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sexta-feira, 23 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24425: Notas de leitura (1591): "Negreiros Portugueses na Rota das Índias de Castela (1541 - 1556)", por Maria da Graça A. Mateus Ventura; Edições Colibri, 1999 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
A dissertação de Mestrado de Maria da Graça Alvares Mateus Ventura contribui para contextualizar o comércio negreiro feito por mercadores portugueses tanto ao serviço dos reis da Casa de Avis como dos Áustrias, fazia-se na circulação entre Sevilha, Rios da Guiné, Santiago e as Índias Ocidentais, aquele vasto e indefinido território da Senegâmbia deu muitos ancestrais a quem vive nas Antilhas, na América Central e na América do Sul. A autora veio mesmo aos arquivos e dá-nos um quadro surpreendente sobre a participação de portugueses no tráfico negreiro na hispano-américa no período compreendido entre 1492 e 1557 e mais, ficamos a conhecer o universo de todos estes agentes que permitiu aos portugueses lançarem-se nas rotas indianas movidos por um comércio lucrativo. Uma investigação que não pode ser descurada para quem estuda o tráfico negreiro e mesmo a história da Guiné e de Cabo Verde no século XVI.

Um abraço do
Mário



Sevilha, Costa da Guiné, Cabo Verde, Índias Ocidentais, Negreiros Portugueses no século XVI

Mário Beja Santos

A dissertação de Mestrado da Maria da Graça A. Mateus Ventura teve exatamente o título da presente obra, Edições Colibri, 1999. Como escreve no prefácio o professor António Borges Coelho:
“Os navios negreiros de que se fala neste texto não vinham ainda de Angola, mas do Cacheu, da Mina, do Rio dos Escravos, do Níger e principalmente do grande entreposto e armazém que era Cabo Verde. No novo continente, os escravos negros afeiçoaram a terra e seguiram nela o preceito bíblico: crescei e multiplicai-vos. Mas os seus filhos já nasciam escravos. Na América Espanhola esperava-os o trabalho brutal nas minas de ouro e de prata. Os grandes financeiros, genoveses e principalmente portugueses, estiveram envolvidos no negócio, mas eram os portugueses que dominavam as fontes de abastecimento e rapidamente o principal do trato firmou-se nas suas mãos. O contrato renderia à Coroa grossas somas e constituiria um dos mais lucrativos negócios privados desde o tempo do infante D. Henrique. A autora do presente trabalho identificou e acompanhou a trajetória de alguns destes negreiros portugueses como Gaspar de Torres e principalmente Manuel Caldeira, argentário cristão-novo que se tornou fidalgo da casa del-rei. O próprio Fernando de Noronha, cidadão de Lisboa no tempo de D. João II, cristão-novo, contratador do pau do brasil em 1502, aparece ligado ao trato dos escravos na costa da Guiné. Aliás, o contrato com o rei D. Manuel concedia-lhe não só o exclusivo da importação do pau do brasil como o autorizava a exportar índios escravos”.

A autora vasculhou na Casa da Contratação de Sevilha importante documentação destes contratos e licenças onde sobressaem negreiros portugueses, como ela escreve, “É um mundo onde pululam agentes, feitores, onde se constituem companhias efémeras, se retêm ou desembargam avultadas quantias, onde, em última instância, se digladiam ou complementar interesses públicos ou interesses privados”.

Os denominados Arquivo-Geral de Simancas e o Arquivo-Geral das Índias conservam documentação referente a Manuel Caldeira, os irmãos Torres têm contratos assinados em Antuérpia, e há no Arquivo Nacional Torre do Tombo alguns documentos complementares dos processos em Simancas. A autora dá-nos um quadro da organização do trato ao regime do comércio e ganha destaque o natural domínio dos portugueses como fornecedores ou contratantes, um universo onde se arriscavam pequenas fortunas num negócio de humana mercadoria, lida-se com o dinheiro dos outros, apura-se a presença de muitos judaizantes e cristãos-novos. Os memoriais permitem saber quais as áreas de exploração em África. No memorial que o mercador Jerónimo de Herrera apresentou à Coroa espanhola sobre a compra de escravos, em 1568, esclarece-se quais as principais regiões abastecedoras e fala concretamente em Brames, Beafadas, Nalus, Berberes, Cassangas e Jalofos. André Alvares de Almada no "Tratado Breve dos Rios da Guiné e Cabo Verde" descreve em 1594 as regiões onde se encontram estes povos.

Recorde-se que durante todo o século XVI, Cabo Verde, por Santiago, foi a feitoria mais importante a nível do fornecimento de contingentes de escravos, só virá a ser superada por S. Tomé. Enquanto Cabo Verde controlava os rios da Guiné, São Tomé iria absorver os escravos dos reinos que povoavam a região do Níger. Angola só no século XVII se tornaria o principal centro negreiro. Convém também não esquecer o arrendamento do trato da Guiné a Fernão Gomes que ficou obrigado a explorar a costa ocidental africana. Os contratos de arrendamento dependiam da Casa da Índia, mas havia quem contratasse diretamente com Castela, caso de Manuel Caldeira. Comércio lucrativo, mas com todos os riscos inerentes à pirataria, ao corso e aos naufrágios, isto para já não falar no contrabando e nos negócios particulares dos feitores. A autora descreve os negócios dos irmãos Torres, influentes negreiros portugueses durante a União Ibérica, foram os principais fornecedores da província de Honduras.

A autora dá-nos o quadro das viagens, a natureza das cargas, as operações da compra e do transporte, as fortunas destes mercadores, o português Gaspar de Torres era de longe o mais poderoso. E dá-nos o estudo de Manuel Caldeira, sobre o qual há imensa documentação, foi-lhe possível compor a biografia, os parentescos, por onde andou, o que contratou, até o seu testamento é altamente esclarecedor. Manuel Caldeira não foi um mercador sedentário, viajou de Lisboa à Serra Leoa, a Azamor, à Flandres, e andou por terras de Castela. Caldeira integrava em 1556 a lista de banqueiros credores de Filipe II, era cavaleiro da Casa Real, e cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo. Seria cristão-novo, a autora classifica-o assim: “Homem de muito comércio e negócio, abonado para todas as finanças, envolto em numerosos pleitos, autor de grandes embaraços, traficante de coisas indevidas, eis um retrato possível deste negreiro português, de cujo percurso nos aproximámos, afigura-se mercador rico e caudaloso além de excelente gestor de influências nas esferas de poder das cortes ibéricas. O seu testamento dá exatamente conta das quantias que ele deixa para descanso da sua alma".

E cuidadoso no estabelecimento de redes sociais:
“Interioriza os valores do seu tempo, orientado pelo valor do dinheiro. Casa o primogénito com a filha de um embaixador castelhano e institui um morgado. Garante a continuidade do seu nome e a inalienabilidade de parte significativa dos seus bens. Insiste no casamento como forma de consolidar laços de poder. Casara com Guiomar, filha de um sócio, ligou os Roiz aos Caldeira. Casa André com Catarina, ligando os Caldeira também aos Hurtado de Mendonça. Duas alianças, dois poderes – o dinheiro e a influência política. Para Beatriz, filha mais velha, quer casamento rico. Di-lo no testamento. Parece tê-lo conseguido, se foi ela a esposa de Luís Mendes de Vasconcelos, célebre pelos cargos na Índia e pelos textos que deixou. Enfureceu-se com os filhos desobedientes pelo facto de não lhe terem dado ouvidos sobre o seu matrimónio. Só lhes perdoa se forem pobres, agora que não sabe deles lá pela Índia.
O comércio da pimenta levou-o à Índia, o trato de escravos levá-lo-ia à América. Com a pimenta e a armação de navios, ligou-se aos mercadores e banqueiros portugueses e estrangeiros que prosperavam em Portugal. Com os escravos negros de Cabo Verde e São Tomé, gozando já dos favores de D. João III, liga-se a Castela. Feitor do rei de Portugal, tesoureiro da Sereníssima Princesa de Portugal, Manuel Caldeira sintetiza a atitude dos mercadores portugueses que, alheios a questões de nacionalidade, viam nos negócios com Castela e as suas Índias um prometedor espaço de prosperidade”
.

A autora anexa documentos importantes, caso da relação da partida de escravos. Obra com muito significado para quem estuda o tráfico negreiro, particularmente o que se exerceu na região da Guiné e Cabo Verde, no século XVI.


Maqueta alusiva ao transporte de escravos e mercadorias rentáveis no comércio negreiro, modelo do Museu Nacional da História Americana, Smithsonian Institution
Imagem de tráfico negreiro
Pintura maneirista dos finais do século XVI, Igreja de São Sebastião de Lagos, vejam-se as embarcações de um porto algarvio que esteve ligado ao tráfico negreiro
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24423: Notas de leitura (1592 ): "Uma ilha no nome: pequena crónica dos dias líquidos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário do meu querido e saudoso amigo, o arquiteto José António Boia Paradela, 1937-2023) (Luís Graça)

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24297: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (55): aqueles 13 anos de guerra do Ultramar deram-nos tanta ou mais divulgação de Portugal e da língua do que os 500 anos anteriores


Casa Comum | Fundacão Mário Soares | Pasta: 11124.001.010 | Título: Mensagem | Assunto: Mensagem. Publicação não periódica da Casa dos Estudantes do Império. | Número: 1 |Ano: XVI | Data: Julho de 1964 | Directores: Alberto Rui Pereira | Fundo: Associação Casa dos Estudantes do Império | Tipo Documental: Imprensa | Língua do Documento: Português

Citação:
(1964), "Mensagem", nº 1, Ano XVI, Julho de 1964, Lisboa, Fundação Mário Soares / Associação Casa dos Estudantes do Império, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11124.001.010 (2023-5-7)



Antº Rosinha, II Encontro Nacional
da Tabanca Grande,Pombal, 2007.
Foto: LG
1. Comentário ao poste P24290 (*), do Antº Rosinha, o "nosso mais velho", "colon" em Angola (desde os anos 50, e onde fez a tropa e a guerra, em 1961/62), "retornado" em 1975, emigrante no Brasil, cooperante na Guiné-Bissau (como topógrafo da TECNIL, em 1987/93), um dos últimos dos nossos "africanistas",  membro da Tabanca Grande desde 29/11/2006 (enfim, "um senhor senador"):

Tanto a língua portuguesa como Portugal foram talvez definitivamente desenquadrados aos olhos de muitas partes do mundo como sendo vizinhos da Espanha sim, mas não espanhol, isto devido muito aquela guerra do Ultramar.

A ignorância sobre Portugal e suas colónias era tal que no próprio Brasil no 25 de Abril ouvia-se perguntar: "Mas Portugal ainda tem colónias?"

Foi muito graças à sagacidade dos dirigentes dos Movimentos independentistas que se divulgou o que era Portugal e os portugueses, que eram algo que não tinha a haver com a Espanha.

Sabemos que havia os "estudantes do império", mas também "estudantes no império" e essa malta sabia melhor que nós "da metrópole" vender o "peixe".

Foram eles que conseguiram que imensas emissoras de rádio em todos os fusos horários, principalmente nos paises de leste e Ásia, tivessem emissões diárias e bi-diárias em português de Portugal e português do Brasil. Claro que era para falar mal da gente, mas falavam em português, já não era tão mau.

Ouvi a cooperantes estrangeiros na Guiné passados anos da independência, que só naquela altura de irem para lá, é que tinham ouvido a história que aquilo tinha sido uma colónia portuguesa. E explicavam-me isso em português.

Tive que aturar entre outros uns italianos na Guiné (engenheiros fiscais de obras) em que um me perguntava (em português)se era verdade que os portugueses estivemos ali 500 anos, e a fazer o quê?

E eu na brincadeira (nunca levei coisas muito a sério) respondi-lhe que não sabia mas que fosse perguntar ao Camões. Também não sabia quem era Camões.

Ou seja, para mim não tenho a mínima dúvida que nós não contávamos, e ainda pouco contamos, mas que aqueles 13 anos de guerra do Ultramar deram-nos tanta ou mais divulgação de Portugal e da língua, do que os 500 anos anteriores.

Isto muito com a ajuda dos "estudantes do império" e "estudantes no império".

Ainda andam por aqui muitos estudantes vindos do império ou filhos deles, que ficaram por cá e dão bem nas vistas, pois têm uma perspicácia especial para se imporem em todos os campos, até na política.

Mas a propósito de Camões, e da nossa língua, o único Prémio Camões que foi rejeitado foi pelo nosso e angolano escritor Luandino Vieira. Ele em principio explicou que rejeitou por razões pessoais. Para mim não é explicação suficiente, que também tenho direito a opinião.
Depois tentou dar outra explicação, também não me convenceu.

Viva o Lula que só fala na ONU em português, embora em nordestino meio caipira.

Cumprimentos. Antº Rosinha (**)
7 de maio de 2023 às 11:03
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quarta-feira, 8 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É inegável que a historiografia sobre a Guiné portuguesa tem uma enorme dívida com o António Carreira. Aqui se faz jus a um trabalho pioneiro sobre o comércio negreiro na costa ocidental africana, Carreira era homem de arquivos, deplora frontalmente a negligência dos investigadores no estudo do tráfico português de escravos. Felizmente que todo este acervo documental passou a ser muito mais escrutinado nas últimas décadas, todo este fenómeno socioeconómico cultural começa a esclarecer-se. A narrativa de Carreira é profundamente didática, tem o mérito de poder ser acompanhada por iniciados e leigos, verifica-se que é um trabalho altamente fundamentado e cumpre o desejo do autor: abre imensas portas a quem queira investigar o papel dos portugueses no tráfico de escravos.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (1)

Mário Beja Santos

O livro "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O investigador abre as suas considerações enfatizando a dívida com que o continente americano ficou com o escravo africano, sem este imigrante forçado teria sido inviável a cultura da cana sacarina, o cultivo do fumo, o apanho das drogas do sertão, a criação extensiva de gado, a extração de ouro e pedras preciosas. A situação do comércio negreiro só conhecerá profunda alteração com a Imigração branca iniciada no século XIX. E adianta também: ”Não foi apenas na América e em África que se sentiram os efeitos da grande imigração forçada de povos africanos e que ficou mais conhecida como tráfico de escravos. Este tipo de migrações transformou a economia de muitas nações europeias, em especial a da Inglaterra, a da França, a da Holanda, a da Espanha, a de Portugal, e outras. No final do século XVIII, só na Inglaterra existiam mais de 14 mil escravos negros. A América cultivava o algodão, utilizando para o efeito o escravo africano, e a Inglaterra industrializava-o, produzindo os tecidos de exportação. Tudo irá mudar com a independência dos EUA, houve que procurar noutras áreas as matérias-primas, e Inglaterra decidiu coartar o fornecimento de mão de obra escrava à América do Norte e a outros países que se lhe opunham como concorrentes ao comércio africano”. Iniciava-se a campanha abolicionista, mas a ilegalização do sistema da escravização, em termos que não foram absolutamente práticos só foi alcançada no final do século XIX.

Carreira dá conta da vastidão do seu trabalho: “Dobrado o Cabo Bojador, a área conhecida por Guiné passou a ter enorme extensão: abrangia a faixa de território que, a partir da foz do rio Senegal, se estendia até ao rio Orange! Depois, quando se conheceu melhor a costa, foi encurtada, limitando-se ao setor do rio Senegal até à Serra Leoa, espaço da capitania de Cabo Verde.” Para baixo temos a Costa da Mina, indo até à Costa de Angola, abrangendo os chamados reinos de Loango, Sonho, Cabinda, Congo, Angola e Benguela.

Debruça-se Carreira sobre as motivações do Infante D. Henrique, a literatura de viagens, a captura de negros, mas o tráfico autêntico ainda não se organizara, a Coroa não possuía organização adequada, confiou a exploração do negócio a particulares, logo Fernão Gomes, em 1468, ele podia resgatar escravos com exceção da terra firme defronte das ilhas de Cabo Verde e do castelo de Arguim. É um período em que surgirão muitas desinteligências com os moradores Santiago, com transgressões ao estipulado pela Coroa. Aumentarão os conflitos entre os negociantes de escravos e as populações africanas, a Coroa tomou decisões: proibiu expressamente as operações de razia e captura de negros, impondo a prática da compra, por permuta por vestuário, manilhas de latão, missangas, contaria, etc., assim como por animais domésticos, isto dentro de uma lógica das preferências dos mercados africanos. E sintetiza Carreira:
“Podemos, em resumo, e baseados em textos portugueses dos séculos XVI e XVII, determinar os principais processos usados na obtenção de escravos:
1. Os prisioneiros de guerra e os capturados nas frequentes operações de razia.
2. Os aprisionados nas lutas travadas entre classes sociais ou profissionais (corporações de ofícios nos Mandingas), de uma mesma etnia e também os resultantes da imposição de credos religiosos.
3. Os condenados por decisões de régulos à pena de morte, e a seguir comutada pela de escravização.
4. Os condenados por decisões proferidas através de ordálios a serem vendidos e a suas famílias como escravos.
5. Os vendidos pelas famílias e os que se vendiam a si mesmos e aos seus familiares nas épocas de fome ou calamidade, etc., etc.”


Dá-nos seguidamente o role dos sistemas de exploração entre o século XV e o século XVII, refere alguns dos principais contratos de arrendamento e nomes dos contratadores, num arco geográfico entre os rios da Guiné e Angola. O comércio da Guiné no século XVI foi o primeiro, destinava-se sobretudo a terras brasileiras. O autor dá-nos a relação do tráfico africano para a Baía em vários ciclos, a concorrência estrangeira, como a dominação espanhola afetou profundamente o comércio português, e dá-nos conta das suas investigações: “Através de números compilados dos livros de registos alfandegários, de relatórios e de correspondência oficial endereçada a Lisboa, e ainda das estatísticas organizadas em algumas áreas do Brasil, podemos ter uma ideia, embora incompleta, da evolução do tráfico de escravos na costa ocidental africana. Há falta de dados durantes longos períodos e temos de ter em linha de conta o contrabando de escravos em todos os setores, parece situar-se numa ordem de grandeza aproximada entre 40-50% do total de saídas registadas na documentação oficial.” Interessa-nos aqui referir a região da Senegâmbia, área compreendida entre a foz do rio Senegal e o limite sul da Serra Leoa, englobando as ilhas de Cabo Verde, das quais a de Santiago teve durante mais de um século a função de depósito ou entreposto de escravos destinados à exportação. Na segunda metade do século XV faz-se referência a uma média anual de 700 a 800 escravos destinados à Península Ibérica e a mercados árabes. Nas primeiras décadas de 1500, o tráfico passou a processar-se mais a sul, entre o rio Senegal e a Serra Leoa, são analisados os contratos de arrendamento. E em meados dos século XVIII surgem as companhias majestáticas do comércio em geral e a do tráfico de escravos.

(continua)


O comércio negreiro feito pelos árabes, os antecessores dos europeus
Livro importante para o estudo do tráfico negreiro árabe-muçulmano
Pintura do francês Jean-Baptiste Debret, 1826, retrata escravos no Brasil
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24111: Historiografia da presença portuguesa em África (357): História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira; Edição do Autor, 1983 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23597: Agenda Cultural (811): A Orquestra Médica Ibérica (de que faz parte o nosso grã-tabanqueiro João Graça) irá dar, no domingo, dia 11 de setembro, na Aula Magna da Universidade de Lisboa, um concerto solidário, a favor da Associação Portuguesa contra a Leucemia





CONCERTO SOLIDÁRIO - ORQUESTRA MÉDICA IBÉRICA

Classificação: M/06 anos

Duração: 90 min. c/ intervalo

Sessão Única: domingo, 11 de setembro de 2022, às 17h00

Local: Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, ao Campo Grande

Bilhete: 10 (dez) euros

Bilhetes à venda em ticketline.pt e mais informações em www.orquestramedicaiberica.com


1. A Orquestra Médica Ibérica reúne médicos e estudantes de medicina de Portugal e Espanha, que, além da saúde, tem outra grande paixão: a música. E, entre os músicos, estará o João Graça, psiquiatra no IPO e violinista, membro da nossa Tabanca Grande
.

No seu concerto de estreia, em Lisboa, irão estar em palco 70 profissionais de saúde, no próximo domingo, da 11 de Setembro pelas 17 horas na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa.

Juntam-se num concerto solidário cuja receita da bilheteira reverte inteiramente a favor da Associação Portuguesa Contra a Leucemia.

Vão interpretar obras icónicas da música clássica e ibérica, dirigidos pelo maestro Sebastião Castanheira Martins (ele próprio médico, interno de psiquiatria no Hospital Amadora-Sintra):


(ii) A Ver o Mar - Pequena sinfonietta marítima (1999), do português Eurico Carrapatoso (n. 1962);

(iii) Sinfonia n.º 9, em mi menor, op 95, mundialmente conhecida como "Sinfonia do Novo Mundo", da autoria do compositor checo Antonin Dvorak (1841-1904) (foi escrita e estreada, em 1893, quando o popular compositor estava nos EUA a dirigir o Conservatório de Nova Iorque).

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23558: Agenda cultural (821): Filme a não perder: "Montado, o Bosque do Lince Ibérico", realizado pelo naturalista Joaquín Gutiérrez Acha, uma produção luso-espanhola (2020, 94 minutos). Em exibição nos cinemas.


M
ontado, o Bosque do Lince Ibérico: Um filme a não perder. Um coprodução luso-espanhola (2020, 94 minutos). Um orçamento de 4 milhões de euros.  Surge na sequência da candidatura do montado a património da humanidade da UNESCO  Estreia em Portugal no dia 11/8/2022.

Rodagem: período de 18-20 meses: locais: Alentejo (Pt), Andaluzía (Es), Estremadura (Es), Castilla-León (Es). Conclusão do filme 2020.

Ver aqui o trailer oficial:


Segundo informação da distribuidora, a Zero em Comportmento, "este filme, surge na sequência da candidatura do montado a património da humanidade da UNESCO e leva-nos, através do olhar particular de Joaquín Gutíerrez Acha, numa viagem imersiva.

" Com a narração da atriz Joana Seixas, o realizador mostra-nos um raro exemplo de boas práticas da interferência do homem no curso da natureza em voos contemplativos sobre este bosque ancestral na Peninsula Ibérica."

Em exibição em Lisboa, com sessões programadas (em setembro e outubro) também para Seia, Castelo Branco e Coimbra. Sessões do filme podem ser feitas a pedido (nomeadamente municípios), para a distribuidora, através de formulário disponível aqui.

Sobre o realizador e a ficha técnica. ver aqui.

1. Montado, o Bosque do Lince Ibérico

Documentário 94 min | 2020 | M/6 

Realizado por Joaquín Gutiérrez Acha

Elenco:  Joana Seixas


Sinopse

O montado é um ecossistema peculiar que contém em si uma enorme biodiversidade e riqueza natural, desempenha funções importantes na conservação do solo, na qualidade da água e na produção de oxigénio, é um pilar importante da economia local e dá origem a uma paisagem particularmente bela. 

Feita de bosques abertos, de azinheiras e sobreiros que só se encontram na Península Ibérica, lembra-nos a Savana africana. 

Um lugar onde a Natureza se cruza com a actividade humana, em que nem a floresta sai prejudicada, nem a larga comunidade de predadores que nele luta pela sobrevivência.” é deste modo que a actriz Joana Seixas, a narradora, vai descrevendo as imagens captadas pelo documentarista e naturalista espanhol Joaquín Gutíerrez Acha que, para este filme, contou com um orçamento de quatro milhões de euros. 

O filme estreou em 11/8/2022, está em exibição em Lisboa, no Cinema City Alvalade, todos os dias, às 13h25, 15h25, 19h50.

Fonte: Público > CineCartaz (com a devida vémia...)

Informação mais detalhada sobre o filme: 

Wilder >  “Montado, o bosque do lince-ibérico” vai ter novas sessões, 
por  Helena Geraldes | 18.08.2022 


2. A versão original,  em castelhano, está disponível (incluindo legendas em castelhano) na rtve play (desde 11/6/2022 até 8/5/2032)

Dehesa, el bosque del lince ibérico


Duração: 01:33:25 

Sinopsis

En la Península Ibérica existe un bosque muy particular, la Dehesa; un bosque único en el mundo donde descubrimos sensaciones muy diversas. Aquí, las selvas espesas del pasado se adaptaron a la actividad del hombre creando un ecosistema de especies autóctonas en perfecto equilibrio, hasta ahora.
 
Fonte: rtve play (com a devida vénia...)

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23532: A galeria dos meus heróis (47): O tio Ortiz (1906-1944) (Luís Graça)


Luís Graça, ilustração gráfica, Entropias (1999)


Outubro de 1941 > Execução, pelo exército alemão, de prisioneiros civis sérvios... Na sequência da morte de 22 soldados alemães, atribuída à resistência sérvia, foram executados, em represália, 2100 (!) sérvios (na maior parte, judeus, comunistas e ciganos)...


1945 > Campo de concentração de Bergen-Belsen > 19 de abril de 1945 > Guardas femininas das SS, feitas prisioneiras pelo exército britânico... Três delas serão depois condenadas à morte e executadas.

Berlim > 21 de março de 2015 > Centro de Documentação "Topografia do Terror". Localização: Niederkirchnerstraße 8 10963 Berlin, metro: Potsdamer Platz ou Kochstraße. 

Fotos: Luís Graça (2015)


A galeria dos meus heróis > 

O tio Ortiz (1906-1944)

por Luís Graça (*)


1. Partimos de Lisboa para Berlim no mesmo avião. Eu e a Manuela. E, com a boa vontade de um passageiro (que aceitou trocar comigo  de lugar, um lugar à janela sempre é mais apetecível do que o do meio), conseguimos fazer a viagem juntos, pondo a conversa em dia.

Já não nos víamos há muito tempo. E íamos estar juntos em Berlim numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho. A Manuela, por sua vez, viera do Porto, tinha lá estado uns dias na festa dos 100 anos do seu pai e aproveitara para rever o mano mais novo (que dirigia a empresa da família) e demais parentes e amigos.

Inevitavelmente a história da família veio à baila. Tinha uma vaga ideia que a Manuela já me falara em tempos da sua “costela francesa e basca”. E na época, a ETA, a Euskadi Ta Askatasuna (em português, “Pátria Basca e Liberdade”) ainda estava ativa, sendo notícia, de quando em vez, em títulos de caixa alta, nos jornais, na sequência dos seus atentados ou da prisão de alguns dos seus operacionais e/ou dirigentes.

Em 1981 eu tinha andado no  coração do país basco, do lado cá  dos Pirinéus. Fui  de férias, tendo feito campismo  e passado por sítios icónicos mas ainda “sitiados”, e de algum modo "desaconselhados" pelas polícias e agências de turismo, na transição do franquismo para a democracia espanhola. Alguns desses sítios “tocaram-me” muito, de forma ambivalente, por uma razão ou outra, como foi o caso de  Guernica e Amorebieta-Echano. As placas toponímicas  estavam todas grafitadas, com os nomes das localidades, então ainda  em castelhano, a serem  sobrepostos pelos nomes em basco: Gernika, Amorebieta-Etxano...

Era uma época em que ainda poucos turistas, espanhóis, franceses ou portuguesas, se atreviam a andar de carro, por aquelas bandas. Os de Madrid eram tratados por "perros", os "perros castellanos".  Os franceses também eram hostilizados, a menos que fossem bascos do outro lado dos Pirinéus. Os portugueses, apesar de tudo, eram melhor acolhidos. O meu amigo V... (que infelizmente já morreu) andava de boina basca e ainda tinha uma visão romântica sobre os "etarras" e todos os antifranquistas radicais...

Parece que é preciso a gente ir  lá fora, ou lá para fora, para o "estrangeiro", para ganhar a suficiente distância e sentir a tal "saudade" e perder-se no  "labirinto" de que fala o Eduardo Lourenço... Como eu e o V..., mais as nossas caras-metade, que uma noite de verão e de tempestade, já em finais de agosto ou talvez princípios de setembro, chegámos a um parque de campismo perto de Guernica / Gernika, e quando estávamos a montar a tenda, começámos a ouvir, no altifalante, a voz da Amália em a "Estranha Forma de Vida"... E, depois a seguir, o "Grândola, vila morena"... Hà emoções sentidas fora da nossa terra, que são indescritíveis e que nos marcam para sempre... Eu, pessoalmente,  que gostava da Amália q.b., passei a ouvi-la com emoção, desde que ela morreu...  Para o V..., a Amália era uma "reaça". E o fado uma "desgraça"...

− Morreu na Flandres, na I Grande Guerra.

− Quem,  o seu avô ?!

− Sim, o meu avô materno. Na Flandres. Teria 33 anos, a idade de Jesus Cristo quando foi crucificado.

− Ah!, a Flandres, o grande matadouro da Europa.

− O meu avô Ortiz… Sou de origem basca e francesa, pelo lado da minha mãe.

− Daí o apelido Ortiz, não ?!…E quando é que vocês vieram para Portugal ?

− A minha mãe e os irmãos vieram como refugiados de guerra… Fugidos da guerra civil espanhola.

− Em 1936 ?!...

− Não, já em meados de 1937, depois do bombardeamento de Gernika (com K).

E esclareceu a minha interlocutora:

− Claro, eu ainda não era nascida, nem os meus irmãos. A minha mãe teria então 24 anos…

− Pelo que vejo, Manuela, é uma história comprida, a da vossa família. Comprida e dramáticamente cumprida.

− E trágica, pode acrescentar. Pelo caminho ficaram alguns dos meus familiares, do lado materno, os Ortiz. Todos vítimas da guerra.

E depois de um curto silêncio, enquanto bebia o seu sumo, a Manuel repetiu enfaticamente:

− Vítimas da guerra, da violência, da intolerância, da estupidez humana…

− Sei do que fala, também eu fui obrigado a vestir uma farda, a pegar numa arma e a fazer uma guerra, a guerra colonial, na Guiné. Contra a minha consciência, contra os meus valores...

− Uma tia, a mana mais velha da minha mãe, morreu no antigo Congo Belga, por altura da independência, em 1960 ou 1961, já não posso precisar . Barbaramente assassinada, à catanada. (Catanada, é assim que se diz ?)... Era enfermeira numa missão católica.

Adiantou depois, a Manuela, que conhecera a tia quando ela veio de férias a Portugal. Teria então  os seus cinquenta anos, creio que nascera em 1908. Lembrava-se do ano, 1958, porque fora na altura da “campanha do Humberto Delgado para a presidência da República”. Mas a tragédia da família , que começara na Flandres, em 1918, não acabava aqui.

− O meu tio Ortiz, o único rapaz,  filho do meu avô,  já antes, em 1944, tinha sido morto num campo de concentração nazi. Aos 38 anos anos. Era o mais velho.

E depois confidenciou-me:

− Vou conhecer Berlim, é a minha primeira vez, acho que vou tirar uns dias de licença para poder viajar até à fronteira da Alemanha com a Polónia. Pode ser que eu descubra o sítio onde o meu tio Ortiz foi assassinado. Pelo menos quero conhecer Auschwitz. Vou ver se arranjo coragem para ir, pelo menos, até Auschwitz.

Uma colega alemã, de origem polaca, já tinha dado à Manuela umas dicas sobre a região e a localização de alguns dos antigos campos de concentração nazis, na Alemanha e na Polónia.

− O alemão não é o meu forte. Só sei uns rudimentos. Formei-me em línguas românicas. E, na realidade, nem  sei para onde foi enviado o meu tio. Como vocês dizem em Lisboa, não fiz o meu TPC, não tive tempo com a ida ao Porto.

2. A Manuela Ortiz Fernandes era, pois, neta do “soldado desconhecido”. Uma barragem de artilharia alemã – é fácil de imaginar − tê-lo-á apanhado a conduzir a sua ambulância quando evacuava feridos graves, perto da  linha da frente.

− A família nunca soube pormenores. Difícil de imaginar é o horror desta cena da morte do avô. Os seus restos mortais  nunca foram encontrados, o que de alguma modo adensa o mistério das circunstâncias da sua morte.

− Não repousam por isso – esclareci eu – em nenhum dos cemitérios militares da Flandres, com direito a lápide de pedra, placa com identificação (nome, posto e data da morte)… Nem à cruz dos cristãos.

O avô da Manuela, infelizmente, teria  ficado numa pilha de restos humanos, numa vala comum, no próprio campo de batalha… Pulverizado. Mas, a pior de todas ainda era a vala comum do esquecimento,  como é costume dizer-se a propósito dos  milhões de combatentes de todas as guerras da História. 

A Manuela pegou nesta minha observação, trivial, para ir buscar um exemplo ao seu passado em Portugal:

− Ah!, sim, infelizmente, no colégio de freiras, no Porto, onde eu andei, só se falava dos heróis, dos reis e dos generais, sobretudo como vencedores das nossas guerras. Fazia-me sempre confusão. Muito menos se falava da guerra do ultramar. Eu tinha 15 anos, ia fazer 16, quando rebentou a guerra de Angola. Ainda andava no 5º ano, e ainda estávamos chocados, lá em casa, com a morte da tia no Congo.

Em boa verdade, não se falava das guerras, não fossem as pobres criancinhas, suscetíveis, indefesas, ficaram para sempre traumatizadas… Os rapazes, esses, teriam a oportunidade, única, de conheceram uma guerra a cores e ao vivo, dentro de alguns anos, pensei eu... Em Angola, Guiné ou Moçambique...

− Não se esqueça – recordou-me ela – que eu ainda apanhei a “escolinha” do Estado Novo.

− Também eu, Manuela… E em boa verdade, ainda tenho saudades do bibe e do pião... Mas diga-me uma coisa: há fotos, ao menos, desse seu avô?

− Vi,  uma vez, uma foto dele, no dia em que terá sido promovido a sargento, presumo eu. Era um garboso militar do serviço de saúde. Bonitão, de bigode farfalhudo, como se usava na época. Era basco, do sul de França. Depois da tropa seguira a carreira militar.

E acrescentou:

− Havia uma outra foto, com os filhos e a mulher. A minha mãe, que devia ter dois anos, estava sentada ao seu colo. Ao lado, dos pais, cada um dos outros filhos, a irmã e o irmão da minha mãe, que eram mais velhos.  Deve ter sido tirada em 1913 ou 1914, pouco antes do início daquela maldita guerra.

− Esses filhos, a sua mãe e os seus irmãos, os seus tios,  o que lhes terá acontecido depois?

Tentando delicadamente, mas algo a  contragosto,  satisfazer a minha curiosidade intrusiva,  a Manuela disse-me que  só sabia, por alto, o que se tinha passado, no pós-guerra. Aos três irmãos, tendo ficado órfãos, e sendo menores, foi-lhes atribuído uma pensão de sangue do Ministério da Guerra.  Pôs-se, ao que  parece, a hipótese de serem “institucionalizados”: como filhos de militar falecido (ou desaparecido)  em combate, poderiam ser internados num orfanato. O mais velho teria 12 ou 13 anos. A mãe, essa, já estava internada num hospício. Mas em vez de irem parar a um orfanato, foram acolhidos por uma outra família basca, do outro lado da fronteira, que tinha sido poupada aos horrores da guerra.

− Como vim, mais tarde, a descobrir, as duas famílias ainda eram aparentadas, com um trisavô comum. Daí nos tratarmos por primos… 

E aproveitou para me dizer que dava muita importância aos “laços de sangue” e que esse seria um traço forte da cultura basca… O que não me convenceu, mesmo sabendo pouco ou nada da cultura basca:

− Mais do que aos laços de sangue, eu dou importância à língua, à partilha de afetos, às memórias, às vivências comuns… A sua mãe falava basco?

− Infelizmente, não. A minha mãe e os seus irmãos só falavam o francês e o espanhol. A minha avó materna não era basca, são as mães, no país basco (e em toda a parte, julgo eu) que transmitem a língua (materna) aos filhos.

− E depois o português, claro?!

− Ah!, sim, mas só mais tarde. Todos aprenderam o português, exceto o meu tio Ortiz que, esse, havia regressado a França, em 1936,  já homem feito, na altura do “Front Populaire”.  Em Bilbau, já era  um bom cozinheiro. Tirou depois um curso de “chef de cuisine”.

Sobrevoávamos já a França, quando ela me começou a falar, surpreendentemente com grande ternura, desse tio que ela nunca conhecera, a não ser de fotografia e das conversas, esparsas, com a mãe. 

Cozinheiro de profissão, militante comunista, membro da Resistência Francesa, o tio Ortiz teria sido preso,  em 1941,   logo a seguir ao armistício, numa cidade da Côte Azur pela milícia do Governo de Vichy, e mais tarde “miseravelmente” entregue à Gestapo. 

Terá passado primeiro pelo campo de Gurs, nos Pirinéus Atlânticos, originalmente criado pelos franceses para acolher os refugiados republicanos, espanhóis e internacionalistas, fugidos do terror franquista, e que, depois, com o governo de Vichy, fora transformado em campo de detenção para os membros da resistência francesa, judeus e outros… 

Uns meses a seguir, o tio Ortiz terá sido transferido, com outros detidos considerados perigosos (com destaque para os comunistas) para o campo de Royallieu, na comuna de Compiègne, a nordeste de Paris. E aqui perdeu-se o seu rastro. Sabe-se que mais de cinquenta mil presos  deste campo (incluindo judeus) foram depois deportados para campos de concentração e de extermínio fora da França: Auschwitz, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, Sachsenhausen, Mauthausen, Neuengamme… Qual deles terá sido a  "última morada" do tio Ortiz ?

− A Manuela, então, não sabe em qual deles morreu o tio…

− Infelizmente, não sei, ou ainda não sei. Quando quis voltar a falar com a minha mãe sobre o passado da família e o destino trágico dos seus dois irmãos, já ela estava mal, com idas frequentes ao IPO, no Porto. E em 1975, também não tínhamos cabeça para nada, muito menos  para recordar o passado. Eu ia fazer 30 anos, já estava a dar aulas como professora de  francês, e o verão quente de 75 também mexeu muito comigo. Houve saneamentos de pessoas, a política estava ao rubro, havia conflitualidade por todo o lado, nos quartéis, nas ruas, nas empresas, nos campos, nas escolas... 

− Foi um ano difícil para todos.

− A minha mãe, ainda lúcida, foi assaltada pelos fantasmas da guerra civil espanhol. Mas procurámos poupá-la, ocultando-lhe a situação social, politica e militar que se estava a viver, incluindo os problemas da empresa do pai… Morreu em paz, na véspera de Natal. E ficou sepultada na terra onde fora muito feliz.

− Se é que se pode morrer em paz – comentário meu, desastrado.

Procurei emendar, desviando o rumo da conversa e perguntando-lhe pela avó materna. Resposta algo evasiva e sobretudo seca e ríspida:

− Não sei nada dela. Pouco ou nada me contaram  sobre ela em criança. Era um assunto tabu na família.

A Manuela viria, mais tarde, a descobrir, pelo álbum da família e da pouca correspondência que se salvara, das andanças de terra em terra, que a avó francesa (ela disse-me o nome, que não fixei) enlouquecera na sequência do trágico desaparecimento do marido. Vestira-se de luto, como as mulheres dos pescadores da nossa costa, mas não acreditava  na sua morte. Tinha a secreta esperança que ele tivesse sido feito prisioneiro pelos alemães.  

– Morreria cedo, a avó, num manicómio. Mas, como disse,  não era de origem basca.

− Uma família destroçada – comentei eu.

− A minha mãe também morreria cedo, como já lhe contei. Em 1975, aos 63 anos, no Porto. De cancro da mama, doença que na altura era quase incurável. O meu pai ainda a quis mandar para Londres, mas os médicos desencorajaram-no. E ele, já com 78 anos,  também estava com pouca força anímica.

− A Manuela fala basco?

− Nunca falei. Nem a minha mãe. Como já expliquei, só o meu avô materno é que era basco,   Em Bilbau, comecei agora a aprender, já sou capaz de ler e compreender alguma coisa. Mas é uma língua tramada para os nossos ouvidos, indo-europeus. E, depois, verdadeiramente não me sinto basca. Sou muito mais portuguesa, e tripeira, se quiser... embora também goste de Lisboa, onde fiz o meu curso. A minha mãe, essa, sim, tinha as melhores recordações do país basco, da sua adolescência e juventude passadas na província de Biscaia, perto de Bilbau… O basco falava-se sobretudo nas zonas rurais e havia (e ainda há) vários dialectos.

– Mas tem material genético basco no seu ADN...

– Apenas uma pequena parte, nem sequer metade... E mesmo que fosse metade basca e metade portuguesa, o que é que isso queria significar?

– Nada!... Mas há a lotaria genética... Qual a metade boa, qual a metade má?

– Só me preocupo com os "defeitos de fabrico"... Olhe, por exemplo, o cancro da mama... Quanto ao resto, é puro racismo... Será que os bascos são mais "violentos" ou "truculentos" que os portugueses?

– Oh!, Manuela, não quis dizer isso nem sequer insinuar...

– A ETA não é um  fenómeno exclusivamente basco, nem eu me identifico com a violência revolucionária seja da ETA ou de qualquer outra organização nacionalista radical...

– Outros dirão terrorismo...

– Não entro por essas diferenças semânticas e conceptuais. Poupem-me! Violência é violência. Mas quem quis destruir a identidade, a cultura, a língua bascas ? Mais recentemente o Franco... que proibiu os bascos de falarem a sua língua e transmiti-la aos seus filhos... Mas no passado, os bascos também  foram discriminados, tal como outras minorias...

– Desculpe, Manuela, se  involuntariamente  a ofendi ou melindrei. Também temos. na nossa história comum, como portugueses, períodos de grande violência, físicq e simbólica.

– Pelo que sei de História (e sei pouco, confesso), Portugal está longe de ser o tal país de brandos costumes que a propaganda de Salazar contrapunha ao resto da Europa do seu tempo...  Embora a minha mãezinha estivesse grata ao Portugal de Salazar, diga-se de passagem...

A família que acolhera (e depois adotara, legalmente) a mãe da Manuela e os seus irmãos, no início dos anos 20,  teve meios de se refugiar em Portugal. Eram nacionalistas e republicanos, mas católicos, como muitos bascos. Beneficiaram das boas relações comerciais e até de  amizade que mantinham no Porto. Era gente com tradição no negócio do vinho, com filial no Porto. Gente de “classe média alta”, segundo a Manuela.

− Foram os nossos “avós”. Infelizmente já morreram. Regressaram, no final dos anos 50,  aos arredores de  Bilbau onde sempre tiveram a casa e a quinta, a “baserri”, que entretanto fora transmitida ao filho varão, o mais velho, o equivalente à figura do nosso morgado.  E que cuidou do património. Nunca saíra de Bilbau, apesar das grandes dificuldades do pós-guerra. Também nunca mais o vi, a esse meu primo, que fomos visitar uma vez, teria eu os meus 10 anos.

− Portugal  tornou-se assim  a terceira pátria da vossa família.

−Sim, a minha mãe conheceu aqui o meu pai, também ele negociante de vinhos, amigo dos meus avós adotivos… Na Praia da Granja, no início dos anos 40… Era quinze anos mais velho que a minha mãe. E daí a razão de eu ter nascido, em 1945, no Porto, já depois do fim da guerra. Sou filha do pós-guerra, faço sempre questão de o dizer. Mas, em contrapartida, o meu nascimento foi saudado com a bomba atómica de  Hiroshima e Nagasaqui, nasci  poucos dias depois, em agosto de 45.

O senhor Fernandes era um conceituado comerciante de vinhos e espirituosas, grossista, importador e exportador, da praça do Porto, com armazéns em Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do rio Douro.

Sabia-se (alguns amigos mais íntimos e a família) que tinha uma ascendência cristã-nova, com raízes provavelmente na medieva comunidade judaica sefardita da cidade do Porto. A família deve ter tido, em finais do séc. XVII, problemas com a Inquisição,  razão por que se mudou, na totalidade ou em parte, para o Brasil onde prosperou. Alguns terão regressado com a corte de Dom João VI, em 1821.

O patriarca da família não tinha pretensões a títulos nobiliárquicos como o futuro apoiante da causa de D. Pedro IV e da sua filha Dona Maria II, o José Ferreira, que num dia será sido feito cavaleiro, no outro barão, e depois visconde, e por fim, conde... O conde Ferreira, o grande benemérito do nosso liberalismo.

Apesar de ter conhecido e até convivido, ao que parece,  com o capitão Barros Basto, o senhor Fernandes nunca se aproximou da comunidade israelita do Porto. Punha os seus negócios acima de outros interesses. Mas sempre foi um homem do seu tempo, “laico, republicano, liberal… e tolerante”.  Foi o retrato que me fez a sua filha, já depois de chegarmos a Berlim.

3. Mas quem era afinal a Manuela Ortiz Fernandes? 

Eu já conhecida de Lisboa, das “lides profissionais”. Se não erro, desde o ano da adesão de Portugal e da Espanha à CEE, a Comunidade Económica Europeia. Ainda não havia a União Europeia nem o euro. Estamos a falar de 1986.

O meio profissional ligado à saúde e segurança no trabalho (ainda se dizia por cá “higiene e segurança no trabalho”, por um lado, e “medicina do trabalho”, por outro…) era então pequeno e toda a gente se conhecia, daqui ou de acolá (ministério do trabalho, que tutelava a área, empresas, médicos do trabalho, técnicos de higiene e segurança, Escola Nacional de Saúde Pública, etc.).

Devo ter conhecido a Manuela nalgum encontro ou fórum internacional. Sei que ela na altura trabalhava em Barcelona, e estava cá com uma representação catalã. E ficámos em contacto. Reencontrávamo-nos agora, no aeroporto a caminho de Berlim, uns anos depois da queda do muro e da reunificação da Alemanha. Continuávamos a tratarmo-nos por você. Sentia que ela gostava de guardar alguma distância e, como toda a gente, tinha as suas defesas. Mas era uma pessoa agradável, uma boa companhia sobretudo quando se está no estrangeiro, por uns dias, em trabalho.

Estávamos os dois a participar numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho (“health and safety at work”). Eu, como académico, ela como tradutora-intérprete da Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, com sede em Bilbao, criada em 1994, responsável pelo evento em parceria com a autoridade alemã para as condições de trabalho, se bem recordo.

Por sorte, estávamos alojados no mesmo hotel, de três estrelas, confortável, barato, e com bons acessos, perto da estação de metro que nos levava ao centro de conferências onde se realizava o nosso encontro.

O edifício, embora totalmente remodelado, ainda tinha traços da arquitetura “estalinista” do pós-guerra. A zona oriental de Berlim ainda era um mundo à parte, embora já sem o muro (ou com apenas alguns restos dele, todos grafitados). Era muito procurada pelos turistas, até porque os preços da hotelaria e restauração eram mais baixos do que do “outro lado”, ocidental… E depois ainda era um “museu vivo” da antiga RDA – República Democrática Alemã…

Para a Manuela e para mim,  era uma sensação estranha: o muro estivera de pé entre 1961 e 1989, dividindo não só os berlinenses e os alemães, como os próprios europeus. Era o “muro da vergonha” de todos nós, europeus, e não só dos alemães...

Se é verdade que a reunificação da Alemanha, há sete anos atrás, em 1990, marcara o fim da chamada guerra fria (opondo a União Soviética aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial), demo-nos conta, já em 1997, que infelizmente outros muros, invisíveis (ou menos visíveis a olho nu), se estavam a erguer na nossa velha e adorada Europa de então. E que a Rússia afinal era um urso ferido e humilhado, o que não era bom para ninguém, a começar pelos europeus, tanto do leste como do oeste.

A decadência urbanística ainda era evidente. Mas Berlim já era então um estaleiro de obras públicas, estava em marcha a segunda reconstrução da cidade, depois da terrível destruição da II Guerra Mundial. (Quem não se lembra do filme "Alemanha, Ano Zero", de Roberto Rosselinni, de 1948?)

Ainda era verão, mas as noites de Berlim não convidavam a grandes passeatas à noite. Depois do jantar, ficávamos à conversa sempre que não havia “programa social”, e tínhamos o tempo por nossa conta. Já tínhamos feito um “city tour” pela Berlim leste, e "canibalizado" um bocadinho do muro como "recuerdo", como toda a gente fazia.

Havia mais três ou quatro portugueses, participantes no encontro, representando a administração do trabalho e os parceiros sociais, mais um ou outro médico do trabalho. Mas estavam alojados noutro hotel, dos selecionados pela organização, e que ficava no mesmo quarteirão, não longe do nosso.

Na época a Manuela ainda fumava muito, e queixava-se que o tabaco prejudicava o seu desempenho profissional: às vezes ficava rouca, ou com tosse, e até sem voz.

− Queria muito poder deixar de fumar – confidenciou-me ela, a mim, ex-fumador, mas tolerante.

Na época havia uma “cruzada fundamentalista” contra o tabaco e os tabagistas. A Manuela ficava “piursa” (sic) quando tinha que ouvir o discurso dos nórdicos (a que os latinos ainda faziam orelhas moucas)… O "fascismo sanitário", dizia ela, começara nos EUA e nos países nórdicos...

Mas foi a propósito da história da família que retomámos a nossa já longa conversa sobre o tio Ortiz, inacabada, quando o avião aterrara.

Ela própria reconhecia que era “muito conversadeira”, saindo nisso à mãe. Por outro lado, aos seus olhos, eu teria a qualidade de ser uma boa companhia, senão mesmo um discreto confidente. Além disso, “sabia ouvir”, sem estar sempre a interromper, com perguntas ou apartes. Muito menos fazia críticas ou juízos de valor. E sobretudo inspirava-lhe confiança. E nada como o “hall” de um hotel estrangeiro, convidativo ao “dolce far niente”, à conversa mole e também à má língua… sobre colegas, organizações e países.

−Auschwitz?... Poucos alemães lá devem ter ido. Havia o muro da vergonha, mas também antes os campos da vergonha – atalhei eu.

− É como o Vale de los Caídos, em Espanha, onde tiveram a lata de sepultar o Franco. Recuso-me terminantemente a lá ir.

−Manuela,eu também não... Mas como vamos explicar aos nossos filhos e netos toda esta barbárie do nosso século?

Da sua vida privada, nunca me falou ou só muito por alto. Tinha mais dois irmãos, sendo ela a mais velha. Do do meio, disse-me que não lhe apetecia sequer falar. Saíra do país antes de fazer os 18 anos, para escapar à tropa. Radicara-se em Andorra onde tinha um “hotel de charme”. Empresário, diretor turístico, pouco ou nada queria saber da família e de Portugal. Antes do 25 de Abril não podia sequer lá pôr os pés, sendo considerado faltoso ou refractário. O mais novo, esse, ficara à frente dos negócios do clã, para descanso e tranquilidade do velho pai que não queria ver morrer a empresa da família.

Ela, por sua vez, saíra de Portugal em 1976, no final do ano lectivo.

− Não gostei do rumo político que tomou a revolução dos cravos… Também achei que fora um sonho lindo que acabara como todas as utopias… E cada um queria ver realizada a sua!... E muito menos gostei da minha curta e frustrante experiência de professora de francês. Na minha escola havia quase tantos grupúsculos políticos quantos os professores...

Foi para Barcelona onde fez um curso de pós-gradução de tradutora-intérprete. E arranjou a seguir trabalho como tradutora. Poliglota, falava fluentemente ou lia quase todas as principais línguas latinas ou românicas (o castelhano, o catalão, o francês, o português, exceto o romeno). Não desgostava do que fazia, embora não morresse de amores pela área da saúde e segurança no trabalho. E viajava, que era uma coisa que lhe agradava. E sobretudo não ganhava mal (“ganhava muito mais do que em Portugal”). Nunca soube se tinha filhos, relacionamentos, etc. Nem ela alguma vez me perguntou pela minha família. Era uma mulher atraente-

4. Só uns dois ou três anos mais tarde, no virar do século, é que a Manuela me contou o desfecho da história (trágica) do tio Ortiz. Desta vez, fora em Bilbau, quando nos voltámos a encontrar. Já existia o Museu Guggenheim e a cidade já nada tinha a ver com a decadência urbana e industrial  que eu conhecera em 1981, quando a visitara pela primeira vez.

− Ah!,  sim, Berlim, 1997 ! − recordou ela.

E eu comecei por ficar feliz ao ver que ela tinha deixado de fumar... 

Afinal não fora na Polónia  nem na fronteira da Alemanha com a Polónia, como ela imaginara:

− O meu tio Ortiz morreu em Dachau.

− Em Dachau?!

− Sim, em Dachau, na Baviera, no sul da Alemanha, a escassos quilómetros de Munique...

Acabou por saber, mais tarde, de fonte francesa, que o tio Ortiz fora levado de Royallieu para Dachau. Por incrível que possa parecer, os SS (Schutzstaffel) que administravam o campo, c0nstruído pelos nazis para internar presos políticos e inaugurado pelo próprio Heinrich Himmler, em 1933, aproveitaram as competências profissionais do tio Ortiz. Por sorte ou por azar dele, puseram-no a cozinhar para os carrascos. Por sorte, porque foi poupado aos duros e infames trabalhos que eram reservados aos prisioneiros; por azar, porque não podia cometer erros. Nunca lhe poderia, por exemplo, passar pela cabeça envenenar a comida: ele era o primeiro a ter que a provar...

Ganhara as boas graças dos carrascos, que até o tratavam, à francesa, por "chef", em tom de chalaça, com um toque do humor, alarve, bávaro.

− No inferno, a cozinha é inglesa, a gestão italiana e o humor alemão... Nunca ouviu dizer? − perguntei eu à Manuela. − É uma variante da anedota  que os idiotas dos europeus contam uns sobre os outros...

Havia várias células, clandestinas, da resistência francesa em Dachau.  O tio Ortiz fazia parte  de uma. E, depois de ganha a confiança dos SS, começou a guardar as sobras das refeições  e reparti-las pelos seus camaradas que por sua vez também as faziam chegar aos mais fracos e doentes.

− A imaginação, a capacidade de resistência e  abnegação do ser humano, mesmo em situações-limite como a guerra, a prisão, o campo de concentração, o terminal da morte, levam-me a pensar que às vezes nós, homens, que nunca seremos seremos deuses, também somos capazes de nos transcender e atingir, mesmo que por breves instantes, o estatuto do herói grego...

E conclui o meu pensamento:

−  O seu tio Ortiz foi um herói.

O esquema funcionou até meados de 1944. Quando foi descoberto (ou denunciado?), o tio Ortiz foi sentenciada com a pena capital, sem apelo nem agravo, pelo comandante do campo. Foi executado no dia seguinte para exemplo dos outros presos. Deram-lhe apenas a escolher (!)... entre a forca e o fuzilamento.

− Resistiu até ao fim, no limite das suas forças, da sua inteligência, da sua coragem. E, apesar da tortura, não terá denunciado ninguém... Morreu com grande dignidade, como poucos, gritando perante o pelotão de fuzilamento: Vive la liberté, l'égalité et la fraternité!... Vive la... France! [Viva a liberdade, a igualdade e a fraternidade!... Viva a... França!]

E, emocionada, a Manuela concluiu:

− Tenho orgulho no meu tio Ortiz!

[Por razões óbvias, o nome da minha interlocutora, que ainda está viva,  é fictício. LG]

___________

Nota do editor:

terça-feira, 28 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23390: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXV: Teruel, Aragão, Espanha, 2017




Teruel, Aragão, Espanha, 2017



[ António Graça de Abreu, foto à esquerda:  (i) docente universitário reformado, escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); (ii) natural do Porto, vive em Cascais; (iii) autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); (iv) ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 310 referências no blogue; (vi) texto e fotos enviados em 16/6/2022 ]


Teruel, Aragão, Espanha, 2017

por António Graça de Abreu (*)


Por dentro um do outro
Caminham os amantes,
Desenham com seus pés
Novas rotas navegantes.


Jacques Plante, adaptação Dulce Pontes


Venho no meu coche de prata, subindo e descendo montes, das terras da Catalunha para as de Aragão.

Gosto do nome do burgo, Teruel, assim a modos do voltear de um passo de dança. Chego de mãos abertas na brisa do fim do Verão de 2017. A cidade suspensa em terraços a dardejar ao sol abre-me os braços, as torres mudéjar, S. Pedro, S. Martin a passear no clarão do céu, as ruelas íngremes e tortuosas a serpentear por entre o casario.

Por aqui, há dez séculos, pelejavam mouros e cristãos, Depois, castelhanos, aragoneses, franceses, espanhóis, franquistas, republicanos, todos em guerra. Quanto ódio, quanta luta, quanto sangue! Hoje, a pequena Teruel quase vazia, ocre e verde, recortada num horizonte azul, cintilando em paz nos olhos do quase entardecer.

Entro na igreja de S. Pedro. Na capela, dois túmulos, duas estátuas jacentes. São Juan Diego de Marsilla e Isabel de Segura, No distante século XIII desciam separados a encosta e encontravam-se em segredo no verde do fundo do vale, sob choupos e ulmeiros. A terra, o musgo, a erva brava eram o aconchegado leito dos amantes que adormeciam enredados em prazer e ternura, cobertos por mantas de nuvens e pedaços de céu.

Quão difícil um amor tão puro! Diego era de família nobre mas arruinada, empobrecida. Isabel era filha de poderosos, senhores de feudos em Segura e Aragão. A Diego deram cinco anos para conseguir fama e fortuna. O rapaz regressou, rico e famoso mas Isabel era agora a triste esposa de um dos fidalgos da cidade. Diego morreu de desgosto, o coração trespassado pela mágoa. No dia seguinte encontraram Isabel morta.

Hoje, sete séculos depois, na penumbra da pequena capela, dois túmulos, duas estátuas jacentes, a pedra doce onde moram os poetas, 
Juan Diego de Marsilla e Isabel de Segura, ainda de mão dada.

António Graça de Abreu
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 31 de maiode2022 > Guiné 61/74 - P23316: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXIV: Pisa, Toscana, Itália, 2014

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23389: A galeria dos meus heróis (45): uma história pícara de três “a(r)didos” - Parte I (Luís Graça)

 

Lourinhã > Zambujeira e Serra do Calvo > 25 de fevereiro de 2018 > "Homenagem da Zambujeira e Serra do Calvo aos seus combatentes"... Monumento inaugurado em 5 de outubro de 2013, numa iniciativa do Clube Desportivo, Cultural e Recreativo da Zambujeira e Serra do Calvo.

Desconhece-se o autor do painel de azulejos que representa a partida, no T/T Niassa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, de um contingente militar que parte para África. Ao canto inferior esquerdo a quadra: "Adeus, terras da Metrópole / Que eu vou pró Ultramar /, Não me chorem, mas alegrem [-se], / Que eu hei-de regressar"... No chão, em calçada portuguesa, lê-se: "Em defesa da Pátria". Abaixo do painel, há um livro metálico com os nomes de todos os nossos camaradas, naturais das duas povoações vizinhas (hoje praticamemte ligadas), que combateram no Ultramar.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O autor, Luís Graça> Guiné, região de Bafatá, Contuboel,
c. junho de 1969


A galeria dos meus
heróis: uma história
pícara de três
“a(r)didos” - Parte I

 

por Luís Graça (*)






1. Eram três “desterrados”, ali, na Calçada da Ajuda, em Lisboa, no Depósito Geral de Adidos (DGA).

O quartel dos Adidos, criado no princípio dos anos 60, era uma espécie de “placa giratória” e “albergue espanhol” onde os militares do nosso exército de então, das diversas armas, de rendição individual, faziam tempo enquanto aguardavam a “guia de marcha” e a “ordem de embarque” para o ultramar.

Na época dizia-se “ultramar” e não “guerra”, e muito menos “guerra colonial. Era um eufemismo, ou então um questão de pudor, hipocrisia social ou até mesmo autocensura. Na realidade, o país não estava em guerra contra nenhuma potência estrangeira, mas parecia ser diabolizado por meio mundo (os países do chamado "terceiro mundo" mais os do bloco soviético ou comunista e até alguns "amigos ocidentais", como os países nórdicos). Sopravam, então, os "ventos da História"...

Em suma, "ir para o ultramar" significava, para a nossa geração, ir para a guerra, em Angola, Guiné e Moçambique.

Os três “desterrados” acabariam por ir comigo, em 24 de maio de 1969, por sinal num sábado, no T/T “Niassa”, com destino à Guiné. “Pior não nos podia caber na rifa”, concordavam tacitamente os três. Ou melhor, ou quatro, se eu me incluir no grupo.


2. Conheci-os, por mero acaso, no bar da classe turística do navio, misto de carga e passageiros, da carreira colonial, requisitado pelo exército para transporte de tropas. (Tinha pouco mais de 10 mil toneladas de arqueação bruta, e media centena e meia de metros de comprimento, da proa à ré, ou seja, umcampo de futebol e meio.)

Acabei por estabelecer com eles uma relação circunstancial de alguma cumplicidade e camaradagem, mesmo que depois nunca mais tenha sabido deles, quando cada um foi para o seu destino. (Ainda estaremos juntos dois ou três dias no Depósito de Adidos, em Brá, Bissau:)

O navio ia sobrelotado, éramos mais de 1700 homens, dos quais duas centenas de sargentos. Tínhamos cinco dias de enjoos e de tédio pela frente. E sobretudo de muita incerteza quanto ao nosso futuro.

Na realidade, sabíamos muito pouco daquele território, a então Guiné Portuguesa. E muito menos do que nos poderia esperar, com a guerra a entrar no seu 9º ano. A única exceção era o 2º sargento Parente (nome fictício), que já lá tinha estado por volta de 1961/63. Como ele dizia, com graça e ironia, “assistira aos ensaios e ainda à estreia da peça”, referindo-se à guerra que, oficial ou oficiosamente, teria começado a 23 de janeiro de 1963, com o atalabalhoado ataque ao quartel de Tite, na região de Quínara. (Na realidade, a guerra "surda e suja", já tinha começado muito antes. mas isso é outra história.)

Os “ensaios”, a que se referia o Parente, seriam os clássicos exercícios, em qualquer guerra de tipo subversivo, que passavam pelo aliciamento de (e terror sobre) as populações, pelas sabotagens (destruição de infra-estruturas, como pontões, postes telefónicos, abatizes nas estradas, etc.), pela preparação e organização político-militar da guerrilha, etc.

O sargento era um alentejano de Barrancos, terra de que eu nunca ouvira falar antes, perdida (vi mais tarde no mapa)  numa ponta da fronteira com a Espanha. Afinal, ficava mais perto de Badajoz do que de Beja, a capital do Baixo Alentejo, como comprovarei, muitos anos mais tarde, quando lá for de propósito para conhecer a terra, na véspera das festas em que havia touros de morte, mas a que eu não quis assistir.

Era um tipo simpático, afável, folgazão, brejeiro, bom conversador, com um sotaque que ele procurava disfarçar. Tinha "pinta de malandro"... E sobretudo era um “excelente copo”, o que naquela época tanto poderia querer dizer “bebedor excessivo” como “bebedor social”. Em África, todos nos iríamos, de resto,  tornar “excelentes copos”, destilando uísque  e água de Perrier por todos os poros, embora outros preferissem a cerveja. Na verdade, não há guerras sem álcool (ou outro tipo de droga).

O Parente, um das três dezenas de militares do Depósito Geral de Adidos, que viajavam connosco no “Niassa” (navio que levava diversas companhias ditas “independentes”, como a minha, incluindo uma companhia de polícia militar onde se integrava um soldado condutor que viria mais tarde a tornar-se secretário-geral do PCP – Partido Comunista Português), estava destinado a um pelotão de morteiros ou de canhão sem recuo, já não posso recordar.

Tinha feito duas anteriores comissões de serviço (outro eufemismo), a primeira na Guiné, altura em que “meteu o chico”, e uma segunda em Angola (como voluntário). Foi no regresso da Guiné que tirou a especialidade de armas pesadas de infantaria. Deu, entretanto, instrução, como monitor,no CISMI,  em Tavira, muito antes de eu também por lá passar (no último trimestre de 1968).


3. Já conhecia, pois, o território guineense, mas em 1961/63 não se podia falar ainda em “guerra a sério” (outro eufemismo, como se houvesse guerras a brincar!)… Para o final da comissão, em meados de 1963, o Parente já tinha a clara perceção de que “a coisa ia ficar preta”, queria ele dizer "feia", sem qualquer conotação racista.

Foi nessa altura que as nossas tropas terão acionado a primeira mina anticarro (na realidade um fornilho), na estrada São João-Fulacunda, na região de Quínara, de que resultarão ferimentos graves (e depois a morte) de um furriel cabo-verdiano ou açoriano, seu conhecido. 

 Além das minas, o Parente receava o armamento pesado de que o PAIGC passou a dispor, ao longo do tempo, incluindo “morteiros 82 e 120, canhões sem recuo 75 e 82” (e, mais tarde, em novembro de 1969, foguetões 122 mm).

Todavia, na época em que ele lá esteve, o episódio “mais cruel” de que se lembrava fora quando a nossa tropa chegara a uma tabanca da região de Quínara, abandonada pela população sob a pressão da guerrilha (ele raramente usava o termo, depreciativo, “turras”), no decurso de uma operação para “instalar lá uma força nossa”, um destacamento. Ou mais provavelmente, naquela época, ter-se-á tratado de um patrulhamento ofensivo, Entraram sem qualquer resistência, o único ser vivo com que depararam, no meio de palhotas calcinadas pelo fogo, era um cego, de etnia biafada.

Um dos alferes fez-lhe, por intermédio de um intérprete (e guia local), um interrogatório sumário. O pobre diabo, aparentemente ali deixado pela população em fuga, respondeu a tudo, e até deu pormenores descritivos que levaram alguns militares a desconfiar da sua cegueira… Não se trataria de um “falso cego”, deixado ali pelos “turras”, na margem direita do rio ou canal, frente à decadente cidade de Bolama (antiga capital até 1943), para despistar os “tugas”?

Mas o homem, de idade indefinida, era mesmo cego. Provavelmente sofria da cegueira dos rios, adiantou o furriel enfermeiro que tinha tido, em Coimbra, umas luzes sobre doenças tropicais. Ninguém sabia o que era a “oncocercose”, nem sequer o capitão, que pertencia ao batalhão sediado em Tite.

O interrogatório foi inconclusivo, o alferes não teve necessidade de usar de violência, verbal ou física, para com o desgraçado que se mostrara “colaborante”. E estava para o mandar embora, quando o capitão da força, não estando pelos ajustes, atalhou:

− O nosso alferes fez o seu trabalho. Eu, agora, como juiz, faço o meu. … Ouvi as duas partes. O homem é cego, ou parece sê-lo, mas não é surdo nem muito menos mudo… O que é que ele irá dizer sobre a nossa tropa quando os “turras” voltarem a encontrá-lo e lhe apertarem os calos ?... Vai dar à língua, está-se mesmo a ver…

Fez-se um silêncio de morte à volta do capitão e do cego. Mas não houve tempo para mais “perguntas e respostas”. Havia nervosismo no semblante dos milícias, que pressentiam a presença do inimigo, algures, não muito longe dali, na orla da bolanha ou da mata. O capitão deu de imediato a sua sentença:

− O nosso cabo A… − e apontou para um possante milícia, que empunhava uma catana − sabe o que tem a fazer. Leva-o a dar uma volta até ao rio, dá-lhe um encosto e o suspeito vai fazer companhia aos crocodilos… É, afinal, uma obra de misericórdia.

E ameaçou:

− E, psst!,  não quero barulho!

E ao que parece, ninguém tugiu nem mugiu.

O Parente registou esta cena e arquivou-a no fundo da memória. Numa noite de animada conversa e muito uísque, já ao largo das Canárias, com mar encapelado, falou deste e doutros “faits divers” (sic) da guerra… E repetia, tamborilando com os dedos na mesa, as palavras do capitão:

− O gajo era cego, mas não era surdo, nem muito menos mudo…


4. Os três eram de rendição individual, razão por que se haviam conhecido, umas semanas antes,  nos “Adidos”, na Calçada da Ajuda… “A(r)didos”, emendava, sarcástico, o furriel miliciano, o “Matosinhos” que conhecia, pela primeira vez, a “capital do império”.

− A(r)didos, f... e mal pagos! − gozava ele, com o pagode.

Já não me lembro do seu nome, ao fim destes anos todos. Sei que era de Matosinhos, filho de pescador, e que a mãe era vendedora de peixe, ambulante. “Varina” ou “ovarina”, oriunda de Ovar. Não escondia o seu sotaque nortenho nem as suas “humildes raízes populares”. Mas quem era “conde, marquês ou duque” ali, naquela “caixa de sardinhas”, anfíbia, a caminho da Guiné ?! − ironizava o Parente.

O “Matosinhos” estava destinado a uma companhia de caçadores, instalada no sul, na região de Tombali, disse-me o nome da localidade, que não fixei de todo. E dessa subunidade só sabia o SPM, o código do correio militar. Ao longo da viagem foi escrevendo aerogramas e aerogramas de saudade, para a família, a namorada, os amigos...

Na época todos os topónimos da Guiné eram exóticos, para nós, “periquitos”, mas havia alguns mais falados do que outros quando chegámos a Bissau: Madina do Boé, Gandembel, Guileje, Choquemone, Morés…

O “Matosinhos” estava apreensivo, tal como todos nós, pela sorte que lhe coubera, para mais tratando-se do temível sul da Guiné. Além disso, era de operações especiais (e de pouco lhe valeu ter ficado bem classificado), e ainda por cima com o curso de minas e armadilhas tirado em Tancos. “Não podia ser pior, carago!”, brincava ele connosco na popa do navio, fustigado pelo vento e pela espuma das ondas.

O terceiro dos “a(r)didos” era outro furriel miliciano, atirador de infantaria, como a maior parte do pessoal embarcado. Julgo que ia render alguém que “lerpara em combate” (sic), na região do Cacheu (“lerpar” era outro termo da gíria da tropa que cedo nos habituámos a ouvir e repetir). 

Também não me lembro do seu nome. Chamemos-lhe o “Algarvio”. Passara igualmente por Tavira, no mesmo turno que eu, mas pertencíamos a companhias de instrução diferentes. Seguramente que nos cruzámos várias vezes, dentro e fora do quartel, mas sinceramente não me lembrava da cara dele. 

O “Algarvio” fazia, entretanto, a meu pedido, o retrato-robô do “Matosinhos” nestes termos:

− Olha, é um gajo ‘reguila’, com piada, com muita ‘lata’, talvez um pouco ‘desbocado’ para o meu gosto… Como sabes, a malta do sul não diz asneiras…

Eu, de vez em quando, desenfiava-me da minha mesa e do convívio com os meus camaradas de companhia, e juntava-me aos três "a(r)didos, a quem achava alguma piada. Estávamos os quatro a aprender a geografia (e a etnografia) da Guiné através da consulta de uma pequena brochura que nos deram na hora da partida, e onde havia um minúsculo mapa com as principais regiões e localidades da Guiné.

Lá estava Contuboel, acima de Bafatá, não longe da fronteira com o Senegal, que seria o meu poiso durante cerca de mês e meio, segundo informação do capitão da minha reduzida companhia (éramos uns sessenta gatos pingados, metropolitanos, entre graduados e especialistas, que se deveriam juntar, em Contuboel, a uns cem soldados guineenses, fulas, do recrutamento local, que haviam acabado, em abril de 1969, de jurar bandeira, diante do “homem grande de Bissau”).

O 2º sargento Parente era o nosso professor, embora ele só conhecesse Bissau e arredores, Bambadinca e Bafatá na zona leste, bem como a regão de Quínara e a bacia hidrográfica dos rios Geba e Corubal, até ao Saltinho. Faltava-lhe conhecer as zonas talvez “mais quentes” da guerra, as regiões do Cacheu e do Oio, a Norte, e de Tombali, a sul.

− Mas em terra de cegos, quem tem um olho, é rei – gostava ele de repetir, gozando connosco, “periquitos”.

Via-se que tinha um “natural ascendente” sobre os outros dois “a(r)didos”, como eles se tratavam uns aos outros na galhofa. Não só era o mais velho (ia fazer 30 anos, e já com duas comissões), como tinha um posto acima e, sobretudo, conhecia Lisboa. Apesar de alguma deferência, o “Matosinhos” e o “Algarvio” tratavam o 2º sargento por tu, o que não era então prática corrente, mesmo entre a classe de sargentos, e muito menos entre oficiais e sargentos milicianos. 

− Cada macaco no seu galho! − lembrava o Parente, sarcástico.

Curiosamente, o Parente não se mostrava próximo dos outros sargentos, e muito menos dos 1ºs sargentos, alguns dos quais ele seguramente devia conhecer, pelo menos de vista.  A "chicalhada", como dizíamos, alguns de nós, milicianos, que cultivávamos o humor de caserna.

Nada tinha de “chicalhão”, o Parente, pensei eu cá com os meus botões. E até comecei a simpatizar com ele. Pelo decorrer das nossas conversas, ao longo daquela viagem ("o cruzeiro das nossas vidas”) , comecei a aperceber-me que ele, tal como eu, não morria de amores por Spínola e torcia o nariz à evolução dos acontecimentos político-militares da Guiné. Eu não gostava de Spínola pelo seu passado de leal servidor do salazarismo e pelos seus tiques prussianos, a começar pela sua pose (que só conhecia, e mal,  da RTP).


5. Era inevitável falarmos da tragédia, ainda recente, ocorrida em 6 de fevereiro de 1969 no rio Corubal, que custara a vida a quase uma meia centenas de militares. Ninguém sabia pormenores, só o que a censura autorizara que se soubesse através dos jornais, da rádio e da televisão. Eu estava nessa altura no BC 6, em Castelo Branco, a dar instrução de recrutas, enquanto aguardava também o momento da ordem de mobilização para o ultramar, o que viria a acontecer na véspera do sismo  de 28 de fevereiro de 1969... (Era a única certeza que eu tinha então na vida, a de que seria mobilizado muito em breve, só me restava saber para onde, Angola, Guiné ou Moçambique.)

O Parente garantia que tinha sido um “acidente” com uma jangada. O “Matosinhos” julgava saber algo mais, e falava-nos da retirada de um quartel, Madina do Boé. Era também o que eu sabia. Mas insinuou que o pessoal da jangada, sobrelotada, com excesso de peso, se terá desequilibrado e caído ao rio, quando se ouviram disparos de morteiro que terão vindo “do interior da mata” (sic).

− Onde é que ouviste ou leste isso ?

− Na rádio “Voz da Liberdade”, que emite de Argel…

− Também eu sintonizei a rádio Argel, na altura, mas não me lembro desse pormenor…− comentei eu, cético.

− Seja como for – atalhou o Parente – foi uma meia centena de camaradas nossos que não regressaram a casa… nem muito menos no caixão de chumbo.

− Para mim – acrescentei eu – o Spínola ficou mal na fotografia, um acidente desta gravidade não podia (nem devia) ter acontecido. Imaginem o rombo que provocou no moral da nossa tropa! Lá e cá…  Eu fiquei abalado, confesso...

− Já não o apanhei em Angola, esteve lá antes de mim – disse o Parente, referindo-se ao Spínola. – Mas contavam-se histórias de bravura (e de crueldade) do seu batalhão… Nunca fui de ‘emprenhar’ pelos ouvidos. Nem de pôr rótulos em ninguém… Vou dar-lhe o benefício da dúvida. De qualquer modo, vai ser (ou já é) o meu comandante-chefe.

− O nosso com-chefe, segundo a ordem de serviço que eu li… − completei eu.

− Quando lá chegarmos, logo veremos. Parece que lhe chamam o “Caco Baldé” e é agora muito amigo dos africanos… É também o terror de todos os oficiais superiores que não sejam da arma de cavalaria… A todos os que se mostrem fracos comandantes, e incompetentes, põe-lhes logo um ‘par de patins’ (como se diz em Bissau) e manda-os para casa, o que para alguns até será uma bênção, senão mesmo um prémio!... Isto pelo que me contam alguns sargentos com quem falei, e que já estiveram sob as ordens do general Spínola… − arrematou o Parente.


6. Do Parente vim a saber algo mais, já que me interessava a história de vida, por muito insignificante que fosse, daqueles homens que iam para a Guiné comigo. Mas nós cumpríamos o serviço militar obrigatório, e íamos contrariados para a Guiné. Pelo contrário, aquele homem escolhera a tropa como profissão. Como tantos outros, de resto, quer sargentos quer oficiais do quadro permanente.

Não foi difícil perceber que ele “metera o chico” para fugir à miséria e ao abandono daquelas terras raianas do Alentejo. Não escondia que aprendera, cedo, a sobreviver graças ao pequeno contrabando transfronteiriço numa altura, no pós-guerra, em que o escudo de Salazar “valia mais” do que a fraca peseta do Franco. Aprendeu a ganhar uns tostões nas barbas da GNR, da Guarda Fiscal e da Guardia Civil.” Desde puto, aprendi a lidar com o medo”, confidenciara-me ele.

Pelo que apurei das nossas conversas avulsas, ao longo daqueles cinco dias (e cinco noites) que durou o “nosso cruzeiro”, a família do pai refugiara-se em Barrancos ou num “pueblo vecino”, aquando do início da guerra civil espanhola, em 1936. Ele, o Parente, viria a nascer uns anos depois, por volta de 1940, filho de mãe portuguesa. Foi, entretanto, batizado e registado como português.

O pai, sem ofício certo, e sem grande jeito para o contrabando, acabaria por assentar arraiais em Badajoz, atraído pela boémia, a “fiesta” e os “trajes de luces”. No entanto, morreria cedo, de “soledad y cirrosis hepática”, nunca tendo chegado a pisar a arena como bandarilheiro de verdade, tal como havia sonhado quando era novo. Creio que ele era da Estremadura espanhola.

Com uma bolsa de uma confraria religiosa, que amparava viúvas e órfãos de toureiros e outros artistas tauromáticos, o filho (não sei se tinha mais irmãos) ainda conseguiu estudar num colégio de padres, jesuítas, em Badajoz, onde vivia com a mãe, criada de servir num “hostal”, não longe da praça de touros. Mas seria expulso, aos dezasseis anos, por alegadas ofensas ao bom nome e à honra do generalíssimo Franco, “caudilho de España, por la gracia de Dios”.

Alguém, certamente um “bufo”, o terá ouvido cantarolar ou dizer, no páteo do recreio, numa roda de colegas de turma, umas “coplas”, brejeiras mas de teor pública e notoriamente antifranquista, do tempo da guerra civil, e como tal proibidas em Espanha na altura… A cantilena, “Ay, Carmela!”, rezava assim:

“La mujer de Paco Franco / No cocina com carbón,/ Ay, Carmela, ay, Carmela ,/ Pues cocina com los cuernos / De su marido, el cabrón…/ Ay, Carmela, ay, Carmela”.

Denunciado, chamado ao reitor (para mais um conhecido falangista da cidade), o jovem Parente protestou, em vão, a sua inocência, alegando nem sequer  quem era o tal Paco Franco… 

Voltou com a sua mãe a Barrancos. A “pobrecita” ficou desolada pela “vergonhosa” expulsão do filho, que “se tivesse tido sorte na vida” (sic), bem poderia ter chegado a ser um grande seguidor do Inácio de Loyola.

Regressaram, ambos, com uma mão à frente e outra atrás.. Mas, antes da tropa, o Parente ainda andou por Lisboa. Conheceu um galego que lhe dei a mão, tinha um tasco (com carvoaria) no Bairro Alto, famoso pelas suas "iscas com elas"... Arranjaria depois um emprego como paquete ou moço de recados na redação de um dos jornais diários que lá tinha as suas instalações. Talvez o “Diário de Lisboa” ou o “Diário Popular”, já não sei ao certo. Chegou a levar aos serviços de censura as provas tipográficas do jornal. Fez conhecimento e amizade com alguns dos melhores jornalistas da época. E, claro, arranjou uma miúda, na rua da Atalaia, a “Sissi”.

Mesmo depois da tropa e da 1ª comissão, de passagem por Lisboa, visitava-a sempre que podia e ela estava “livre”. Era uma “rapariga da vida” (sic) que, mais tarde, já depois da extinção das casas de passe em 1963, haveria de montar o seu próprio negócio.

No final dos anos 50, e até à tropa,  fora ele o seu “faia”, o seu “fadista”. E reaprendeu a usar a “naifa”, dos tempos do contrabando, para se precaver das investidas traiçoeiras da “fauna da noite”. Ainda conheceu o Bairro Alto no tempo em que não era lá muito recomendada a sua frequência, sobretudo à noite, a “meninos de coro”. E ainda conheceu os calaboiços do Governo Civil mas, “felizmente” (sic) nunca chegou a ter cadastro, o que o impossibilitaria, legalmente, de concorrer à carreira militar.

Para mim, era uma sargento “atípico”, pelo pouco que eu ainda conhecia da classe de sargentos do quadro permanente.

− Há três sítios onde gosto de parar e entrar, quando vou na rua: a igreja, a tasca e a livraria… É uma hábito que me vem do tempo em que vivi em Espanha. O meu pai, que era supersticioso como toda a gente da ‘afición’, ensinou-me certas coisas, algumas delas a respeito destes três sítios, também para ele, ‘sagrados’, para além da ‘arena’… 

E depois de mais um gole de uísque, adiantou:
− A ‘arena’ deixei-a de frequentar, desde que o meu pai morreu e eu vim a saber que  as arenas tinham sido num passado recente, locais onde foram fuzilados milhares de espanhóis, durante e depois da guerra civil, coisa que só soube quando li, com emoção, no “Diário de Lisboa”, muitos anos depois, as reportagens de Mário Neves sobre os massacres de Badajoz em 1936…

Confesso que me surpreendeu ouvi-lo, certa noite, dizer alguns poemas do Frederico Garcia Lorca e do Pablo Neruda. Dizia muito bem, ao modo teatral do João Villaret, de cor, e quase por  inteiro (!), o espantoso “Llanto por Ignacio Sánchez Mejías”, depois de molhar a garganta com um uísque duplo:

A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte y sólo muerte
a las cinco de la tarde. (…)

(Continua)

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Nota do editior:

(*) Último poste da série > 19 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23094: A galeria dos meus heróis (44): O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... Um filho de pai ausente, que foi quase tudo na vida, não se achava mau ator de todo mas que, afinal, não sabia como sair de cena... (Luís Graça)