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sábado, 17 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1605: A reportagem da TSF e o regresso do Vitor Tavares a Guidaje (Albano Costa)

1. Mensagem do Albano Costa:


Caro Luís Graça:

Emocionei-me ao ouvir aqueles sons do interior da Guiné, os diálogos das pessoas, ao sentir como falam, o silêncio para fazer sobressair o piar dos pássaros... Senti tudo, eu que ao fim de vinte e alguns anos lá voltei, logo senti aquele cheiro de que pensava já não me lembrar... Até nesta reportagem feita pela TSF o cheiro de África voltou novamente (1).

Luís, esta semana para mim é mesmo de nostalgia, mas ao mesmo tempo de alegria, imaginar o Victor Tavares em Guidaje (2), terra em que vivi oito meses da minha passagem pela guerra do ultramar (para eles, guineenses, de libertaçãoa. E agora esta reportagem... Como deves cálcular, vem tudo ao de cima... Como sinto aqueles tempos, na altura difíceis! ... Mas porque não fazermos deles, agora, a trinta e mais alguns anos de distância, tempos de alegria, ouvir aquele povo dócil, ouvir o Leopoldo Amado (ainda não o conheço a não ser agora de voz)...

Parabéns, e ao Carlos também, pelo projecto AD, pelo projecto Guiledje... Não se deve desistir, por uma Guiné melhor.

Confesso, que tenho uma certa dificuldade em ultrapassar as minhas emoções quando falamos da Guiné, mas com paciência lá vai, tem de ser!...

Quando estive na Guiné em 2000, vi alguns macacos, mas muito poucos. É preciso que o governo os proteja, para não serem extintos.

Um abraço, Albano Costa (3)

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1583: Sons e emoções: o Cantanhez e o Dari, a terra ardente e vermelha, a gente boa (Torcato Mendonça / Zé Teixeira)

(2) Vd. 8 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1573: O Victor Tavares, da CCP 121, a caminho de Guidaje, com uma equipa da TVI (Luís Graça)

(3) O Albano esteve em Guidaje, durante a sua comissão na Guiné (CCAÇ 4150, 1973/74). Voltou à Guiné, com o filho, Hugo Costa, em Novembro de 2000. O Hugo voltou lá novamente em Abril de 2006.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)

Capa do Livro Diário da Guiné - Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007. ISBN: 9789898014344. Preço: € 22.

Foto: Guerra e Paz Editores, SA (2007) (com a devida vénia...)

1. Mensagem do António Graça de Abreu, novo membro da nossa tertúlia:


Meu caro Luís Graça e tantos, tantos companheiros dos anos de Guiné:

Após ter enviado o pedido de inscrição no blogue (1), aqui fica uma contribuição para o nosso mundo da Guiné.

Chamo-me António Graça de Abreu, fui alferes miliciano no CAOP 1 em Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa e Cufar entre Junho de 1972 e Abril de 1974.

Desses anos escrevi na altura um Diário Secreto que se manteve secreto até meados de 2006. Decidi então dar-lhe a forma de livro e ele aí está, acabado de sair, com o título Diário da Guiné, Lama, Sangue e Água Pura publicado pela Guerra e Paz Editores (2).

Para o site dos companheiros e camaradas da Guiné deixo alguns excertos do livro, com as nossas vidas lá dentro.

Contem comigo, somos uma grande família unida por um tronco comum, sólido, carcomido, torto, imponente e altivo, os anos da Guiné.

António Graça de Abreu

2. Aqui ficam alguns excertos do Diário da Guiné (2):

Canchungo, 6 de Agosto de 1972

Depois de jantar, estava no bar de oficiais com o Bagulho, o alferes médico, e chamaram-no de urgência ao hospital. Peguei no jipe e fui lá levá-lo. Havia uma criança a nascer.

A primeira vez que entrei numa maternidade foi na barriga da minha mãe, a segunda vez foi hoje. Entrei curioso na pequena sala do hospital que funciona como maternidade no momento exacto em que o bebé nascia, saía com a placenta, ensanguentado do ventre da mãe, a pele quase branca. O Bagulho fez rapidamente o seu trabalho de médico e deixou o recém-nascido ao cuidado da enfermeira negra. Pediu-me que o acompanhasse até uma sala mais pequena, do outro lado da parede. Havia uma criança a morrer.

Um bebé de quatro meses agonizava. A mesma enfermeira que cuidava agora do recém-nascido, há umas horas atrás exagerara na distribuição do soro à criança doente cuja vida se extinguia diante dos nossos olhos. O Bagulho pediu-me para eu ir buscar uma botija de oxigénio. Mas a válvula da botija estava avariada, não regulava a distribuição do gás. O médico suava, eu também. Nada se podia fazer. Extinguia-se uma vida por doença, incompetência, falta de meios. O miúdo morria.

Sempre o supremo milagre: entre nascimento e morte, caminharmos sobre a terra.

Canchungo, 7 de Agosto de 1972

Tenho de descobrir mais palavras carregadas de chuva, vento, electricidade, faíscas –é influência da tempestade tropical que neste momento assobia, ruge lá fora! – e também de encontrar palavras iguais a bonança, serenidade, paz.

A poesia é maleita boa que só me dá de vez em quando, tenho porém a consciência de que a minha prosa, os meus poemas são fracos. Disperso-me muito, agarro-me à vida, navego pela dor no espanto do calor dos dias. Escrever. Eu tento, mas não tomo todo o fôlego, não sei ainda atirar a baforada de vento capaz de enfunar as velas do galeão das palavras.

Ficheiro áudio com ataque a Cufar, 20 de Janeiro de 1974

Junto envio também uma transcrição de um ataque no dia 20 de Janeiro de 1974 e também um link com o ficheiro audio com o respectivo ataque.

http://pwp.netcabo.pt/0240632001/ataqueguine.mp3

Gostava muito de ver estes meus (nossos) textos no seu blogue da Guiné.
Abraço, António.

Cufar, 20 de Janeiro de 1974
(…)
Boum, boum, pum, catrapum, pum.
- Aíestá, um ataque!...Caralho! Um ataque, foda-se!
Tá, tá, tá, tá, tá.
-Um ataque, caralho! Venham mais. Aí vêm elas!...
Boum, boum…
-Tumba, um foguetão, caralho!...
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, pum.
- Dá mais, Manel! Estamos a levar no coco, estamos a “embrulhar”, caralho!
Pum, catrapum, tá, tá, tá, tá, tá, tá…
-Espera aí um bocadinho!
Boum…
-Espera aí que me eu vou-me já vestir, espera aí um bocadinho!
-Tumba, aí vem outra… Toma lá mais!...Espera aí um bocadinho, João…
Boum, boum…
-Estou-me a vestir, é preciso é calma!
Boum, pum, pum…
-Espera aí um bocadinho, estou-me a vestir, é preciso é calma.
Boum, boum…
-Estamos a embrulhar, caralho! É preciso ter calma. Estou no meu quarto. Hoje é o dia…
Boum, boum…
-Tumba, tumba, tumba!...
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, pum, catrapum, pum...
-Espera aí. Eh, com um filha da mãe!
Boum, boum…
-Ah, grande embrulhanço! Manda mais, João!
Boum, boum…
-Toma lá mais!...
Tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, catrapum, pum, pum, boum, boum...
-Isto é a sério, isto não é a brincar.
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, pum, pum…
-Olha p’rá aquilo! Porra, estamos a embrulhar, o que é preciso é calma!... Estou-me a vestir…
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, pum, pum…
-Já estou vestido.
Boum, boum…
-Porra! Tumba, tumba, aí vem outra, aí vai outra!...
Pum, pum, pum, pum, boum, boum…
-Caralho!
Boum, boum, pum, catrapum, pum, pum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, boum, boum…
-Porra, estão todas a cair p’ra ali, caralho!...
Tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá…
-Aí vêm outras. Eh, eh, eh! Já estou vestido.
Boum, pum, pum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, boum, boum…
-Aí vem outra!
Pum, pum…
- Tumba! Devem vir mais.
Boum, boum…
- A lógica da guerra, pá, é impressionante! Eu estava aqui sossegadinho, pá, elas começaram a cair… Aí vêm mais, aí vêm mais!...
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, pum, pum, catrapum, pum, pum…
- Deixei-me estar sozinho aqui no quarto, mas estou nervoso! Os nossos amigos estão a lembrar-se de nós!
Pum, pum…
- Tumba, tumba!
Boum…
- Ah, Cufar de um caraças!... Eh, eh! Guiné, Guiné, 20 de Janeiro de 1974!.. Ah, caraças!...
Boum…
- Isto é morteirada! Ora bem, deixa lá apagar a ventoinha. Só mandaram estas?...
Boum, pum…
- Aí vai outra! Aí vem mais! Isto agora são morteiradas nossas. Aí vai outra!
Boum…
- Já acabou o ataque?... Vamos embora, já estou cá fora!
(Meti o gravador ligado a gravar no bolso da perna direita do camuflado e fui ter com os meus soldados.)
Boum, pum, pum…
- Toma, toma, porra! Aí está!...
Estão bem?...
Boum, pum, pum…
(Voz de soldado):
- Se calhar a minha tabanca deve estar mas é toda fodida!
Boum…
(Confusão de vozes).
- Foda-se. São nossas ou são deles, caralho? Já acabou, os gajos?...
(Voz):
- São nossas.
Boum…
(Voz de soldado)
- Não gravou isto, meu alferes?
- Está a gravar, oh, homem, está a gravar esta merda!
Boum…
- Já acabou. Aí vai mais, caralho! Quem é que está aí metido na vala, deitado no buraco?
Boum…
(Confusão de vozes)
- Aí vai mais uma, toma lá mais fartura!
(Voz de soldado):
- Isto é RPG que rebenta no ar e rebentou uma canhoada.
Boum…
(Voz de soldado):
- A minha chinela, perdi a puta da sapatilha.
(…)
- Os gajos já pararam. Agora são só nossas. Os gajos já não estão a mandar nada, agora é o obus de Catió.
(Voz de soldado):
- Carrega-lhe, é o primeiro ataque do ano. Os cabrões atacam até acabarem as munições. Mas cuidado com os gajos no fim do ataque…
(…)
(Confusão de vozes)
(Voz de soldado):
- Vê se encontram a minha sapatilha.
Boum…
- Oh, Loureiro (soldado condutor do nosso CAOP1), o que é que você está a fazer deitado no buraco?
(Soldado Loureiro):
- Estava entretido…
(Voz de soldado):
- Agora já acabou, mas pode vir ainda uma retardada, mas isso é pouca coisa.
(Voz de soldado):
- Eu vi o very-light no ar e depois, foda-se, foi sempre fogachal.
(Confusão de vozes)
(Voz de soldado ):
- Olha se eu estivesse na minha tabanca lá em baixo, deve estar toda fodida…
(…)
(Voz de soldado):
- Alguém viu a minha sapatilha?...
Boum…
(…)
- Espera aí que eu vou mijar, estou a precisar!
(Voz de soldado)
- Oh, meu alferes, não mije para dentro da vala, caralho!
- Oh, pá, não faz mal.
(Voz de outro soldado):
- Ora, um gajo, num ataque, mesmo com merda e mijo, e tudo, vai!
Boum…
(Voz de soldado):
- Eu perdi a minha sapatilha, isso é que foi o caralho!

___________


Notas de L.G.


(1) Vd. post de 5 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1498: Novo membro da nossa tertúlia: António Graça de Abreu... Da China com Amor

(2) Segundo a agência Lusa, em notícia de 30 de Janeiro de 2007, "o livro abrange o período final da guerra naquela ex-colónia, com a experiência do autor, fotografias, documentos da época e excertos de aerogramas enviados a familiares em Portugal.

"António Graça de Abreu, nesse período oficial num Comando Operacional na Guiné, decidiu, 'depois de ter lido as cartas de António Lobo Antunes', que era tempo de relatar também a sua experiência. 'Passaram-se 35 anos desde o fim destes conflitos e ainda vive muita gente desse tempo que também guarda estas memórias. Cerca de um milhão de homens passou pela África e teve experiências muito fortes na guerra», declarou o autor à Agência Lusa.' " (...)

António Graça de Abreu nasceu no Porto, em 1947. É licenciado em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa e mestre em História pela mesma Faculdade.

Viveu na Alemanha (1966/1967) e foi um dos muitos militares que participaram na fase final (1972-1974) do conflito militar que então dilacerava portugueses, guinéus e a terra mártir da Guiné-Bissau.

Entre 1977 e 1983 trabalhou em Pequim, República Popular da China, onde foi tradutor nas Edições de Pequim. Leccionou Língua e Cultura Portuguesa nas faculdades de Línguas Estrangeiras de Pequim e Xangai.

Muito ligado ao mundo chinês, tem onze livros publicados na área da Sinologia, da poesia e dos estudos luso-chineses, com destaque para a sua tradução Poemas de Li Bai, Grande Prémio Nacional de Tradução do Pen Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores (1990). Professor do ensino secundário, leccionou Sinologia na Universidade Nova de Lisboa (1986/88) e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (1997/99).

Fonte: Guerra e Paz Editores, SA (2007)