https://arquivo.pt/wayback/20140929225751/http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/
(...) "O Arquivo de História Social publica nesta página uma série de entrevistas sobre a descolonização portuguesa de 1974/1975, fruto de um projecto do Instituto de Ciências Sociais apoiado pela Fundação Oriente.
" Maria de Fátima Patriarca, Carlos Gaspar, Luís Salgado de Matos e Manuel de Lucena que coordenou, entrevistaram grandes protagonistas desse processo: por um lado, governantes, chefes militares, dirigentes do MFA e outros que então actuaram na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, Angola e Moçambique; por outro lado, responsáveis metropolitanos ou íntimos colaboradores seus.
"Não procurando promover qualquer interpretação, chegar a juízos gerais ou encerrar os eventos abordados numa dada problemática, o grupo entrevistador foi seguindo os relatos e aceitando as visões dos seus interlocutores, embora não deixasse de lhes solicitar esclarecimentos por vezes incómodos." (...)
O sítio original na Net foi descontinuado. Só há pouco tempo o conseguimos recuperar através do Arquivo.pt. Devido à sua entensão, o depoimento é reproduzido, com negritos nossos (e itálicos), em duas parte (com a devida vénia, ao ICS - Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa).
A primeira parte, como já vimos, é dedicada a Angola, onde o general Bettencourt Rodrigues foi o "herói da região militar leste" (1971-1973). A segunda, à sua comissão na Guiné (set 1973/ abr 1974).
Os entrevistadores, já falecidos, Manuel Lucena, cientista político (1938-2015) e Luís Salgado de Matos, sociólogo (1946-2021), foram dois brilhantes investigadores do ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
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(…) Luís Salgado de Matos:
Passando agora para a Guiné. O sr. general chegou a organizar algum Congresso do Povo?
General Bettencourt Rodrigues:
Sim, o quinto. Foi até o acontecimento político-social mais marcante do meu mandato como Governador.
Para sua informação, eu descrevo isso com algum detalhe no depoimento que o Paradela de Abreu me solicitou em tempos, "Vitória Traída". Mas houve também os congressos regionais, de onde eram cooptados os delegados para o Congresso Provincial.
Tudo isso movimentou na altura milhares de pessoas, completamente à margem do PAIGC.
Manuel de Lucena:
Mas essa não interferência do PAIGC era deliberada por parte deles…
General Bettencourt Rodrigues:
Incapacidade militar, meu caro amigo!
Luís Salgado de Matos:
Havia alguma reflexão no Estado Maior sobre a táctica que o general Spínola estava a desenvolver na Guiné?
General Bettencourt Rodrigues:
Ele fazia a sua política, era lá com ele. Cada um tinha as suas características próprias. Volto a repetir: os comandantes militares gozaram sempre de uma larga autonomia.
Quando cheguei à Guiné em 1973, habituado como estava à largueza de Angola, o que mais me impressionou foi a pequenez daquilo tudo. A Guiné é um país cuja área varia em função da maré!
Manuel de Lucena:
Na Guiné, o sr. general chegou a pensar numa concentração do dispositivo?
General Bettencourt Rodrigues:
Sim, planeava converter as 225 guarnições em 80 e tal. A dispersão é inimiga da eficácia. Mas já não tive tempo,
Manuel de Lucena:
Por outro lado, a quadrícula dispersa é sinal de presença efectiva, possibilita o contacto directo com as populações…
General Bettencourt Rodrigues:
É uma outra forma de ver as coisas. Simplesmente, havia que fazer uma opção.
Luís Salgado de Matos:
Manteve o acordo do general Spínola com os Felupes, em que estes recebiam 100 escudos por cada cabeça de guerrilheiro abatido?
General Bettencourt Rodrigues:
Não estava ao corrente desse acordo, mas se ninguém o denunciou…
Manuel de Lucena:
Quando chegou à Guiné encontrou uma tropa bem preparada, motivada, com bons quadros? Faço lhe esta pergunta porque a ideia que normalmente se tem acerca do estado de espírito da nossa tropa na Guiné é a de uma desmoralização generalizada.
General Bettencourt Rodrigues:
Sobre isso direi o seguinte: só se morre uma vez, não há mortes provisórias. Quando se combate com convicção e tenacidade, quando se tem a certeza de um trabalho bem feito, a motivação é coisa que não falta.
Manuel de Lucena:
Mas o MFA na Guiné, ao nível dos quadros, aparentava estar bem organizado, tinha um número muito significativo de adesões. Qual era a sua percepção?
General Bettencourt Rodrigues:
Não tive conhecimento disso- Que as condições eram terríveis, não contesto. Agora dizer que a tropa estava desmoralizada, de maneira nenhuma!
Em Angola podia cumprir-se uma comissão alternando sítios fáceis com difíceis. Na Guiné não; vivia-se num sobressalto permanente. Por isso é que na Guiné as comissões duravam 21 meses e em Angola 24. Só quando os strelas entraram em cena é que as comissões passaram a 24 meses. O general Spínola deixou ficar os que lá estavam e aumentou o contingente com tropas frescas.
Manuel de Lucena:
O 25 de Abril foi então uma surpresa para si?
General Bettencourt Rodrigues:
Tanto foi que me assaltaram o gabinete! (**) Embora quase tivesse assistido ao golpe das Caldas, quando vim a Lisboa em Março de 1974, não dei por nada. Quando a Revolução estalou, estava perfeitamente inocente.
Luís Salgado de Matos:
O sr. general tinha confiança na tropa das informações? Na Marinha, onde fiz o meu serviço militar, corria que o Exército, na Guiné, estava infiltrado pelo PAIGC de alto a baixo.
General Bettencourt Rodrigues:
Em geral tinha. Nas Informações trabalhava-se em estreita colaboração com a DGS, reconhecidamente competente nesse campo. O PAIGC, de resto, não tinha técnica para entrar um jogo desses.
Diz-se que um dos efeitos da contra-subversão é a lassidão. Mas a lassidão também os afectava a eles. O PAIGC não estava menos exausto que nós.
Manuel de Lucena:
De qualquer forma, de todos os MFA's, não restam dúvidas de que o MFA da Guiné era o melhor estruturado. Basta atentar nos nomes proeminentes do 25 de Abril que saíram da Guiné. Se eles fossem fracos, o sr. general, no dia 25, ter-se-ia rido na cara deles e dado voz de prisão. Depois, o evoluir dos acontecimentos logo após o 25 Abril veio a demonstrar que na Guiné a vontade de regresso à Metrópole se sobrepunha praticamente a tudo.
General Bettencourt Rodrigues:
Olhe, como dizem os brasileiros, quando um general passa à reserva vira historiador. Foi o que sucedeu comigo. Reformado aos 55 anos, dediquei-me ao estudo. Pesquisei, li, meditei, E sabe a que conclusão cheguei? Que o país nunca teve um problema de defesa nacional em África. A tropa podia estar farta, mas obedecia. Faz parte da nossa natureza. A esse respeito nunca tive dificuldade - fui sempre obedecido.
Raramente tive de usar de expedientes punitivos; escolhi sempre a via do exemplo: quando era preciso suportar dificuldades, eu fazia questão em suportá-las.
Quando estive em Lisboa em Março de 1974 - vim cá buscar 150 contos -, achei isto uma coisa horrorosa. Tinha havido a remodelação ministerial, a última do professor Marcelo. Senti um mal-estar generalizado, uma atmosfera pesada. Felizmente, o episódio da «brigada do reumático» apanhou-me já a caminho da Guiné.
Manuel de Lucena:
Como foi a reacção ao golpe das Caldas na Guiné?
General Bettencourt Rodrigues:
Irrelevante. O Ultramar ficava muito longe.
Luís Salgado de Matos:
O facto do general Spínola ter saído após Guileje foi entendido como uma derrota? Não afectou as pessoas que lá estavam?
General Bettencourt Rodrigues:
Note: o general Spínola esteve lá oito anos, fora nomeado no tempo do do Salazar. Eu até dizia: o Spínola não deve sair da Guiné senão por limite de idade ou de caixão. E, caramba, oito anos na Guiné é de morrer!
A partir de determinada altura, admito que as coisas terão deixado de lhe correr de feição, nomeadamente porque o Governo não lhe dava todo o dinheiro que pretendia para a sua política de aliciamento das populações.
Apesar de cada um ter a sua maneira de comandar, eu não enjeitei a sua política de melhoria e desenvolvimento das populações autóctones. Mas com uma diferença: eles não me metiam a mão no bolso! Quer dizer: não lhes satisfazia todos os pedidos.
Recordo-me de um dia ter ido a uma tabanca [sanzala, no original ] e de um grupo de mulheres me ter pedido rádios. Vejam bem: rádios para falar com os maridos quando estes iam a Bissau!
Não fui para a Guiné para agradar a toda a gente. Fui lá para cumprir o que devia ser cumprido.
Manuel de Lucena:
Na conversa que teve com o professor Marcelo, antes de ir para a Guiné, não ficou com a sensação que a saída do general Spínola lhe causava a ele, Marcelo, um problema bicudo?
Luís Salgado de Matos:
E a isso eu acrescento: não implicava a admissão da derrota de Spínola na Guiné?
General Bettencourt Rodrigues:
Leiam o Depoimento do professor Marcelo Caetano. Ele narra a nomeação a reunião com os altos comandos.
Manuel de Lucena:
E quando é nomeado para a Guiné tem outra entrevista com o professor Marcelo ...
General Bethencourt Rodrigues:
Naturalmente. No entanto, o pretexto dessa conversa até foi outro assunto, designadamente, a negociação de um contrato publicitário entre a RTP e a Movierecord - eu nessa altura em administrador delegado da RTP.
Só depois é que o Presidente do Conselho me assediou para a Guiné, onde a situação se deteriorara nos últimos tempos.
Luís Salgado de Matos:
Mas porque é que saltaram a escala hierárquica e o escolheram a si? Não foi pela aura vitoriosa que trazia do Leste de Angola?
General Bettencourt Rodrigues:
Sim, pode aceitar-se essa leitura.
Manuel de Lucena:
Mas o sr. general Bethencourt e o sr. general Spínola são comandantes de estilos e escolas diferentes, não é assim?
General Bettencourt Rodrigues:
O mais possível.
Manuel de Lucena:
De resto, a «terceiro-mundialização» que o Exército português conheceu durante o PREC - e que se traduzia em ordens por despacho, ultrapassagem das hierarquias, etc. – não procedeu da organização do general Spínola na Guiné?
General Bettencourt Rodrigues:
Mas note que, ao contrário do que muita gente pensa, o general Spínola não era assim tão popular na Guiné.
Manuel de Lucena:
Quando fui subordinado do major Salles Golias, que servira sob as ordens do general Spínola na Guiné, e depois se tornou seu inimigo figadal, recordo-me de ele ter dito que era capaz de tudo para evitar que o general Spínola, já depois do 25 de Abril, voltasse a pôr os pés na Guiné. O major Golias estava ciente que o general Spínola deixara uma multidão de indefectíveis, tanto cá como na Guiné.
General Bettencourt Rodrigues:
Mas esses fiéis - o Monge, o Bruno, o Fabião, etc. - já haviam todos regressado quando fui para a Guiné.
O sr. general Spínola, lamento dizê-lo, era muito faccioso. Para ele, quem não tivesse andado no Colégio Militar ou não fosse de Cavalaria era menos que zero.
Texto fixado por Pedro Aires Oliveira, a partir de notas suas e de Fátima Patriarca.
(Revisão / fixação de texto, parênteses retos, negritos e itálicos para efeitos de publicação neste blogue: LG)
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Notas do editor:
(*) Útimo poste da série > 26 de fevereiro de 2024 > Guiné 6/74 - P25217: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte V: Angola 'versus' Guiné
(**) Vd. postes de
4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13096: (Ex)citações (229): O MFA na Guiné-Bissau: comentário do ten cor ref Jorge Sales Golias sobre os acontecimentos de 26 de abril de 1974, em Bissau: o gen Bethencourt Rodrigues e os oficiais que com ele se solidarizaram foram tratados com deferência e cordialidade (Carlos Pinheiro / Bento Soares)
4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13095: (Ex)citações (228): O golpe de 26 de abril de 1974, o MFA, o Com-Chefe, gen Bethencourt Rodrigues, e o comandante interino do COMBIS, cor inf António Vaz Antunes (Luís Gonçalves Vaz, que tinha 13 anos, e vivia em Bissau, sendo filho do cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz, último chefe do Estado Maior do CTIG)
1 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13078: O golpe militar de 26 de abril de 1974 no TO da Guiné: memorando dos acontecimentos, pelo cor inf António Vaz Antunes (1923-1998) (Fernando Vaz Antunes / Luís Gonçalves Vaz): Parte I