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domingo, 2 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12666: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (12): Era uma vez...

1. Em mensagem do dia 31 de Janeiro de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos este comentário para integrar a sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

12 - ERA UMA VEZ...

Decidira ontem, não voltar a explorar a minha memória e até porque julgava eu que nada mais haveria para lembrar, só que hoje no post 12640, publicado na nossa Bíblia "Luís Graça & Camaradas das Guiné" li: "Eu Queria pra Brancos Voltar Governar Guiné de Novo".

Revolveu-se tudo cá dentro e então, cá venho incomodar-vos o intelecto.

E a esse propósito:
Vou-me encontrando de quando em vez, em convívios da Tabanca da Linha, com a rapaziada que esteve na Guiné e como não poderia deixar de ser a guerra vem sempre à baila, embora na maioria das vezes, relembrando locais por onde passámos.

Eu que vagar tenho, vou-me esforçando por entender o porquê daquele horror, que tantos mazelas custou a esta juventude, que nos anos 60 e 70 do Séc. XX teve de ir combater.
Refiro-me a mim próprio e aos bravos companheiros que partilhamos a mesa nos tais convívios atrás referidos e claro que a todos os que como nós estiveram depois, usufruindo daquelas férias em terras africanas.

Acontece que fui investigar e lá me apareceu um "austrolopithecus africanus", coisa assim mais macacal, do que dizem terem sido os nossos antepassados. Curiosamente os primeiros conhecidos teriam sido descobertos na África do Sul, afinal ali bem perto da nossa Guiné, (aqui no meu mapa está a 10 centímetros).
Posteriores estudos descobriram que na mesma época já existia uma raça melhor desenvolvida, inteligente e explorada, que ficou conhecida pelos "alentejanuspithecus", que personalizo e qu'até já utilizavam instrumentos para cavar a terra, tais como a enxada e o arado, coisas que permaneceram milhares d'anos, para proveito dos pobres patrões fascisantes. Entrementes agora, que estou a acender mais um cigarro cuido-me a ler: "Fumar pode reduzir o fluxo de sangue e provoca impotência".

Ora porra... e eu a julgar que era da idade, afinal parece que se deve ao facto de há 57 anos fumar.

Sim... porque comecei aos 14 com os "Provisórios", passando depois a meio do mês para os "mata ratos" e já mais no final do dito mês, até as barbas de milho ou folhas de balsa, devidamente moídas, serviam.

Mais tarde, (na minha Guiné) e somente a título informativo, passei para o "Paris"... "Três Vintes", logo após o que e considerando o invento dos filtros apensos à chucha, para o "SG Gigante" qu'era maior.

Nunca me deu muito jeito, confesso, foi o ter de embrulhar o conteúdo das onças de tabaco "francês" ou "superior", no papel "galo" ou "zig-zag" que no final, haveria de se lamber a mortalha e como uma vez cortei o lábio desisti dessa coisa do meter a língua de fora.

Bom... acho que me estou a afastar do tema.
Vamos lá regressar ao dito:
A afirmação desejo, que considero arrojada, dum jovem que poderá vir a ser alguém (assim o espero) não é inédita e outros já o tinham dito antes. Verdadeiramente e como disse um camarada combatente "ela já se deu... os brancos da droga já lá mandam".
De qualquer forma atrevo-me a propor que se consulte o seu povo através desta coisa nova a que chamam Referendo.
Tal já foi feito em países civilizados como na Austrália onde se perguntou se queriam ser independentes ou continuar ligados aos cinco tostões Britânicos. Preferiram a Coroa, por muito estranho que pareça e até mesmo ali em Gibraltar, local duma pedra grande, a população quis também ficar como nos antigamente.
Por isso digo: referendem e caso necessário, a gente volta sim senhor.

O IN sempre se fortaleceu com os nossos medos, só que agora o IN seríamos nós, eu pelo menos tenho-lhes umas ganas!!! Não para os combater, ou fazer qualquer mal, mas apenas para tentar educá-los, civilizacioná-los, ajudá-los enfim.

Em boa verdade, o que se está a passar lá, onde deixámos muito sangue suor e lágrimas e deste há muitos anos, ronda a bestialidade.
Bestialidade que usaram contra nós, só que a continuaram contra eles próprios, desde que lhes demos de mão beijada a independência. E não me venham com a história de que eles venceram, porque na verdade tal não aconteceu. Nós é que desistimos... nós oferecemos.

Nem vale a pena tentar tapar o sol c'a peneira pois que a verdade é só uma não duas ou três, como já tenho visto teóricos defenderem (sempre os mesmos que se escondiam debaixo dos GMC's e no ar condicionado).

(continua)

PS: - Continuarei a "estudar o porquê daquele horror... etc, etc, etc", prometendo-vos que de tal vos darei conhecimento.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12638: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (11): Março de 1967, aproximava-se o fim da comissão de serviço

domingo, 26 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12638: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (11): Março de 1967, aproximava-se o fim da comissão de serviço

1. Em mensagem do dia 16 de Janeiro de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

11 - APROCHEGAVA-SE O FIM DA COMISSÃO MILITAR 

Março de 1967

Já vos contei antes, que criei uma equipa de futebol, lá na minha Repartição mas depois convidado fui para dar a preparação física ao Sporting de Bissau, onde o treinador era um 2.º sargento amigo, de Portalegre.
Tive até de treinar a equipa durante um mês. Estudei uma nova táctica que pus em prática de imediato. O importante final é que a bola não chegasse próximo da nossa baliza. Por isso dei ordens aos jogadores que não queria cá fintas ou passagens, de uns para os outros, e disse:
- Quando a bola estiver ao vosso alcance, chutem, chutem de qualquer forma para que ela saia do nosso meio campo. Lá à frente só quero dois à melosa.

Nos quatro jogos disputados, só ganhámos um aos Balantas de Mansoa, (empatámos a zeros os outros três) com um golo monumental meu, jogador nesse dia, metido fora de jogo, mas convém acrescentar que o árbitro era meu amigo e tinha sido ameaçado por mim myself com retaliações... sim... que na altura não se ofereciam cousas boas com'ó milho. E lá diz o ditado: se queres ver um pobre toleirão... mete-lhe quelque chose avec... na mão e eu prometera-lhe ...já se ma não alembra o quê...


A guerra fizera de mim, um xico-esperto mas cheio de força, arrogante qb e desejoso sempre de entrar em conflitos, resolvê-los na boa ordem e acima de tudo ao abrigo da lei do mais forte. E por isso... como eu me identifiquei com umas imagens há dias mostradas num canal de TV !!!

Em qualquer País que não reparei qual, um árbitro de futebol amandou duas galhetas num jogador depois um valente murro noutro que avançava malandrosamente para o agredir. É que eu fui assim e assim fiz, quando regressei da Guiné e reactivei o prazer de andar com um apito na boca, já que não podia andar de G3 dentro do campo.
Vinha cheio de força, sedento de sangue fresco, isento não era, não fui e nem conhecia quem o fosse e por isso, quando o povo do futebol, se atrevia a chamar-me nomes, fazia-lhes frente, acintosa e provocadoramente e se preciso fosse afinfava-lhes mesmo, qu'essa coisa do medo ficara bem lá longe "onde o sol castiga mais" (sic, Paco Bandeira).

No fundo eu estava a ser um prazentoso utilizador do que aprendera na sociedade militar onde passara 40 meses e sabia bem dar o valor, não aos temores, mas há camaradagem e à vida e a disparar se necessário. E só deixei de ser apitador, quando vergonhosamente, resolveram pôr redes à volta do campo. Aí sim disse para comigo: - "Não pá... assim não... então a turba chinga-te, ofende-te, chama nomes à família, fere-te na tua hombridade e tu não podes subir à bancada, enquanto páras o jogo que recomeçará com bola ao solo, e partir as trombas ao ofensor?"

Eu era, eu era não... eu sentia-me ou começava a sentir-me um renegado da Pátria, que apenas permitira que a defendesse, mas qu'agora começava a esquecer o que por ela fizera.
Voltei também há vida artística, ou seja a minha voz voltou a fazer as delícias das avós, filhas e netas, que compareciam nos bailes onde o Conjunto musical (Sôr-Ritmo, se chamava) actuava ao vivo... naturalmente e pelos vastos palcos da República Federal do Alto-Alentejo e até nos Países limítrofes do Ribatejo e Beira-Baixa.


Mas... e ainda em Bissau, o Abril aproximava-se e fui convidado para ficar pelo menos mais um ano, naquela função chata mas não perigosa e confesso que tremi entre o ficar ou não. Acabei por vir embora, mas arrependi-me depois. Voltei mas o coração ficou lá. Ficou lá em Mansabá... em Manhau (e aqui para além do coração ficou também a alma)... em Bissorã... no Pelundo... em Jolmete... e no K3.

Os sentimentos desapareceram depois em Bissau, nos horríveis nove meses finais. O Uíge trouxe a CCAÇ 1422, e foram cinco belos dias, de contactos e promessas para encontros futuros, o que não aconteceu. A rapaziada era toda de sítios dispersos, a maioria do Centro do País, gentes pobres que na sua maioria emigrou, mas com os poucos que ficaram sempre nos íamos vendo quando passavam por Lisboa, onde acabei a procurar e consegui, dias melhores, profissionalmente entenda-se.

A Guiné?
Pois foi importante e de tal maneira que ainda hoje vivo tudo o que de bom e de mau por lá passei.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12605: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (10): Fevereiro de 1967 - Aproveitamento dos tempos livres de Bissau

domingo, 19 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12605: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (10): Fevereiro de 1967 - Aproveitamento dos tempos livres de Bissau

1. Em mensagem do dia 16 de Janeiro de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

10 - APROVEITAMENTO DOS TEMPOS LIVRES DE BISSAU

FEVº DE 1967

Em Bissau, no poilão, conheci alguém que se dizia, irmã do Amílcar mas nunca me interessou saber se o era mesmo, só gostava de a ouvir dizer, que e tal como eu, nem o podia ver.

Ouvi a voz da Rádio Argel ou Portugal livre, sei lá... e não gostei, bem como a Rádio Moscovo e ena pá... era um fartote de dizer mal de nós, dos nossos governantes, tal como hoje alguns fazemos, dos actuais. Por isso e não valendo a pena estar desinformado, mudava de canal que já nessa época era possível zappingar manualmente a rádio.

Dediquei-me à nossa, das Forças Armadas e como o Durão houvera sido também do meu pelotão, sempre ia transmitindo umas musiquinhas a meu pedido.

Tendo tempos livres aproveitei para "tirar" as cartas de condução militares. Já fora chofer de tudo o que havia com volante, desde jeep's, Unimogs, GMC's, Daimler's, mas aqui na cidade convinha ter um papel assinado, qu'os gajos da polícia, limpos e perfumados, eram beras com'ó caraças e pouco inteligentes, porque se atreviam a ser não só provocadores, mas também abusadores dos poderes que lhes atribuíam e não poucas vezes assisti a situações que poderiam ter vindo a originar verdadeiras cenas violentas.

Eram a Polícia... bonitos e bem fardados... de lenço ao pescoço e tudo, e até conheciam o local, onde estavam aquartelados, comendo do bom e do melhor. Piores que cuspideiras, que destas sempre podíamos fugir, quando derrubávamos os cibes e as víamos, quase posso afirmar que perderiam a fanfarronice se tivessem de combater na mata.

Só se não metiam com os fuzileiros que a experiência sempre deu mau resultado.
Era lindo de se ver como fugiam a sete pés quando os bispavam.

Bissau, começava a ter muitas mulheres Portuguesas, esposas dos ilustres. Inicialmente olhadas como se d'outro Mundo fossem, agora misturavam-se com a pasmaceira citadina e andavam livremente, não sem um ou outro dixote mais atrevido.

Criei uma equipa de futebol na 1.ª Rep, onde fui treinador, jogador em qualquer lugar (sim porque o que eu queria era manter-me activo), os jogos eram marcados para as manhãs de Domingo e deviam terminar na confraternização almoçaral... e assim se ia passando o tempo.

Se repararem na foto, notarão que o dono da bola, sou eu.


De pé, a partir da esquerda: Veríssimo Ferreira, Aurélio, Mila Filipe, Brilhante, Pimenta, Silva e Nunes. Em baixo, a partir da esquerda: Silvestre, Paiva, V. Carvalho, Pinto e Sizenando


Não haviam chuvas agora e as tardes descambavam em passeios à piscina de Nhacra ou até em alegres petisqueiras de camarões em Quinhamel. O tiroteio ouvia-se cada vez mais estrondoso e perto.
Tudo caminhava bem para mim, mas roía-me continuadamente o meu próprio caminho feliz. Bastas vezes me apeteceu desistir e dizer com'ó meu pai: Vão pró Vatícano pázinhos (leia-se vatí, ou seja com acento no "i").

Mais tarde tive de lhe perguntar porque não Vaticano. Respondeu-me e percebi então que usava vatí pela mesma razão que carregava no primeiro "á" daquela palavra tão linda que define o órgão sexual masculino (?) e cujo nome não sei dizer nem ficava bem numa crónica deste estilo galhofoso, educativo e quiçá... quiçá... embora fosse palavra bem corrente na nossa linguagem.

Enquanto briosos militares qu'éramos, vulgar era o "vai pró... (isso). Era um intelectual o meu pai, creiam, aliás como sempre o foi e ainda hoje é recordado aqui perto, em Belas, onde como carteiro, cumpria a sua missão na tasca ali ao lado do rio na Rua Victor Córdon, onde fazia a distribuição, mas com regras que ele próprio estabeleceu, ou seja: quem queria saber se tinha correio, teria de pagar primeiro um copo de "três".

GANDA PAI, que pena tenho de não ser como tu foste.

Foram-me dadas hipóteses de conhecer gentes bem importantes, civis, e foram-se fomentando algumas boas relações entre quem ainda pensava Português, tanto que ainda hoje, quase 48 anos passados, embora poucos, somos amigos e contactamos.

Apreciávamos boa música, boas comidas, boas bebidas e as nossas conversas, foram-me dando conhecimentos que nunca poderia usufruir doutra forma.

Também começava a ser mensalmente possível ter contactos, com moças "verdianas" que ali vinham passar oito dias, em viagens de barcos comerciais que passavam por Cabo-Verde.

Musicalmente surgiu uma melodia que me obrigou até a comprar um "vira discos" e o próprio disco da "Aline," coisa bem linda cantada por um tal de Cristophe e eu que já julgava ter perdido a capacidade de sonhar, voltei a fazê-lo durante os momentos d'ócio.


Também o "Il Mondo" de Jimmy Fontana foi outro dos meus favoritos.


Depois veio o Gianni Morandi com o seu "Nom son degno di te" e lá se me agudizou o romantismo latente então.


Os versos mais pareciam terem sido escritos por mim e como que prestasse uma homenagem de despedida da Guiné, que fora minha nestes últimos 20 meses. Aquele verso "Num monte de pedras, pode nascer uma flor", que ainda hoje preservo ficou como um marco histórico e mais nenhum poeta me emocionou tanto ou escreveu, o que considero um grito de esperança.

COISAS, enfim, duma pobre mente, então e hoje ainda depauperada.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12577: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (9): Novembro de 1966 - Qual guerra?

domingo, 12 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12577: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (9): Novembro de 1966 - Qual guerra?

1. Em mensagem do dia 7 de Janeiro de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o nono episódio da sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

9 - NOVEMBRO DE 1966

Qual guerra?

Erguia-me do leito nupcial... chegava o pequeno almoço de meio quilo de rim cortado ós códradinhos e frito quando não grelhado... a rega com a cervejola preta de 6dcl, café... digestivo... e acima de tudo com a companhia das minhas mulher e filha.

Bissau - Natal de 1966 - Veríssimo Ferreira com a sua filha

O que me era devido estava agora a ser pago, os privilégios continuavam, mas que me sentia mal, sentia, sabendo das dificuldades que a rapaziada ia tendo lá nas matas, donde as notícias continuavam a ser piores do que antes. Notava-se que as coisas não estavam bem, também e porque o IN estava a ser agora ajudado por mercenários cubanos, tendo o próprio Guevara por ali andado. Constava que combatera no Congo e que se oferecera para nos fazer frente, tendo depois desistido quando soube que éramos OS PORTUGUESES, os tais das "ARMAS E OS BARÕES ASSINALADOS".

Meteu o rabo entre pernas e foi pregar para outra freguesia. Mas, nos locais mais problemáticos, o cansaço ia causando estragos e só com muita valentia se ia dando conta do recado. Contudo, nunca a esses heróis se lhes deu a devida importância. Éramos então na Guiné cerca de 22 mil.

Certo dia chega uma comissão de estrategas americanos que vinham estudar como era possível, que com tão poucos ainda conseguíssemos por ali mandar. Ouvi o que disseram no fim e para além dos elogios às Tropas Portuguesas, sugeriam que só nós resolveríamos o conflito que eles mesmo tinham no Vietname e com forças vinte vezes superiores. Se mais não fosse, considerei-me satisfeito e pedi para que isso fosse transmitido para o mato, mas qual quê... iam lá atender ao pedido dum furriel.

O Natal de 1966 chegou e a festa fez-se, só que na hora da distribuição de prendas fui alertado para ir até ao Hospital Militar, e aquela que prometera ser uma feliz noite, transformou-se para mim num verdadeiro calvário.
Cinco dos nossos jaziam na laje fria.

A 28 fiquei de novo só, mas a vida tinha de seguir em frente... o fim do ano estava aí... fizeram-se os bailes... haja alegria... que se lixe se a dor continua... que se lixe se a guerra continua... que importa lá isso!!!
Também dancei... também bebi mais que todos os impávidos e serenos... também me exaltei...

E o ano de 1967, chegou cheio de hip's hip's e copos a transbordar, para aquelas gentes alegres que nem memória pareciam já ter. E eu a um canto chorava de tristeza e dor (e por isso mariquinhas me chamei) mas decidi e amandei-lhe com mais um Vat 69.

Tudo voltou depois à normalidade e eu ao meu trabalho, cada vez maior. Nos mentideros, ia-se ouvindo falar de coisas quase sem nexo, mas que confirmadas eram tão reais, como o facto de que onde estivessem Companhias de Açorianos, não havia mais lutas. Teriam sido zonas de perigo, mas que eles foram pacificando, constando-se até, que na mata se ouviriam gritos IN's de: "Fujam que são os Açorianos."

Mais constava que por isso é que os mandavam logo dali pra fora, pois que não convinha a muito boa gente, que a guerra terminasse. Coisa estranha... não é?
Como é possível admitir que haja a quem não conviesse acabar com a guerra? Maldizentes... pensei eu, qu'até conhecia de quem falavam.

Conhecia eu e conhecemos todos decerto, particularmente os milicianos (furriéis e alferes) que na mata comandaram substituindo quem o devia e ganhava para o fazer. Cala-te boca...
Honrosas excepções existiram também, de gentes dos quadros profissionais, que se enlameavam nas bolanhas... que não abandonavam os seus e qu'até abominavam o ar condicionado.

Entrementes fui-me cultivando desaprendendo. Desaprendendo com aquele gente teórica, que não passara, pelas Mansabás, Manhau's, Bissorã, Guileje, Madina do Boé e quejandos, mas que enchiam o peito, com o pseudo-heroísmo balofo, jamais vivido.

Comecei a conhecer os verdadeiros significados doutras palavras, tais como: Medo... ganância... traição... demagogia... deserção... subserviência... engraxadorismo... lambe-botas... o que convenhamos era demasiado para o labrego que eu era e que só fora habituado a ser honesto.

E como combati para assim me manter!!!
Não foi fácil porque o aliciamento era mais que muito.
Consegui sair intacto embora me tenha tornado mais rude e desesperado com a porca da vida, mas mais que nunca, preparado para a enfrentar e enfrentei.

Azedo fiquei?
Talvez... mas valeu a pena que continuo com uma consciência pura e bela e que jamais me condenou.
Quiseram que entrasse em palhaçadas? Pois quiseram, mão não conseguiram, fiquei apenas pobre, mas isso já era.
Quiseram recalibrar-me? Pois quiseram, só que nessa altura viram a G3.

Estão a querer fazê-lo de novo em 2014?
Pois estão... mas tenham cuidado e sejam carinhosos, que ainda estou assadinho... e nem o talco tem resultado.
Não me codilhem mais, meninos do governo, senão vou-me a vocês e decerto não se salvarão dumas palmatoadas, ou então obrigar-vos-ei a comer uma dobrada liofilizada com feijão branco, à moda do K3.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12518: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (8): Meados de Julho de 1966, O futebol move montanhas e o Natal de 1966 passado com a família

domingo, 29 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12518: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (8): Meados de Julho de 1966, O futebol move montanhas e o Natal de 1966 passado com a família

1. Em mensagem de 24 de Dezembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o oitavo episódio da sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS - 8

1 - MEADOS DE JULHO DE 1966 

Se houve quem nasceu com o dito virado prá lua, eu fui um desses.
Do horror ao paraíso, foi um ápice.

Pois, agora por Bissau fiquei, cheio de imerecidas mordomias, com muitos afazeres... mas até ao cinema ia... vejam bem! E ao futebol pois então!
Lá na minha repartição, comecei a perceber muitas coisas, procurei alterar as que me pareciam menos bem e foi assim que elaborei um estudo que deu em relatório, onde propunha que os familiares de vítimas de acidentes não tivessem de pagar para que sepultassem os seus na Metrópole.
O Senhor General Arnaldo Schulz foi sensível à questão e resolveu-a de imediato, concordando connosco. Para essas situações era assim que funcionava, contrariamente ao que acontecia com os vitimados em combate, ou resultantes disso.

Recentemente muito se falou dos casos em que houve camaradas que tiveram de ser sepultados lá mesmo. Há contudo que analisar e pelo que me passou pela mão deixem-me que elucide:
- Em mensagem a dar conhecimento para Lisboa, do falecimento, e consequente informação às famílias, também se pedia o seu acordo para aceitar a trasladação sem custos. Por muito estranho que possa agora parecer e que na altura para mim, representou uma verdadeira dor de cabeça, houve, poucos... diria um ou dois por cento, em que ou a família recusava ou nem família se conhecia. Assim ali ficavam, no talhão próprio em Bissau, mas sempre com as honras militares prestadas, e quando possível com acompanhamento também de camaradas das Companhias de que tinham feito parte.
Esclareço contudo, que também não concordo que por ali estejam hoje ainda muitos dos nosso camaradas sem uma flor, sem uma furtiva lágrima em Novembro pelo menos.
O próprio País poderia ter criado um local qualquer em Lisboa e que poderíamos venerar como quando visitamos o monumento junto à Torre de Belém. Na verdade nem tudo está perfeito e que se recupere, assim hajam vontades.

Depois?
Bem depois, fui-me adaptando e integrando naquele doce bem-estar mas sem perder de vista o que se passava lá pelo meu K3 e recebendo a rapaziada que por motivos de saúde ou em férias vinham até à capital.
Junto dos órgãos competentes fui conseguindo algumas poucas atenções, particularmente no que se refere ao fornecimento de géneros alimentícios de que a Companhia tanto necessitava.

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2 - O FUTEBOL MOVE MONTANHAS

Mas nem tudo foram tristezas.
Certo dia 23/7 apareceram dois gigantes que nos deram uma grande alegria apesar de terem provocado o caos, com "bazookas" partidas por tudo o que era estrada ou caminho. É que estivemos a perder por 3 a 0, mas na 2.ª parte tudo mudou com as 4 batatas do rei Eusébio e mais uma do Zé Augusto.
Pode parecer estranho, mas foi como que recuperássemos novo alento. E ver também os autóctones contentes, foi demais. Primeiro bebeu-se para afogar o desalento da 1.ª parte... depois rebebeu-se... rebebeu-se... lindo mesmo, bem como lindo foi ver aquela desordem toda.

A PM bem tentou evitar o reboliço provocado nas ruas, dada a euforia qu'os 5 a 3 originaram, mas desistiu pressionada pelos Fuzileiros que mais contidamente lá iam resolvendo a coisa.
Tal como hoje, a paixão do futebol movia montanhas... fazia esquecer o sofrimento.

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3 - O NATAL DE 1966 PASSADO EM FAMÍLIA

Aproximava-se o Natal que poderia festejar como pertence e passou-me pela cabeça que o deveria fazer ali em Bissau com a família, ou melhor, com a minha mulher e a minha filha de 3 anitos.
Considerando a boa estrela que me acompanhava fui fazendo démarches pr'áqui e pr'áli, e na verdade em Outubro chegam as autorizações para a viagem em avião militar.
Arrendei casa, preparei-a nos conformes e em meados de Novembro aí estão para uma estadia que durou mês e meio ou seja permaneceram comigo até 28 de Dezembro.
Aí vai uma foto da chegada e outra tirada no dia de Natal de 1966, esta junto ao cais.
Reparem bem na minha felicidade.



E ENTÃO? Nasci ou não com o dito virado prá lua?

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12487: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (7): A minha ida para Bissau

domingo, 22 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12487: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (7): A minha ida para Bissau


1. Em mensagem de 17 de Dezembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o sétimo episódio da sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

7 - A minha ida para Bissau

O ter de afastar-me e goss goss, da minha CCAÇ 1422, passados que tinham sido 11 meses após a chegada à Guiné, não foi nada fácil.
Havia criado amizades sinceras, dera a minha também, mas motivos poderosíssimos não permitiam que por ali devesse ficar, salvo se resolvesse abandalhar-me e esquecer toda a minha educação. Daí que me tenha proposto, ir combater para Bissau já que havia pedidos indicando que cada Companhia Operacional deveria "deixar" dois elementos com experiência, oferecerem-se para tal. Estávamos em finais de Junho de 1966, após testes fui admitido, só que houve quem decidisse acabar-me com a mama e vai daí... abdicaram dos meus préstimos.

Mandaram-me aguardar na CCS/QG, que novas ordens receberia.
Desconfio que me não quiseram, porque não convinha que eu ganhasse já a guerra, sabendo-se que na Metrópole, milhares de mancebos ansiavam para vir conhecer este pedacinho d'África.
E óspois... acabei mesmo colocado na cidade só que na chefia duma Secção chata com'ó caraças.

Cumpri mais do que se me era exigido mas com a plena consciência de que teria de fazer-se.
Sofri que nem um cão abandonado e assim me senti com a falta da sã camaradagem do mato... sem o uso da G3 agora substituída pela Walter 9mm... pela falta da adrenalina diária... e até pela saudade dos combates onde não atirava contra, tão somente a meu favor e dos camaradas ao lado.

Nas tarefas quotidianas, mais fáceis, competia-me zelar pelas, beleza e limpeza, do cemitério.
As difíceis... desde o reconhecimento de camaradas falecidos, os contactos com Lisboa, a organização dos processos fúnebres, a entrega dos corpos nos embarques para a Metrópole.
Era pesaroso, complicado demais, mas fez-se à custa de quebrar com os sentimentos tomando uns cálices inebriantes, que me conduziram quase aos alcoólicos anónimos mas doutra forma não poderia exercer a função.


Conheci novas pessoas nas vidas civil e militar, alguns... bêbados com'a mim.
A urbe continuava ausente do conflito e com pouco interesse do que se passava para além da sua fronteira e pior... ausente no respeito devido aos combatentes, ali presentes forçadamente e por demasiado tempo, lutando por causas que não eram suas, mas cumprindo com o derramamento do seu sangue... com muito suor... lágrimas.
Doía-me ver esse desapego civil embora as excepções também existissem.
Só nós militares, mantínhamos uma atitude generosa, não deixando transparecer o que nos ia na alma.

Com instalações soberbas em Sta. Luzia, resolvi em comunhão de despesas com dois elementos do Conjunto das Forças Armadas, alugar um apartamento ali na baixa de Bissau, por cima do Pintosinho e bem perto do cais e da Amura. Vista para o Geba, limpeza a tudo bi-semanal, lavagem da roupa e etc, etc, incluídas no preço, qu'até nem era caro: cem pesos a cada um e por mês.

Quando liberto, acidentalmente, do cargo qu'agora desempenhava, ali estava eu olhando a azáfama portuária.
Apercebi-me então de coisas deveras estranhas e que me deixaram estupefacto, como por exemplo o verificar que os trabalhadores se desunhavam para conseguirem ser dos que podiam transportar as sacas de farinha... é que ficavam brancos !!!

E as ostras, pàzinhos? Quem as não comeu?
Descobertas que foram por mim, degluti-as senão todos os dias... quase.
Abertas ou fechadas, aquilo foi cá uma garganeirice !!! Mas que culpa tinha eu de gostar manning? E depois... ainda não houvera provado nada semelhante que lá no rio Sôr não tínhamos.
Foi um regabofe à moda antiga ou com limão ou sem ele, e regadas convenientemente com tinto gelado... verde e carrascudo.

Até ao jantar na messe, não comia mais nada. Para aí me deslocava em transporte particular (um mini-moke) posto ao meu serviço e as horas para trabalhar eram conforme e consoante.
Ficava depois na minha 1ª REP/QG a corrigir e aperfeiçoar os processos pendentes e, quando não e porque tinha livre acesso via passe em meu nome, nos navios que transportavam de e para a Guiné, as nossas tropas, aproveitava também algumas das benesses oferecidas, bem como a permanência no bar sempre aberto.
Contactei in loco com quem viera prá festa e com quem saíra do Inferno.
Para os primeiros tive de mostrar alguma complacência, calando-me, pois que vinham cheios de força ingénua, igual àquela com que eu mesmo chegara... nada de temores... com elevado moral, salvo num ou outro caso isolados.

Havia ENTÃO, uma juventude Portuguesa para quem as palavras HONRA E DEVER não eram palavras vãs.
Os mariquinhas pé-de-salsa, fugiam para França.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12453: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (6): O Higino Arrozeiro e as lições de francês

domingo, 15 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12453: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (6): O Higino Arrozeiro e as lições de francês

1. Em mensagem de 10 de Dezembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

6 - O Higino Arrozeiro e as lições de francês

Confuso andei anos e anos, no que respeitava à data da minha chegada ao K3, confusão que hoje 8 de Dezembro de 2013 se foi, pois que em conversa com um camarada da CCAÇ 1422, de quem não mais soubera desde o regresso, fui informado que teríamos ido para lá em princípios de Novembro de 1965.

Passámos a tarde recordando os amigos mas lembrámos acima de tudo e com muita mágoa, aqueles que nos deixaram, vitimados que foram pela minas colocadas por mãos assassinas inimigas. O primeiro foi o Fur. Mil. Higino, em Maio/66, mais tarde o Capitão Corte Real, em Junho/66.

Tive conhecimento do primeiro caso, aquando de férias na Metrópole e no segundo, estive presente e mesmo ali ao lado.
Qualquer DELES foram pessoas que mereceram a nossa estima e que também no-la deram e de quem temos muitas saudades.
Quer um quer outro, fizeram amizades, eram excepcionais na maneira como lidavam com todos, mereciam ter tido melhor sorte... o que lá vai lá vai , mas na nossa memória continuam por cá.

O Higino havia-me pedido prái em Fev/66 mais ou menos, para lhe ministrar umas lições de francês, língua que ele percebera que eu sabia, dadas as cartas que me vira receber duma moça francesa que se prestou para ser minha "madrinha de guerra" coisa na altura muito em voga. (e que bem fazia à rapaziada ter alguém do lado de lá, dando carinho e atenção).
Ela era de Grenoble, que nem sei onde fica, nunca nos conhecemos pessoalmente e o facto de nos correspondermos deu-se devido a mensagem sua, incerta no Paris-Match".

Dentro daquele espírito saudável da época, partilhámos uma relação cheia de boas coisas e fiquei-lhe imensamente grato pelo que me ensinou e pela paciência com que me aturou.
Dez anos mais velha do que eu, tivera um irmão na guerra da Argélia e teria sido ele próprio a incentivá-la a "amadrinhar" um combatente Português.

Pois o Higino Arrozeiro, queria ir para França, logo após o cumprimento do dever na Guiné a fim de poder melhor ajudar a sua mãe viúva, com quem vivia e daí o estar a pedir-me uma ajudita.

- Vamos nessa pá... tenho nisso muito gosto, vou mandar vir um livro de leitura e a gramática mas entretanto podemos já a ver os primórdios.

Num dos dias seguintes começámos e mandei-lhe para a mão uma peça de teatro que por acaso não chegou a ser representada mas que ensaiei, cujo nome era "O Visconde de Pavia Ranso" e que tinha por lá umas palavras francesas, tais como "chateau du Caramulo", "rendez-vous" e mais umas outras, que seriam reproduzidas pelo galã da peça, o visconde.
Claro que estranhou (mas ia tomando notas) que o "au" se lesse "ô"...; o "du"= "diú" ..; o "en= â...e o "ou"=" ú ".

Chegaram entretanto da Metrópole os livros pedidos.

Quando me preparava para iniciar o "je suis/tu és/ e o "avoir", tivemos a sorte de aprisionar um individuo senegalês (ao que soubemos depois) e que falava fluentemente a língua francesa. Melhor oportunidade não podia haver para que o inquiridor fosse o meu estimado aluno, que cumpriu cabalmente e até se excedeu, não conseguindo todavia a confissão que se pretendia.

O prisioneiro, foi-se recusando a dar as notícias do que sabia até que lá acabou por abrir o jogo e até sem que exercêssemos qualquer pressão, a não ser quando... enfim.

Bom, as lições lá continuaram quando possível e por pouco tempo que os afazeres não o permitiam doutro jeito e quando estávamos já para passar a outros verbos e leituras no livro seguinte, por e devido ao facto de me ter sido dada a hipótese de ir passar umas férias à Metrópole, interrompemos mas deixei-lhe trabalho de casa para fazer.

Sei que os fez que bem os vi, quando regressei, mas ele já cá não estava. Partira depois de a viatura em que seguia a caminho de Mansabá e ali nos "carreiros" local que sabíamos ser sítio perigoso, ter pisado uma mina que o levou sabe-se lá para onde.

 Veríssimo Ferreira, à esquerda, em Bissau com o seu camarada Higino Arrozeiro

Na foto, da esquerda para a direita: Gualter, Higino, (?), Simões, Corte Real e Nuno

Entretanto quase logo a seguir (inícios de Julho) fui forçado a deixar a Companhia e parti para a Secção de Funerais e Registos de Sepulturas, 1.ª Rep do Quartel General em Bissau.

Ali voltei a encontrar o meu amigo, que jazia na capela do cemitério, a aguardar trasladação. Eu mesmo o meti no Niassa embrulhado que estava o caixão, em quatro tábuas, não sem que o tenha admoestado por ir daquela forma. Antes ainda ofereci-lhe com dedicatória... a gramática... o livro de leitura e os trabalhos de casa que ele fizera, e que não corrigi.
E ali no cais do Pigiguitti, cornetim amigo tocou o Toque de Silêncio.
E eu, em sentido, acompanhei-o assobiando e tremendo, até que o barco se diluiu no horizonte.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12413: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (5): K3, Maio de 1966 - Operação Vaca

domingo, 8 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12413: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (5): K3, Maio de 1966 - Operação Vaca

1. Em mensagem de 2 de Dezembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias, com uma história tão triste. Como ele tratou tão mal as suas pombinhas!!!


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

5 - K3, MAIO DE 1966 - Op. Vaca

Estava na hora de propor mais uma operação arriscada e fi-lo.
De quando em vez era necessária... já chateava tanta comida sempre igual. Produtos hortícolas não sabíamos o que eram porque embora vindos de Lisboa, para serem distribuídos também pelos operacionais no mato, raramente lá chegavam.

No caso da minha CCAÇ 1422 dado o percurso até ao K3 ser longo com'ó caraças e com muitos quartéis pelo itinerário das colunas, naturalmente, não se m'alembra que os tenhamos recebido, mas em contrapartida nunca nos faltaram uns ovais garrafões com catorze litros de tinto e até o cor de chá, Vat 69.
Como já estávamos isolados e sem sequer uma tabanca por ali perto onde até por vezes se poderiam adquirir pagando, alguns bens, recorríamos quase semanalmente a truques como o que descrevo abaixo.

Só junto ao arame farpado é que íamos colhendo uns tomatitos nascidos sem serem semeados, mas fora isso nem cheiro de couves, nabos, outros... e frutas metropolitanas. Mas como um bom bife substitui as proteínas, vitaminas e sais minerais dos mencionados e nunca fez mal a ninguém, se acompanhado com um ovo a cavalo e batatinhas cortadas em rodelinhas fininhas, fazíamos periodicamente, uma dessas operações, VACA lhe chamávamos.

Consistia num passeio até à floresta, não muito longe do aquartelamento e trazer alguns pedaços duma ou outra que por ali pastasse e sem ser pertença de ninguém, branco ou preto. Por aconselhamento veterinário, ao que se dizia só lhes podíamos trincar as pernas traseiras... tudo o resto poderia provocar doenças. Quem trazia tais pedaços, era um burro que fizéramos prisioneiro e que sempre nos acompanhava servindo por vezes até de transporte para os mais débeis, qu'era o meu caso, modéstia à parte.

Constituía-se um Grupo entre os desiludidos da porca da vida e lá íamos tal como se fôssemos mesmo para a luta, o que algumas vezes aconteceu, porque em vez de emboscarmos o gado, éramos emboscados nós. Felizmente que nunca nada de grave aconteceu e a nossa missão acabava quase sempre por ser cumprida. Depois era chegar, dividir, e lá se comia um pedaço de carne, assada em brasa de lume... frita... ou guisada, com esparguete, ou apenas. E até parecia parecia Natal.

Um camarada dali perto do Porto, especialista que era em tripas, apesar das recomendações e disso liofilizadas andarmos fartos, trazia sempre tal repasto, qu'amanhava, cozinhava bem picante e lá vai disto... quem se preocupava com possíveis contrariedades? A coisa demorava a ser preparada, mas no fim não sobrava nada, nem sequer um pobre feijão branco e o molho era seco com pedaços de pão, feito de farinha d'arroz e que habitualmente custava a comer pois que parecia pastilha elástica, mas dessa forma até isso se tornava num petisco racionalmente distribuído por alguns, que para todos não dava.
Os senhores oficiais, que também eram convidados e um ou outro até acompanhava de quando em vez a rapaziada, tinham algum receio mas quando a hora, sempre apareciam e deglutiam, qu'a molhança era opípara.

Numa das incursões visionámos ao longe e elegantemente passeando junto a um embondeiro, duas cabras do mato e logo se pensou, que também elas davam um manjar digno de ser apreciado.

Cephalophus rufilatus Gray Sinonímia: Nome vulgar: Cabra vermelha de mato; Local: Pitche; Boé; Catió
Com a devida vénia a triplov.com/

 Estudada a táctica militar para as apanhar, o que teria que ser rápido, para que não fugissem, propuseram-se, dois dos que acertavam numa moeda de cinco tostões a cem metros, a liquidá-las nos trinques. Estrategicamente dispostos no terreno, ia dar e dei, a voz gutural de atirar, porque os alvos teriam de ser atingidos em simultâneo.
O que aconteceu foi que afinal elas caíram por terra mas ao mesmo tempo veio um tiroteio do lado de lá da bolanha, ali a menos de cinquenta metros.

É que o IN, ou outros esfomeados com'a nós, estava a preparar-nos uma recepção pouco amistosa, e quando alvejadas as cabritas eles pensaram ter sido vistos e anteciparam o que poderia ter sido uma tragédia. Em boa verdade, deviam ser bastantes pela poder de fogo observado e foi preferível abandonar o que iria ser um menu digno de réis, que éramos, e sair dali em passo de corrida, que não estávamos preparados para uma festa daquelas dimensões.

Que se lixe... pensámos... haveremos de comer perninhas de gazela, assadas no forno, noutro dia. Carninha tenrinha daquela só era possível depois mas para doses individuais, ao deitar abaixo uns pombitos verdes, que graciosamente e bem gorditos, poisavam nos cajueiros e que eu mesmo chamava assobiando e agitando milho num recipiente barulhento, tal como fazia quando tinha pombos correios.

Aliás deixem que vos diga que tive um campeão de cor acastanhada que foi três anos seguidos o mais rápido a chegar depois da "largada" em Barcelona... e que ultrapassava todos os outros com avanço de trinta minutos upa, upa.

Nesse tempo em que até fui associado da columbofilia. Foi comido mais tarde, ele e os outros, quando mudei para a FAG (Federação de Apertadores de Gasganetes) e que bem me souberam aquelas peitaças estufadas.

E então a canja? BUÉ DA FIXE... meus.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12372: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (4): K3, Maio de 1966 - Um dia de serviço à água

domingo, 1 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12372: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (4): K3, Maio de 1966 - Um dia de serviço à água

1. Em mensagem do dia 25 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias, inevitavelmente dedicado ao resort do K3.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

4 - K3, Maio de 1966 - Um dia de serviço à água

Aquela manhã nascera chuvosa, tal e qual estivera a noite que passei deitado na mata emboscando.

Chegara há pouco ao bedroom, dormira uma hora, mas ergui-me do leito e os pés ficaram logo em água, que por acaso ainda não molhava o colchão de suaves penas.

Peguei nos chinelos de Macau, usados habitualmente nos pés... pois então, trouxe-os na mão porém e até à saída da suite, vim devagar e lentamente para não acordar a minha Secção de Morteiros 60.
Cinco metros e trinta depois e já na rua propriamente dita, escorreguei precisamente no local onde me encontro na foto em anexo e tirada uns dias antes para publicidade turística e lá ficou a gabardina com que dormira, cheia de avermelhada lama.

Reparem: eu sou aquele tipo elegante bem parecido e risonho, que está com o pezinho apoiado, mão direita na cintura, assim estilo varina. Notem também o nº 1421 no chão, que eles sim, (CCAÇ 1421) é que iniciaram a construção do hotel subterrâneo.

Resort do K3 - Veríssimo Ferreira em primeiro plano junto à entrada do seu bedroom

Ia para bater à porta do bar, após ter descido dez degraus, só que estava já aberta e afinal eu não era o único madrugador.
Tomei o petit-déjeuner composto por sopas de pão duro com açúcar por riba mais dois ovos inteiros, fora a casca, e de galinha pedrês, tudo ensopado depois pela cerveja preta de 6dcl, que lhe verti dentro.
Esta era a minha costumada dieta e o encarregado barista, bastava ver-me que logo disponibilizava os ingredientes atrás referidos, para que eu sorvesse com a ajuda duma colher de prata, aquela fugaz e simples refeição matinal de todas as manhãs ao amanhecer.

Lá fora notava-se a rapaziada acordando, qu'o novo dia surgia.

Hoje estava eu de serviço à água, que é como quem diz, lá iria com mais oito ou nove voluntários escolhidos, até Farim, de Unimog repleto de bidons, garrafões e tudo o que mais houvesse, para os encher na fonte.
Até nem era uma operação difícil, pois que enquanto isso, aproveitávamos para nos revezarmos e para ali mesmo ao lado petiscarmos.
Cada qual levava alguns dos poucos morfes sobrantes ainda da remessa que familiares enviaram e para além disso, o taberneiro libanês também vendia alguns razoáveis produtos para as, comezaina e bebezaina.

A tarefa da recolha aquífera terminava três viagens após o início, o que resultava mais ou menos até aí pró meio-dia, hora mesmo boa para deglutir o almoço e o prato do dia era bem bom: o já célebre feijão com dobrada liofilizada à chef.

A distancia do aquartelamento até à jangada que nos passava para a banda di lá, era precisamente de três quilómetros (daí o nome K3)... a estrada com mais do que menos buracos... tudo capinado à volta... vistas largas... "précurávamos" as minas picando só na primeira passagem, já que depois haviam sempre patrulhas de dois ou três devidamente de braço dado com as acompanhantes de luxo, as G3.

A rapaziada ia ao rio banhar-se e pescar. Banhar-se mas só depois de atirar uma ou duas granadas para afugentar os enormes crocodilos que por ali andavam e que eram o sustento de especializados caçadores.
Estes, qu'até, ao apanhar os bicharocos, choravam lágrimas de pescador.
Liquidá-los não era fácil pois exigia a perícia de lhes fazer entrar uma bala entre os olhos, ou em luta corpo a corpo, espetar-lhes uma faca assim como aquela que usávamos lá no meu Alentejo para capar grilos, mas muito maior e no coração.

Vendiam a carne e o bife tenrinho era bestial; o coração feito guisado ou à chanfana não lhe ficava a dever nada.
Negociavam também a pele do monstro, depois de seca;
Monstro que crescia apanhando sol, debaixo do olhar atento da mamã e que nascera dum ovo pequenino;
Pele seca que terminava os seus dias nas montras dos estabelecimentos de malas, sapatos e cintos.

Tal como ontem era... hoje também esse será o fim de todos os mauzões, que por aí andam, só que a estes não se lhes compra a pele, reza-se por ela.

PROFUNDO ESTE FINAL, não é?

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12336: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (3): 1966, ano da construção do primeiro restaurante do K3

domingo, 24 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12336: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (3): 1966, ano da construção do primeiro restaurante do K3

1. Em mensagem do dia 17 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias, este dedicado às artes da construção civil, mais propriamente à militar, e afins.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

3 - K3, 21 Fevereiro 1966 - Projecto para o primeiro restaurante local

Nessa tarde, fui empossado num novo cargo sem remuneração, para quando estivesse com algum tempo disponível, ou seja, "começas amanhã".

Chamado havia sido ao resort dos Senhores Oficiais e como era o dia dos meus 24 anos, pensei que me preparavam uma festinha comemorativa e que triste fiquei porque afinal nenhum se havia lembrado do facto, ao contrário dos meus amigos da Secção de Morteiros 60, com quem partilhei o figadal almoço, tendo ainda estado presentes mais alguns camaradas disponíveis.

Impunham-me sim, mais sob-humanas tarefas, mas compreendi, após os factos explanados, que de facto não haveria mais ninguém com as superiores e sábias condições para o fazer. E assim, fui incumbido pelo Sr. Capitão Cmdt da Companhia, de ser o desenhador-arquitecto-engenheiro, para construir as instalações onde acabaram por ser o restaurante do K3 e anexos, ou melhor dizendo, a cozinha e os lavatórios panelaeiral e marmital.

Que seja... se tem de ser... vamos nessa... amo desafios propostos à minha sobre dotada inteligência.
E porquê eu? Devido ao facto de saber o que era um tijolo? O cimento? A areia e até as pedras? (mas com essas não poderia contar porque ali em Saliquinhedim não havia uma sequer que fosse.)

Dispus-me e elaborei um majestoso plano qu'até me admirou a mim próprio. Para numa mais eficiente, rápida e assaz sei lá o quê, ousei suplantar as técnicas em vigor, decidindo começar pelo telhado em vez de pelas paredes que o aguentariam e dado que se aproximava a época das chuvas, estaríamos pelo menos abrigados. Mas então... disse o arquitecto vaidoso, que gostaria de ser, para o engenheiro cheio de cagança, que nunca serei:
- É pá, começa pelos caboucos e pranta lá os alicerces.

Pensei... pensei... pensei, o que me fez uma bruta dor de cabeça, mas apenas para não criar complicações com estes dois estúpidos do caraças e vendo que até era capaz de resultar, dei razão ao primeiro e assim melhor ficou a minha reputação na resolução de conflitos.
Criei então, uma equipa de malta que não pudesse discutir as minhas ideias, ou seja... aboli à partida todos aqueles que percebessem da arte de pedreiro, pois gosto pouco de ser criticado e sabia que qualquer obra prima, mesmo bela e útil, tem sempre detractores.

A coisa lá se foi fazendo, fio de prumo também não tínhamos, íamos resolvendo a olho nu, e por isso é que as paredes do edifício surgiram sem simetria, qu'é assim como dizer, que deveriam estar direitas de baixo para cima e nunca ao contrário. Ficaram mais ou menos, mas sólidas...
Depois disso, deram-me então razão na questão do telhado só que e porque deveria ser instalado lá no alto, estava ali uma carga extra de trabalhos, mas fez-se com cibes. Mandei também fazer duas portas, uma para a entrada e outra para a saída e vice versa e mais quatro janelas, duas maiores viradas para a mata para fazer ciúmes aos inimigos e as outras duas não.
In's que sabíamos nos estariam a bispar cheios de fome, coitados. Numa dessas, a primeira a seguir à porta de saída, desenhei-a propositadamente a fim de despejar todos os despojos sobrantes, que alimentariam os mais que centos de jagudis que por ali andavam.


K3 (Saliquinhedim) - Veríssimo Ferreira e as suas construções
Fotos: © Veríssimo Ferreira. Direitos reservados.

Instalações modulares do aquartelamento do K3
Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados.

Considerando que os "marmelos" iam tiroteiando de noite, o que fizéramos de dia, tive uma excelente ideia, própria do génio que sou ainda hoje, (marado completamente) e que passo a contar.
Tínhamos na Companhia, um soldado da secretaria, que houvera sido pintor de adereços e de cenários para revistas do Parque Mayer. Com ele falei, adorou a minha extravagante ideia, aderiu e comprados que foram sacos e sacos de pano, ele foi pintando e à noite "pendurávamos-ius" num local visível da mata.
Na verdade até parecia que ali estava um belo e espaventoso edifício. Primeiro nada aconteceu, mas depois lá mandaram fogaracha que se desunharam e deixaram esburacados os paninhos pintados com tanto carinho.

Nós no dia seguinte, voltámos lá a colocar outros mas agora com novas cores ainda mais vistosas mas pintadas já em oleados. E eles, pimba, catapultavam. Quando perceberam que não conseguiam vencer-nos desistiram sem nunca terem percebido, como era possível construir tão bem e depressa.
Porém, não sem que antes e tendo nós detectado em que local se posicionavam, lhe não tenhamos deixado de enviar umas morteiradas 60 que decerto lhes acertaram porque as marcas ficaram lá bem visíveis. Mas o abandono daquelas malévolas tentativas de destruição só acabaram quando postámos do lado de Buro, um desenho bem real que até parecia estar mesmo ali um tanque de guerra, e do lado do Olossato, um contratorpedeiro cheio de canhões cinzentos e qu'até o próprio vento fazia com que parecesse que estavam a mover-se na direcção dos ceguetas.

Tal como diz o ditado: "Um bom estratega é com panos e bolos que engana os tolos"

(continuará ? sim... se tiver pelo menos 5 comentários)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12309: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (2): O meu amigo felupe, o 44

domingo, 17 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12309: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (2): O meu amigo felupe, o 44

1. Em mensagem do dia 11 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o segundo episódio da sua série Fragmentos de Memórias, dedicado ao seu amigo 44:


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

2 - O meu amigo felupe, o 44

O meu amigo felupe, o 44, propôs-se a tirar-me a arreliadora matacanha.

Devidamente desinfectado tinha já um afiado alfinete de dama, sentou-se de frente a mim, pegou-me nos pézinhos tamanho do sapato 43, e olhou-os assim estilo quando miro aqueles de coentrada. Eu entretinha-me a tomar Cavalo Branco 12 anos, que era dia de festa. enquanto ele me olhava sequiosamente esperando também anestesiar-se.

Disse-lhe:
-Tira lá essa porra sem me magoares, que bebes a seguir...

Bebeu após me apresentar aquela bolha cheia de bichinhos lá dentro, fazendo lembrar os cachos de chocos a nascer, que se vêem nas praias.

Pé com matacanha* 
Fotos reproduzidas, com a devida vénia, de: (Parasitoses-astrópodes)

Este rapaz, de quem fui muito amigo e ele meu também, mereceu-me toda a atenção e dediquei-lhe algum do meu tempo disponível.

Fazia perguntas e queria saber mais... ele fosse sobre o nosso modo de viver em Portugal... os costumes, os usos... o significado de palavras e custava-lhe acreditar que o Mundo fosse da forma como eu lho descrevia.
No fundo, o meu também só era o Alentejo do Alto e foi presunção querer Alentejanizá-lo.

Divertia-se quando lhe expliquei que comíamos o porco de várias maneiras o que de todo ele repudiava com o "bé" que suponho ser assim uma espécie de "porra".

Ensinei-o a jogar dominó com umas peças com desenhos de posições sexuais e ria, ria muito, o que também ainda hoje faço quando se m'alembra a cena.

Perguntou-me também sobre os Deuses, sim que ele estranhava haver mais do que um.

Dentro do pouco que sabia sobre tal, lá lhe fui explicando o possível. Falei-lhe de quando menino de escola, ter quase obrigatoriamente que frequentar a igreja e saber até o Pai-Nosso, mas só até àquele certo dia em que descobri que as senhas que recebia por ir à catequese e com as quais me davam pelo Natal 125g de manteiga, ou mais, dependendo do número de presenças, eram a forma de me cativarem para a religião, o que me desgostou.

E mais ainda... ao saber que a manteiga vinha da América oferecida e para ser distribuída pelos mais pobres, revoltei-me.
O que se passava é que a coisa era pois para ser de borla para os necessitados, mas o senhor padre queria uma contrapartida e por isso abandonei a confissão da fé.

Mas mais lhe disse. Contudo, não deixei de lá ir, mas ficando cá fora, aquando da saída das missas e para ver as miúdas internas do colégio, que bem lindas eram e se apresentavam, com aquela farda própria... mostrando a perna até ao joelho, que na altura era só o que nos ofereciam de engodo.

Mais lhe contei sobre o dito que as mães e avós diziam às "piquenas":
- "Até ao joelho é para quem quiser ver, do joelho para cima só para quem merecer".

De qualquer forma, continuei. O teu a quem chamas Alá, gosta mesmo de mim, e tanto, tanto, qu'até te mandou criares porquinhos e não os comeres, qu'esse será crime a ser cometido por este teu amigo, já pecador confesso.

- Mas "nôsso furié"... o meu deixa as mulheres andarem nuas da cintura pra cima e o teu obriga-te a despir as da tua raça...

E enquanto assim falava, lá punha de novo a bocarra escancarada, com a dentuça branca toda à vista e batendo ruidosamente os pés no chão barrento.

- Ganhaste malandro, pensei... mas deixa que havemos de voltar ao assunto.

 Grande amizade ficou entre nós e para além disso foi óptimo colaborador militar da CCAÇ 1422, pois que sendo conhecedor do terreno que nos competia gerir ali no K3, foi um excelente guia para além de também e disfarçadamente houvesse sido meu segurança particular:
- "Não se cheguem ao "nôsso furié" que têm de se haver comigo" - parecia ele dizer olhando para a mata.

Aí aprendi com ele a disparar com arco e seta o que me fez sentir o Robin dos Bosques.
Muitos pombos verdes comemos assadinhos na brasa ou fritos e apanhados sem gastar balas e sem ruídos.

O sonho dele era poder vir a "conduzir" aviões e helicópteros e fez-me vários pedidos para que eu intercedesse nesse sentido. Na verdade e sem saber como lhe responder sem o magoar, adiei a questão até que um dia lá consegui dizer-lhe a verdade e em contrapartida convidei-o para ir aprender primeiro a "pilotar" a GMC que costumava ir à frente quando em coluna, íamos recolher os abastecimentos no caminho esburacado que nos ligava a Mansabá.
Para tal tive a permissão superior, embora um senhor alferes se tenha mostrado contra, argumentando que ele poderia desertar e levar-nos a viatura.

Por acaso até nem estava mal pensado, mas dada a conduta do rapaz e conhecendo as famílias, lá se procedeu conforme o meu pedido e era vê-lo todo vaidoso e já encartado, ao volante do Unimog da água.

Conheci-lhe a família toda na sua tabanca em Farim, partilhámos bianda e galinha de chabéu preparada pela sua mais bela mulher, a Fátima e não gostei mas tive de aceitar muito honrado, que pusesse o meu nome num dos filhos que houvera nascido.

E se há quem pense que não há estrelas cá em baixo na Terra, desiluda-se, porque já dizia o poeta: 
- NUM MONTE DE PEDRAS PODE NASCER UMA FLOR

(continuará ?)
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 17 DE OUTUBRO DE 2010 > Guiné 63/74 - P7138: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (2): Matacanha (Rui Silva)

Último poste da série de 10 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12274: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (1): Chegada a Bissau e deslocação para o Óio

domingo, 10 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12274: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (1): Chegada a Bissau e deslocação para o Óio

1. Em mensagem do dia 8 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o primeiro episódio da sua nova série Fragmentos de Memórias:


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

1 - Chegada a Bissau e deslocação para o Óio

24 de Agosto de 1965

Chegado a Bissau, levado pelo Niassa, despejaram-me na Amura.
A viagem foi pior que má, fui sempre deitado, enjoado e só m'alevantava nas horas das refeições, qu'eram cinco diárias. Gostei particularmente dos almoços e jantares, porque aí davam "buída tinta", para o mal estar... e "pescada au meuniére".

Abandonado em terra... amanha-te... e isso fiz embora antes e da Metrópole tenham partido de avião, os oficiais, milicianos e tudo, bem como os sargentos do Quadro (Secção de Quartéis lhes chamaram) com a incumbência também de me prepararem a recepção e instalações tão condignas qb, próprias de quem como eu, se julgou com direito a pelo menos uma cama para dormir, à semelhança de todos os outros que a tal privilégio tiveram acesso.

Depois... um ou outro pelotão lá ia sendo destacado para aqui e para ali e o meu (o 1.º) foi-se passeando e com a prestimosa ajuda dos guias turísticos (CART "ÁGUIAS NEGRAS") por Mansabá, Bissorã, Manhau, Pelundo (apenas a minha Secção), Jolmete e por fim reunimo-nos de novo (a CCAÇ 1422) em data que não posso precisar, mas julgo que nos finais de 1965.

Mas em Bissau e porque ali permaneci oito dias, acabei por e em companhia doutro amigo furriel miliciano acabei por, repito, conhecer a cidade e todas as malandrices que escondia. Nada me parecia ser perigoso e inquiria-me mesmo se haveria guerra, apesar do tiroteio que lá longe se ouvia.

No aeroporto vi os T6, que partiam com bombas agarradas e chegavam sem elas... vi a chegada dos aviões a hélice com o regresso de férias dos militares, conheci um ou outro civil residente, notei que mulheres brancas Portuguesas haviam poucas e miradas como se duma espécie rara fossem.

Impressionava-me ter de dormir com mosquiteiro, inútil que a bicharada entrava mesmo, embora em mim picassem só que morriam de seguida ao absorverem o meu venenoso sangue azul de "Marquês da Pedreira", que fora e que um dia conto como lá cheguei, à nobreza entenda-se.

Pedreira, no rio Sôr, aonde ia pescar barbos de meio quilo... e menos.

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Setembro de 1965

Dizia-se que o baptismo de fogo era sempre e também, uma das situações que nos tornaria finalmente combatentes a sério.

Comigo aconteceu logo no início de Setembro de 1965, quando convidado, que fui, para ir tomar conta dos pertences militares usados por uma Companhia, que iria regressar a casa.

Foi ali um pouco antes de Mansabá, junto a umas ruínas ainda fumegantes do que tinha sido uma serração, que nos receberam com uma fogaracha de todo o tamanho. Tinham antes destruído também a ponte que atravessava um riacho não muito caudaloso, mas que nos obrigou depois a colocar cibes e tábuas, para que a coluna de veículos pudesse atravessar.

Localização da Serração. Vd. carta de Farim 1:50.000

Um dos vários pontões existentes ao longo da estrada Cutia-Mansabá.
Foto © José Barros (2011). Direitos reservados

Tudo ajudado por aqueles valentes que nos vieram socorrer em menos tempo do que leva a contar e após terem ouvido os primeiros tiros com que nos emboscaram.

Nada de grave aconteceu... do cagaço não nos livrámos, mas medo que logo passou quando começámos a corrê-los à pedrada. Daí que eles (os turras) se tenham escafedido com o rabinho entre as pernas e de tal forma que nesse dia, nunca mais os vimos. E foi assim que fui baptizado e tal como quando mo fizeram na igreja, nunca vim a conhecer quem foram os padrinhos. Chegados ao aquartelamento fomos recebidos que nem heróis, pelos restantes que ali haviam ficado contrariados e diziam estes "velhinhos" últimos de farda amarela (e eles sim com feitos dignos de registo), que nos houvéramos portado muito bem. Sem que eu imaginasse, apareceu-me um camarada d'armas, amigo já antes e lá da minha terra, o "Manel de Mora" e nem sei se vos diga se vos conte, a tamanha alegria com que nos abraçámos. Depois vieram as suas recomendações, os avisos, as indicações úteis sobre o IN e os locais onde mais costumavam actuar, tudo isto enquanto jantávamos que até nisso, nos recepcionaram melhor que bem.

No dia seguinte dei início à tarefa de que fora incumbido e lá vieram as contagens de viaturas, a observação dos edifícios, a comida que ficava e também a bebida claro, mas o que me deu mais gozo ver em pormenor, foram os dois obuses enormes com grandes rodas e que ao que me foi dito estavam apontados para Morés, onde já tinham feito enormes estragos nos poilões que circundavam aquela base, pois que, ao que se sabia, as bojardas eram de muito difícil penetração onde se pretendia que fossem.

Era fácil mudá-los para outras posições e na verdade recordo que depois um dia até nos ajudaram no K3, quando as bestas quadradas nos visitaram com alguma pretensa agressividade. Quis saber se na verdade trabalhavam e prometeram-me mostrar que sim.
A demonstração chegou logo quase de imediato, quando nesse mesmo dia atacaram a própria Mansabá.
Repelidos foram e a seguir fomos desopilar para o bar e... que bem aprovisionado estava !!!

Ele havia de tudo desde Vat 69, vinhos tintos e brancos, águas Perrier e Tónica, Gin's.... enfim uma parafernália capaz de engrossar a sério e até aliviar aquelas tantas gargantas secas. E foi nessa noite que comecei a tomar aquele especial remédio feito à base de lúpulo, cevada, milho e centeio.

Comecei e hoje passados 48 anos ainda não acabei.

Ao fim de 3 ou 4 dias e já com os bens mudados para o nome dos novos donos e tivéssemos tomado também posse das suites e instalações militares, veio a ordem de que afinal não íríamos ficar por ali, mas sim trocar com a CCAÇ 1421, que tanto estava empenhada em construir e de raiz, um hotel subterrâneo de cinco ou mais estrelas, em Saliquinhedim.

Para lá fomos passados que foram mais dois ou três meses, se me não engano que esse tempo é dos que não me veio ainda há memória.

Tal como me acontecera com o remédio de que atrás falo, sim aquele de grãos de cereais, foi também aqui na zona, mais propriamente em Manhau, que conheci aquele coisa horrível que se chama ódio. Os motivos para o passar a trazer comigo, foram óbvios e ainda hoje quando leio os que lançam lérias elogiosas ao terrorista Amílcar, fico pi-urso e decerto que não se lembram que ele foi o causador de tantas desgraças que aconteceram.

É que combater frente a frente e dando tiros de cá para lá... ainda vá que não vá, mas mandar implantar minas no terreno que ele sabia ir ser pisado porque quem para a Guiné tinha ido, não para atacar, mas mais para defender... era selvajaria... e foi dramático.

Julgo que (aqueles que leio, repito... aqueles que lançam lérias etc, etc.) não pensariam da mesma forma se tivessem estado presentes quando os infortúnios aconteceram... se tivessem que andar a limpar sangue... a juntar pedaços.

MAS CADA UM É COMO CADA QUAL

E mai'nada.

(continuará)