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domingo, 16 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23713: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte III: Colocado em Farim, na 1ª CCAÇ, em junho de 1963, fica logo encantado com as beldades femininas locais e convida-as para ir a uma sessão de cinema do senhor Manuel Joaquim


Guiné > Região do Oio > Farim > Bairro de Nema > s/d > Cortesia de Carlos Silva, publicado, a preto e branco, no livro do Amadu Bailo Djaló, na pág. 61-


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim  (1954) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Farim, Nema e K3


Guiné > Região do Oio > Carta de Jumbembem  (1954) > Escala 1/50 mil >  Posição relativa de Farincó e Fambantã, a norte de Farim, e junto à fronteira com o Senegal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)


1. Continuamos a reproduzir, aqui no nosso blogue, alguns excertos do livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa Associação de Comandos, 2010, 229 pp., capa a seguir, à esquerda). O livro está esquecido, a edição está há muito esgotada, mas o Amadu Djaló continua na nossa memória e nos nossos corações. (*)

Não é demais sublinhar que se trata de um documento autobiográfico, único (até à data nenhum dos antigos militares que integraram o Batalhão de Comandos da Guiné publicou as suas memórias), indispensável para quem quiser conhecer a guerra e a Guiné dos anos de 1961/74, sob o olhar de um grande combatente luso-guineense, que teve de fugir da Guiné depois da independência e que em Portugal se sentiu tratado como um português de 2ª classe.

Membro da Tabanca Grande desde , tem mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue (onde foi sempre muito estimado e acarinhado em vida).

Em homenagem à memória do nosso camarada Amadu Djaló (futa-fula, nascido em Bafatá, em 1940 e falecido em Lisboa, no Hospital Militar, em 2015, com 74 anos), e com a devida vénia aos seus herdeiros, à Associação de Comandos (que oportunamente, ainda em vida do autor, editou o seu livro de memórias, entretanto há muito esgotado), e com um especial agradecimento ao Virgínio Briote que, na qualidade de "copydesk" (editor literário) e grande amigo do autor e coeditor jubilado do nosso blogue, nos facultou o "manuscrito" (em formato pdf), vamos reproduzir aqui mais umas páginas do seu livro. 

Depois da sua paisagem por Bedandam, nosul, na região de Tombali, onde esteve na 4ª CCAÇ como condutor, desde dezembro de 1962 a junho de 1963, e que não lhe deixou saudades, o Amadu Djaló conseguiu ser colocado na 1ª CCAÇ, em Farim, junto à fonteira com o Senegal. Este execrto é o relato dos seus primeiros dias por lá. 

 
Colocado em Farim, na 1.ª CCAÇ, em junho de 1963, fica logo encantado com as beldades femininas locais e convida-as para ir a uma sessão de cinema do senhor Manuel Joaquim  (pp. 58-64)

por Amadu Djaló 
 
Quando regressei a Bissau [, vindo de Bedanda] (**), apresentei-me no dia seguinte, pelas 7h00, na CCS do QG e a novidade que tive foi que a 1.ª CCaç já não se encontrava em Bissau [1]. Entreguei a guia de marcha ao comandante da companhia que ma devolveu por eu não pertencer à CCS. Como não via forma de ver a minha colocação resolvida, ainda me lembrei de ir à 4ª. Rep, outra vez ao major Simões, mas não chegou a ser preciso.

Na 1ª. Repartição entreguei a guia de marcha ao 1º. sargento, que depois de a ler, disse ao sargento Ribeiro que tinha aqui um homem. Mandaram-me apresentar no dia seguinte, com a minha bagagem. Ia para Farim, junto à fronteira norte com o Senegal. Esta conversa curta com o sargento Ribeiro, um bom homem, foi o início de uma amizade.

Então no dia e hora acertados, encontrei, junto ao portão do QG, uma camioneta coberta de lona e junto a ela, o 1º sargento Ribeiro, o condutor, um 1º cabo de etnia papel e um soldado balanta, militares que eu não conhecia. Coloquei a minha bagagem na camioneta, que ia com um carregamento de conservas de sardinha, atum, cavalas, leite condensado, manteiga, margarinas, óleo e azeite.

   Subam e acomodem-se o melhor possível    disse-nos o sargento.

Saímos de Bissau, pouco passava das 8h00 da manhã e chegámos a Farim por volta das 12h30. Para me prevenir precavi-me com um saco de conservas de sardinha e outro de leite condensado.

Com a bagagem na mão, dirigi-me para a caserna e coloquei-a em cima de uma cama que me disseram estar vazia. Depois fui tomar um banho que bem estava necessitado. Mudei de farda e fui dar uma volta pela tabanca.

Depois do jantar seguiu-se um jogo de bisca, para distrair um pouco. Como tínhamos de substituir companheiros que estavam de serviço, saí da caserna para respirar um pouco de ar puro, quando vi três oficiais a dirigirem-se na minha direcção.

    Onde estão os condutores?

   Eu sou condutor!

 –   Não dormimos no quartel e queremos ir dormir. E a viatura não pode ficar fora do quartel. Se arranjarmos um condutor para regressar com o jeep, já podemos entrar.

Ofereci-me. Um dos alferes pegou no volante e conduziu até aos quartos. Satisfeitos, agradeceram e entregaram-me o boletim da viatura devidamente assinado.

No dia seguinte, depois do pequeno-almoço, fui entregar o boletim da viatura e soube que a distribuição das viaturas já tinha sido feita pelo 2º sargento mecânico. Quando lhe entreguei o boletim, ele perguntou-me se eu era condutor.

   Claro que sou, meu sargento!

–  Então, quantos condutores temos cá? Aguentem, ninguém sai daqui!

Foi ao 1º sargento esclarecer-se e informaram-no de que tinha vindo um condutor de Bedanda, que era mais antigo e que, portanto, tinha direito a uma viatura.

Nova forma, um dos novos vai ter que esperar por viatura, até que haja alguma acabada de reparar. Era o António, o soldado condutor mais moderno, a quem lhe tinham entregue uma GMC e que veio para as minhas mãos. Distribuídas as viaturas, arrancámos para a minha 1ª saída rumo a Fambantam, com passagem por Farincó.

Eu nunca tinha conduzido uma GMC. Estranhei, com o acelerador a fundo, não passar dos 30 a 40 kms/hora. Quando cheguei a Fambantam, cheirava a queimado.

Um 1º cabo, negro, mais antigo na vida militar e na companhia, aproximou-se e disse:

   Parece que tens alguma coisa ligada, está a cheirar muito a queimado!

Subiu para ir verificar e descobriu que os redutores estavam ligados.

 – Faltou pouco para queimar o disco   arriscou ele.

Pois, no regresso andei bem, sem mais problemas, embora me tenha ficado a dúvida se teria sido alguém que tenha ligado os redutores, quem sabe para me comprometer.

No meu terceiro dia em Farim, fui dar uma volta pelos bairros. Ainda não conhecia o Adulai Djaló, que era familiar meu no bairro de Nema, muito perto do aquartelamento e que viria a ser meu companheiro.

No caminho encontrei uma moça, aí de 20 anos, e pus-me a falar com ela. Chamava-se Aissata Djaguete Djaló e tinha um bebé com menos de um ano. Era órfã de pai e mãe e divorciada do chefe do bairro de Sinchã, chamado Mode Sore Djare Djaló. Para além do bebé tinha a seu cargo três irmãos mais novos e era ela quem tomava conta deles. 

Era uma história triste e vi que precisava de ajuda. Eu era soldado, o meu vencimento rondava os 120 e poucos escudos [cerca de 50 euros, a preços atuais],  pouco podia fazer por ela. Convidei-a para minha lavadeira e continuei o meu passeio em direcção a Sinchã. Neste bairro noventa por cento da população era futa-fula.

Junto a uma casa vi duas raparigas, uma a fazer tranças no cabelo da outra. Nunca tinha visto uma cena com tanta beleza. Fiquei ali a fazer-lhes companhia.

Uma chamava-se Fatumata Bamba Djaló, a outra Mariama Juto Djaló. Fatumata estava casada com um homem de meia-idade. O pai tinha-a forçado a casar-se, apesar de não ser essa a vontade dela. A outra, a Mariama, ia casar-se no Senegal, dali a duas semanas.

Depois de termos passado a tarde inteira a conversar convidei a Fatumata a ir comigo ao cinema. Se não tinha dinheiro, como ela disse, eu pagava o bilhete. Combinámos encontrar-nos em casa de Aissata Djaguete, que a Fatumata disse ser sua conhecida.

Despedi-me delas por uma tarde tão bem passada e dirigi-me a casa de Aissata.

 – Conheces Fatumata Bamba? Convidei-a a ir comigo ao cinema e ela ficou de vir aqui encontrar-se comigo. E tu, Assumata, queres ir também?

Que sim, que gostava muito.


Guiné > s/l > s/d > Manuel Joaquim dos Prazeres, caçador e empresário do cinema ambulante, com a sua velha Ford de matrícula nº G 05, segundo informação do Amadu Djaló que, por volta de junho de 1963, assistiu, acompanahdo de duas bajudas, a uma sessão de cinema,

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Um senhor chamado Manuel Joaquim percorria todas as vilas e cidades num carro, o nº 5 [2] de matrícula da Guiné, a passar filmes e nesse dia encontrava-se em Farim.

No refeitório já estava todo o pessoal a jantar. Comi muito pouco, estava muito alvoroçado, ia encontrar-me com uma rapariga com uma beleza que eu nunca tinha visto. Quase a correr dirigi-me para casa de Aissata, mas a minha convidada de honra ainda não tinha chegado. Vi uns rapazitos por perto e pedi a um que fosse dizer a Fatumata que eu estava à espera dela, mas que fizesse tudo para que o marido dela não soubesse. O rapaz encontrou-a, ela vinha a correr na nossa direcção.

Juntos os três dirigimo-nos para o salão de cinema, comprei os bilhetes e cada uma sentou-se, comigo no meio delas. 

Do filme não guardo recordação, mas lembro-me que, no intervalo, quando as luzes se acenderam, reparei que o capitão, meu comandante de companhia, estava sentado atrás de nós. Com ele estava também o Alferes Almeida, do esquadrão de Bafatá[3], que estava destacado em Farim e que me fez um sinal. Mal o filme acabou,  peguei nelas e arranquei dali. Depois levei Fatumata a casa.

Demorei-me um pouco e, no regresso, encontrei na estrada de Nema para o quartel o jipe do capitão. O que vou fazer? Fugir, esconder-me? Decidi ficar onde estava, na berma da estrada, até o jipe parar um pouco à frente.

 – O que andas a fazer aqui, a esta hora?

 – Fui ao cinema, meu capitão.

 – O cinema já acabou há muito! Tem cuidado em andar sozinho a esta hora. Sobe!

Foi um fim-de-semana inesquecível. Mais tarde quis casar com ela, mas o pai não deu o consentimento, disse que me autorizava a casar com a irmã mais nova, chamada Mariama Bamba Djaló.
__________

Notas do autor ou do editor literário, Virgínio Briote ("copydesk")_

[1] Desde 1 Julho 1963 instalada em Farim.

[2] G-05

[3] EREC 385. Em 2ago62, rendeu o EREC 54, em Bafatá, ficando integrado no dispositivo do BCaç 238 e depois do BCaç 506. Teve um Pelotão destacado em Farim, na dependência, primeiro do BCaç 239, depois do BCaç 507 e finalmente do BCav 490. Tomou parte em diversas acções de patrulhamento e de contacto com as populações, tendo actuado, a partir de 18mar63, em diversas regiões, nomeadamente em Poidom-Ponta do Inglês 
[Xime], Aldeia Formosa, Cumbijã e Nhacobá, entre outras, e destacou diversos efectivos para guarnecer diversas localidades, como Xitole, Camamudo e Geba. Em 22jul64 foi substituído pelo EREC 693 e recolheu a Bissau a fim de efectuar o embarque de regresso. Fonte: História da Unidade.

[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
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Notas do editor:

(*)  Vd. postes de:


22 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão

(**) Vd. poste de 14 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8859: Notas de leitura (283): Tarrafo, de Armor Pires Mota: censura e autocensura, em tempo de guerra. Cotejando as edições de 1965 e 1970 (Parte II) (Luís Graça)




 Excerto de Tarrafo, de Armor Pires Mota (1ª edição, Aveiro,  1965), p. 127. Este título foi substituído por "É com ferro estrangeiro", na 2ª edição (Braga, 1970), p. 192.


Continuação do poste P8830 (*):

1. Do livro de crónicas sobre a guerra colonial na Guiné,  Tarrafo, da autoria de Armor Pires Mota, há duas edições: a primeira, de 1965, logo de imediato posta fora do mercado, pela polícia política de então; e uma “2ª edição, autorizada” (sic), de 1970.

Possuímos, da 1ª edição, um exemplar fotocopiado, provável cópia de um exemplar autografado, pertencente à Biblioteca do Seminário de Aveiro (de que o autor foi aluno) . Tem, além disso, diversas páginas com o carimbo “Confidencial” , além de cerca de um centena de parágrafos e frases sublinhados, possivelmente com ordem de eliminação ou sugestão de correção.  

Segundo o próprio autor, são marcas da PIDE, como ele próprio escreveu ao Beja Santos:

" (...) Finalmente, fiz seguir os livros, entre os quais o Tarrafo. Esgotado que está, envio-lho fotocopiado, um dos exemplares 'vistos' pela PIDE. É o único que tenho e que me veio às mãos quase por milagre. APM"

Possuímos, por outro lado, na biblioteca da Tabanca Grande,  um exemplar da 2ª edição (1970). Cotejando as duas versões, verifica-se que o autor eliminou todas as referências ao nosso armamento e equipamento, por razões supostamente  de “segurança militar",  impostas pelos "censores" (por exemplo, caça-bombardeiro T-6, espingarda automática G-3, rádio transmissor AN/PRC 10)… 

O mesmo se passa com alguns topónimos e datas, referentes à atividade operacional da CCAV 488, a que pertencia o Alf Mil Cav Pires Mota… E muitos dos parágrafos e frases assinalados com marcas dos "censores", no exemplar da 1ª edição, foram eliminados ou, no mínimo, revistos na versão de 1970 (publicada pela Pax Editora, de Braga).

Na I parte deste nosso texto de "notas de leitura" (*), vimos, a título de amostragem, e num primeiro resumo, que os censores em tempo de guerra fazem questão de esconder, escamotear ou ignorar, por exemplo, certas situações sociais de miséria que eventualmente poderão ser exploradas pela propaganda inimiga, tanto no plano interno como a nível internacional (por ex., as crianças de Bissau, a prostituição no Pilão, a fome de mulheres, crianças e velhos no mato)…

Estupidamente ou não, os censores querem por outro lado suavizar a própria violência da guerra (e o realismo dos combates), incluindo o comportamento dos combatentes debaixo de fogo… Sem que se saiba exatamente o que vai nas suas cabeças, preocupam-se aparentemente com o moral da retaguarda, procurando de algum modo subestimar ou sub-valorizar a força do inimigo...Aconteceu historicamente em todas as épocas e em quase todas as sociedades...

Referências à atividade operacional e a agressividade do IN, são eliminadas ou suavizadas na 2ª edição deste "livro de crónicas". Por exemplo, títulos como aquele que se reproduz acima ("Cem casas de mato", p. 127, 1ª edição) são inadmissíveis aos olhos dos "censores"... E na edição de 1970, o autor é obrigado encontrar um título mais neutro: "É com ferro estrangeiro" (referência à origem do material de guerra apreendido pelas NT, de diversa proveniência: 1 metralhadora Bren BK1, 1 pistola metralhadora Thompson, 2 carabinas Mosin Nagan)...

O autor relata, neste episódio, o assalto a (e a destruição de) um acampamento IN, em Fambantã, no setor de Farim (se não me engano), a 6 de Março de 1965. As fotos da pág. 129, mostrando a destruição do acampamento, foram retiradas. Também se explora, por outro lado,  os pontos fracos do IN, mas isso não levanta obviamente qualquer objeção por parte dos "censores", bem pelo contrário (mesmo mantendo a menção às tais cem casas de mato): 

(...)"Tão grande acampamento [, cem casas de mato,]  causou-se admiração, de certo modo, porque de facto, eles não se moviam muito há uns meses para cá. Apenas nos roubaram algumas vacas que andavam na pastagem e tentaram atacar o quartel à bazookada, mas falharam os intentos, porque caíram numa emboscada montada pelos fulas, Além disso, estão com os azeites: uns querem como chefe de zona Mamadú Indjai [, mandinga, que será gravemente ferido na Op Anda Cá, no Sector L1, Bambadinca, em Agosto de 1969]; outros não. Que deem com a cabeça nas árvores, que se esfolem e se matem. Trará vantagens. Outra causa, que os leva a não se mexer muito, é a fome. Só têm uma refeição por dia, às 9.30. Depois cada um que se oriente com as raízes e frutos selvagens" (edição de 1965, pp. 128 e 130).

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Tarrafo (2ª edição, 1970): o dia a dia da guerra de contra-guerrilha, no T0 da Guiné, entre Junho de 1963 e Junho de 1965, contado pela primeira vez na primeira pessoa do singular, por um comandante operacional, alferes miliciano, da CCAV 488, natural de Oliveira do Bairro, região da Bairrada,  onde nasceu em 1939. Reprodução das palavras do autor na contracapa. Tarrafo (1ª edição, 1965) é já a promessa do grande escritor que depois se veio a revelar Armor Pires Mota.
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Veja-se também, na 1ª edição, o parágrafo, a páginas 21/22, sobre o que se passava em Mansabá, em Outubro de 1963, com a guerra do gato e do rato: os “bandidos” punham abatises na picada, durante a noite, as NT removiam as árvores cortadas durante o dia…

(…) “ Depois, as coisas continuaram na mesma com poucas variantes. Eles punham de novo, noite dentro, as árvores que nós tirávamos até ao meio dia e derrubavam ainda mais. O estendal começou a tornar-se verde e seco. E assim andámos a fazer este jogo, até que resolvemos nós derrubar todas as árvores à beira do caminho. Mas nem assim nos deixaram em paz muito tempo, fazendo rebentar debaixo das viaturas dois fornilhos e, emboscados, carregaram” (…) . 

A referência aos "fornilhos" também desaparece subtilmente na edição de 1970 (pp. 38-43). Em boa verdade, os "fornilhos" sempre foram,  no TO da Guiné, talvez até mais do que as minas, o tipo de engenhos explosivos que mais terror nos causavam...

A descrição de ferimentos nas NT, o sofrimento dos feridos,  e a imediata prestação de socorros, pelos enfermeiros, também eram situações a eliminar ou a suavizar… (p. 22). 

Por outro lado, nessa época, ainda a G3 tinha coronha de madeira e os nossos camaradas usavam capacete (p. 24).

São anos de brasa, esses, em que mudou profundamente a geodemografia da Guiné, posta a ferro e fogo: aldeias inteiras foram destruídas, Mombocó, Cai, Flora,. etc.; populações inteiras são deslocadas...  E em que não se perdoava, de um lado e do outro,  a traição ou não colaboração (pp. 32/33). A história do “agente duplo” Malan (, antigo guerrilheiro, feito prisioneiro, depois reabilitado e posto ao serviço das NT como guia) fica a meio caminho, ou seja, fica  por contar o seu desfecho, na 2ª edição (1970)…

(…) Malan enganou. Ninguém sabia até esse dia que ele era engajador. Levava bajudas às casa de mato para noites de orgia. Nem ninguém sabia que ele era informador também do outro lado e tinha um rádio escondido numa mala.
- Mim bandido… Tropa amigo. Perdão!
Mas ninguém lhe perdoou.” (p. 33).


2. Notável, entretanto, é a descrição da travessia da bolanha, a caminho de Flora, em Novembro de 1963 (pp. 35-36). O autor vai buscar memórias da sua infância, os sargaços da Ria de Aveiro, mas também as suas leituras de guerra, a Indochina, o “Amanhecer no Pântano” (p.36), do “grande [Jean] Lartéguy”, acrescenta ele, na 2ª edição (p. 62).

Outra referência literária é o Platero, da obra homónima (Platero y yo, 1927) do poeta  espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958),  no episódio “Um burro com sorte, Bissorã, 24 de Novembro de 1963” (p. 37/38).  Platero é a alcunha do burro, aprisionado em Fajonquito…

(…) “Gosto do meu Platero e, ao cair da tarde, de armas a tiracolo, vou dar-lhe de beber ao rio.
- Arre, bandido! Goss, goss… (p. 38)…

3. A terminar esta 2ª parte das minhas "notas de leitura" do Tarrafo, escritas em plenas férias de verão, convirá fazer o seguinte aviso:  não há aqui, da minha  parte, nenhuma crítica subjacente ao autor no subtítulo: "censura e autocensura em tempo de guerra"... Sou um simples leitor, apaixonado, complacente, atento, crítico, curioso...

Não escrevi crónicas de guerra nos jornais da época, como Armor Pires Mota... Podia tê-lo feito, embora me faltasse a motivação. E também não o fiz pela simples razão de levar a sério a existência e a omnipresença da censura, no meu país...  Escrevi cartas a amigos, a partir do TO da Guiné, que nunca cheguei a pôr na caixa do correio... Queria entregá-las pessoalmente, na altura das férias... Acabei por nunca o fazer... Também nunca escrevi aerogramas, porque achava que eram ou podiam ser facilmente censurados... E as relativamente poucas cartas, tranquilizadoras,  que mandava para a família, com fotos minhas, nunca falavam da guerra... Eu também fiz autocensura. L.G.



 Tarrafo, 1ª edição,. 1965. Indice da obra, pp. 157-158. Comparando com a edição de1970, há títulos que foram retirados ou substituídos. Outros foram acrescentados (em 197'0)


(Continua)

Lourinhã, Agosto de 2011

[ Texto redigido em conformidade com o Novo Acordo Ortográfico: L.G.]

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Notas do editor:

(**) Último poste da série > 3 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8850: Notas de leitura (282): Do Cacine ao Cumbijã, 67 Guiné 69, de Guilherme da Costa Ganança (Mário Beja Santos)