Mostrar mensagens com a etiqueta Estórias do Juvenal Amado. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Estórias do Juvenal Amado. Mostrar todas as mensagens

domingo, 29 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20510: Estórias do Juvenal Amado (63): Galomaro, 1972 - Outros Natais

1. Em mensagem de hoje, 29 de Dezembro de 2019, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias, esta passada no Natal de 1972.


OUTROS NATAIS

O Natal é uma época que traz ao de cima o que há melhor de nós e em que temos a sensibilidade mais à flor da pele.
É ponto assente.

Somos assaltados por recordações de Natais passados, diferentes, saborosos tendo em conta, que éramos mais jovens, onde muitos dos nossos entes queridos participavam e hoje são só recordação e saudade.

O consumismo e as televisões emboscadas espreitam para dentro das nossas compras divulgando o que compramos e o que vamos comer e por vezes onde o vamos comer.
As tragédias dos outros e para as quais não haverá nunca remédio, são sempre bem assunto para se escarrapachar se bem, que daí nada resulte na mudança da vida dessas pessoas para além dessa noite.

Para mim é um exercício marcado pela extrema falta de respeito para com os visados, que estão sós nessa noite da família. As razões que levaram à rua estas pessoas por vezes de extratos sociais bem diferentes, não são facilmente catalogados, embora nesta época se olhe para eles de forma diferente e haverá quem nunca olha para eles senão nesta altura. Mas fazer alguma coisa por eles também serve de expiação, conforta-nos, dá-nos uma visão de dever cumprido, quando afinal as nossas escolhas no tipo de sociedade cada vez mais desumanizada e materialista onde duvidamos cada vez mais das intenções dos outros, provocam essa mesma exclusão.
Diz-se que fazer algo pelo nosso vizinho ajuda a mudar o Mundo, pelos resultados é o mesmo que acreditar, que uma borboleta bate as asas na Ásia e provoca uma tempestade no Continente Americano.

Celebramos o nascimento de um menino pobre, perseguido e também refugiado, que os pais procuraram segurança para ele noutro país. No fundo é o que procuram os refugiados de todo o Mundo e, é doloroso defendermos esses valores e aplicarmos outros, condenando milhares de seres a vidas miseráveis à separação e à morte. Os meninos daquela terra, bem como de outras terras, continuam a ser perseguidos e mortos, perante a indiferença dos poderes vigentes, pese as grandes intenções nas palavras comovedoras dos discursos de ocasião.

As razão das migrações são profundas, talvez não seja o local indicado aqui para se aflorar o tema, se bem que ninguém é dono da razão absoluta e seria frutífero que cada um pensasse no assunto longe dos comentários facebookianos.

Após este intróito passo a contar uma história com 47 anos e da qual só tomei conhecimento neste ultimo dia de Natal.

********************

Estávamos Galomaro em 1972, tinha sido um ano ruim para o nosso Batalhão com mortos no Saltinho e Cancolim, e a CCS do 3872 também não tinha escapado, pois em Novembro tivemos um morto numa mina, passado uma semana outro por doença e mais uma semana um ataque ao arame felizmente sem consequências graves para nós.

Era segundo Natal à porta longe das nossas famílias e ainda não sabíamos que lá passaríamos outro.
O Furriel Sapador Fernandes estava de regresso das suas férias e de que se havia de ter lembrado em boa hora? Já que não tinha levado muita roupa e também não precisava de trazer pensou:
- E seu levasse alguma coisa de diferente para a malta?
Se assim o pensou melhor o fez e dirigindo-se a uma mercearia fina que havia em Mangualde, resolveu comprar frutas cristalizadas, pinhões, amêndoas, avelãs etc, ingredientes com os quais se confecciona o bolo-rei tão apreciado e tão ligado às nossas tradições natalícias.

Falou com o nosso Furriel Enfermeiro Graça, que estava ligado familiarmente ao ramo da panificação, que lhe deu algumas indicações e conselhos de como se fazia o afamado bolo.

E assim, no dia combinado com o padeiro Léo, que não faço ideia como é que foi ocupar esse posto uma vez que era carteiro na vida civil e na tropa pertencia ao Pel Rec. Sem desprimor para nenhum padeiro ele era excelente a confeccionar uns pães individuais, que para além de serem bem saborosos, nas sandes vendidas na cantina, acompanhavam as rações de combate e evitavam o desperdício, que acontecia com o pão grande que a malta do miolo fazia bolas para atirar uns aos outros.

O Léo disse que dava bem para mais de uma dúzia de bolos-reis o que encheu de satisfação o Fernandes.
Às escondidas pela noite dentro, o Furriel Sapador, que nada percebia de fazer pão, acabou como pasteleiro a confeccionar bolo-rei, que como se bem se sabe não é para todos.

E que bolo maravilhoso.
Sabia a tudo que tínhamos cá deixado, lembrava o perfume das nossas casas, transportava-nos para uma realidade bem diferente. Tudo mercê da inspiração de quem pensou nos cento e muitos homens naquele pontinho do Mundo, quando resolveu trocar outras coisas da maleta da TAP por aquela ideia solidária, que faz de nós camaradas mais que irmãos, como tão bem descreve o escritor António Lobo Antunes.

A surpresa foi geral, a felicidade estampada nos nossos rostos deve ter sido a melhor prenda que aquele jovem furriel, que também escondia uma apuradíssima sensibilidade, acusado de ser tão exigente com os seus soldados recebeu na vida.

Como eu, penso que a grande maioria não soube até ontem e se de facto se temos sabido naquela hora como bem diz o nosso camarada Luciano (ex-TRMS), o tínhamos atirado ao ar e carregado em ombros.

O nosso comandante também não escapou à satisfação geral e desconfiando da fartura, mandou chamar o Fernandes para saber como raio tinha sido aquilo feito? Ele contou-lhe e perguntou-lhe se tinha gostado. O rosto do Coronel José Maria de Castro e Lemos alargou-se num grande sorriso (coisa rara nele) disse que tinha sido a melhor prenda de Natal da sua vida.

Nunca mais me esqueci, mas só agora sei a verdadeira história e não resisto a contar o segredo daquela noite mágica em que aconteceu o milagre de bolo-rei na ceia de Natal em Galomaro, na zona Leste da Guiné, o que prova que o Natal não é só quando um homem quer, mas especialmente como o quer, e a prova disso foi o Fernandes fazer a diferença.

Um abraço

PS: - Pedi a devida autorização ao Fernandes, que para além de excelente fotografo é caçador inveterado e continua a exercer a profissão de topografo para além de cultivar amizades.

Bem haja por tudo.
Juvenal Amado


O Fur Mil Sapador António Maria Fernandes com o resultado de uma caçada

 O Fur Mil Sapador António Maria Fernandes com o 2.º Sarg Silva da "Ferrugem"

O Fur Mil Sapador António Maria Fernandes com o Pelotão de Sapadores. É o primeiro à direita, de pé.

Fur Mil Sap António Maria Fernandes com os Fur Mil Claudino, Sousa e Marques, e 2.º Sarg Silva

 Fur Mil Enfermeiro Graça

O famoso bolo-rei num prato

Além dos camaradas já ref. está também o Pereira Nina da Liga que me parece ter começado o processo da minha ida lá

O 3872 presente. Pereira, Dulombi; Alcains, CCS; Juvenal Amado; João Romano, Saltinho e Cansamba; Fernandes e Luciano, CCS
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19029: Estórias do Juvenal Amado (62): O Vilela, num conto com bolinha vermelha

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P19029: Estórias do Juvenal Amado (62): O Vilela, num conto com bolinha vermelha

Alcobaça vista do Castelo


1. Em mensagem de 17 de Setembro de 2018, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias, esta a do Vilela.


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

62 - O VILELA - NUM CONTO COM BOLINHA VERMELHA

O Vilela era o rapaz do nosso grupo, amigo das paródias, dos matraquilhos dos bailaricos. Adorava anis escarchado e um dia, pregamos-lhe um piela em minha casa. O problema foi quando o foi preciso leva-lo a casa pois tinhas as pernas que pareciam gelatina e não se punha em pé de maneira nenhuma. Quando finalmente o conseguimos levar, a mãe só faltou bater-nos para além dos nomes que nos chamou.

Aprendiz de alfaiate, viu-se impedido de acompanhar os pais que se mudaram para a América, uma vez que estava na idade militar, e assim despediu-se da mãe chorosa e do pai emocionado, porque os homens que eram homens não choravam, e por cá ficou, não sei se me recordo bem mas tenho ideia de que assentou arraiais em casa de familiar próximo.

A partir daí o herói deu-se a ares de magnata e nunca mais parou de exibir belos fatos com colete a condizer, sobretudos e botas que se usavam naquele tempo, à moda dos Beatles. Quem daquele tempo não se lembra das cobiçadas botas com bocadinho de cano e biqueira muito fina, que ficavam a matar com as calças à boca-de-sino. Era rara a semana que não aparecia com uma “encadernação” nova.

Eu, os Pedrosas, o Rego, o Joaquim e José António, todos os dias tínhamos ponto de encontro no café Portugal, onde ele sobressaía mais parecendo o Al Capone e nós os acólitos, mas ele era cómico e nós riamo-nos com as coisas que fazia e dizia.

Está claro que deixou de trabalhar e o dinheiro era como quem abana a árvore das patacas, não parava de chover, porque aos seus pedidos os pais talvez com peso na consciência por o cá ter deixado, abriam os cordões à bolsa no vão intento de que a sangria parasse, que a tropa o viesse buscar rapidamente e desse um fim ao calvário porque passavam, afastados do seu menino que custava os olhos da cara e muitas horas extraordinárias nos empregos que arranjaram lá nos states.

Por cá o Vilela acabou por se indispor com o familiar onde se hospedara e, como os dólares pingavam sempre, hospedou-se nos Corações Unidos, a melhor pensão de Alcobaça, por onde passava toda a gente que era gente, que visitava a linda vila, desde industriais e artistas, músicos e até engates de caixeiros viajantes.

O Vilela estava na maior. Passava dos pedidos de roupas para um anel visto numa ourivesaria, ou para uns óculos Ray-Ban que lhe trouxeram da base americana das Lajes nos Açores, é que lhe faziam muita falta porque cá havia muito Sol. Pudera era só escrever a pedir à mãe, que lá vinham os benditos dólares que não tardou a queixar-se sem grandes resultados.

Assim o grupo de amigos acabava por olhar para a situação com algum misto de incredulidade e não foram poucas as vezes que lhe dissemos que talvez devesse parar com aquilo. Nada feito, dos gastos com roupa e sapatos passou ao gosto desenfreado pelos jogos de alcova, tornando-se assíduo em certo estúdio de fotografia, que o dono transformava em bordel algumas noites por semana. Ora o nosso Vilela parecia um catraio numa loja de doces e passou a assediar o proprietário para que arranjasse mais “meninas”. Vivia num frenesim, o seu aspecto cuidado passou a apresentar algum desleixo, bem como um ar cansado e a rarear nos convívios com o grupo.

Uma bela noite o Rego bateu-me à porta com um ar suspeito a pedir-me para ir com ele, pois o Vilela precisava de ajuda. Lá vou eu direito ao estúdio de fotografia, e ao fundo das escadas lá estava o bom do Vilela embrulhado num lençol com um ar meio esgazeado. Assim que vi o que aconteceu, fui buscar um táxi, e ala para o hospital que se faz tarde.

Quando o enfermeiro lhe retirou o lençol mais o papel higiénico do corte que tinha na glande, foi um mar de sangue. Dizia o enfermeiro Torres que nunca tinha visto uma gaita tão escangalhada e perguntava como tinha acontecido aquilo. Ele contou que se tinha cortado a fazer sexo num cabelo, que estava atravessado à entrada e não vale a pena pôr mais na escrita, pois para bom entendedor meia palavra basta.

Está claro que aquilo foi motivo de muito riso e para mais como é que o Vilela ia estar quieto sem pensar em nada que o fizesse arrebitar, quando ele se tinha transformado viciado em sexo.

Entretanto curou-se e voltou ao mesmo, mas afastou-se de nós que não tínhamos capacidade de o acompanhar em tonteira nem financeiramente.

Finalmente foi para a tropa como nós todos e eu terei sido o último. Mobilizados uns para cada lado, eu e os irmãos José e Joaquim António fomos para a Guiné, um dos Pedrosa foi para Timor e o Luís Pedrosa foi Operações Especiais em Moçambique, o Rego ficou cá como amparo de mãe, o nosso Vilela não faço a menor ideia, mas penso que acabado que foi o seu serviço militar, deve ter ido para a América ter com os pais e nunca mais o vi.

No regresso encontrei os irmãos, soube que o Pedrosa se tinha suicidado em Timor, o Luís contraiu um vírus, que se veio a revelar uma poliomielite infantil tardia, ficando coxo até à sua morte.

Felizmente fui ao casamento do Rego e do José António, que continuam de boa saúde pois têm perguntado por mim aos meus irmãos.

O Vilela é uma recordação que me faz recuar aos tempos de alguma irresponsabilidade e loucura, que cá continuam bem num cantinho e que de vez enquanto acordam misturados com a saudade daqueles tempos, agora que vamos adiantados nos “entas”.

O Vilela nunca lerá esta estória mas se ler, lembrar-se-á e deve dar uma gargalhada, embora eu tenha ficcionado o nome, vai-se reconhecer de certo nela.

Uma abraço
Juvenal Amado

____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18912: Estórias do Juvenal Amado (61): Um pouco de todos nós - "Difícil foi libertar-me do abraço", por Carlos Paz

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18912: Estórias do Juvenal Amado (61): Um pouco de todos nós - "Difícil foi libertar-me do abraço", por Carlos Paz

CICA 4 - 8.º Pelotão - Com o Aspirante Pimenta e o Cabo Miliciano Picado


1. Em mensagem de 3 de Agosto de 2018, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias, esta sob o pseudónimo de Carlos Paz.


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

61 - UM POUCO DE TODOS NÓS

"DÍFICIL FOI LIBERTAR-ME DO ABRAÇO"

Um Conto por
Carlos Paz[1]

Movimentos ritmados, cadência entre a passada e a vara, picamos o chão à frente dos pés. O ar está seco, as botas levantam pequenas nuvens de pó, as gargantas suplicam por água, os sentidos ficam cada vez mais absortos, à medida que o cansaço provoca um tropel na marcha e a respiração cada vez mais audível. Ninguém fala, a mata cala-se à nossa passagem, só sinto um zumbido e o roçar da arma a tiracolo na anca, o calor faz-nos desfazer em suor que encharca o pescoço e a farda.
Quantos passos quantos compassos por hora, quantas gotas de suor se limpam com as costas da mão?
Só penso na hora do regresso, só quero descansar. Viro-me para trás, a fila alonga-se, os rostos ainda com barba mal semeada mas mesmo assim por barbear na sua quase maioria, estão deformados pelo esforço.
Quem nos reconheceria agora?
Quando pisámos o cais éramos praticamente crianças a boiar nos camuflados novos, agora passados nove meses, a cara tisnada, tensa e crespa, corpo dorido, olhos duros não parecemos os mesmos. O nosso aspecto acompanhou a degradação do camuflado, que está roto e com as cores desmaiadas.

******

Quanto tempo passou na verdade? Aqueles momentos parecem tão longe.
Em pouco tempo percorremos o espaço entre os bailaricos, das festas, dos namoricos e a idade adulta. Uma cavalgada desenfreada em que galgámos os dias e as noites num salto no tempo. Aceitámos sem revolta ir combater numa terra estranha e que da qual, só conhecíamos o que aprendemos na escola e pouco ou nada nos lembrávamos.
Tudo se passou rapidamente no implacável contar das horas, dias e meses. Quase sem darmos por isso, passámos da vida despreocupada, do convívio com familiares e amigos, para um mundo diferente no clima, nos costumes e cheio de armadilhas, umas imaginárias e outras, bem reais como rapidamente constatamos.
Por vezes tanto se dá correr como saltar porque as curvas, as escorregadelas e as pedras do caminho, estão lá à nossa espera. Depois de escorregarmos pareceu-nos tão simples, ficamos a pensar como não antevimos o obstáculo, como não nos desviamos a tempo, porque aceitámos inexoravelmente que não havia outro caminho, não questionámos quem nos mandou naquela direcção. Costuma-se dizer que não vale a pena chorar sobre leite derramado e é uma grande verdade.
Difícil foi libertarmo-nos do abraço, do inevitável, enquanto num fio de voz murmurava baixinho: “Isabel não me esqueças mas ajuda-me a libertar-me deste abraço e ajuda-me despedir-me de ti”.


******

Estações cheias, comboios apinhados de mancebos, fardas verdes, boinas castanhas, na sua esmagadora maioria destinos incertos, despejados em Sta. Apolónia, cais dos nossos medos. Com graçolas e risadas engana-se o aperto no peito e a ansiedade pelo passo seguinte.
No rio ali perto baloiçam navios e um deles abre os porões para nos engolir. Aperta-se a tenaz à nossa volta e para muitos a viagem vai ser uma descida aos infernos.
Só virão para cima às costas dos camaradas, tão doentes do enjoo, que facilmente se deixariam definhar e morrer naquele porão nauseabundo e fétido. Tudo ficou enevoado e esquecido, perante os dolosos incontroláveis arranques que vêm do fundo das suas entranhas e que lhes levam as últimas forças. Naquela atmosfera de humidade extrema e pegajosa, vomitam e urinam-se, sem forças para subir ao tombadilho onde instalaram as latrinas. Ninguém gosta de lembrar esses momentos em que o homem perde a dignidade e se dá ao abandono físico e anímico. Deixa-se de lutar, pois a cabeça não raciocina e o corpo deixa de ter vontade. A nossa juventude não merecia tal tratamento, tal falta de respeito, tanto desprezo.
Não enjoei mas estou com a cabeça levemente zonza pelo contínuo balançar do barco e o barulho em surdina dos motores, que se espalha pelo o porão abaixo do nível da água. Recordam-se os sorrisos e a trocas de olhares, as promessas mudas, o leve roçar dos corpos ao som da música, a respiração junto ao rosto que, tantas promessas encerram.

Ao largo da Madeira

A bordo do Angra do Heroísmo

******

Hoje ansiamos pelo dia do correio, onde esperamos reviver os dias brilhantes de romance contido, dos beijos mais ao menos tímidos, por isso mais saborosos na maravilhosa descoberta um do outro.
Naquele dia encontrámo-nos. Um e outro tinham a certeza nos olhos daquele amor reprimido. Não é sexo mas entrega, é paixão incontrolável num acto tantas vezes desejado, mas mesmo assim assumido com atracção irreprimível de promessa e dos segredos por desvendar.
O desejo explode com as caricias e beijos, os seios crescem para serem afagados, as bocas entreabrem-se, línguas tocam-se as mãos percorrem cada centímetro dos corpos frementes. Nada é calculado nada é previamente estudado. A natureza, o desejo vibra não há reserva, há necessidade de consumar de ir na corrente que nos leva para um doce abismo. Um soluço agudo a dor que desaparece como a dúvida, já nada nos faz parar é o assomo que nos transcende, que nos transforma num só.
É a beleza do momento consumado, universo alinhado, é a natureza que comanda que dita as leis, as dos homens e de Deus, ficaram esquecidas, pois só há lugar para nós dois, que ficaremos ligados para sempre a este momento mágico.
Por fim descansamos abraçados com a respiração ofegante, a realidade e os sons voltam pouco e pouco. Há uma felicidade pela descoberta, há algum receio pela consequência, mas nada nos pode tirar o que acabamos de sentir e viver. Está tudo mais belo mais humano mais florido o nosso segredo é um elixir para os sentidos.
O lugar vai ser repositório dos nossos encontros, catedral dos nossos arrebatamentos e fortaleza do nosso amor. Não deixa de haver algo trágico e belo nos encontros e nas despedidas.
Depois acorda-se e é preciso encarar a vida, a dor e a separação que nos espera, como que à esquina, sem apelo sem queixume e sem justificação.
Era o dever, disseram.
O carteiro vai saber o nome do remetente de cor e salteado, tantas vezes escrito e lido. Vai fazer de arauto a cada nova carta e também vai reparar, no dia que não houver nenhuma.
O correio só sai duas vezes por semana e só nessa altura recebemos também as cartas dos nossos. Há um desfasamento de datas entre o seu recebimento e a resposta, o que por vezes confunde.
No meio da parada, sob Sol escaldante gritaram o meu nome e apressei-me a receber aquele envelope tão simples, mas que tem o teu cheiro, que foi tocado por ti e ao tocares-lhe, o transformaste num bem mais preciso que o ouro, mais resistente que os diamantes, água que transborda límpida e fresca, que sinto correr pelos meus sentidos, que me dá vida e transporta para fora dali onde o Mundo é porventura perfeito.

“10 de Outubro 1972
Jorge meu amor
Espero que estejas bem de saúde, que eu cá vou andando com muitas saudades e à espera do passar dos dias em que te voltarei a abraçar, a beijar e tornarmo-nos um só novamente repetidamente. Até durmo com a tua fotografia a que dou mil beijos logo de manhã. Bem sei que é preciso ter paciência mas o desejo de te ter, faz os dias dolorosos que não vejo o fim deste castigo.
Meu querido são tantas saudades tuas que até doem. Ontem recebi várias cartas tuas pois o correio anda com atrasos.
Entre a fábrica e os afazeres em casa, só fica para mim o tempo em que leio e releio as tuas cartas. A tua recordação mantém-me os dias. Gostei de saber que não vais mais para o mato e que ficas impedido no quartel, só não percebi bem porquê e a fazer o que vais fazer.
Os teus colegas perguntam-me por ti sempre.
Ouvi dizer que que José António também vai para aí. Se for verdade vou-lhe pedir que te leve alguma coisa de que precises".


A caixa vai enchendo com as cartas, aerogramas e fotos. Todos guardam ciosamente o seu correio e é doloso quando a má sorte bate à porta de algum camarada. Ao juntarmos os seus pertences, a sua correspondência recebida em que as ultimas cartas já não terão resposta. “Meu querido
Nas últimas fotos que enviaste, vi que deixaste crescer o bigode e gosto de te ver com ele, mas não gostei de ter ver agarrado à rapariga negra. Vê lá como te comportas e não mandes mais fotos dessas. As minhas colegas gozam comigo e dizem que tu andas para aí só metido com essas mulheres”
.
Como viveremos depois de passar pelo que vimos e as provas a que fomos submetidos? A mentira de que está tudo bem, que não vamos mais para o mato, é recorrente para sossegar os nossos entes queridos.
Não há impedimentos para tantos, assim, só nos livramos das colunas e patrulhas quando estamos doentes.
Alguma coisa secou em nós só se mantém viva a esperança do regresso, mas como ainda falta tanto não se pensa muito nisso. Dizem, que o verdadeiro medo começa quando se acredita que estamos prestes a deixar para trás aqueles caminhos. Aí pensamos duas vezes no que vamos fazer e onde nos vamos meter.
Isabel meu amor, o que eu não daria para estar contigo, abraçar-te, sentir as tuas mãos, cheirar o teu cabelo, fazermos amor e esquecer tudo ao nosso redor. Por vezes julgo ouvir-te, sinto a tua cara molhada contra a minha na hora da despedida, a tua recordação é como um bálsamo que me acompanha a todas as horas, quando estou acordado penso em ti e quando durmo só quero sonhar contigo.
“- Jorge meu amor aqui as notícias não são boas sobre o que se passa aí, mas tu dizes que está tudo bem e não sei em que acreditar. Se correres perigo diz-me por favor.”
A caminhada parece não ter fim, o calor cada vez aperta mais. Por fim há ordem de parar e descansar, mas não abandonamos a picada uma vez que é perigoso sairmos dela. As armadilhas são um tormento.
Troco um lata de corned beeff por uma de cavala em óleo com o Lopes. A carne em pasta enlatada dá-me vómitos. O Sol a pique, por isso só existe sombra fora do caminho debaixo de umas árvores, mas quem é que se arrisca a ir para lá?

"- Jorge ontem estive com a tua mãe, que se queixou de não escreveres. Quase tive acanhamento de lhe dizer que recebo carta tua, uma por cada dia. Por um lado esconder-lhe isso, seria preocupá-la mais, assim sabe por mim que tu estás bem.”

Falámos pouco pois mantivemos as distâncias da marcha.
- O que ia agora era uma cervejinha fresca - murmura alguém que no fundo diz o que todos pensamos.
Foi breve o descanso, há que retomar a marcha, cada vez mais perigosa pois há muito deixámos zona mais ao menos segura e encontrar alguém será com certeza hostil. Volto a pensar na casa, lembro os sítios e as pessoas, as mesas de refeições onde estão os meus pais e irmãos, a Isabel a sair da fábrica com o seu passo rápido, jovem e sensual e eu que tudo fazia para me encontrar com ela. Parecia impossível que ela para mim olhasse, que finalmente correspondesse aos meus sentimentos.

- “Tenho tantas saudades que até doem, sonho com os teus beijos e quando estamos juntos. Acordo de noite com pesadelos em que não voltas para mim, por favor diz-me que me amas e que nunca me deixarás”

******

É de esperar sempre o pior, mas quando acontece é um choque, a dúvida e terror instala-se, o bafo da explosão chega até mim. Mergulhamos em busca de protecção com terra a cair por cima de nós, alucinados de arma pronta. O coração bate desordenadamente ameaça sair-me pela boca. Ouvem-se gritos que abafam o estrondo da explosão, rasgam o silêncio em que o eco se vai desvanecendo. Momento mil vezes temido acontece sempre quando nunca se espera e nunca se está preparado para isso. Nada será igual daí em diante. Este momento lembra-nos que podia ser qualquer um de nós. Gritos e mais gritos misturam-se com o medo o calor e suor. Cheira a pólvora e sangue.
Pisou uma mina. Está sem pernas. Já deixou de gritar e nada podemos fazer por ele a não ser lembrá-lo, até que o tempo esmoreça o seu rosto quase irreconhecível, a sua farda em farrapos, a sua cama vazia, a última cerveja bebida o cigarro que ardeu até queimar os dedos. Quantos mais terão de morrer?
O Santos morreu, mas ninguém morre de imediato para toda a gente ao mesmo tempo. Neste momento só morreu para nós, daqui a umas horas, a notícia da sua morte atravessará o oceano, atingirá a sua aldeia os seus pais, mulher, amigos e conhecidos. Até lá o Santos estará vivo. Está em contagem decrescente até que o eco da sua morte se junte com a notícia do facto consumado.
A mulher, talvez ainda esteja a escrever a derradeira carta que porá na caixa do correio. Esta viajará milhares de quilómetros sem encontrar destinatário, voltará pois às mãos dela que a receberá de volta mais dia, menos dia, pois o tempo deixou de ser importante. Olhará para ela e a dor atingirá mais um degrau e a certeza cavará um buraco no seu peito, a lágrimas rolarão como ácido a queimar as faces, o grito de animal ferido partirá para o vazio que sente. Depois, abraçará o filho de ambos e deixará que o seu calor e a doce respiração faça amainar a sua dor.
Suamos em bica, as moscas e mosquitos fazem nuvem sobre nós, despejo um pouco de água sobre a cabeça com o cantil. Está quente mas mesmo assim tenho que a poupar, pois só teremos água quando regressarmos. A mata agiganta-se ameaçadora, parece que nos vai engolir a qualquer momento sem que possamos fazer algo para o impedir.
A mala com os pertences dele será enviada à família.
O corpié, o serviço de chá e o robe chinês, comprado no “Libanês”, para os dias felizes, serão os bens materiais a que se juntarão as cartas da mulher as fotos dela e do filho que ele só conhecia por elas, que cuidadosamente exibia em cima do armário improvisado ao lado da espingarda, cartucheiras e granadas de mão.
Estava tudo igual como estava ontem e anteontem em perfeito estado, ele é que já não serve, como escreve o poeta[2]. Fazia parte do plano dele para o seu futuro agora perdido irremediavelmente.

[2] - Fernando Pessoa no poema “O Menino de Sua Mãe”

Dirão as velhas da aldeia na sua simplicidade que não tem remédio, remediado está, que foi o destino, ou a vontade de Deus, que no fundo acaba por ter as costas largas para servir de ónus para todas as culpas, que resultam da estupidez humana.
O cemitério será local de visita semanal. Ele na sua inocência brincará à volta das campas, quando a mãe ali for depositar flores e cuidar da última morada do marido. Dir-lhe-ão que o pai foi para o céu e seus olhitos responderão com a incompreensão da inocência.

******

É o quinto morto. Vêm-me à lembrança os outros quatro. O primeiro de acidente, os outros três ceifados num ataque com morteiros ao destacamento.
Também eles tinham muitas cartas começadas por meu amor.
A galeria de rostos cresce, morre-se naqueles sítios perdidos quase sem nome, o local só perdurará na nossa memória e a certeza de que nada ali vale um pingo das nossas lágrimas, nem do nosso sangue.
Cresce com a dor e esgotamento físico.
Tento dormir, a mata tem barulhos próprios que parecem passos, perigos iminentes, rastejantes e sombras que estão à espreita. Estou alagado em suor, mas sei que vou ter frio sobre a madrugada, ponho o pano de tenda e o mosquiteiro por cima da cabeça e das costas para ficar mais confortável e em vão tento dormir. O amanhecer traz a luz que afasta as sombras fantasmagóricas, que parecem espiarem-nos durante toda a noite mal dormida e a certeza de outro dia a caminhar sob Sol escaldante.
Vamos regressar ao destacamento pois já ali não estamos a fazer nada. O rebentamento da mina denunciou-nos e perdeu-se o efeito surpreso da operação. O que estamos aqui a fazer tão longe de casa?
Faltam 16 meses, bebo água que refrescou durante a noite e como a ração de combate sem prazer. É hora de voltar a caminhar, não interessa para onde. É penoso voltar a caminhar sem saber bem onde pôr os pés. Se caminhasse para regressar aos teus braços até voaria.
As viaturas com escolta vêm ao nosso encontro, e é com algum regozijo que nos afastamos dali. A natureza cumprirá o seu designo de apagar rapidamente os vestígios que a tragédia deixou no local. Se alguma coisa fizesse sentido, ali e em muitos lugares da Guiné, nasceriam flores ou ervas cor de sangue.
Lá na terra, a família e amigos podiam pôr flores ou ergueriam mesmo pequeno monumento, onde se podia pôr uma vela a arder, mas aqui, o momento ficará para sempre na memória de quem o viveu.
Finalmente acendo um Português Suave, aspiro fundo o fumo e o cheiro a gasolina do isqueiro, e solto grossa coluna de fumo. Sinto uma leve tontura e, ao dar-me tosse, lembro-me das ordens do médico para deixar os cigarros, pois tenho os brônquios em mau estado, mas quem se preocupa com o perigo do tabaco, quando corre tantos perigos todos os dias?

******

No destacamento as conversas são parcas. A morte do camarada pesa no pensamento de todos. Bebe-se o que há, é preciso ficar dormente e assim conseguir dormir, esquecer, distanciarmo-nos do doloroso momento, do cheiro do estrondo e do medo. O tempo dele a sua recordação, pouco a pouco, dará lugar ao nosso tempo e esse, trará uma forma de esquecimento ainda parcial, ainda assim latente.
O último aerograma que a Isabel me mandou está ali aberto, está inalterável, nada mudou no que lá está escrito e nada mudaria, se o morto fosse eu.
Deito olhar às linhas escritas, não me confortam como seria natural. Há demasiado horror nas pernas decepadas, no rosto há tantas interrogações, há tanta dor e ansiedade, sentimo-nos impotentes para mudar o que se quer que seja. Tento dormir mas vai ser sempre em sobressalto. Os tiros que as sentinelas dão, quando vêm alguma coisa a mexer na escuridão da orla da mata, ou simplesmente para espantar o sono, fazem-me sentir menos só naquele momento.
O que é feito da aventura, da vontade de conhecer outras paragens? Não sabíamos que o preço seria tão alto, que demoraria o resto da vida a pagar.

Dulombi - Monumento de homenagem aos Mortos

******

Meu amor, quando regressar caminharemos na areia molhada, sentar-nos-emos a ver o mar, sentiremos o nevoeiro a envolver-nos e propagar o ruído dos comboios a quilómetros de distância, o cheiro das ervas molhadas, ouviremos de madrugada os homens que partem para azáfama dos campos, os cães a responderem uns aos outros, as sirenes das fábricas, todos estes ruídos insignificantes do dia-a-dia, são o ruído que a paz tem e serão música para os nossos ouvidos. Este pensamento aviva-me as saudades, pudesse eu deitar-me nos teus braços e chorar os dias e as noites longe de ti, talvez esta dor desaparecesse e eu fosse finalmente salvo.

-“Meu querido. 
Por hoje é tudo. 
Recebe mil beijos com muita saudade desta que te ama mais que tudo, e conta os dias e horas para ter novamente junto de mim. 
Recebe muitos beijos 
Sempre tua 
Isabel” 

[1] - Pseudónimo de Juvenal Amado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18884: Estórias do Juvenal Amado (60): O azar das margaridas

terça-feira, 31 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18884: Estórias do Juvenal Amado (60): O azar das margaridas



1. Em mensagem de 13 de Julho de 2018, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias.


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO


59 - O AZAR DAS MARGARIDAS

Juvenal Amado

Costumo dar umas voltas a pé aqui pelo sítio onde moro. Umas vezes aproveito para ir à farmácia, ou supermercado, levar ou trazer coisas da costureira. Umas vezes vou sozinho de auscultadores para ouvir a Antena 1, outras com a minha mulher porque é sempre bom fazer estes passeios acompanhado.

Gaivotas e pombos cruzam os céus, em comparação não vi andorinhas por aqui este ano.

À medida que passo pelas ruas da primeira cidade de Abril vou apreciando como é diferente dos sítios onde morei. A falta de limpeza das ruas motivado pelo excesso populacional, a falta de civilidade que raia o incompreensível com papeis, plásticos, que redopiam ao vento e se espalham pelas ruas e caneiros.

Mas a riqueza étnica com que nos cruzamos a cada passo, dá-nos a ideia que é viver a par com África. Ao envelhecimento da população branca respondem a quantidade de crianças e jovens negros, ciganos de origem romena, brasileiros, etc.

No trabalho de jardinagem são as mulheres negras bem como nas limpezas, nos cafés, restaurantes são brasileiros e os chineses tomaram conta do comércio de bairro, indianos pequenas mercearias, quanto aos romenos para além de terem filhos com fartura não sei o que fazem na verdade, mas são felizes nas suas vidas pouco sujeitas a imposições sociais.

Nota-se pelos costumes que há populações oriundas da Guiné, de Cabo Verde e Angola. A par de velhos com olhar perdido talvez de melancolia, é engraçado ver passar crianças com o cabelo às trancinhas, com contas coloridas nas pontas e algumas mães com os filhos nas costas tipo Racal, hábito bem conhecido das Fulas. Nos adolescentes imperam os hábitos importados dos states, com roupas e bonés tipo rappers, que publicitam clubes futebol americano ou mesmo de basebol, coisa que por cá é um “ignoro”, mas modas são assim e não vale a pena pôr mais na escrita.

No meu prédio, uma moradora queixava-se do barulho que a vizinha de cima fazia logo de manhã a batucar. Dizia a queixosa para a outra, que não sabia o que ela fazia para provocar aquele barulho. Pensei para mim, que talvez a tal vizinha confeccionasse alguma coisa no pilão ou estivesse a fazer “funge” (acompanhamento típico angolano) para o marido e filhos.

Aos Sábados de Sol coisa que tem andado arredada, é ver a criançada a jogar à bola aqui no pátio na linha de prédios, que noutros tempos foi resguardado, para que hoje haja um local onde os carros não entram. Mas não há bela sem senão, pois no resto-chão mora uma velha, que de bengala em punho, qual condestável, entende que ali não é sítio para jogar a bola e passa a vida a ameaçar a garotada com a policia e com a bengala. Bem, o policiamento da velhota não é bem encarado por todos e já resultou em troca de galhardetes entre aos prós e os contra sem Fátima Campos a moderar os debates.

Estes lugares vulgo florestas de cimentos, que há quase cinquenta anos afastaram muitos lisboetas da sua cidade com promessas de melhores condições de alojamento na periferia, onde puderam comprar apartamento, onde criaram os filhos e hoje alguns cuidam dos netos, bem felizes uns e outros. Na verdade há um tempo para tudo mas não deixam de ser efectivamente cimento e mais cimento, não é fácil viver em especial para os mais velhos que vivem sozinhos, por vezes em equilíbrio instável.

Mesmo assim é visível o esforço da Câmara Municipal no cuidar dos poucos espaços com relva.

Hoje, quando passava, vi que com a relva brotam milhares de margaridas com as suas cabecitas amarelas e pétalas brancas. Se lhes dessem tempo também algumas papoilas tingiriam o verde de vermelho empoleirado nos seus delicados caules pretos.
Mas as cidades são normalmente desprovidas destes pruridos e à mediada, que também não se condoem com as necessidades individuais de cada um, também as flores, que teimam nascer livres e selvagens, têm os dias contados. Quando regressei a casa e passei pelo jardim, vi que tinham andado a cortar a relva. Pensei como era diferente ver, como ainda se vê, nas pequenas cidades e vilas os terrenos baldios polvilhadas de flores silvestres, como quando íamos para a escola e apanhávamos e sugávamos a sua seiva avinagrada.

A relva tinha sido aparada e as margaridas tinham sido erradicadas no “holocausto” jardineiro e só se viam os caules em pé misturados com a relva aparada.

O tempo é severo, vai e não volta e também passou o tempo das “margaridas “ só que elas renascem sempre, quanto a nós há várias opiniões não condicentes.

Um abraço
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18300: Estórias do Juvenal Amado (58): Histórias com Pharmácias

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18300: Estórias do Juvenal Amado (59): Histórias com Pharmácias

Com a devida vénia a Visite São Pedro da Aldeia


1. Em mensagem de 2 de Fevereiro de 2018, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias.


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

58 - Histórias com Pharmácias

Na pintura da Crisal, onde ingressei com 14 anos, fui testemunha da ida e do regresso de trabalhadores que ora embarcavam ora chegavam ocupando o posto de trabalho que tinham deixado dois ou três anos para trás.
Assim tomei conhecimento com quem regressou de Angola, Moçambique, Guiné, etc. em várias alturas do conflito e era com deleite que ouvia contar as peripécias deles por terras africanas.
Era tudo longínquo, apaixonante, aventureiro e felizmente raramente trágico o que eles contavam.

Também vi ir o meu irmão mais velho, bem com os irmão mais velhos dos meus colegas de escola, que depois foram incorporados comigo e mobilizados na sua esmagadora maioria.

O Félix era irmão do Zé Cafézinho, que foi meu colega na 4.ª classe na escola do professor Pires e posteriormente meu camarada no RI6 no Porto, amizade sobre que escrevi já para aí em 2010 no blogue. O Félix era também um grande contador e estórias e tinha imensa graça quando juntava à volta dele os colegas da secção de pintura, que estavam na incubadora de ir bater com os costados em África como eu fui (alguns 7 e 8 anos depois). Dessas tertúlias ficou-me para sempre gravada uma história verdadeira, com mais graça por conhecermos todos os intervenientes, para além do nosso Félix.

A Crisal era o que se pode considerar uma grande família onde por vezes trabalhavam famílias inteiras e com a particularidade de namoros e celebração de muitos casamentos. Assim aconteceu a mim e à grande maioria de colegas da secção. Nas outras secções aconteceu o mesmo.

Quando ele regressou da Guiné, contou-me sobre a sua comissão lá e os costumes da população, estórias que depois revi pessoalmente, mas esta é uma estória de quando ele garoto foi aprender pintura na empresa.

O Félix era aprendiz de pintor na Crisal de Alcobaça e era natural o encarregado mandá-lo fazer pequenos recados, coisa que não desagradava ao jovem, uma vez que andar na rua era bem melhor do que estar na secção a repetir vezes sem fim os mesmos serviços.
Ora ia levar alguma coisa à esposa do encarregado, senhor João Neto, ou ia buscar o lanche para ele, enfim era aprendiz mais novo e por isso mais há mão de semear para esses pequenos serviços.

Um dia o chefe enviou-o à farmácia buscar uma caixa de preservativos da marca tal, que aliás ele já sabia de cor e salteado, uma vez que era useiro e vezeiro nesse recado.
Na nossa idade lembramos de como era difícil chegar à farmácia e pedir tal “equipamento”. Não era raro vermos homens de parte, assim como não quer a coisa, à espera do momento oportuno para pedir ao empregado ou mesmo dono do estabelecimento a famosa e milagrosa caixinha, que evitava inconvenientes ou males maiores nos relacionamento amorosos.

Ora o nosso herói chegou à farmácia onde era empregada uma senhora e era naturalmente de bom-tom evitar-se de pedir os “ditos” a ela, assim que a senhora via um homem assim de lado, arranjava alguma coisa que ir fazer lá dentro ao armazém, para que respectiva transacção fosse feita por colega longe dos seus olhares.
Mas do garoto nada disso havia a temer e à pergunta “o queres menino”, logo recebeu o pedido assim a frio:
- Quero uma caixa de preservativos da marca tal.

A empregada fez-se encarnada até às orelhas e logo retorquiu que não tinha lá nada disso, tentando desviar-se do incómodo. Mas o nosso Félix não era de deixar a coisa por metade e alargando um belo sorriso, pois sabia ele bem onde aquilo estava, disse prazenteiro apontando para a prateleira muito satisfeito por estar a prestar um serviço:
- Há, há, estão ali.

Pagou, pois já levava o dinheiro à conta e todo satisfeito, nem se apercebeu dos engulhos que tinha criado.

Hoje os tempos são outros e compram-se em qualquer farmácia ou supermercado sem constrangimentos de maior, mas o Félix, sem saber, fez a sua parte na transformação do tabu de então e na alteração dos comportamentos.

Depois de vir da Guiné, o Félix casou com uma colega da fábrica e também se fez à vida para a “estranja” que aqui a “coisa” era curta. Voltou já reformado, e a última vez que estive com ele, falámos da Guiné e do blogue a propósito do que eu tinha escrito sobre o seu falecido irmão “cafezinho”.

Também faleceu entretanto e só desejo que a terra lhe seja leve e que esteja em Paz

Um abraço
Juvenal Amado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17866: Estórias do Juvenal Amado (57): A minha avó Deolinda Sacadura, uma mulher do 5 de Outubro

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17866: Estórias do Juvenal Amado (58): A minha avó Deolinda Sacadura, uma mulher do 5 de Outubro

Avó Deolina Sacadura

1. Em mensagem do dia 9 de Outubro de 2017, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), presta homenagem à sua avó Deolinda, uma mulher que viveu nos duros tempos da transição do século XIX para o século XX, que como tantas daquele tempo, criou um rancho de filhos, como se dizia então, muitas vezes sem a presença por perto dos maridos.


HISTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

57 - UMA MULHER E O 5 OUTUBRO

Não basta olharmos para alguém para descortinarmos a sua história. Os afectos, os seus momentos maus, possivelmente julgamos ver sua felicidade ou tristeza, se elas forem genuínas e transparecerem como água pura e límpida.
Essas pessoas por vezes enchem-nos com as suas palavras e esvaziam-nos com os seus silêncios. A minha avó Deolinda era assim. Calma, segura, de saúde débil, para além das suas enfermidades guardava no seu corpo velho e curvado todo o saber de uma vida de luta. Mulher que a idade fez pequena em altura, mas só ela metia na ordem os nove filhos e filhas, que teve como única herança do meu avô. Todos se calavam quando ela falava, todos apertavam as mãos e na sua presença, todos escondiam as desavenças, os litígios nem que fosse só naquele momento.

O respeito que lhe deviam ditava as atitudes e não era gente fácil, porque não há famílias perfeitas e a dela também o não era. Criou-me até certa altura, uma vez que a minha irmã nasceu logo a seguir a mim, e lembro-me dela sempre com carinho. Recordo que me contava episódios da sua vida, falava sobre o meu avô lhe aparecer embrulhado num cobertor, depois de nada saber dele durante semanas e como ele desaparecia novamente para o sonho que lhe incendiava dias e as noites. Falava sobre a implantação da República e a sua esperança em novos tempos. Também ela foi uma heroína discreta da implantação da Republica.

Também me recordo da sua mágoa, quanto aos resultado dos vários falhanços, que desembocaram num regime triste, cinzento e sufocante. Não tinha sido para isto que tanto português tinha dado o seu sangue. Na sua casa juntava os netos, que com pouca coisa se entretinham. Autocarros construídos com as cadeiras das sala de fora, brincávamos com idas para a Nazaré ou até em voos mais largos viagens até Lisboa. Ela simplesmente gozava a nossa companhia, cozendo ou escrevendo algo quase encostado ao nariz tal, era a miopia de que padecia. Fazia-nos o lanche, fazia-nos desarmar o “autocarro” para comermos à volta da mesa o pão com manteiga polvilhado de açúcar, canela e café de cevada.

Eu fui criado por ela até aos cinco ou seis anos anos mas fui sempre estar com ela nos anos seguintes, sempre que podia e assim, beneficiei das suas histórias sobre o meu avô e companheiros na sua luta pela instauração da República. Falava-me da prima dela, Sara, a qual estava no grande retrato ao estilo 1900 na sala de jantar, emoldurado num belo caixilho em arte nova. Contava-me ela tinha morrido muito jovem de tuberculose e que tinha um problema pois não podia olhar para um relógio, que o parava logo. Não sei se era ela a brincar comigo, se tinha sido verdade, uma coisa era certa, ela era muito bonita mas eu não entrava na referida sala sozinho, por nada deste Mundo.

O retrato emoldurado da prima Sara

De manhã cedo apreciava a minha avó no seu ritual de molhar o pente em álcool e pentear os seus longos cabelos, que depois manipulava habilmente numa trança que de seguida enrolava na parte de trás da cabeça e prendia com longos ganchos de tartaruga. Sempre vestida de preto, só saía sozinha para tratar das galinhas e mesmo assim, o cão e eu fazíamos-lhe companhia pelo longo e escuro corredor que dava acesso ao pátio.

De vez enquanto passávamos pelo vizinho de baixo, que tinha combatido na 1.ª Grande Guerra. Eu tinha especial medo dele, pois quando estava mais atacado, escondia-se nos umbrais das portas acendendo fósforos e atirando com eles ao ar. Julgou eu hoje que ele na sua demência alcoolizada, fazia dos fósforos very-light e recriava na sua cabeça as situações por que passou. Morreu vítima dos gases, do vinho, do tabaco, do esquecimento e pobreza não só física como de espírito. Viu três netos serem mobilizados.


A minha avó Deolinda morreu depois de longa e penosa doença em 1973 quando eu estava na Guiné . A data nunca soube ao certo, uma vez que a minha mãe assim o entendeu e nunca me mandaram dizer. Talvez porque deixei de receber correio da minha mãe e da minha tia durante um período, eu tenha mais tarde relacionado com a altura da sua morte.

Quem a via, nada sabia da sua força, do seu conhecimento, da sua esmerada educação. Ela encheu-nos com as suas palavras e esvaziou-nos com o seu silêncio. Não me viu regressar, não conheceu a minha mulher nem filha, não assistiu a nada da minha vida, não viu em que homem me tornei, nem sabe do carinho que nós netos temos pela sua memória.

Neste 5 de Outubro, data que lhe era cara e nos ensinou a respeitar, lembrei-me dela das suas costas arqueadas, das suas pernas inchadas, dos seus óculos de lentes grossíssimas, mas acima de tudo recordei a sua sabedoria e prazer que tinha da sua companhia.

Um abraço
Juvenal Amado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17763: Estórias do Juvenal Amado (56): Lisboa aqui tão perto... da "Ginjinha" do Rossio ao fórum Tivoli, onde fui assistir ao lançamento do novo livro do José Saúde, "AVC - Recuperação do guerreiro da liberdade"

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17763: Estórias do Juvenal Amado (57): Lisboa aqui tão perto... da "Ginjinha" do Rossio ao fórum Tivoli, onde fui assistir ao lançamento do novo livro do José Saúde, "AVC - Recuperação do guerreiro da liberdade"



Foto nº 1 > Lisboa > Avenida da Liberdade > Fórum Tivoli nº 180, 1º piso > Chiado Café Concerto > 10 de setembro, domingo, 17h30 / 19h00 > Sessão de lançamento do livro do José Saúde, "AVC - A recuperação do guierreiro da liberdade" (*) > Na mesa, o autor, a representante da Editora e o nosso apresentador, o nosso editor Luís Graça.


Foto nº 2 >  Lisboa > "A Ginjinha" > Largo de São Domingos, 8, Rossio > Uma verdadeira "instituição" (1)..


Foto nº 3 > Lisboa > "A Ginjinha" > Largo de São Domingos, 8, Rossio > Uma verdadeira "instituição" (2)...


Foto nº 4  >  Lisboa > Largo de São Domingos > Igreja de São Domingos > O largo é o local de encontro das mais "desvairadas" gentes de Lisboa, nomeadamente estrangeiros, e oriundos da África Lusófona...



Foto nº 5  > Lisboa > Av Liberdade > "Lisboa é uma festa"...


Fotos (e legendas) : ©  Juvenal Amado (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comnplementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Lisboa Aqui Tão Perto
Juvenal Amado e José Saúde, Lisboa, 10/9/2019.
Foto de Luís Graça


por Juvenal Amado (**)


ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74; autor de "A Tropa Vai Fazer de Ti um Himem....Guiné 1972/74" (Lisboa, Chiado Editora, 2016); natural de Alcobaça,  vive hoje na Amadora]






Domingo,  dia 10 de setembro,  desloquei-me à avenida da Liberdade, em Lisboa,  para dar um abraço ao José Saúde e assistir ao lançamento do seu novo livro.

Foi bem cedo e assim aproveitei para andar por ali e acabei por chegar ao Rossio . Os turistas estão por todo o lado, em grupos aos pares e até sozinhos com as suas roupas leves, muitos com filhos às costas ou ao peito, param pelas esplanadas e até ao redor doas estátuas.

Jovens sentam-se despreocupadamente, felizes digo eu, que no nosso tempo não tivemos condições para ir por essa Europa fora de mochila ou comboio, pelas razões que sabemos.

Na Ginjinha tive de me esforçar para chegar ao balcão e recordar o momento em que o meu pai me lá levou. Não me lembro quanto custava, mas 1,40 € é agora o preço da degustação. Está claro que,  ao bebê-la,  veio-me à lembrança o sabor da melhor ginja do mundo e arredores, que é a do David Pinto, de Alcobaça, até há pouco tempo senão ainda, feita no segredo dos deuses pelo João Serafim, ainda primo direito do meu sogro. Mas é assim primos, primos, segredos da famosa ginja à parte.

Mas deixando Alcobaça, enquanto bebericava o licor deixando os dois pequenos frutos para o fim, apreciei o que se passava no largo S. Domingos, com os grupos de mulheres e homens grandes em conversa ou a venderem cola e pequenos sacos de mancarra e castanha de cajú. Usam as mesmas roupas, sinal que devem manter muitos dos seus hábitos familiares e domésticos. Com alguma estranheza minha, não são alvo da curiosidade dos turistas, vá-se lá saber porquê.

 Entretanto com o aproximar das horas, desloquei-me pela rua Portas de Santo Antão, passei a outro local da minha juventude onde algumas vezes dividi um bife à Come & Bebe também com o meu pai. Passei pelo Coliseu, Politeama, o ex-cinema Condes, onde existe hoje o café da moda Hard Rock e voltei a subir direito ao centro comercial Tivoli, parando para ver uma esplanada onde se dançava. A música brasileira era sensual e muito apelativa. Está claro que não parei por lá muito tempo, pois sou hoje detentor de dois pés esquerdos, o que não me favorece nas danças de salão.

Finalmente chegado, lá me deparei com um grupo onde pontuava o Luís Graça e o José Saúde, mais tarde também o Cláudio Moreira. Foi excelente a apresentação do Luís no tema que também lhe é caro como profissional de saúde, o descobrir que são acometidos dessa doença 3 portugueses por hora e que é a primeira causa de morte em Portugal.

Seguidamente falou o José e foi um momento de muito sentir ouvi-lo falar na primeira pessoa do percurso, da sua luta, das suas vitórias. Também os doentes criaram uma organização de apoio aos atingidos por esta terrível e incapacitante maleita (AVC Portugal), que aconselha e encaminha os doentes para as suas reabilitações.

Foi um bocado bem passado e daqui faço votos para o José Saúde, continue com a mesma força, que o retirou do reino da morte e o trouxe até nós com a força de sobrevivente, que nos deixa o relato da sua odisseia e nos ensina a continuar a luta pese o sofrimento.

Bem hajas, José,  pela a tua partilha.

No regresso para casa no metro, iam duas adolescentes com a cara completamente pintada de azul, deu-me vontade rir e pensei, Lisboa é Liiiiiiiiiiiinda, como diz o pregão e... é uma festa.

________________

Notas do editor:

sábado, 17 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17481: Estórias do Juvenal Amado (56): Em memória dos filmes que comecei a ver a meio

Cine-Teatro de Alcobaça

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 16 de Junho de 2017:


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

56 - Em memória dos filmes que comecei a ver a meio

Gostei muito de cinema desde sempre e o Cine Teatro de Alcobaça, foi ponto de encontro de gerações de Alcobacenses.

Em miúdo com a minha tia ia ver os filmes do Joselito e Marisol mais tarde também me levou a ver filmes históricos em especial sobre as guerras napoleónicas, género que deixou de ser tema de interesse para as produtoras cinematográficas, pois há muito tempo, tirando uma versão do "Guerra e Paz", deixei de ver em cartaz esse género. Quando há tempos pela escrita do José Marques Vidal e Arturo Pérez-Reverte, voltei a lembrar-me do tema, revi mentalmente a batalha de Austerlitz, onde Napoleão derrota os exércitos russos, austríacos e ingleses, bem como outras venturas e desventuras do corso, que resolveu criar um Mundo à sua vontade até se afogar no seu próprio orgulho e melomania.

Mas também era comum juntar-me aos Mendes, ao Cafézinho, ao BiBi e outros miúdos, que numa das portas laterais, esperávamos que o porteiro, senhor Sílvio, nos desse uma borla e assim nos deixasse assistir aos filmes.
- ”Não façam barulho e espalhem-se, não os quero todos juntos” - dizia ele.

Depois do primeiro intervalo, lá íamos nós sem fazer barulho até ao 3.º balcão, razão essa, que tenho na memória os filmes que nunca vi o principio como o "Ben-Hur", o "Rei dos Reis",  o "Barrabás", "Spartacus", etc, etc. Esses ficaram para sempre amputados dos seus inícios pelas razões que acabei de apresentar.


Entretanto comecei a trabalhar, e com direito a semanada, pude assim comprar o bilhete e começar finalmente a ver todos os filmes desde inicio. Estava na época dos filmes "cobóis" "esparguete" com o Clint Eastwood, (quem diria que ele se faria num dos maiores realizadores do nosso tempo?) o Bud Spencer e Terence Hill etc, que gastavam mais balas na apresentação do que em todas as guerras do México. As pistolas de seis tiros disparavam sem cessar, nunca ficavam sem balas.

Também os filmes de karatê do Bruce Lee levavam legiões de admiradores, e era vê-los à saída do cinema, a gingarem-se e a imitar os tiques do actor. Simplesmente hilariante, quando ele era atacado por mais de vinte bandidos, que despachava num ápice. Ficava sempre para o fim um e esse, é que era sempre um rolha dura de roer. Entre gritos, chapadas e pontapés de toda a forma e feitio, o nosso herói tinha mais trabalho com esse do que com os outros vinte.

Por causa desses filmes logo apareceram escolas de karatê nas diversas modalidades, o que deu azo a episódios caricatos como o do meu amigo “Bife”, que acabado de ter a sua primeira aula de Tae Kon Don, se envolveu logo à pancada com outro junto ao campo de ténis.

Filmes completamente irracionais e sem ponta por onde se lhes pegar, mas a malta não sabendo mais o que fazer, ia ver as "coboiadas" de feios porcos e maus e ouvir o Pelé lá do 3.º Balcão, que em plenos pulmões tentava avisar o herói que os índios estavam emboscados ou que um bandido vinha à falsa fé para lhe fazer a folha.
As gargalhadas sucediam-se a cada nova exclamação do nosso bem conhecido angariador de peles de coelho e ferro velho. O velho Pelé também servia para as mães meterem medo aos filhos, que praticavam qualquer maldade, ou não queriam comer a sopa. A sua imagem andrajosa com um saco às costas, era assim aproveitada para o imaginário da garotada.

Também a Escola Técnica de Alcobaça, sob a batuta do professor Miranda, levava à cena as peças no Cine Teatro, que ensaiava para serem apresentadas nas suas festas anuais. Nunca me esqueci da peça "A Gaivota", de Anton Tchecov, e também quando o teatro de revista deixava o Parque Mayer e fazia digressões pela província.


Naquele tempo o Cine-Teatro abarrotava de espectadores e, na maioria dos casos, só ficavam livres as cadeiras obrigatoriamente guardadas para os descendentes do fundador António de Oliva Monteiro.

Depois fui para a tropa e para a Guiné, durante 3 anos não me deliciei com os filmes nem com a vivência ao redor dos mesmos.
Na Guiné, em Galomaro, fomos uma vez visitados pelos serviços de foto-cine do exército, se não estou em erro com o filme "Chaimite", na verdade um tema bem a propósito como é bom de ver. Foram exibidas duas sessões para dar oportunidade a quem estivesse de serviço, ver no dia a seguir. Numas das sessões, calhou-me fazer reforço na porta de armas e tive o maior assédio de lavadeiras que há memória, pois queriam que eu as deixasse entrar para ver o filme. Está claro que não podia deixá-las entrar sob pena de o Coronel me dar uma porrada de todo tamanho, mas devo ter ficado com fama de ser um bom filho p…… durante muito tempo.

Sei que havia salas de cinema em Bafatá e em Bissau, mas nunca lá fui ver nada. Se calhar porque só pernoitei uma vez em Bafatá, no seguimento da trágica morte do nosso camarada Teixeira, e em Bissau estive só de passagem e com pouco ou nenhum dinheiro.

Quando regressámos, deu-se a explosão com o fim da censura, as sessões sucediam-se para vermos os filmes até ali eram proibidos, ou revermos os que tinham sido amputados das cenas que a comissão da censura tinha resolvido cortar. Seguiram-se as sessões de pornografia, que eram exibidas depois da meia-noite.
Depois o declínio foi-se agravando, e não foi só em Alcobaça. As salas começaram ficar vazias por causa dos centros comerciais e das suas sessões continuas, da televisão, dos clubes de vídeo, que por sua vez foram à falência por casa da TV por cabo, onde podemos ver filmes a toda a hora sem se sair de casa, com a qualidade HD nos LED's de tamanho considerável com sistemas de som circundante.

O que virá a seguir não sei, talvez com máquinas de realidade virtual em que sejamos expectadores e actores ao mesmo tempo, com influência no guião do filme.
Ontem liguei a televisão, e estavam a exibir o filme "Cartas de Guerra". Já ia adiantado, mas mercê das novas tecnologias, voltei atrás para ver de principio. Gostei, apesar de algumas incongruências, digo eu, uma vez que a guerra que travámos na Guiné foi forçosamente diferente da de Angola pelo tipo, pelo espaço físico e também pelo antagonismo existente entre os três movimentos independentistas. O filme faz-me lembrar uma banda desenhada com grandes planos e muitas imagens falsamente paradas, em que o autor tenta transmitir ao espectador a dor, o isolamento, o desamor e a violência daqueles dias, usando um ambiente surreal. (A ver os "Vampiros" com textos de João Melo e desenhos de Juan Cavia, uma história de ficção passada na Guiné em 1972 ).
Fez-me reviver os nossos mortos, e as imagens a preto e branco, mais os gritos na escuridão, conferiram um efeito trágico e sufocante sobre as minhas próprias memórias.
Desejável seria que este filme fosse ponto de partida para mais registos devidamente aconselhados, por homens que sabem com conta peso e medida aplicar com rigor as recordações daquele tempo.

Hoje o Cine Teatro de Alcobaça continua lindo. Cinema pouco, mas chegam-me notícias de teatro, teatro de marionetes, bailado e também musica de vários géneros.
Os filmes é que parecem rarear naquele espaço mas isso é fruto dos tempos.

Um abraço
Juvenal Amado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17029: Estórias do Juvenal Amado (55): O Dia da Defesa Nacional

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17029: Estórias do Juvenal Amado (55): O Dia da Defesa Nacional



1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 2 de Fevereiro de 2017:

Meus caros,
Vamos misturando o passado com presente, salvo as devidas diferenças e vamos mesmo assim saboreando a vida.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

55 - O DIA DA DEFESA NACIONAL

A minha neta telefonou-me a pedir se ia levá-la a Queluz, pois tinha que ir ao R.A. Antiaérea para estar presente no Dia de Defesa Nacional, que era obrigatório. Que chatice, pensaram os garotos e garotas por terem que ir gramar esta pastilha, ainda por cima num dia com aviso meteorológico amarelo a poder passar a laranja. Mas de que raio se haviam de lembrar eles?

Bem, quando lá chegámos vimos vários grupos dispersos, que com ar pouco animado esperavam pelas 9 horas da manhã, para assim ficarem a saber o que se ia passar.

A minha Luana ficou dentro do carro até ao último momento. Estava visivelmente enervada e dizia-me que não conhecia ali ninguém. Eu tentei sossegá-la dizendo-lhe que logo se ia sentir integrada entre aqueles rapazes e raparigas com ar de estudantes, roupas à moda, etc. Lembrei-lhe que quando foi para universidade também se tinha sentido assim, pois tinha ido para uma terra estranha, com colegas de casa que não conhecia e agora, dois anos depois, encara a aventura do Erasmo em terra de costumes e língua estranha .


Era impossível não me vir à memória e também acabei por lembrar o dia da minha inspecção.

Nasci na localidade de Fervença, porque a minha mãe tinha ido visitar a irmã e por isso fiquei para sempre ligado a uma terra e uma freguesia onde nunca vivi.
No dia da inspecção lá estava eu. Também não conhecia ninguém pois não tinha frequentado escola e embora alguns trabalhassem na mesma empresa que eu, não os conhecia, nem eles a mim.
Mas que diferença. Em 1969 os jovens na província eram duros, curtidos pelo o trabalho nos campos e nas fábricas, ou dos dois. Falavam com uma irreverência, ao verem-se nus, gozavam uns com os outros mau grado e mau olhado dos militares recrutadores, que faziam a parte que inspeccionavam alguém. Só cegos, ou sem uma perna, ou sem um braço eram rejeitados. Se tivessem outro problema escondido, a seu tempo ele viria a lume e se veria o que fazer.

Ainda tenho na memória a cena na Junta de Freguesia. Despíamos-nos numa sala e lá íamos em fila, todos como viemos ao mundo, uns mais tímidos, outros mais descarados, as bocas, os dichotes e as risadas sucediam-se.

Três militares já com alguma idade, tentavam impor a ordem ameaçando já com porradas, etc. Mas aquilo ainda eram frangos do campo e ia ser difícil metê-los na capoeira. Não perdíamos pela demora, pensavam os examinadores e com razão.

Na verdade, pese o problema da guerra, ninguém queria ficar livre, pela carga negativa que isso acarretava, pois ficar livre era ficar à parte, era ter qualquer coisa grave, enfim era uma grande porra.

O dia da inspecção era pois transformada numa grande festa, era chegar à idade adulta, éramos uns homens a partir dali. A farra durava até às tantas, com copos e uma visita à Espinheira, onde éramos acolhidos por umas senhoras “benfeitoras”, que aviavam a malta à vez, com a certeza que a GNR não aparecia nesses dias para estragar um “convívio” tão salutar.

Era de praxe e foi ali na fresquidão dos pinheiros e eucaliptos, em locais criteriosamente “seleccionados”, que muitos de nós tiramos as dúvidas que nos assaltavam noite e dia. Se era a direito ou atravessado!

Às 17 horas lá estava eu no largo fronteiro ao quartel, quando vi os nossos jovens participantes neste dia, a saírem ordeiramente em duas filas perfilando-se com a Bandeira Nacional à sua direita, para assistir ao arrear da dita, com toda a cerimónia, pompa e circunstância, que o momento impõe. Com grande pena minha, do facto não tenho fotos, pois esqueci-me do telemóvel. Seguidamente destroçaram até porque começava a chover muito.

Hoje levantei-me bem cedo pois andar na IC19 não fácil. Olhei pela janela e vi gaivotas a sobrevoarem os prédios construídos pelo J. Pimenta nesta enorme urbe que é a Reboleira há quase cinquenta anos. Tão longe do mar denota o mau tempo que se lá faz sentir. Também me fizeram vir à memória de quando elas poisaram nos mastros do Niassa, dois dias antes de chegar a Lisboa, mas nessa altura não era o mar revolto que elas anunciavam, eram notícias de boas-novas.

Quanto ao Dia da Defesa Nacional já no carro, disse-me ela que tinha sido uma seca e eu acredito.

Um abraço
JA
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16711: Estórias do Juvenal Amado (54): Aida, lembras-te de quando eu quis ir a Huelva?

sábado, 12 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16711: Estórias do Juvenal Amado (54): Aida, lembras-te de quando eu quis ir a Huelva?



1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 10 de Novembro de 2016, com mais uma estória para a sua série:


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

54 - Aida, lembras-te de quando eu quis ir a Huelva?

Conheço-a desde sempre

Vivemos por períodos juntos ora em casa da nossa avó em Alcobaça, onde se juntavam os primos todos, ou em casa dela na rua da Saudade ali mesmo junto ao castelo de S. Jorge, quando éramos crianças e já adolescentes.

Mais tarde em saborosos fins-de-semana em que o meu tio nos visitava em Alcobaça e nas férias em Monte Gordo, onde eu tinha lugar de irmão mais velho, que tinha por missão afugentar a rapaziada mais afoita.

Está claro uma coisa era a missão, outra a comissão e assim eu não a chateava e ela apresentava-me as amigas, os dois namoriscávamos um para cada lado. Naquele tempo era coisa de responsabilidade, nós conhecíamos os limites dos dias passados na praia e as noites no Firmo, no Bowling, no cinema ao ar livre e de vez em quando, no Casino de Monte Gordo, que funcionava como discoteca com musica ao vivo.

Está claro que o meu tio de vez em quando trocava-nos as voltas e não a deixa ir. Eu acabava por solidariedade ficar com ela e amigos/as no bar do próprio parque de campismo.

Um dia o meu tio perguntou-me se eu não gostava de ir a Huelva. Era para mim uma novidade, pois nunca tinha saído de Portugal e aquela travessia de barco, passear noutro país, outra língua, outra forma de viver tão perto, mas que se provou ser muito longe para a época, era apetecível.

Eu estava na idade militar e a coisa era bicuda. O meu tio,  oposicionista ferrenho ao Estado Novo, já tinha urdido um plano pois sabia que o chefe da PIDE era o dono das bombas de gasolina e com cartão de um major,  seu cliente, que mais tarde conheci quando estava para embarcar para a Guiné, apresentou-se lá para que ele desse autorização para eu ir até ao outro lado da fronteira, talvez comprar caramelos e voltar.

Quem é que ia a Espanha e não trazia os afamados caramelos com pinhões ou simples?

No dia aprazado lá foi o grupo todo com idades que variavam entre os 16 e os 18 anos até Vila Real de Santo António e,  enquanto o meu tio, vencendo alguns escrúpulos, se apresentou ao sujeito, nós ficamos na esplanada das próprias bombas, esperando o resultado das negociações, que foram infrutíferas, como era bem de ver.


Eu, de óculos escuros, no dia em que quis ir a Huelva mas que não passei da esplanada das bombas de gasolina

Com muito cuidado com o que dizia, pois como se sabe, não é de bom tom falar em cordas em casa de enforcado, meu tio ofereceu-se para deixar o carro, mais um depósito em dinheiro, mais fotocópias dos cartões de identidade, etc, etc, mas nada demoveu o famigerado zelador da inviolabilidade do território nacional.

A decepção não foi grande por já ser esperada. Lá voltamos para a praia e para as noites encaroladas, que ficaram sempre na minha memória.




Em 18 de Dezembro de 1971

Não querendo jurar falso, deviam-me faltar três anos para ser incorporado e já tinham medo que eu fosse e não voltasse. Vivíamos num país de muros altos e a nossa participação naquela guerra não foi a escolha de muitos, mas que por diversas razões para o bem e para o mal resolveram nela participar.

Assim só fui a Espanha em Agosto de 1974, estive em Madrid 15 dias,  ali perto do estádio do Santiago Bernabéu, mas naquele dia não pude ir a Huelva.

Um abraço para todos
JA
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14462: Estórias do Juvenal Amado (53): O 25 de Abril faz 41 anos e eu continuo um incorrígel sonhador