão cabeça inclinada



10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho

8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

 27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

21 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

Vd. também:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)

20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4710: Blogoterapia (119): As Fantas, as Marias, as Natachas, ou o amor em tempo de guerra e de diáspora (Cherno Baldé)

(**) Vd. poste de 3 de Abril de 2009 >Guiné 63/74 - P4136: As Unidades que passaram por Fajonquito (José Martins)

(...) Companhia de Caçadores n.º 1501, comandada pelo Capitão de Infantaria Rui Antunes Tomaz, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 1877, mobilizada em Tomar no Regimento de Infantaria n.º 15, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 1497, em 26 de Janeiro de 1967, vindo a ser substituída pela CCaç 1685 em 19 de Setembro de 1967.

Companhia de Caçadores n.º 1685, comandada pelo Capitão de Infantaria Alcino de Jesus Raiano, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 1912, mobilizada em Évora no Regimento de Infantaria n.º 16, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 1501, em 19 de Setembro de 1967, vindo a ser substituída pela CCaç 2435 em 14 de Dezembro de 1968.

Companhia de Caçadores n.º 2435, comandada pelo Capitão de Infantaria José António Rodrigues de Carvalho e, posteriormente, pelo Capitão de Infantaria Raul Afonso Reis, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 2856, mobilizada em Abrantes no Regimento de Infantaria n.º 2, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 1685, em 07 de Dezembro de 1968, vindo a ser substituída pela CCaç 2436 em 20 de Abril de 1970.

Companhia de Caçadores n.º 2436, comandada pelo Capitão de Infantaria José Rui Borges da Costa, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 2856, mobilizada em Abrantes no Regimento de Infantaria n.º 2, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 2435, em 20 de Abril de 1970, vindo a ser substituída pela CArt 2742 em 13 de Agosto de 1970.

Companhia de Artilharia n.º 2742, comandada pelo Capitão de Artilharia Carlos Borges de Figueiredo e, posteriormente, pelo Alferes Miliciano de Artilharia Baltazar Gomes da Silva, unidade orgânica do Batalhão de Artilharia n.º 2920, mobilizada em Penafiel no Regimento de Artilharia Ligeira n.º 5, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 2436, em 13 de Agosto de 1970, vindo a ser substituída pela CCaç 3549 em 21 de Maio de 1972.

Companhia de Caçadores n.º 3549, comandada pelo Capitão Quadro especial de Oficiais José Eduardo Marques Patrocínio e, posteriormente, pelo Capitão Miliciano Graduado de Infantaria Manuel Mendes São Pedro, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 3884, mobilizada em Chaves no Batalhão de Caçadores n.º 10, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CArt 2742, em 27 de Maio de 1972, vindo a ser substituída pela 2.ª Companhia do BCaç 4514/72 em 15 de Junho de 1974.

2.ª Companhia do BCaç 4514/72, comandada pelo Capitão Miliciano de Infantaria Ramiro Filipe Raposo Pedreiro Martins, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 4514/72, mobilizada em Tomar no Regimento de Infantaria n.º 15, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 3549, em 15 de Junho de 1974, vindo a iniciar o deslocamento para Bissau a partir de 30 de Agosto de 1974, tendo um pelotão efectuado a desactivação e entrega, ao PAIGC, do aquartelamento em 01 de Setembro de 1974. (...)