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domingo, 22 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17895: Agenda cultural (599): "Conspirou? Certamente, mas…", título do trabalho apresentado pelo Coronel Art Ref António José Pereira da Costa no Congresso Internacional levado a efeito nos passados dias 11 e 12 deste mês, na Academia Militar (Campus Amadora), subordinado ao tema "Gomes Freire de Andrade: O Homem e o Seu Tempo"



Oeiras > Ponta de São Gião > Praia da Torre > Freguesia de Oeiras e São Julião da Barra, Paço de Arcos e Caixas > Forte de São Julião da Barra, visto do lado poente > 3 de setembro de 2017 >  É considerado o maior e mais compeloa militar de defesa no estilo Vauban, ainda existente em Portugal. No passado, era nossa maior fortificação marítma, baluarte da defesa do reino e da sua capital.... No séc. XIX tornou-se prisão política. Foi aqui que o "mártir da Pátria",  gen Gomes Freire de Andrade, foi executado, não por fuzilamento (como ele pediu) mas por enforcamento, sendo o corpo cremado e as suas cinzas deitadas ao Tejo, em 18/10/1817. Foi acusado de liderar uma conspiração contra os ingleses que governavam o país, enquanto o regente (e futuro D. João VI) e a corte viviam no outro lado do Atlântico, desde 1807, na sequência das invasões napoleónicas. Um processo de justiça infamante, como muitos na nossa história...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017), Todos os direitos reservados. [Edição:r: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Em mensagem do dia 17 de Outubro de 2017, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos para publicação, a nosso pedido, o texto da sua intervenção no Congresso Internacional, levado a efeito nos passados dias 11 e 12 deste mês, na Academia Militar (Campus Amadora), subordinado ao tema Gomes Freire de Andrade: O Homem e o Seu Tempo[*].


Conspirou? Certamente, mas…

Declaração de Interesses 

Como bom Brandoniano, para a elaboração deste trabalho, tomei como base a obra de Raul Brandão, "Vida e Morte de Gomes Freire", que considero absolutamente inultrapassável, no detalhe e na profundidade da análise dos acontecimentos e das personalidades dos intervenientes. É pouco provável, mas se surgir algum documento, que não tenha sido analisado por Raul Brandão, ele nunca poderá produzir grandes alterações relativamente à visão dos factos que nos deu. Para além daquela obra, consultei outros documentos, nomeadamente a "Memória sobre a Conspiração de 1817 […] Escripta e Publicada por hum Português", "Amigo da Justiça e da Verdade" e atribuída por Raul Brandão a Joaquim Ferreira de Freitas, (o padre Amado). O exemplar que consultei foi oferecido à Sociedade Martins Sarmento pelo Conde de Vila Pouca e será a versão mais completa deste texto. Aparentemente publicada em Londres, apresenta um sem número de anotações manuscritas a lápis de cor azul. Estou convencido de que foram feitas pelo escritor tal, é a semelhança entre a sua caligrafia e a das anotações. Devo confessar que estou de acordo com uma boa parte dos comentários que deixou.


Título

O título que escolhi foi inspirado numa frase de Raul Brandão, na qual, referindo-se a Mathilde de Faria e Mello e não temendo más interpretações, o autor pergunta: “Casada?” e reponde: “Certamente!”.

Não existe nenhuma certidão daquele casamento, mas não importa. Matilde teve, durante a sua vida o comportamento de uma mulher casada e que amava (muito) o seu marido.

Da mesma maneira podemos perguntar: A conspiração existiu? Certamente!

Gomes Freire sabia-o, mas não a denunciou, embora não acreditasse nela. Contudo, achava-a necessária e até imperativa. As duas situações são, portanto, semelhantes. Nenhum dos dois se prendeu com questões de forma para fazer o que achava que devia ser feito. Em última análise diremos que ter conhecimento da revolta e não a denunciar é pactuar com ela… A conivência é uma forma de colaboração.

Venho falar de Gomes Freire enquanto Homem, Homem com H grande, como Raul Brandão lhe chama várias vezes, expressão que é o máximo elogio que se lhe pode fazer, a ele ou a outro qualquer homem e especialmente a um militar.


Palavras-chave

Escolhi três palavras-chave, que traduzem sucintamente o desenrolar dos acontecimentos: Revolta, Beresford e Tortura. Vou abordá-las não necessariamente por esta ordem.

A vida de Gomes Freire é uma constante aquisição de experiência e capacidades no campo operacional, completada com a observação e estudo prático e teórico da gestão de grandes meios logísticos e humanos. Quando regressa a Portugal, em 1815, não teria outro oficial capaz de ombrear consigo nestas áreas. Acresce que terá sido chamado a desempenhar funções no âmbito dos assuntos civis e governo militar, nas diversas cidades onde foi representante do poder napoleónico o que lhe concede uma nítida vantagem sobre os seus pares. Era um homem valente, culto, sabedor, experiente, próximo dos soldados e do povo. Seria, por isso, o oficial-general mais completo do seu tempo. Como denominador de todas estas qualidades, uma última: a frontalidade. Uma verdadeira mistura explosiva!

E, por uma questão de personalidade, em choque permanente com os superiores hierárquicos, de mentalidade reduzida e anquilosados pela burocracia, mas sempre prontos a demolir quem se lhes opusesse. As invejas não tardaram a surgir e, sufocadas por algum tempo, explodirão em Tortura, logo que para isso tiverem ocasião.


O Construir da Inveja

A sua vida foi um amontoar de invejas e ressentimentos dos que nunca lhe perdoaram as suas capacidades e o seu voluntarismo. Tendo assentado praça como alferes no Regimento de Infantaria de Peniche (a 9 de Outubro de 1782) começa a sua actividade operacional, incorporado na Marinha. As oito investidas realizadas na baía de Argel (Julho de 1784) sobre o poder naval ali sediado foram muito duras. As barcaças artilhadas com que esse tipo de ataques era feito eram dificilmente manobráveis e os combates realizados a curtas distâncias. Estas circunstâncias marcaram-no, enquanto militar e homem, a par dos múltiplos aspectos da organização da campanha (23 de Junho a 24 de Setembro de 1784) que terá observado em pormenor.

Ao voltar a Portugal, em menos de quatro anos, atinge o posto de sargento-mor do seu Regimento (27 de Abril de 1788). Naquele tempo, o sargento-mor era a terceira figura do regimento e aquelas funções eram desempenhadas por oficiais criteriosamente escolhidos e que, de um modo simplificado poderemos dizer que eram os “comandantes executivos” da unidade. O regulamento do tempo responsabiliza-os, entre diversas funções, pela disposição do regimento para a batalha.

Mas é em 1788, na Guerra da Crimeia, que, verdadeiramente, se forma como militar através da participação em combates violentíssimos, levados a cabo por grandes efectivos, em maus terrenos e sob condições meteorológicas severíssimas. As descrições de Raul Brandão apontam para situações fome e frio, com a soldadesca a viver miseravelmente em barracas de campanha, para não falar do saque da cidade de Oczakov (Dezembro de 1788) defendida por 310 canhões. O número de mortos de ambas as partes atinge várias dezenas de milhar.

Regressado a Portugal, como coronel dos exércitos russos, parte então, (20 de Setembro de 1793) à testa do regimento de que era coronel para a Campanha do Russilhão. As descrições de Raul Brandão sobre esta campanha são verdadeiramente surrealistas e, por outras vias, sabemos que foi uma operação tão inútil quão inconveniente. A logística foi péssima (alimentação, alojamento e higieno-sanitária), quando não falhou e a actividade operacional decorre em condições climáticas muito severas. Os franceses, de invadidos passaram rapidamente a invasores, e a retirada é acompanhada de deserções em massa dos militares espanhóis que se sentem muito felizes cada vez que se rendem. O ambiente entre a oficialidade portuguesa é mau, sem que John Forbes Skellater tenha mão nos seus inferiores. É aí que Gomes Freire cria uma amizade para a vida com António de Sousa Falcão – em horas de perigo e incerteza – e uma inimizade que roça o ódio com Luís Carlos de Clavière e D. Miguel Pereira Forjaz, ajudantes de ordens de João Forbes Skellater. Os ajudantes-de-ordens, normalmente oficiais do estado-maior, eram intermediários entre um comando superior e os comandos inferiores. Transmitiam pessoalmente ordens, observavam a sua execução e a situação da unidade. Conferenciavam com o respectivo comandante e depois reportavam as suas impressões ao comandante que os enviara. Tinham, por isso, grande influência nas decisões que eram tomadas e eram tidos – com razão ou sem ela – como intriguistas e manipuladores da acção do comando a que pertenciam.


Para além de outros indícios claros de desorganização e indisciplina, a situação no comando do Exército Auxiliar Português tornou-se tão insustentável, que Gomes Freire é mandado regressar a Lisboa. Chega mesmo a falar-se da abertura de uma devassa ao comportamento das forças portuguesas no combate de 20 de Novembro de 1794.

É aqui que a inveja começa a desenvolver-se e a sede de vingança desenhar-se para ser servida em doses de tortura, mal a oportunidade surja.

O episódio cómico-bélico denominado Guerra das Laranjas foi mais uma afirmação de Gomes Freire no campo operacional. Era então Quartel-mestre do Exército de Trás-os-Montes, servindo sob as ordens do Marquês de La Rosière, o que atesta a sua capacidade de organizador de forças e gestão de meios logísticos. Ao protagonizar uma acção ofensiva sobre Monterrey, a que hoje poderíamos chamar “golpe-de-mão” torna-se num dos três oficiais que procuraram lutar contra o marasmo que foi a actuação das forças portuguesas. Os outros foram Matias José Dias Azedo (em Campo Maior) e Eusébio de Sousa Soares (em Vila Real de Santo António).

Como militar experiente e bem habilitado nas duas áreas fundamentais para o efeito, Gomes Freire de Andrade expediu opiniões sobre a reorganização do Exército e, por sugestão do Duque de Sussex, acabou por escrever (1806) um livro de mais de 400 páginas no qual expõe um plano para a reorganização do Exército visando evitar os graves inconvenientes sobre a vida das populações motivados pelas levas, pelo serviço militar tão longo e dos graves prejuízos para a agricultura que considera a base da vida do país.

Nesta área, é o trabalho mais completo produzido por um oficial português até então. É proposta uma divisão territorial do país para efeitos defensivos, determinados os principais eixos de aproximação a Portugal e, consequentemente, quais as medidas logísticas, dispositivo a adoptar, de treino regular das unidades, e até uma avaliação em termos financeiros das medidas preconizadas. Este trabalho ter-lhe-á granjeado mais alguns ódios, especialmente porque as I e a III Invasões utilizaram os eixos que havia apontado. É mau ter razão antes de tempo.

À data da I Invasão, Gomes Freire é responsável pela defesa da área de Setúbal, recebendo ordem de Junot para comandar a II Divisão das tropas que marchariam para França. Aguardando um desembarque britânico, (que só surgirá quando a Inglaterra entender que é conveniente) resiste à ordem procurando demorar o encontro com a unidade que iria comandar, mas, ao tentar atravessar a Espanha, a sublevação das populações põe-lhe a vida em perigo. Consegue entrar em França e, a partir da sua apresentação em Paris, a sua vida é um autêntico rosário de colocações, em variadas tarefas que seria óptimo que conseguíssemos detalhar. O período entre 1808 e a sua rendição em Dresden, em 1814, é talvez o mais rico da sua vida, mesmo sendo pobre como Job e não passando de um prisioneiro condecorado e armado. Depois da rendição é conduzido, sob prisão à Hungria, e só regressa a Paris, a 5 de Junho de 1814, perdido da sua Matilde que o procurou num percurso de mais de 2000 Km numa Europa esventrada por muitos anos de guerras de vários tipos e formas. Nunca lhe poupará elogios e ela estará ao seu lado especialmente no momento da captura.

Gomes Freire sabe que não é bem quisto em Lisboa e procura demonstrar, antecipadamente que, a menos que tivesse realizado o milagre de S. António, nunca combatera em Portugal, nem na Península Ibérica. É uma dura batalha a produção do cartapácio (processo, como hoje diríamos) que lhe permitiria fugir à sanha dos procuradores. Mesmo assim, quando regressa a Lisboa, via Londres, em 25 de Maio de 1815, ainda passa pela Torre de Belém por alguns dias.


A revolta existiu… 

Os documentos que constam na devassa mostram que havia uma revolta em movimento. Quando Gomes Freire chega a Lisboa, os franceses tinham saído de Portugal havia cerca de quatro anos, depois de um saque de mais de oito meses. Os afrancesados são perseguidos pelas suas ligações – especialmente ideológicas – ao invasor e a situação social é uma catástrofe.

A descrição de Raul Brandão fala de falta de braços nos campos, recorda que a corte fugiu e já poderia ter voltado, que o tratado de comércio com a Inglaterra põe o país a saque económico, que a reestruturação exército cria mal-estar, embora Beresford tenha “cortado a direito”. Há suspeitas de imoralidade na Igreja, fome nas Beiras e os preços sobem loucamente. O número de órfãos, viúvas e desenraizados é enorme. Um dos conspiradores é coronel, visita de casa de Gomes Freire, casado e com filhos. Há trinta meses que não recebe vencimento. Quem não conspiraria nestas circunstâncias? Para um homem próximo do seu povo e pronto a defender os seus camaradas estão criadas as condições para que, pelo menos feche os olhos à revolta e chefie, se necessário.


A Tortura 

A análise dos factos, ocorridos entre 25 de Maio (domingo) e 18 de Outubro de 1817 (sábado) revela um processo kafkiano. Para além da óbvia condenação, deveria passar por um crivo de tortura bem estreito.

A prisão dos réus ocorre 25 de Maio de 1817, numa operação bem planeada e conduzida, entre a meia-noite e as quatro horas da manhã, sob controlo de oficiais estrangeiros. Beresford chega ao Regimento de Cavalaria de Alcântara pouco antes da meia-noite e à quatro da manhã já está em casa, no Pátio do Saldanha. Verificamos uma demonstração de força materializada pelos efectivos empenhados e ainda por 5 baterias (cada um com 4 peças + 1 obus) prontas e com os murrões acesos, junto do Arsenal do Exército.

Só Gomes Freire é enviado para S. Julião da Barra e mantido incomunicável até à execução.
O lugar onde esteve preso e as condições de vida celular a que foi sujeito nos primeiros dias de prisão confirmam-no.

O processo não observa as regras processuais em vigor nem a jurisprudência existente ao tempo.
Nunca virá a ser acareado com os outros réus que o acusavam, o que seria uma diligência elementar.
É interrogado na cela, apenas na presença de um desembargador e um escrivão.


No âmbito da tortura poderemos acrescentar a assistência médica que lhe é “prestada”, em duas visitas, realizadas a 6 de Julho e 12 de Julho pelo físico-mor do Exército, José Carneiro Barreto, o que seria sinónimo da intenção de um tratamento feito por alguém de créditos clínicos firmados. Os relatórios revelam um agravamento do reumático de que o General sofria e que estaria directamente relacionado com as condições de habitabilidade da cela onde estava preso, assim como com a idade e os sofrimentos da vida em campanha. Gomes Freire queixou-se de indisposição de estômago e […] de incommodo  de ventre que, na opinião do cirurgião, são bem de acreditar pela conspurcação da língua e outros signais. O médico pretendeu combater a indisposição de estômago com um emético (produto que provoca o vómito) e o incommodo de ventre com um catártico (laxante). Queixou-se também de enxaquecas que o médico não valorizou. O médico propõe que seja permitido ao prisioneiro que se barbeie, pois será um primeiro passo para a cura de uma erupção cutânea que o aflige.

Ainda no âmbito da saúde, sabemos que o tenente-coronel Haddock, em serviço na fortaleza, informa Beresford de que Gomes Freire algumas vezes está agitado.

A devassa não observa as regras processuais em vigor, como o advogado dos réus demonstra na sua contestação à sentença. Nega-se-lhe o apelo para o Rei que era um direito que tinha e os documentos que entrega a Archibald Campbell desaparecem e não têm qualquer efeito. É aqui que o réu se compenetra de que vai morrer e desabafa com Campbell.

No âmbito da tortura, encontramos ainda a indicação do método e local de execução designado na sentença.

A sentença foi proferida em cinco dias e os recursos apresentados pelo advogado de defesa prontamente considerados improcedentes, o que, para uma justiça fortemente burocratizada, como a do tempo, é muito suspeito. (17 de Outubro de 1817).

O pouco tempo que mediou entre a condenação dos réus e a execução da sentença. Pode parecer estranha a publicação deste documento, ocorrida já após a execução. Todavia, sabemos que era necessário actuar contra (hum, principalmente) dos réus e secar as veleidades dos que quisessem repetir a aventura.

No dia da execução, Gomes Freire barbeia-se e farda-se a rigor, mas é obrigado e despir a farda e a vestir a alva dos condenados e a humilhação prossegue, enquanto aguarda a execução descalço durante várias horas. O tenente-coronel Haddock dá-lhe uns sapatos para que possa marchar para o patíbulo com certa comodidade. Isso irá valer-lhe aquilo que a que hoje chamaríamos um processo disciplinar que encerra sem consequências. Seria garrotado de acordo com a sentença. Pede para ser fuzilado nos mesmos moldes que o marechal Ney. Acaba enforcado.

Antes tenta despedir-se dos soldados, mas é impedido de se lhes dirigir. São prontamente virados de costas para o patíbulo a fim de não lhes poder transmitir alguma mensagem maçónica, ao mesmo tempo que os frades presentes iniciam um canto religioso em altos berros.

D. Miguel Pereira Forjaz dá ordem pessoal ao Arsenal Régio para o fornecimento do alcatrão a usar na queima do cadáver de Gomes Freire.

Tudo se conjuga para um assassínio premeditado, precedido de tortura.


E a Igreja Católica 

A posição da Igreja Católica não surpreende. Uma ordem de 8 de Junho de 1817, ordena a celebração (a 22 Junho) de um Te Deo de Acção de Graças em todo patriarcado de Lisboa, pela descoberta da conspiração. Haviam passado 15 dias sobre a prisão dos réus e a Igreja já os dá como culpados, chamando-lhes “insensatos, temerários e atrevidos”. A sua hierarquia congratulou-se com a vitória das forças conservadoras na repressão aos subversivos e assim, ganhou em dois tabuleiros: apoiou o poder, o que sempre lhe trouxe dividendos, e ganhou tempo retardando a evolução das ideias na sociedade.

Virá a surgir no processo, sim, mas apenas no que respeita a uma das suas tarefas habituais e que mais ninguém desempenhava: a encomenda das almas dos condenados à morte que, quase de certeza iam parar o céu, considerando que se haviam arrependido e confessado os seus pecados e tinham pouco tempo para pecar...


William Carr Beresford, Marechal-General 

William Beresford (reestrutura o Exército a partir de 15 de Março 1809) é o primeiro a saber da conspiração. É, essencialmente, um militar estrangeiro a quem é dada uma missão. Reestruturado o Exército Português e expulsas as forças francesas de Portugal (Maio de 1811) continua a sua acção, agora procurando levar a Regência a conduzir uma política que fosse favorável aos interesses ingleses. O seu poder foi aumentando por delegação do poder real, nomeadamente depois de cada ida ao Brasil.

Os denunciantes Pedro Pinto de Morais Sarmento, José de Andrade Corvo de Camões (ambos militares) e o bacharel João de Sá Pereira Ferreira Soares, procuram-no na sua casa e descrevem-lhe o que haviam sabido em consequência da denúncia involuntária de um tal António Cabral Calheiros Furtado de Lemos, tenente demitido do Regimento de Infantaria n.º 3. Prova-se durante o processo que está perturbado, mas as suas atitudes conspirativas são tidas como correctas.

Beresford procura conselho (noite de 22 de Maio), reunindo-se, em sua casa, com três funcionários superiores da administração: o Cipriano Ribeiro Freire (Presidente da Junta do Comércio), o Visconde de Santarém e José António de Oliveira Leite de Barros (Desembargador do Paço e Auditor-geral do Exército). Conforme o conselho que lhe é dado, no dia seguinte, procura o Marquês de Borba que se compromete a informar a regência.
Participada a revolta, assegura a captura dos conspiradores numa operação que dura apenas quatro horas, conduzida sob controlo de um número considerável de oficiais estrangeiros. Terminada a operação, publica em Ordem do Dia um louvor à tropa, em 30 de Maio de 1817. Aparentemente uma atitude simpática para como o Exército e a Polícia, mas até que ponto não poderá ser um auto-louvor?
Depois, aparentemente, sai de cena.

Os pedidos de Beresford seguem sempre as vias “hierárquicas” normalmente através do Intendente Geral de Polícia, João de Matos Vasconcelos Barbosa de Magalhães.

Logo em 29 de Maio de 1817, pede (à Regência) que Gomes Freire "tenha aqueles artigos que o seu commodo exigisse” e nomeia Archibald Campbell como responsável pela sua guarda. Naquele tempo, era possível que os criados acompanhassem os senhores durante os seus períodos de prisão. Tal não foi autorizado a Gomes Freire, embora Beresford tivesse estranhado uma tal atitude. Campbell, enquanto governador da Praça, sustenta-o durante os seis primeiros dias de reclusão. Por fim, não podendo melhorar mais as condições de vida do preso, pede para ser substituído, mas Beresford não aceita. Não assiste à execução, embora Gomes Freire tenha pretendido despedir-se dele e agradecer-lhe o seu empenho. Declara-se doente.

Os papéis enviados, por Gomes Freire, para a Regência, são elaborados sob controlo de Campbell e recebidos com autorização do governo. Foram entregues ao Marquês de Borba, Presidente do Governo, mas desapareceram. Tal como Beresford, Archibald Campbell é cuidadoso no contacto com as autoridades portuguesas e procura evitar confrontos com o “desembargador” que promoverá a execução.

A recusa das autoridades em permitir que o preso se barbeasse, apesar das insistências de William Beresford e Archibald Campbell, é prova indirecta de que quem controlava o tratamento que lhe era dado, pretendia causar-lhe toda a dor que lhe fosse possível, porém não o assumindo directamente. Campbell dispôs-se até a assistir à actuação do barbeiro, ou procurou que fossem fornecidas navalhas especiais ao prisioneiro para que se barbeasse. Nenhuma das soluções foi autorizada o que prova que, mesmo na prisão e independentemente da condenação que viesse a receber, Gomes Freire não estava a salvo da intenção da Regência de o torturar e que a ajuda dos britânicos era necessariamente tímida. É provável que esta solução não desagradasse a Beresford. Sabemos que ele e Gomes Freire só viveram simultaneamente em Lisboa durante pouco mais de dois anos, sendo lógico que mal se conhecessem pessoalmente. William Beresford é censurado por querer avistar-se com Gomes Freire o que nunca sucederá.

Amanhã completam-se 200 anos sobre a morte de
Gomes Freire de Andrade

************

BIBLIOGRAFIA 

ANDRADE, Gomes Freire de, Ensaio sobre o Methodo de Organisar em Portugal o Exército Relativo à População, Agricultura e Defeza do Paiz, Nova Officina de João Rodrigues Neves, Lisboa, 1806.

BRANDÃO, Raul, Vida e Morte de Gomes Freire, 4.ª edição, Editorial Comunicação, Rua da Misericórdia, 67-2º, 1200 – Lisboa, Janeiro de 1988, Colecção Obras Completas de Raul Brandão, Depósito Legal n.º 20027/88.

FREITAS, Joaquim Ferreira de (o padre Amado), Memória sobre a Conspiração de 1817, vulgarmente chamada Conspiração de Gomes Freire, Escripta e Publicada por hum Português, Amigo da Justiça e da Verdade[1], Impresso em Londres por Ricardo e Artur Taylor e em Lisboa na Impressão Liberal, em 1822. Este último mais completo foi oferecido à Sociedade Martins Sarmento pelo Conde de Vila Pouca (S.L.f-3-72)

[1] - Autoria atribuída por Raul Brandão
____________

Notas do editor

[*] Vd. postes de:

6 de Outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17829: Agenda cultural (589): Congresso Internacional, dedicado a Gomes Freire de Andrade, na Academia Militar (Campus Amadora), nos dias 11 e 12 de Outubro de 2017, com a uma intervenção a cargo do Cor Art.ª Ref António J. Pereira da Costa
e
8 de outubro de 2017 Guiné 61/74 - P17834: Agenda cultural (590): Bicentenário da morte do general Gomes Freire de Andrade (1757-1817): eventos (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

Último poste da série de 22 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17894: Agenda cultural (598): DocLisboa2017: Hoje, às 16h15, no Cinema São Jorge, "Os Cantadores de Paris" (Portugal / França, 2017, 80'), um filme de Tiago Pereira

domingo, 8 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17835: Manuscrito(s) (Luís Graça) (125): Em homenagem ao Gomes Freira de Andrade, mártir da Pátria




Ó pra cima, ó pra baixo, na colina de Santana


Em honra de Gomes Freire de Andrade
e dos demais mártires da Pátria de todos os tempos (*)




por Luís Graça


Pela colina de Santana acima,
lá vamos nós, ó malta,
atrás da banda, em bando,
sonâmbulos, funâmbulos, a quatro patas,
dando vivas à liberdade!

Sete colinas tem a cidade onde cabem todos,
ou quase todos,
os poucos, afinal, que não naufragaram
nas praias dos sete mares.

Vamos amnésicos, e já protésicos,
velhos gaiteiros, pândegos,
infantes e artilheiros,
com muito mundo e poucas vidas,
mal sabendo que, no alto da colina,
boas são as vistas das novas avenidas,
e melhores os ares.

Este país é como a lesma,
agora, ó pra cima,
é o povo, canhestro, quem mais manda,
mas se é outra a banda e novo o maestro,
a música é sempre a mesma, fandanga.

Quer mude ou não o clima, todos querem ficar por cima!
Valha-nos, ao menos, Deus
que ao rei e ao borracho vai pondo a mão por baixo.

E quem não salta, ó malta,
vai no elevador do Lavra, 
é a ralé das vilas e pátios,
a caminho das manufaturas reais,
e alguns, de baraço ao pescoço,
degredados para Angola, Timor ou Guiné.

Se fores senhor com privilégio, valido ou por valer,
ou até doutor em leis e cânones,
não tens nada que saber, segue fora dos carris,
apanha o cortejo régio, 

colina de Santana abaixo até ao Terreiro do Paço.

Bem formosas e melhor seguras
nas suas reais patas vão as açafatas 

da Rainha Catarina, que foi de Inglaterra,
senhora de etiqueta e de berço,
que sabe pôr os pontos nos ii.
No palácio da Bemposta,  meninas,
as leis podem, ser duras mas são leis,
depois do chá e do chichi, o terço
que todas vós rezareis.

Ladinas e engraçadas, essas açafatas,
à noite escapam-se, encapuçadas,
para a sétima colina.
É a movida, qual má vida ?!
Já que não temos os doces prazeres terrenos de Versalhes,
joguemos, ao menos, o jogo do gato e do rato, 
com o pescoço no fio de aço da guilhotina.

Cortesão não é criado, mas criatura,
nunca mostra má catadura,
vai respeitoso, na procissão do Senhor dos Passos,
cabisbaixo, devidamente ataviado, ordeiro,
e nunca é o primeiro a ladrar como um vulgar cãocidadão.
E muito menos dá a palavra à canalha 

que desce o Lavra, alvoraçada, 
a caminho do Rossio onde o poder pode estar por um fio.

Continuará a ir de liteira o nobre
e de chinela no pé o baixo clero,
e, aos dois enchendo a barriga, o pobre, 

o coitado, o proletário,
regista, veemente e fero, o poeta panfletário.

Com tanto palácio, convento e hospital em redor,
não sei o que nos move, senhor físico-mor
do reino de Portugal, dos Algarves
e de além-mar em África…

Não me atrevo a perguntar ao cardeal,
que é o santo inquisidor-mor,
porque aos grandes deste mundo não calam fundo
as perguntas que não têm fácil resposta.

Num país de alarves,

e de brandos costumes, dizem os estranjeiros de fora, 
não quero dizer asneira,
mas, citando o grande pregador António Vieira,
direi que, primeiro, a caridade, depois a esperança,
que é sempre a última a morrer,
e por fim a fé, ou a fezada,
que é irmã da sorte que protege os audazes.

Mas mais do que as três virtudes teologais
é a força da forca e o terror de morte
que nos fazem correr,
a todos nós, simples mortais…
E, no último minuto, a piedade
que a corda do carrasco de el-rei faz suster.

Somos um povo piedoso, meu irmão,
mas finge que olhas, discreto,
para a ostentação dos ricos,
sem a sombra do pecado da inveja dos pobres.

Em Lisboa, que tem arte barroca e forca em cada esquina,
não sigas pelo cume da airosa colina,
foge da Carlota Joaquina,
enfia-te pela viela escura, mal cheirosa e  porca
sem que ninguém te veja.

Esta é a nossa terra, Pátria amada, camarada,
diz a letra do fado do Velho do Restelo,
quem vai à guerra perde o couro e o cabelo.

E logo mais à frente a tabuleta
com a verdade que dói  

e ao mesmo tempo reconforta:
Gomes Freire, de traidor a herói,
hoje enforcado, amanhã condecorado,
que é doce e honroso morrer pela Pátria!

O rei, ou o regente, esse já ninguém o leva a sério,
não será imperador do Brasil,
acabou de perder a coroa e o império,
no casino do Estoril.
De roleta em roleta, o país vai para o maneta,
cobre-se de ervas e de silêncio de cemitério
o campo dos mártires da Pátria.


A gente aqui no bem bom do sobe e desce
e a economia que não cresce, 

ameaça o FMI no Telejornal.
Mas vamos indo, menos mal, 

vendendo aos turistas Portugal,
só não temos é tempo para nada,
e, quando o tivermos, é para morrer.

E o cruzeiro, amor, que queríamos fazer
aos fiordes da Noruega ?
Deixa lá, querido, há-de vir a retoma e o aumento da reforma,
antes de eu ficar velha, surda, muda e cega…

Pela colina de Santana abaixo
lá vamos nós, sonâmbulos, funâmbulos,
a toque de caixa, pró Aljube,

onde nos tratam da saúde…
Deixem lá, camaradas de armas, veteranos,
que daqui a cinquenta anos
já não estaremos cá,
mas haverá de novo festa na urbe,
e os cravos, as rosas e os jasmins
voltarão a florir nos jardins.

Lisboa, Festival Todos 2016,
Colina de Santana, 10/9/2016.
Versão revista hoje.

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