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quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste:




segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21670: Notas de leitura (1330): A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos, 

Nesta preocupação de juntar todas as peças inerentes ao conflito guineense, encontrei esta reportagem da Felícia Cabrita na revista do Expresso comemorativa dos vinte anos da publicação. 

É impossível não ficar estupefacto não só pelo tom da escrita, é o desmazelo pela verdade histórica disfarçado nessa ilusão de ouvir uns e os outros, esboça-se uma atmosfera apocalíptica e insinua-se permanentemente que houve para ali uma derrota, tinha que acontecer o que aconteceu, já que o decisor político só queria é que desaparecesse da cena internacional a atoarda de que o PAIGC possuía território que indiciava a independência. Operação caríssima e escola de aprendizagem - para quem tinha a honestidade de tirar lições de uma guerra de guerrilha, tal como o Como provou. 

Não sei exatamente para que servem estas reportagens, se para provar que a repórter esteve lá e cá ouviu gente, mas seguramente que não fica um quadro idóneo das etapas essenciais da operação. E, como sempre, tudo aparece inscrito em sede militar, como se de facto a Operação Tridente não tivesse sido, do princípio ao fim, uma decisão de Lisboa, que temeu a atoarda da república independente e que achou demasiado tempo, aqueles mais de 70 dias, que durou a operação, deve-se ter tido receio de que estava para ali um Vietname. 

O que verdadeiramente aconteceu ainda pode ser contado por muito boa gente que seguramente não se revê nesta enxurrada de delírio que saiu do punho de Felícia Cabrita.

Um abraço do
Mário


A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem

Mário Beja Santos

A Revista Expresso comemorativa dos 20 anos do jornal foi um acontecimento editorial, ainda hoje é um documento de consulta. O número especial incluía uma reportagem de Felícia Cabrita sobre a Operação Tridente, profusamente ilustrada, imagens cedidas da operação propriamente dita e testemunhos do presente. 

Trinta anos depois, aquela que é considerada a operação de maior envergadura de toda a guerra colonial merecia um tratamento mais digno, menos hipóteses e presunções e uma redação menos pesporrente e chocarreira. A jornalista achou que era conveniente dar um toque à Norman Mailer ou Hemingway, e dá-nos logo um parágrafo em tom épico: 

“Os soldados tinham abandonado a metrópole de alma limpa, sem saberem muito bem o que era a guerra, estavam até ufanos por se livrarem da açorda e da azeitona no pão e dos míseros testões da jorna. E trocaram sem regatear enxada e martelo por arma. Com as primeiras baixas, depressa se esqueceram que não era de bem matar e entregaram-se ao mister da guerra, ganharam expediente em cortar orelhas e dedos e a torturar gente indefesa. Ainda não tinham passado pela hora da verdade quando os segredos se revelaram, a valentia a impropério. 

Em 1964, mil e tal homens partiram para ocupar uma ilha que era já lenda. Levaram no bolso as suas santas, multiplicaram devoções, mas Deus da sua morada não olha para outros caminhos. Eles tornaram-se farrapos, durante dois meses e meio intérpretes de uma missão falhada. Os habitantes da ilha tenebrosa ficaram de pé até ao fim, muitos morreram, mas a morte o que é senão incerteza? Os que ficaram mantiveram-se insurretos, contentes com o mundo e as suas leis, entregaram-se à dança e à festa, fizeram galas de sangue que ofertaram ao Irã…”.

A repórter esqueceu-se de dizer que o governo de Lisboa estava muito incomodado com a propaganda que o PAIGC destilava em meios internacionais de que possuía território dentro da colónia, decretou aos comandos em Bissau a erradicação de tal presença, organizou-se operação, veio mesmo o Ministro da Defesa, Gomes de Araújo. 

Essa mesma propaganda do PAIGC irá fazer constar anos a fio que houve derrota das tropas portuguesas, que as populações afetas ao PAIGC e as suas milícias não arredaram pé, alimentaram o mito com o mais completo despudor. Acontece que a Operação Tridente está bem repertoriada, e até se inclui na documentação capturada uma carta de Nino Vieira a pedir apoio a outros camaradas da região Sul, quando o coronel Fernando Cavaleiro percorrer a ilha no fim da operação as populações e milícias tinham atravessado o canal, à cautela, e regressaram quando as tropas portuguesas ficaram circunscritas, no extremo da ilha, ao destacamento de Cachil. 

A importância do Como, avisadamente os investigadores têm-no dito, cedo desapareceu, e não só aprendeu quem não quis, o Como tem como significado o bate-e-foge, um dos cânones da guerrilha.

Mas isso não tinha importância para o tom megalómano da reportagem. Corriam rumores sobre os efetivos posicionados no Como: que era uma base central, que tinha abrigos antiaéreos, hospital, búnqueres, centenas de guerrilheiros, pura fantasia, está historicamente demonstrado que os efetivos do PAIGC ainda dispunham de escasso material, ainda não havia armamento antiaéreo, as minas surgirão pouco depois, a guerrilha ainda está num estado incipiente.

Procura-se dar o lado da guerrilha, a exploração a que Manuel Brandão sujeitava as populações: 

“Os agricultores entregavam arroz e os animais por tuta e meia, ou então recebiam géneros, trapos e aguardente de cana. No fim do ano estavam sempre a contas com a administração portuguesa. O comerciante adiantava os 150 escudos do imposto de cabeça, dinheiro que os indígenas pagavam depois a triplicar ou a trabalhar de borla nas suas plantações. Poucos se atreviam a atropelar as leis de Brandão. Se alguém era apanhado a negociar em Catió, esperava-o o tanque coberto de óleo de palma até ao pescoço, muitos escorregavam na gordura espessa e morriam”

E emerge o lendário Nino, as peripécias da sua fuga, a sua capacidade de subversão chegou ao Como, Brandão foi escorraçado e as lojas saqueadas. No Como, quando se inicia a Operação Tridente estarão escassas duas dezenas de guerrilheiros, há oito armas e quatro granadas, Pansau Ná Isna ausentara-se do Como na véspera da Operação Tridente. E começa o desembarque, precedido de bombardeamento aéreo. 

“O tenente-coronel Fernando Cavaleiro tinha como missão isolar Como das restantes ilhas, para cortar o abastecimento da guerrilha, conquistar a população e garantir que se instalasse posteriormente a autoridade civil”

Adivinha-se um terreno áspero, a ilha tem uma superfície de 210 quilómetros quadrados, mais de metade zona de tarrafe. Há desembarques em paz e outros debaixo de tiroteio. E novamente a jornalista se socorre do tom apocalítico: 

“O médico sente o desespero dos soldados. Havia quem metesse um pé ou um braço fora do abrigo para ser alvejado, e mesmo quem descarregasse a arma no corpo. Outros inventavam doenças e muitos enlouqueciam. Ele estava à beira do esgotamento e pedia ao comandante para o substituir”

Mais adiante, a jornalista pretende dar-nos um quadro de como nasce um herói, o brutamontes irado: 

“Na Guiné, quando viu os primeiros mortos e apanhou um estilhaço no olho, depressa se tornou um selvagem. Uma vez limpo o sarampo a meia dúzia de mulheres, fazia coleção de orelhas, outra vez apeteceu-lhe violar uma velha. Antes desta operação era homem para cortar cabeças se tivesse tido oportunidade, mas depressa da experiência do Como confessa que perdeu a afoiteza. Naquele dia, cercado por todos os lados, só pensava em fugir, esconder-se, escapar ao inferno”.

Os guerrilheiros também não passam de gente desalmada, aos olhos da repórter, têm acesso aos corpos de soldados portugueses, roubam fardas e um anel e até o retrato de uma namorada. A guerrilha resiste, as mulheres têm comportamento heroico, avisam os homens de que dali não saem. O contingente português debilita-se: 

“Passados quinze dias, cavalaria, fuzileiros e paraquedistas estavam reduzidos a 60% dos efetivos. 68 homens tinham sido evacuados e os outros pareciam penitentes bêbados atacados por todas as doenças tropicais”

A repórter fala do fuzileiro José Marques que viu gente morrer ali ao pé, viu mesmo um camarada dar um tiro no pé para se ir embora, tal era o desatino que até pensou em matar o seu comandante, Alpoim Calvão, e confessa à jornalista que a partir desta operação nunca mais bateu bem da cabeça.

Momentos há em que a jornalista aceita a lucidez de descrever a guerra de guerrilhas, tal qual ela é, mas a tentação miserabilista e apocalítica é mais forte, e bumba, temos agora a apatia ou o paroxismo: 

“Em emboscadas viu soldados a cavar buracos para se esconderem. Enfiavam o rosto na terra e disparavam ao acaso. Um alferes que estava meio pirado fazia malabarismos com três laranjas debaixo de fogo. E Jaime Segura, que não tinha queda para batalhas sem glória, aborreceu-se de morte. Infelizmente esqueceu-se de levar os dados de póquer, por isso entretinha-se no rio a pescar com granadas. Enquanto o Bretão, tinha ido para a Guiné por ter contas a ajustar com a PIDE não se lavava num gesto de contestação. Estava tão encardido que passava as tardes a fazer o jogo do galo no peito com um pau de fósforo”.

No meio de todas estas hecatombes, são avançados alguns dados. A operação ficará na História como a batalha mais longa e cara do Exército Português. 

“Gastaram 356 bombas, 719 foguetes, 40944 balas. O vinho correu com fartura, o álcool foi o refrigério para o medo. Os cofres do Estado sofreram um arrombo de 290 mil contos. Em meados de março, passados quase dois meses e meio de terem desembarcado, as chefias militares começam a pressionar Fernando Cavaleiro, que garantia o sucesso da operação”.

Os contingentes retiram a 20 de março. Para a repórter, a sentença da desgraça é inapelável: 

“As derrotas são osso duro de roer, partiam sem ocupar a ilha, sem conquistar a população e sem deixar a autoridade civil. Nove mortos e quarenta e cinco feridos graves era o saldo de uma batalha sem glória (…) Salazar também tirou as suas conclusões, e uns meses depois o governador da Guiné e o responsável militar eram substituídos. Mas, num ponto da ilha, encurralados entre o rio e a mata, ficava, durante dois anos, uma companhia a apodrecer”.

À distância de todos estes anos, interroga-se como foi possível o Expresso publicar esta mistela de dislates.

Atenção, mais tarde, Felícia Cabrita voltará ao Como acompanhada de Nino Vieira e voltaremos a esta mesma toada de loucura, medo e mortandade. Tudo isto para dizer que o melhor é ler a documentação sobre o que foi a Operação Tridente e perceber que não passou de uma escola de aprendizagem. E não vale a pena estar a incriminar militares ou a enxovalhá-los, a decisão da Operação Tridente partiu de Lisboa. 

Quando um dia os investigadores se decidirem a consultar os arquivos dos Ministérios do Ultramar e da Defesa seguramente que serão confrontados com uma revelação que todos teimam em iludir: as grandes decisões militares dos três teatros de operações tinham aval político. O regime não pode sair ileso das decisões que tomou.

Início da reportagem de Felícia Cabrita, título com mais equívoco não podia haver

Desembarque das tropas no início da Operação Tridente

Protagonistas da Operação Tridente, muitos anos depois

Protagonistas da Operação Tridente, do lado do PAIGC

Regresso da Operação Tridente

Às vezes, era possível comer em sossego na Operação Tridente

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Nota do editor

Último poste da série de 14 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21644: Notas de leitura (1329): "Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes; Edições Desassossego, 2020 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20275: Notas de leitura (1229): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (29) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
O BCAV 490 entrou num torvelinho de operações e ocupa território, dá segurança às populações, faz renascer a vida. É o que Armor Pires Mota nos conta na sua passagem para Jumbembem. Há terríveis acidentes, virou-se um bote de borracha a caminho da península de Sambuiá, um pelotão de morteiros perdeu oito praças. É nisto que o acompanhante do bardo deu um salto no plinto da memória e foi até Guidage, a Guidage do cerco onde Salgueiro Maia nos deixou um relato dos mais pungentes que aquela guerra ofereceu. A história da unidade também refere uma companhia que faz parte da quadrícula, a CCAÇ 675, a companhia do Capitão do Quadrado, ele está em Binta, chega e vai metodicamente arrumando a casa, fez-se respeitar pela guerrilha, deu proteção a quem dela precisava, abriu itinerários até então intransitáveis.
Vamos contar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (29)

Beja Santos

“Na cabeça foi atingido
este amigo e companheiro
João Félix na flor da idade
foi morto por um bandoleiro.

Era um homem operacional
que de nada tinha medo
e no meio daquele arvoredo
teve este golpe fatal.
Foi evacuado para o hospital
num transporte que foi pedido;
coitado, deu muito gemido,
quando o seu sangue perdia,
pois às 5 horas do dia,
na cabeça foi atingido.

Eram muitas as rajadas
para cima da nossa gente.
Ele levantou-se de repente,
jogando algumas granadas,
quando as tinha já acabadas
pediu mais granadas de morteiro,
e houve então um bandoleiro
que um tiro no rapaz deu
e logo nessa noite morreu
este amigo e companheiro.

Pela nossa Pátria querida
este soldado lutou,
muito sangue derramou
dando a sua própria vida.
Tanta fera enraivecida,
que só tem ruindade,
foi com grande barbaridade
que este crime praticaram.
De Samora Correia mataram
João Félix na flor da idade.

As suas famílias gritavam
quando dele se despediram.
Foi a última vez que o viram,
parecia que adivinhavam,
mas maiores gritos lançavam
ao chegar-lhes junto o carteiro.
Ele acalmou-os primeiro
e leu-lhes a má comunicação:
seu filho do coração
foi morto por um bandoleiro.”

********************

A história da unidade refere efetivos, a disposição e quadrícula e as operações. Em 12 de julho de 1964 houve uma ação nas matas de Ponta Caeiro, houve fogo intenso, do lado do efetivo comandado pelo Capitão Rui Cidrais houve vários feridos evacuados e ligeiros. Em 20 de agosto houve uma operação realizada a Sanjalo, incendiaram-se casas de mato, temos aqui uma referência à CCAÇ 675, a do Capitão do Quadrado, a que mais adiante se fará referência, o relatório é assinado pelo comandante, Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, ele esclarece que na área do objetivo foram encontrados terrenos recentemente cultivados. Em 24 de setembro temos uma operação realizada à região de Farincó-Mandinga, houvera referência a um acampamento de guerrilheiros com cerca de 16 casas de mato, intervieram pelotões da CCAV 487 e 488. O relatório é também assinado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro que em dado passo escreve o seguinte:  
“A marcha para a zona do objectivo decorreu conforme o previsto. Em consequência do perfeito conhecimento que o guia tinha do terreno e das notícias referentes à localização do acampamento inimigo, a companhia conseguiu chegar a trinta metros dele sem ser detectada. O inimigo surpreendido reagiu pelo fogo, só não tendo êxito devido à acção das 2 secções da vanguarda do dispositivo, que carregaram sobre o acampamento, obrigando o inimigo a tentar escapar desorientado, abandonando material de guerra”.

No início de 1965 decorrerá a Operação Panóplia, ficará associada a um grave acidente de que falecerão oito praças. O objetivo era a região de Sambuiá. Veja-se este aspeto curioso respigado do relatório quanto às casas de mato localizadas em Simbor:
“Estão junto à margem do rio Sambuiá entre a ponte e a povoação. Neste rio estão estendidas cordas que permitem ao inimigo agarrar-se a elas mantendo-se submerso, com parte da cara fora de água para respirar, quando a região é sobrevoada pela aviação; as mulheres e as crianças escondem-se no tarrafo ou nos cemitérios dos Mandingas de Sambuiá, ocultando-se nas sepulturas. O inimigo encontra-se em força nesta região e consta que tem oito metralhadoras com suporte antiaéreo. Em Talicó, o inimigo monta diariamente um serviço de vigilância com um serviço de 37 indivíduos”.

O relatório descreve os planos estabelecidos para a ação, como a mesma se desenrolou, chegou-se a Sambuiá, onde a CCAÇ 675 entrou em força. Verificou-se entretanto o acidente sofrido pelo Pelotão de Morteiros 980[1], que era constituído por 33 homens. Entrara numa lancha, o transporte seguiu pelo rio Cacheu.
Escreve-se o seguinte no relatório do acidente que ocorreu em 5 de janeiro de 1965:  
“Como fora planeado, o navio passou pelo local de desembarque, local esse que fora reconhecido na véspera, até um ponto antes de Bigene. Aí o navio inverteu a marcha e, como também fora planeado, foi então que o pelotão desembarcou para o bote de borracha no qual se faria o desembarque na península de Sambuiá. Embarcaram para o barco de borracha 25 homens, entre os quais o seu comandante, bem como o material e armamento. Como seria mais seguro não embarcarem todos os homens nesse barco, que tem uma lotação aproximada de 30 homens, o comandante do navio pôs à nossa disposição um barco de borracha pertencente à Marinha, no qual embarcaram simultaneamente os restantes homens do Pelotão de Morteiros. Os dois barcos seriam rebocados pela lancha, de maneira a estarem permanentemente encobertos das vistas de possíveis sentinelas existentes na península onde se efectuaria o desembarque. Antes do navio se pôr em marcha, foi passado um cabo por baixo do barco, onde eram transportados os 25 homens, amarrado a um ferro existente no fundo do mesmo. O navio recomeçou a marcha e, depois de ter navegado durante alguns minutos, o cabo que fora passado para rebocar o barco maior rebentou, pelo que o navio se afastou um pouco. Foi posto o motor do barco a funcionar e a recolagem fez-se sem qualquer incidente ou dificuldade. Foi então que se passou um cabo mais forte para dentro do barco de borracha, ficando os próprios homens que o tripulavam a agarrar nesse cabo, sendo nessa altura avisado pelo comandante da lancha, e depois por mim, que em caso de emergência o cabo devia ser largado imediatamente. Depois de se navegar alguns metros, notei que o barco de borracha deixava entrar água pela proa. Foi nesse momento que à ré do barco de borracha alguns homens se levantaram, talvez assustados pela água que saltava para dentro do barco. Mandei-os sentar imediatamente, mas o barco já se encontrava desequilibrado de um dos lados e, sem nos dar tempo para qualquer reacção, afundou-se rapidamente”.

Comunicado da imprensa de 1965
O Alferes José Pedro Cruz recomendava no seu relatório que seria de evitar nas operações em rios homens que não soubessem nadar e que nunca se devia rebocar um barco com o cabo de reboque passado por cima do barco rebocado e agarrado pelos próprios tripulantes do mesmo barco.

Inadvertidamente, vem-nos a recordação não do acidente desta gravidade mas uma situação de calamidade como aquela que se viveu no cerco de Guidage. Como se sabe, deve-se ao Capitão Salgueiro Maia um depoimento sem paralelo sobre este cerco e a sua chegada a Guidage, quadro de tragédia mais pungente não pode haver.

Salgueiro Maia
Antes porém ele conta-nos na sua “Crónica dos feitos por Guidage” um ataque com um pelotão da sua companhia que estava num destacamento.
Salgueiro Maia parte em seu auxílio:
“Para quem não conheceu a mata da Guiné, é difícil explicar como se consegue ir a corta-mato com viaturas tendo de encontrar passagem por entre as árvores, os arbustos, o capim alto, as ramagens com picos e, ao mesmo tempo, seguir na direcção certa, apesar de tentarmos ir o mais depressa possível.
Depois de rotos pela vegetação e cansados de correr ao lado das viaturas, chegámos ao local de combate. Ainda pairava no ar o cheiro adocicado das explosões; os homens tinham ar alucinado, de náufrago que vê chegar a salvação, mas, em lugar de mostrarem a sua alegria, estavam ainda na fase de não saber se era verdade ou não. Mando montar segurança à volta da zona e pergunto pelos feridos ao primeiro homem que encontro – tem um ar de miúdo grande a quem enfiaram uma farda muito maior do que ele; parece de cera, olha-me sem me ver e aponta com o braço. Sigo na direcção apontada e depressa vejo uma nuvem de mosquitos e moscas: já sei que à minha frente tenho sangue fresco. Debaixo de uma árvore, estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; à volta estão várias compressas brancas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado; a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de moscas. Dirijo-me para ele – está cor de cera e praticamente nu. Olha-me como que em prece; ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o furriel-enfermeiro e um cabo-maqueiro. Mando-os avançar, assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave – o ferimento provém-lhe da perna. Tem em cima dela várias compressas empastadas de sangue. Tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto porque é que não lhe fizeram um. Alguém me responde que o enfermeiro está ferido. 
Começo a sentir raiva".

Como o dia estava a tombar, e como era impossível recorrer a uma evacuação por helicóptero, depuseram-se os feridos nas caixas dos Unimog, entretanto o PAIGC volta a atacar com foguetões 122 mm. O ferido da perna morre.
E Salgueiro Maia escreve: “Guardo dele uns olhos assustados a brilhar numa pele branca e seca, a ficar vazia de vida porque em sessenta homens ninguém sabia o mais elementar em primeiros-socorros: fazer um garrote”. O capitão por ali anda a contemplar os mortos de boca e olhos abertos, reage, tal como vai escrever: “Mecanicamente, tiro os atacadores das botas dos mortos, ato-lhes os queixos, ponho-lhes as mãos em cruz, os pés juntos. Com água do cantil molho-lhes os olhos e fecho-lhos. Olho para a minha obra e também não entendo”.

O pesadelo maior vem depois. No dia 22 de maio de 1973, Salgueiro Maia recebe instruções para seguir para o Norte, o PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, um autêntico cerco, minara estradas, trouxera mísseis terra-ar, havia um verdadeiro campo de minas anticarro e antipessoal na estrada Guidage-Binta. O Comandante-Chefe, perante a gravidade da situação, reage com a Operação Ametista Real. No meio daquele pandemónio, Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e seguir depois com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, o objetivo era rasgar o cerco, chegar a Guidage. Deixou-nos uma descrição memorável, é uma peça espantosa, única, sobre os desastres da guerra, viaturas a acionar minas anticarro, feridos e mortos, a progressão da coluna a corta-mato, mais explosões e ao fim do dia entra-se em Guidage, assemelha-se a um panorama lunar, preside a irrealidade.
É tudo dantesco por excelência, o que parece absurdo deixa de o ser, nenhum outro relator da guerra da Guiné foi tão ao fundo da banalização do horror:
“A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente destruídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento-enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifícios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense, que ficou sem uma perna, uma farda n.º 3, que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da Madeira quase cheia no meio de tudo partido. Com isto, fiz uma pequena festa com 3 ou 4 homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau, ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.
Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera 4 mortos e 3 feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 milímetros de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois de dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão e sem saber de onde ele tinha vindo”.

Não se atina como é que a memória nos faz passar de meados dos anos 60 para aquela catástrofe de 1973, mas fala-se de Binta, de Guidage, de Farim, de Sambuiá. Dera-se uma evolução fenomenal, em poucos anos, o equipamento do PAIGC suplantara o das forças portuguesas, modificara-se a condução da guerra de guerrilhas, numa mistura de guerra convencional e de ataque surpresa. Agradece-se à memória agir assim, temos muitas vezes o condão de nos fixarmos numa data e esquecer completamente que nenhuma análise pode prescindir da sequência cronológica: fomos todos protagonistas, mas em tempos diferentes, o que uns viram de uma maneira, mais adiante os outros acrescentaram novos pontos de vista.

(continua)
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Notas do editor:

[1] - Vd. poste de 8 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5077: Fichas de Unidades (5): História do Pelotão de Morteiros N.º 980 (José Martins)

Poste anterior de 18 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20254: Notas de leitura (1227): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (28) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20087: Notas de leitura (1211): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (20) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Seria de toda a conveniência que aqui se vazassem comentários dos confrades que participaram ou que acompanharam de perto a Operação Tridente. A história da Unidade, a do BCAV 490, gentilmente emprestada pelo Carlos Silva, é muito parcimoniosa, remete para um anexo que não tenho. Há o "Tarrafo", de Armor Pires Mota, há este documento que ora se apresenta, temos o depoimento do António Heliodoro, a que se irá fazer referência, apareceu no volume Dias de Coragem e de Amizade, Angola, Guiné, Moçambique: 50 histórias da Guerra Colonial, de Nuno Tiago Pinto, A Esfera dos Livros, 2011. Apelo, pois, a contributos que possam constituir o outro lado do espelho que é a poesia do Santos Andrade.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (20)

Beja Santos

“Morreram dois fuzileiros
muitos rapazes atingidos
precisamente noutra altura
Baía e Ameixa foram feridos.

Foi antes do meio-dia
que os fuzileiros foram ao mato
onde houve o grande contacto,
que com o fogo se estremecia,
lutando com valentia
foram feridos muitos companheiros.
Os bandidos traiçoeiros
deviam ser degolados.
Por causa desses malvados
morreram dois fuzileiros.

Quando o ataque principiou,
daquilo já se esperava,
a retirar obrigava
a força que os enfrentou.
Feridos às costas se carregou
havendo muito gemido.
O helicóptero foi pedido
levando os feridos para Bissau.
Entre Cauane e S. Nicolau
muitos rapazes foram atingidos.

Quando um caça patrulhava,
os bandidos fogo faziam
até que o atingiam
e no chão se despedaçava.
Tudo se incendiava:
gasolina, óleos e pintura.
O piloto sofreu amargura,
ao ficar todo queimado
e foi este caso passado
precisamente noutra altura.

Em S. Nicolau quiseram
resistir dois pelotões.
Como noutras ocasiões
avançar nunca puderam.
Muita rajada lhes deram.
Aquilo foi um castigo,
devido a tantos inimigos
retiraram do matagal,
mas na retirada, às 9 e tal,
Baía e Ameixa foram feridos.”

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Em 2019, a editora QuidNovi deu à estampa um conjunto de volumes sobre a guerra colonial. O quinto volume destacava a Operação Tridente, desenhada no maior sigilo. Os comandantes das unidades envolvidas no ataque apenas foram informados de todos os planos escassos dias antes do embarque. Os próprios oficias subalternos só souberam da ordem e do objetivo militar na véspera do Dia D. Foram 71 dias o tempo da operação. Ao fim de 48 dias de combates, as tropas portuguesas intercetaram um estafeta com uma carta de Nino Vieira, escrita à máquina e destinada a dois importantes chefes de guerrilha, Rui Djassi e Domingos Ramos, eram a prosa de aflição, Nino precisava de reforços, e concluía: “Tenho encontrado uma situação muito grave. As tropas estão aumentando cada vez mais as suas forças, tanto como terrestres, aviação e também por meios marítimos. Camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem guerrilheiros aí, já estamos a contar com a baixa de 23 camaradas durante todos estes dias dos ataques”.

Vejamos o essencial deste texto sobre a Operação Tridente, tal como consta neste quinto volume das Edições QuidNovi. Na véspera do ataque, a artilharia portuguesa instalada em Caiar flagelou sem descanso toda a região norte das ilhas de Caiar, Como e Catunco. Os guerrilheiros acreditavam que esse seria o local de desembarque. Enganaram-se. As forças envolvidas na Operação tomaram as ilhas de assalto pelo lado sul. Os desembarques decorreram sem um único tiro. O Dia D, 15 de janeiro de 1964, precisamente às 8.30 horas, os fuzileiros especiais pisaram a zona de combate: o destacamento 7, comandado pelo Primeiro-Tenente Ribeiro Pacheco desembarcou num ponto da ilha Caiar enquanto o destacamento 8, sob as ordens do Primeiro-Tenente Alpoim Calvão chegava a um outro local na ilha do Como. A missão destes fuzileiros era estabelecer cabeças de praia que permitissem o desembarque das companhias de cavalaria, que vinham em três agrupamentos. O agrupamento A, comandado pelo Major Romeiras, tinha ordens para seguir imediatamente para a tabanca de Caiar. O agrupamento B, sob o comando do Capitão Ferreira, tem por objetivo Cauane, aqui se darão os primeiros combates, as tropas portuguesas atacam com fogo morteiro ao mesmo tempo que a Força Aérea bombardeia. A primeira baixa é um T6 abatido pelos guerrilheiros. O comandante do DFE8, Alpoim Calvão, toma uma decisão arriscada: à cabeça de um grupo de fuzileiros entra na mata densa e começa a desalojar a guerrilha. O agrupamento C está sob o comando do Capitão Anselmo, sobe o rio de Catunco, tomam Catunco Papel e Catunco Balanta sem oposição da guerrilha. O agrupamento D, sob o comando do Primeiro-Tenente Faria de Carvalho desembarca na costa leste de Catunco, nas margens do rio Cumbijã. O comandante da Operação Tridente está ainda a bordo da fragata Nuno Tristão. Concluída a primeira fase da Operação, as unidades ocupam posições de combate, inicia-se a segunda fase que se prolongou até ao dia 24, nas ilhas de Caiar, Como e Catunco combate-se violentamente, fazem-se batidas, são feitos alguns prisioneiros, na ilha do Como as forças do PAIGC flagelam severamente, em Catunco não se encontram guerrilheiros mas foram descobertos depósitos de arroz e muito gado. Estamos já na terceira fase, o Tenente-Coronel Cavaleiro desceu ao terreno, as tropas de cavalaria, os fuzileiros especiais, o grupo de comandos, o pelotão de paraquedistas estão todos em ação.


Vejamos o relato dos acontecimentos como são descritos neste livro:
“Os portugueses conseguiram integrar-se progressivamente na mata, pelo sul, pelo norte e pelo lado oeste. A artilharia e a Força Aérea bombardeavam à noite pontos suspeitos na mata. Os militares localizaram e destruíram dois grandes acampamentos das forças do PAIGC. Foram arrasadas as tabancas de Cauane, S. Nicolau, Curcó, Cassaca, Samane, Uncomené, Cachida e Cachil. O mais violento dos combates, na mata de Cassaca, decorreu entre as seis da manhã até às quatro da tarde.
A 24 de Março, ao fim de 71 dias de operação, o Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro podia cantar vitória. Os grupos de guerrilha, incapazes de susterem os ataques portugueses, estavam em fuga. Foram arrasadas praticamente todas as tabancas das ilhas de Caiar, Como e Catunco”.

As forças portuguesas regressam ao continente, é decidido criar um destacamento em Cachil. O bardo irá depois falar-nos de Farim. Por ora, vamos continuar a desfiar a sua lírica em pleno Como.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20074: Notas de leitura (1210): A Descolonização Portuguesa, Aproximação a um Estudo, Grupo de Pesquisa Sobre a Descolonização Portuguesa; Instituto Democracia e Liberdade, Lisboa 1979 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Prossegue a batalha do Como, é óbvio que o bardo dá prioridade à sua gente mas a operação teve farto envolvimento, foram de primordial importância tanto as forças navais como os meios aéreos. Neste episódio se releva a singularidade do diário de Armor Pires Mota, tem páginas comoventes, importa não esquecer que foram escritas em cima dos acontecimentos, é de questionar a fibra deste homem, as suas orações tocantes, o sofrimento compartilhado, o horror que viu, como aqui descreve.
E volta-se a falar de Alpoim Calvão e das forças navais, há que dar o seu a seu dono, no termo desta operação o Coronel Fernando Cavaleiro percorrerá a pé toda a ilha, era vitória de pouca dura, sina da guerra de guerrilhas, setenta dias de duros combates.
O bardo, como veremos, ainda tem muito a contar sobre a batalha do Como.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (19)

Beja Santos

“Quando a gente cá chegou
junto ao Batalhão lutavam
as tropas desembarcadas.
Bons serviços prestavam.

Muito fogo teve de atirar
a 2.ª Companhia
porque aquela patifaria
custava a recuar.
Depois de a Cauane chegar
a luta continuou.
Debaixo do fogo se trabalhou
para construir os abrigos.
Eram muitos os inimigos,
quando a gente cá chegou.

Algum tempo se passou
e em Catunco tudo normal:
com ordem do Sr. Cap. Cabral
a Ilha se patrulhou.
Um pretinho se apanhou
e para mascote o levavam.
Quando um dia caminhavam
apanhou-se um dos bandoleiros
e em todo o lado os fuzileiros
junto ao Batalhão lutavam.

Em Caiar se encontrava
o Alferes de Artilharia
que com boa pontaria
nos malvados acertava,
de noite ou de dia jogava
uma porção de granadas.
Media bem as coordenadas
não atingindo as Companhias.
E decorreram 70 dias
as tropas desembarcadas.

O pelotão dos paraquedistas
encontraram alguns bandos
junto aos homens dos comandos
que também deram nas vistas.
Mataram muitos terroristas
e alguns vivos apanhavam.
Um dia à praia chegavam
com prisioneiros na mão
e durante toda a operação
bons serviços prestavam.”

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É o momento propício para se dar voz a quem sobre esta batalha escreveu em forma de diário. “Tarrafo”, de Armor Pires Mota, é uma das obras incontornáveis da literatura da guerra da Guiné. O livro foi alvo da censura, retirado do mercado livreiro, reeditado mais tarde. É um legado de páginas densas, emocionantes, temos aqui a guerra em direto que o Alferes de Cavalaria enviava em forma de crónicas para o Jornal da Bairrada.
É um testemunho sem paralelo sobre a Batalha do Como:
“Atravessámos o riacho e o tarrafo, de saco às costas, muito a custo, curvados e encobertos pela vegetação, quase impotentes e amachucados porque a viagem fora penosa, difícil. E debaixo de fogo intenso, a rastejarmos, entrámos no objectivo… Sinto-me em baixo. A alma pesa-me como chumbo. E causa-me calafrios a morte daquele dois moços que ao entardecer, foram encontrados nus. Só lhes deixaram as meias enfiadas nos pés, por algum motivo religioso. De resto, levaram-lhes tudo. Tinham o sexo mutilado, o nariz arrancado e os olhos e pelos rasgões, espalhados pelo corpo, tudo leva a crer que lutaram corpo-a-corpo, quando se viram sós e sem munições. Não quero que ninguém fique com a impressão de que este diário é pura ficção nem, tão pouco, que me mascarem de valente. Escreverei para mim e não para a eternidade. E aqui estarei para chegar até ao fim”.

O autor reza o terço quando rebenta a fuzilaria, estão metidos num cerco em ferradura, o ataque é repelido, renasce a atmosfera de silêncio enquanto um vento húmido traz o cheiro horrível da carne a apodrecer algures, entrecortado pelos estrondos da artilharia. É uma batalha como não haverá igual, em tudo o que se passou na Guiné, tomam-se posições, por vezes recua-se, derrubam-se acampamentos, há rompantes desse combate que ganham uma dimensão apocalíptica, vive-se permanentemente à espera de um contra-ataque, como Armor Pires Mota escreve:
“Há quarenta dias que o mundo para nós é a incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fronte atormentada. Há refeições em branco, porque não apetece senão a paz, o regresso. Uma grande parte da tropa está já inoperacional. As semanas são uma eternidade. Até parece que nascemos na tropa, na guerra”. 
 E é neste diário emocionante que no dia 1 de março de 1964, Armor Pires Mota faz uma oração como não vi escrita outra igual:
“Só Tu sabes, Senhor, a minha hora.
Mas tenho medo porque sou homem e tenho o destino de mãos vazias.
Que as minhas mãos não façam correr sangue inocente, mas que não sejam cobardes se for preciso castigar, matar ou morrer.
Mas tenho medo, Senhor!
Tu bem sabes que eu tenho uma mãe que chora e reza a minha ausência e que a saudade chora dentro de mim como uma criança longe dos braços maternos.
Tu sabes que eu tenho sonhos de ouro e espero de olhos azuis no futuro.
Tu sabes que eu tenho um amor na vida de mãos cheias de primavera e cabelo preto, da candidez dos lírios. E Tu bem sabes como dói cair uma rosa no chão só porque não choveu…
E só Tu sabes o segredo da noite: para a vida?, para a morte?
A hora é de luta para vencer ou morrer.
Mas tenho medo sem ser cobarde e tremo todo como cana agitada ao vento.
Espero em Ti.”

A batalha parece interminável, sangrenta, com casas de mato a arder, paraquedistas perdidos, um certo caos nas ordens e contraordens.
O autor escreve nova página do diário:
“Tivemos missa, como antigamente nas manhãs das grandes batalhas. O altar era feito com duas caixas de cerveja e montado por detrás da casa velha a ruir. De tronco nu ou descalços, mas alma cheia de esperança nos desígnios eternos, todos quanto ali estavam confiavam ao Senhor dos Exércitos as suas angústias, as horas más, as vitórias e as derrotas, as saudades da terra e da família, da noiva… Deus desceu à guerra para a paz”.

O diário de Armor Pires Mota não finda aqui, quando saem da Ilha do Como ruma para Jumbembem, de outras coisas falará.

Retornemos a “Alpoim Calvão, Honra e Dever”, e ao mês de fevereiro, as forças do PAIGC continuam a oferecer feroz oposição, o DFE8 não tem descanso e a 27 desse mês este DFE e o DFE7 embarcam com destino a Cachil, trabalhando em conjunto pela primeira vez na Tridente.
Vai prosseguir o relato dos acontecimentos:
“Chegaram à cambança do Brandão pelas duas da manhã, quedando-se aquartelados pouco depois no estacionamento de Cachil. Mas é curto o descanso, pois às 4h30 é dada a alvorada e uma hora mais tarde inicia-se o movimento simultâneo das duas unidades, seguindo o DFE7 pela orla este da mata grande de Cachil e o DFE8 pela orla oeste. Chegados ao limite sul, o DFE7 entra em contacto pelo fogo com o inimigo, enquanto o DFE8 permanece sem ser detectado. O DFE7 manobra então de modo a ocupar um esporão mais a sul, enquanto os F-86 da Força Aérea bombardeiam o tarrafo e a orla da mata de Cassaca onde o inimigo se continua a manifestar com alguma violência.
As secções avançadas entram em contacto com o inimigo que, tento retirado aquando o ataque aéreo, voltara às suas posições e esbarrara com o fogo dos dois destacamentos, responsável pelo abate de alguns guerrilheiros e pela apreensão de material de guerra. Em estreita colaboração, as restantes secções de fuzileiros ocupam a orla norte da mata de Cassaca, enquanto a retaguarda é protegida por um grupo de combate da CCAÇ 557 e uma secção do DFE2. O DFE8 assume depois a vanguarda e progride a oeste da picada, em direção a Cassaca, onde já estão instaladas a CCAV 487 e o grupo de Comandos. Juntas as forças, inicia-se o regresso a Cauane, progredindo na vanguarda o DFE8, seguido pelo DFE7, pelo grupo de Comandos e pela CCAV 487. O inimigo não se torna a manifestar.

Alpoim Calvão não mostra grandes preocupações quanto à sua defesa pessoal. Usualmente armava de G3, mas muitas vezes optava por levar apenas uma pistola-metralhadora UZI, ou até mesmo uma simples pistola, e não costumava carregar com muitas munições. Entendia que a missão de um comandante não era estar deitado a dar tiros, como um simples atirador, mas sim permanecer de pé enquanto o tiroteio chicoteava as copas das árvores ou ceifava o capim e lhe assobiava aos ouvidos. Procurava estar o mais protegido que fosse possível, qualquer tronco de árvore, por mais estreitinho que fosse, servia. Mas de pé, sempre de pé, a única maneira de ver a ação, intervir, poder dirigir a manobra, comandar.

Numa das fases da Operação Tridente seguia como observador o Capitão-Tenente Melo Cristino, Diretor de Instrução da Escola de Fuzileiros, que, nunca tendo participado em qualquer campanha, pretendia sentir ao vivo o comportamento das unidades em combate, razão por que entendera visitar o teatro de operações da Guiné e fizera questão em acompanhar pessoalmente uma acção. Nessa ocasião, quando algumas secções do DFE8 progrediam na retaguarda de um pelotão de paraquedistas, a Unidade caiu debaixo de fogo inimigo, responsável por duas baixas.
Durante o intenso tiroteio travado de seguida e enquanto o Tenente Calvão de pé procurava orientar a manobra dos seus homens, o Comandante Melo Cristino, surpreendido pela violência do fogo e pela chuva de metralha que caía em seu redor, gatinha desorientado pelo chão sem saber muito bem o que fazer. A admiração e o respeito que passou a sentir pela coragem de Alpoim Calvão e dos seus fuzileiros deixou de conhecer limites.

A partir de certa altura, após a passagem dos aviões da Força Aérea, os fuzileiros ouviam fortíssimos rebentamentos na mata e o solo estremecia com a violência de um tremor de terra. Era mais um bombardeamento, mas de invulgar potência. Na sua origem encontrava-se o Comandante da LFG “Dragão”, Primeiro-Tenente Lopes Carvalheira, que via com preocupação a operação arrastar-se durante muito tempo e pensou numa maneira de abreviar o esforço exercido na Ilha do Como. Tinha conhecimento que nos paióis de munições em Bissau estavam estivadas bombas de profundidade para a guerra antissubmarina. Eram cargas poderosíssimas de 350kg de trotil que se encontravam atribuídas às fragatas em serviço na província, mas que, não só por serem desnecessárias naquele teatro de operações como também por representarem um perigo acrescido, eram desembarcadas no início das comissões.
Lopes Carvalheira fez então um teste com as cargas utilizadas para repelir ataques de mergulhadores e confirmou que as espoletas tinham um retardo de 20 segundos. Foi pois fácil ao seu Imediato, Oficial da Reserva Naval, licenciado em Matemática, estabelecer os cálculos da altitude a que deveriam ser largadas de avião para rebentarem a escassos metros do solo. Lopes Carvalheira pede licença para se deslocar a Bissau, embarca num helicóptero Allouette II a bordo da ‘Nuno Tristão’ e expõe a sua ideia, que conta com o apoio inequívoco do Governador da Guiné, Comandante Vasco Rodrigues.”

Ver-se-á a seguir como este dispositivo beneficiou Alpoim Calvão e os seus homens na Batalha do Como.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 9 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20046: Notas de leitura (1207): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (18) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20054: Notas de leitura (1208): “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19476: Recortes de imprensa (101): o desastre do Cheche, no rio Corubal, ocorrido na manhã de 6/2/1969 (Diário de Lisboa, 8 de fevereiro de 1969, p. 1)






Diário de Lisboa, 8 de fevereiro de 1969, p. 1




Citação:
(1969), "Diário de Lisboa", nº 16573, Ano 48, Sábado, 8 de Fevereiro de 1969, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_7148 (2019-2-6)



Fonte: Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 06597.135.23237 | Título: Diário de Lisboa | Número: 16573 | Ano: 48 | Data: Sábado, 8 de Fevereiro de 1969 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Edição: 2ª edição | Observações: Inclui supl. "Diário de Lisboa Magazine". | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos | Tipo Documental: Imprensa.

(Com a devida vénia...)


1. A notícia chegou tarde às redações dos jornais. O "Diário de Lisboa", que se publicava à tarde,  deu-a em título de caixa alta só na 2ª edição, dia 8 de fevereiro de 1969,  que era um sábado. Fez ainda uma 3ª edição. (*)

De qualquer modo, o jornal limitava-se a transcrecever a notícia dada pela agência oficiosa L [Lusitânia], com proveniência de Bissau e com data de 8 de fevereiro... As autoridades da província (leia-se: o general Spínola) levaram dois dias a recolher e a tratar a informação...

Omite-se, por certo intencionalmente, por razões de segurança militar, os seguintes elementos factuais:

(i) o "acidente" ocorreu na manhã de 5ª feira, dia 6 de fevereiro de 1969;

(ii) no  final da Op Mabecos Bravios, ou na seja, na sequência da retirada do aquartelamento de Madina do Boé e do destacamento de Cheche..

Os jovens de hoje não sabem o que era isso, mas  os jornais (o "Diário de Lisboa" e os outros) eram "visados pela censura": havia uns senhores todo poderosos, em geral militares, coronéis do exército ou equivalentes,  que tinham um "lápis azul", e que passavam a pente fino, previamente (ou seja, antes da publicação), todas as notícias que saiam na imprensa escrita. 

A grande maioria dos portugueses na época, e nomeadamente os da nossa geração, nascera já no Estado Novo, o regime de Salazar (e depois Caetano),  pelo que não sabia o que era a  liberdade de imprensa, escrita e falada...

O título de caixa alta,  "Desastre na Guiné", da responsabilidade do editor do jornal, era suscetível de causar alarme e consternação, nomeadamente entre as famílias dos militares que estavam então no TO da Guiné: 47 mortos (militares, em rigor 46 militares e 1 civil guineense) era o balanço do "trágico acidente".

Eu estva em Castelo Branco, no BC 6, a dar instrução militra, como 1º cabo miliciano, e em véspera de ser mobilizado. A  notícia deste desastre mexeu comigo... A notícia da minha mobilização chega a 27 desse mês...Na noite seguinte, às 3h41 ocorre o violento sismo de magnitude 8 na escala de Richter (, o maior depois de 1755), com epicentro no mar, a sudoeste do cabo de S. Vicente, na planície da Ferradura, se fez sentir em Portugal, Espanha e Marrocos. Eu nessa noite dormia o "sono dos justos"..

Mas, voltando à notícia da agência Lusitânia:  houve logo a preocupação, pelo menos, por parte do "governo da província da Guiné", de dar o núnero exato de mortos e desaparecidos (não se faz a distinção, fala-se em "vítimas") e listar os seus nomes

O balanço era, de facto, trágico: na lista das 47 vítimas, por afogamento (, parte das quais nunca chegarão a ser encontradas), constavam: 

(i) 2 furriéis milicianos; 

(ii) 7 primeiros cabos; 

e (iii) 38 soldados (na realidade, um dos nomes era de um civil). 

Mas os termos da notícia eram lacónicos, secos, quase telegráficos, como  de resto era habitual nos comunicados oficiais ou oficiosos em assuntos "melindrosos" como este:

"Na passagem do rio Corubal, na estrada para Nova Lamego, afundou-se a jangada que transportava uma força militar, havendo a lamentar, em consequência deste acidente, a morte, por afogamento, de 47 militares".

E a notícia ficou por ali: não se voltou a falar do "trágico acidente", nas edições seguintes, nem muito menos o jornal se podia dar ao uso de, por sua conta e risco, mandar à Guiné uma equipa de reportagem para aprofundar o assunto... Voltou-se à rotina da atualidade nacional e internacional, e os nossos valorosos camaradas que estavam na Guiné lá continuaram a "aguentar o barco" por mais cinco anos...

Para não dar azo, entretanto,  a perigosas  especulações, o ministro do Exércitofoi nomeou (e mandou de imediato para o CTIG) o cor cav Fernando Cavaleiro, um militar prestigiado,  o "herói da ilha do Como" (1964), infelizmente já falecido,  a fim de instruir localmente o processo de averiguações. Não sabemos quanto tempo levou a instrução do processo, mas temos um resumo das conclusões preliminares do cor cav Fernando Cavaleiro, publicado no jornal "Província de Angola", em data desconhecida, conforme recorte que nos foi enviado pelo nosso camarada José Teixeira, e que já aqui publicámos em poste de 25 de julho de 2015 (**).

Cinquenta anos depois, ainda não tivemos acesso ao relatório original (, nem sabemos se existe cópia no Arquivo Histórico-Militar), mas tudo indica que há nele erros factuais graves, permitindo ytirar conclusões enviesadas que acabam por escmotear, ignorar ou branquear a responsabilidade do 2º comandante da operação, que ultrapassou o oficial de segurança, o alf mil Diniz. 

Hoje sabemos que, na última e trágica viagem, em vez de 2 pelotões, a jangada levou o dobro, contrariamente as regras estabelecidas pelo alf mil Diniz... Mas este era o "elo mais fraco" da cadeia hierárquica e acabou por ser ele o "bode expiatório" de toda esta história que ainda continua mal contada...

2. Hoje comemoram-se os 50 anos deste trágico evento... E muita água ainda há-de ainda passar sob as pontes do rio Corubal até que se saiba a verdade ou toda a verdade sobre esta tragédia que ensombrou o primeiro ano do consulado do Spínola. 

Ainda está por realizar o prometido encontro do nosso editor Luís Graça com o ex-alf mil José Luís Dumas Diniz (, da CART 2338), responsável pela segurança da jangada que fazia a travessia do rio Corubal, em Cheche, aquando da retirada de Madina do Boé. Uma peça fundamental neste feliz encontro foi (e vai ser) o ex-alf mil trms, Fernando Calado, da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), membro da nossa Tabanca Grande, e meu contemporâneo da Guiné (estivemos juntos, em Bambadinca, entre julho de 1969 e maio de 1970). Foi o Fernando Calado que me pôs em contacto com o José Luís Dumas Diniz.Dificuldades de agenda, de parte a parte, ainda não nos permitiram fazer o encontro a três.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19447: Recortes de inprensa (100): para a história da luta dos deficientes das Forças Armadas: a manifestação em Lisboa, de 20 de setembro de 1975 (Diário de Lisboa, 22/9/1975)