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terça-feira, 24 de maio de 2022

Guiné 61/74- P23287: Documentos (40): A conferência do cor inf Hélio Felgas, proferida na Academia Militar, sem papas na língua, em 10/4/1970 (e depois publicada como artigo na Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-236), que o Amílcar Cabral leu e achou lisonjeiro para si e o seu Partido, citando-o no Conselho de Guerra de 11/5/1970


Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-237 (com a devida vénia...)


A LUTA NA GUINÉ (1)

Coronel HÉLIO FELGAS


(') Conferência incluída no Ciclo «A Luta  no  Ultramar», pronunciada pelo Autor na Academia Militar em 10 de Abril de 1970 [,  dez dias antes do "massacre do chão manjaco", e de cujo teor o Amílcar Cabral já tinha conhecimento, em 11/5/1970, quando presidiu ao Conselho de Guerra onde a "liquidação" dos 3 majores e seus acompanhantes foi abordada com algum detalhe  (*)]

Por motivos vários a nossa Guiné continua a ser mal conhecida na Metrópole. O objectivo do presente trabalho é por isso focar determinados aspectos da situação naquela Província.

1-0 Terreno

Assim como não se faz a guerrilha com qualquer população, também não se faz a guerrilha em qualquer terreno. A população necessita ser previamente trabalhada, endoutrinada, convencida, aliciada. O terreno precisa apresentar características especiais. Pode mesmo dizer-se que uma população bem trabalhada pode não ser capaz de levar a cabo uma guerrilha duradoura e frutífera se o terreno não a ajudar. 

Em nossa opinião esta afirmação é válida mesmo no momento actual em que parece nítida a tendência para duplicar ou substituir a guerrilha rural pela guerrilha urbana.

Afinal, esta tendência não é mais do que a confirmação de que a guerrilha tem absoluta necessidade de terreno apropriado. E este terreno tanto pode ser a selva e o mato, como as cidades superpovoadas. O que a guerrilha precisa, quanto a terreno, é de bons esconderijos, boas possibilidades de deslocamento, bons terrenos de culturas alimentares, boas condições para defesa própria e para reacção aos ataques das forças da ordem.

É evidente que estas características não se encontram nem nos desertos, nem nas selvas impenetráveis, nem nas áreas desabitadas ou improdutivas. Mas tanto se podem encontrar em regiões rurais como nas grandes cidades.

Na Guiné as condições ideais para a guerra de guerrilha encontram-se no mato da quase totalidade da Província. 

Terra plana e baixa, que na maré cheia o mar invade em um oitavo da sua superfície, a Guiné portuguesa é um território «sui generis» mas com certas semelhanças com o Vietname. As áreas alagadiças e pantanosas onde os nativos cultivam o arroz − as traiçoeiras «bolanhas» já hoje tão conhecidas dos nossos soldados − alternam com as matas fechadas onde o inimigo tem os seus refúgios e cujos escassos trilhos ele armadilha ou disfarça ardilosamente.

É nas «bolanhas» que os mil rios da Guiné se espraiam em fantasiosos meandros, tornando fatigante e extremamente longo o mais pequeno percurso. Para se avançar um escasso quilómetro é preciso por vezes andar dez ou mais. Ou então há que prosseguir com água e lodo não raro até ao pescoço.

O rendilhado destas margens lodosas e cobertas de tarrafo é substituído na zona interior por um mato espesso que se despenha sobre as estradas e quase sufoca os trilhos, facilitando a emboscada.

Junte-se a este esboço panorâmico um calor tórrido e uma humidade quase limite, e ter-se-á uma ideia das condições da luta na Guiné 
− favoráveis para um inimigo habituado ao clima e conhecedor do terreno, e desfavoráveis para o soldado acabado de chegar da Metrópole.

2-0 Inimigo

A partir de 1955, as autoridades inglesas e francesas dos territórios africanos,  sob sua administração, começaram a permitir a formação de partidos políticos pelos nativos daqueles
territórios. Assim sucedeu na Guiné Francesa de então e no Senegal, territórios que confinam com a nossa Guiné, respectivamente a sul e leste e a norte.

Compreende-se fàcilmente que os nossos nativos residentes naqueles territórios se sentissem também inclinados a formar partidos políticos. Mas enquanto na República da Guiné só um vingou (o PAIGC), no Senegal constituíram-se vários que rivalizaram uns com os outros durante anos até que se fundiram num só (a FLING).

O PAIGC ou «Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde» é constituído por guineenses e cabo-verdianos, embora estes sejam em minoria numérica. No entanto, o seu chefe é o engenheiro agrónomo cabo-verdiano Amílcar Cabral que se fez rodear de diversos conterrâneos.

Há conhecimento de rivalidades no seio do partido entre cabo-verdianos e  guineenses 
  o que não admira pois tais rivalidades são seculares, Em regra os guineenses queixam-se de ser colocados em posições subalternas.

No entanto, o indiscutível tacto político de Amílcar Cabral tem evitado dissidências importantes 
−  o que, como se sabe, não tem acontecido nos partidos angolanos e moçambicanos cujos dirigentes andam sempre envolvidos em disputas mútuas. Inclusivamente o PAIGC ainda hoje não formou oficialmente qualquer governo provisório, porque Amílcar Cabral deseja evitar invejas e descontentamentos que poderiam enfraquecer o partido.

Quanto à FLING, é constituída apenas por guineenses. Uma das pedras da sua propaganda para desacreditar o PAIGC, é mesmo fazer acreditar que os guineenses do PAIGC são dominados pelos cabo-verdianos.

Ambos os partidos declaram desejar a independência da Guiné Portuguesa e a transferência do poder para os nativos, sem que isso signifique a abolição da língua portuguesa ou a expulsão dos brancos. Mas enquanto a FLING pretende alcançar este objectivo por negociações, o PAIGC pôs de lado os meios pacíficos e escolheu a luta armada.

Uma outra diferença é que a FLING apenas deseja a independência da nossa Guiné. Mas o PAIGC pretende também a de Cabo Verde, constituindo a independência da Guiné apenas uma primeira fase da sua luta que deve conduzir à constituição de um Estado (talvez federal) englobando as duas Províncias.

O PAIGC é um movimento revolucionário de tendências sociocomunistas. A sua estrutura, imitada da do regime guineense de Seku Turé, baseia-se no sistema soviético da preponderância do partido sobre o governo.

Pelo contrário, a FLING é de tendência moderada ocidental e por isso teve o apoio, ainda que muito limitado, do governo senegalês de Leopoldo Senghor.

Desde o princípio que o governo de Conakry deu total apoio ao PAIGC
 o que não deve admirar pois trata-se de ideologias políticas idênticas.  Aliás foi a mesma identidade que levou o governo de Dakar a admitir a FLING. 

Simplesmente a FLING não conseguiu projecção alguma, dentro ou fora da nossa Guiné. E o PAIGC, há que admiti-lo, conseguiu. Não só a partir de 1964 passou a ser o único movimento armado actuando naquela Província, como o seu prestígio se foi cimentando no âmbito internacional e a tal ponto que o seu chefe já tem em conferências internacionais representado não só o seu partido como todo o movimento emancipalista africano.

Claro que a projecção alcançada pelo PAIGC não podia deixar indiferente o presidente senegalês Senghor, por um lado, pensou que, se acaso um dia o PAIGC viesse a tomar conta da vizinha Guiné Portuguesa, as relações com o Senegal seriam péssimas caso este país não tivesse ajudado o PAIGC na sua luta pela independência. 

Por outro lado, o presidente senegalês, apesar de todo o seu evidente ocidentalismo, sentiu que a sua própria posição pessoal estaria ameaçada, caso não mostrasse interesse pela luta de emancipação levada a cabo pelo PAIGC e apoiada por quase toda a Africa negra e árabe.

Estes condicionalismos políticos levaram Senghor, talvez até contra sua vontade, a prestar auxílio ao PAIGC, partido em quem o presidente senegalês não tinha muita confiança, primeiro por ser apoiado pelo governo de Conakry (cujas relações com Dakar nunca foram boas), e depois porque Senghor receava possíveis ligações entre o PAIGC e os elementos da oposição política senegalesa.

Foi então estabelecido o acordo de 1966 que «legalizou» a permanência e o deslocamento dos grupos armados do PAIGC em todo o Sul do Senegal,  fronteiriço com a nossa Guiné. Embora sem dar inteira liberdade ao PAIGC, este acordo facilitou enormemente o reabastecimento dos grupos actuando em toda a fronteira Norte da nossa Guiné e permitiu- lhes um refúgio seguro sempre que se sentiam mais apertados pelas nossas tropas.

Compreende-se que o aumento do apoio senegalês ao PAIGC correspondeu a uma ainda maior diminuição do interesse pela FLING cuja actividade cessou quase por completo.

Desta forma o PAIGC encontrou-se em condições ideais para prosseguir na sua actividade pois passou a contar com o apoio de ambos os Estados vizinhos da nossa Guiné. Além disso foi reconhecido pela Organização da Unidade Africana como o único movimento representativo daquela Província, sendo-lhe atribuída boa parte dos fundos do respectivo Comité de Libertação. 

Continuou a receber auxílio financeiro  em armamento e munições, não só da Rússia e seus satélites, como da China Popular. Aceitou médicos e quadros militares de Cuba e enviou centenas de guineenses para estágios e cursos em diversos países comunistas e socialistas. 

Recebeu auxílio financeiro de certos Estados nórdicos com destaque para a Suécia. Finalmente, estabeleceu intercâmbio com a própria Frente de Libertação do Vietname, sabendo-se que vários vietcongs já têm estado na nossa Guiné exercitando os grupos armados do PAIGC.

Em face de todos estes auxílios e apoios, a única coisa que nos parece que deve admirar é a relativa ineficácia da actividade militar do PAIGC. De facto na Guiné encontram-se trocadas determinadas características da guerra de guerrilhas. Quer em número quer em armamento, o inimigo apresenta-se muito mais forte e desenvolvido do que é vulgar atribuir-se a simples guerrilheiros.

Em especial o armamento, dos mais recentes modelos russos, checos e chineses, chega mesmo a levar vantagem sobre alguns tipos nossos, com destaque para os canhões sem recuo, morteiros e bazucas. Qualquer pequeno grupo inimigo dispõe destas armas em abundância e não faz a menor economia em munições.

Felizmente, porém, a eficiência pessoal dos combatentes é que é muito pequena. Falta-lhes treino, decisão, quadros. Armas esplêndidas como eles têm, são mal apontadas tornando o seu rendimento nulo ou quase. Não é raro o inimigo atacar um aquartelamento com canhões e morteiros disparando centenas de projécteis dos quais só dois ou três acertam no alvo. E já se têm apreendido aparelhos de pontaria isolados, simplesmente porque o inimigo desconhece a sua utilização e prefere apontar os canhões e os morteiros à vista.

Convém, no entanto, esclarecer dois pontos. O primeiro  que não podemos confiar em uma eterna inaptidão do inimigo para o combate. E o segundo é que, apesar do que dissemos, o PAIGC sabe perfeitamente o que está fazendo. Embora dentro das linhas gerais características da guerra revolucionária, o PAIGC actua de acordo com as condições peculiares da África e dos africanos.

Aliás, consideramos erro grave julgar que todas as guerras revolucionárias são idênticas quer na sua essência quer na sua concretização prática. Os dirigentes do PAIGC, embora ligados ao castrismo, ao sovietismo e ao maoismo, têm demonstrado uma originalidade própria que nos parece do maior interesse conhecer, para melhor lhe podermos fazer frente.

Dentro desta originalidade, o inimigo não deixa de dedicar a maior atenção à acção psicológica que é levada a cabo com notável sobreposição de meios. 

Esta acção exerce-se entre a população nativa por meio de agentes especializados. Exerce-se por meio de uma estação emissora que, em algumas áreas da Guiné, se ouve melhor do que a nossa Emissora de Bissau. Exerce-se por via diplomática nos diversos países africanos e não-africanos, chegando fàcilmente à ONU onde, como se sabe, tem a maís favorável audição.


3 - A População

A variedade étnica da população guineense é bem conhecida. Num espaço restrito encontram-se doze ou quinze tribos tão diferentes umas das outras como os espanhois o podem ser dos franceses, dos italianos ou mesmo dos ingleses.

Estas tribos são idênticas apenas na sua aparência física e no seu atraso socioeconómico. Mas são diferentes nos seus usos e costumes, na sua língua, na sua religião, nos seus trajes e, até, na forma como reagiram à subversão e ao terrorismo.

De facto, enquanto Balantas, Sossos, Nalús e Biafadas se deixaram aliciar com certa facilidade, Felupes, Baíotes, Banhuns, Papéis e Fulas repeliram energicamente toda e qualquer ideia subversiva. E enquanto os Bijagós se mantêm alheios à luta, os Mandingas, os Mancanhas e os Manjacos dividiram-se, colaborando uns com o inimigo e outros connosco.

Aliás esta diferenciação não é taxativa. Há, por exemplo, inúmeros Balantas que nos continuam fiéis e com eles formámos até excelentes grupos de contra-guerrilha.

Cada uma das tribos citadas atrás ("raças» como lhes chamamos na Guiné) tem o seu «chão», isto é, a região onde habitam em maioria. O «chão» felupe, por exemplo, é a noroeste, na área fronteiriça com o Senegal, ao lado dos Baiotes e dos Banhuns. Os Papéis têm o seu «chão» na ilha de Bissau. Os Balantas 
− a raça mais numerosa da Guiné − estendem-se numa faixa central, desde a fronteira com o Senegal, ao norte, à fronteira com a República da Guiné, ao sul. 

A grande mancha continental do leste é essencialmente povoada por Fulas, embora aqui e além surjam núcleos de Mandingas que, no entanto, vivem em maior número na faixa ao norte do Rio Geba separando Balantas de Fulas.

A localização das «raças» corresponde aproximadamente à área de actividade do inimigo. Por isso a região ao sul do Rio Geba, «chão» de Balantas, Biafadas, Nalus e Sossos, está afectada pela guerrilha. O mesmo se pode dizer da faixa central, povoada por Balantas e Mandingas.

Mas as ilhas atlânticas, a orla marítima ao norte do Geba e todo o leste estão por completo sob o nosso controle, o mesmo podendo afirmar-se da totalidade das povoações e seus arredores.

A fidelidade dos Fulas, já tradicional, é bem conhecida. Injustos seríamos, porém, com outras «raças» se, neste, aspecto, não as colocássemos ao mesmo nível dos Fulas. Há dezenas de aldeias (tabancas) que se defendem sozinhas ontra os ataques dos grupos inimigos. E há milhares de nativos encorporados voluntariamente nas forças armadas e batendo-se com o mesmo ardor e a mesma valentia dos soldados metropolitanos.

É esta participação voluntária da maioria dos nativos guineenses na luta contra o PAIGC, que confirma a inexistência de qualquer sentimento nacionalista verdadeiramente partidário da independência do território.

Não é difícil compreender que, se não tivéssemos do nosso lado a maior parte da população guineense, a nossa situação na Guiné seria hoje insustentável. 

A única dificuldade com que deparamos na Guiné, no que se refere a recrutamento de militares e militarizados, é exactamente não podermos aceitar todos os que se oferecem. Os voluntários excedem de longe os contingentes necessários. Se são precisos 500 homens,  aparecem 4 ou 5 vezes mais e os excluídos deploram vivamente a sua exclusão.

Homens já idosos metem empenhos para ir para a tropa ou para a ela voltarem. Se o inimigo ataca uma tabanca desarmada, a população foge e apresenta-s sistematicamente na unidade militar mais próxima pedindo armas para se defender.

Poder-se-a perguntar: mas então como conseguiu o inimigo aliciar e levar ou ter consigo alguns milhares de nativos?

O PAIGC conseguiu isso inicialmente, empregando o terror, a promessa sedutora ou o rapto. Além disso, nós não tínhamos o dispositivo militar que hoje temos e os nativos, sentindo-se desprotegidos, não tinham outra solução que não fosse seguirem os grupos armados inimigos.

Mas hoje a situação está praticamente estabilizada. Os nativos preferem até acolher-se à nossa protecção. E aqueles que foram com o inimigo para as matas ou para os países vizinhos, não voltam porque o PAIGC não os deixa, chegando a matar os que tentam regressar.

4 - As Nossas Tropas

Contam-se por muitos milhares os nativos guineenses que participam na luta contra o terrorismo, constituindo Companhias e Pelotões de Caçadores, Pelotões de Milícias e grupos de combate especiais, além de guarnecerem as tabancas em autodefesa e de servirem de guias.

As Companhias e os Pelotões nativos de Caçadores têm enquadramento metropolitano e são utilizados como quaisquer outras subunidades do mesmo tipo.

Os Pelotões de Milícias são constituídos por nativos a quem se dá uma instrução reduzida e que depois vão guarnecer determinadas posições e tabancas.

Os grupos de combate especiais actuam ou como os elementos dos Comandos ou como o próprio inimigo.

Os homens válidos das tabancas,  mais ameaçadas pelas infiltrações ou ataques inimigos, são por nós armados mas não têm uniforme nem recebem vencimento algum. São volutários que defendem o que é seu e que não são em geral empregues fora das suas tabancas.

Com esta variedade de elementos obtém-se uma apertada malha ofensiva-defensiva cuja eficiência parece aumentar cada vez mais. Talvez para isso contribua o facto de os melhores elementos irem sempre percorrendo uma escala hierárquica que cada vez lhes concede maiores privilégios e  garantias. Um nativo de uma tabanca que se distinga pode passar a milícia, daqui a soldado e por fim ingressar nos Comandos onde até mesmo os oficiais são guineenses sem necessidade de habilitações literárias especiais.

Compreende-se fàcilmente que desta forma os elementos africanos dos Comandos sejam nativos realmente bons no combate.

Claro que a envergadura do PAIGC não permite, pelo menos por agora, entregar a defesa da nossa Guiné apenas aos nativos guineenses. Daí que a Guiné disponha hoje de um certo número de unidades metropolitanas em reforço à sua guarnição normal.

A eficiência de combate destas unidades tem confirmado as tradicionais virtudes do nosso soldado, em especial no que respeita a coragem, poder de adaptação e espírito de sacrifício.

É evidente que nem todas as unidades apresentam a mesma rentabilidade. Posso porém afirmar que esta rentabilidade é melhor naquelas onde o espírito ofensivo está mais desenvolvido.

Uma norma que adoptei e com a qual não me dei mal,  foi exactamente ir ao encontro do inimigo em vez de o esperar enterrado nos abrigos. Ficamos com certeza fisicamente mais cansados mas mais vale viver cansado que morrer repousado.

E é curioso que o espírito atávico do nosso soldado leva-o em tempo de guerra a preferir a actividade ofensiva a um repouso enganador e perigoso. Vi muitas vezes a satisfação no rosto dos soldados que conduzi ao encontro do inimigo, que obriguei a montar fatigantes emboscadas nocturnas quase consecutivas, que levei a regiões consideradas na posse do inimigo desde o princípio da guerra.

A verdade é que, neste ou em qualquer outro tipo de guerra, só a ofensiva recompensa. E mal de quem pense o contrário. Inclusive as baixas são sempre menos numerosas nas unidades que procuram o inimigo do que naquelas que se limitam a aguardá-lo.

Evidentemente que este espírito ofensivo não pode ser conduzido com imprudência. Há que calcular o risco que se corre. Há que ter imaginação no desenvolvimento das operações. Não se trata de ir pura e simplesmente para a frente pois não só o inimigo é numeroso e está bem armado, como o próprio meio é hostil.

De facto, em muitas operações, são mais as baixas causadas pela insolação, pela sede, pelas abelhas e pelos rios, que as causadas pelo fogo inimigo. Há que preparar bem as acções, dando aos nossos soldados o maior número possível de condições e sem esquecer que eles são por vezes desleixados e imprevidentes.

Inúmeros pormenores têm que ser pensados antes de se lançar uma acção, seja pequena ou grande. A fase da Lua, a altura das marés, a verificação do armamento e do equipamento, o cálculo das rações de combate, tudo isto é apenas uma parte do que um comandante, seja qual for a hierarquia, tem de tomar directamente a seu cargo.

Não poucas vezes deparei com soldados que, por inconsciência ou por comodismo, não levavam o cantil cheio, se esqueciam das redes contra as abelhas, ou tentavam aligeirar-se transportando poucas munições ou pouca comida.

Em outras ocasiões notei a tendência para abrandar a atenção e a vigilância só porque já se estava próximo do quartel, no regresso de uma acção; ou para seguir pelas picadas e trilhos (que em regra estão armadilhados) em vez de progredir a corta-mato (que é mais cansativo mas mais seguro); ou para não sintonizar os postos-rádio antes da partida; enfim, para uma série de pequenos cuidados de que dependem muitas vezes o êxito ou o insucesso.

De uma forma geral, porém, o nosso soldado torna-se motivo da nossa maior admiração e da nossa maior estima. Quem tem a honra de o comandar em combate, é insensívelmente levado a reconhecer que Napoleão tinha razão ao classificar o soldado português como o melhor do mundo.

Convém salientar que as unidades metropolitanas de reforço não se limitam a combater. Elas contribuiram para a melhoria que, em todos os campos, se nota hoje na Guiné.

Após quatro anos de permanência na Guiné, sempre no mato que é onde se conhecem melhor os nativos, sou levado a chegar à conclusão que a Guiné progrediu mais nestes últimos 8 ou 9 anos que nos anteriores 5 séculos.

E empenho nesta afirmação um pouco do meu orgulho de militar pois é exactamente à presença dos militares que a nossa Guiné deve o seu actual impulso.

No campo sanitário, por exemplo, a cobertura hoje existente deve ser das mais completas de toda a África. Diariamente, os médicos e enfermeiros militares observam e tratam milhares de nativos civis. Os casos mais graves são transportados de avião ou helicóptero para Bissau, sistema que talvez em nenhum dos novos Estados africanos seja ainda usado.

A eficiência da assistência sanitária na nossa Guiné tornou-se rapidamente conhecida nos países limítrofes, sendo normal a afluência aos nossos Postos Sanitários fronteiriços de muitos nativos senegaleses e até da República da Guiné.

Sob o aspecto educacional, também a tropa tem desenvolvido muito favorável actividade não só devido às muitas escolas que tem montado e mantido no interior da Província, como também porque oficiais e até seus familiares preenchem hoje lugares de professor no Liceu e nas Escolas Técnicas de Bissau.

As unidades de Engenharia estão dando também o seu contributo à Província, construindo pontes, estradas e edifícios.

E os serviços próprios do Comando-Chefe, secundando o esforço do Comando Militar e em colaboração com o Governo da Guiné, estão reordenando as populações, criando-lhes novas e mais adequadas condições de vida.

5 - O desenrolar da luta

O terrorismo na Guiné começou em meados de 1961, no noroeste, junto à fronteira do Senegal. Foi porém uma actuação esporádica, a cargo do Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Renovada em 1963, esta actuação acabou no princípio do ano seguinte devido não só à eficiente actuação das forças armadas, corno também à falta de receptividade da população nativa composta por F'elupes, Batotes e Banhuns.

Em Janeiro de 1963, o PAIGC iniciou a sua actuação armada no sul da Província, conseguindo infiltrar os seus grupos até ao Rio Geba. Em Julho desse ano passou o rio e levou a insurreição à região florestal do Oio. No princípio de 1964 chegou a Farim e atingiu a fronteira norte.

No final de 1964 grupos inimigos lançaram o pânico entre as populações do nordeste e começaram a actuar no Boé. No princípio de 1965 tentaram passar do Oio para o ector dos Manjacos, a oeste, mas foram mal sucedidos.

É curioso que as características da actuação militar inimiga na Guiné foram distintas das observadas em Angola. Nesta última província o inimigo levou a cabo actos terroristas de extrema crueldade mas os seus grupos quase não dispunham de armas aperfeiçoadas. Só anos depois do início é que apareceram as metralhadoras e os morteiros; ainda hoje as bazucas e em especial os canhões sem recuo são raros.

Na Guiné não houve a crueldade de Angola. Ninguém cortou pessoas aos pedaços. Quando muito, algumas orelhas decepadas a um ou outro nativo que se recusou a deixar-se aliciar.
 

Em compensação os grupos inimigos nunca utilizaram catanas ou canhangulos ("longas» como se chamam na Guiné) mas, logo desde o início, pistolas-metralhadoras, granadas e espingardas de guerra. Sucessivamente e em ritmo acelerado foram aparecendo metralhadoras, morteiros, bazucas, espingardas automáticas, canhões sem recuo, etc., tudo em número excepcionalmente elevado.

E tão elevado que em algumas apreensões de armamento feitas na Guiné como consequência de operações militares, chega-se a apanhar mais material do que em Angola se apanha num ano.

Convém esclarecer que o alastramento da actividade inimiga atrás citado não correspondeu ao movimento ofensivo característico da guerra clássica. Traduziu-se sim por simples infiltrações de grupos armados que depois de realizadas umas tantas acções, recuavam novamente para as bases de partida em território estrangeiro para se reabastecerem e descansarem. 

Deixavam porém o vírus da subversão encontrando facilitada a sua actuação dada a falta de efectivos com que lutávamos. As populações nativas eram levadas a acreditar no PAlGC e, quando resistiam, eram compelidas a acompanhá-lo já que nós ainda não lhes podíamos prestar a devida protecção.

A partir de 1966, porém, a nossa malha militar apertou-se e a situação tendeu a estabilizar-se apesar do constante reforço do inimigo em homens e em armamento, e apesar do PAIGC ter passado a utilizar também o Senegal como base para os seus ataques.

Esta utilização facilitou, aliás, o alastramento da actividade inimiga para oeste, isto é, na direcção do importante sector dos Manjacos, e em toda a faixa fronteiriça do norte, desde Suzana até Cuntima. 

É, no entanto, curioso que a faixa fronteiriça da metade leste da Guiné tem vivido em completa calma - o que se deve ao facto das populações senegalesas fronteiriças serem também da raça Fula, não consentindo na presença dos grupos armados do PAIGC. Já as da faixa central são compostas por Balantas e Mandingas, favoráveis ou pelo menos permeáveis à propaganda inimiga.

em 1968 os grupos do PAIGC vindos do Sul e Sudeste procuraram infiltrar-se até à estrada Bambadinca-Bafatá-Nova Lamego-Piche mas foram repelidos. Mantiveram, porém, a pressão sobre a cintura de tabancas organizadas em auto-defesa, flagelando-as periodicamente mas nunca se atrevendo a ultrapassá-las com receio de lhes ser cortada a retirada.

6 - A situação actual

Por motivos vários entre os quais avulta a deficiência de informação pública, a situação na Guiné é em geral mal avaliada na Metrópole, havendo a tendência para se considerar muito pior do que na realidade está.

De facto, na maior parte da Guiné as populações fazem a sua vida normal não havendo sinais visíveis da guerra. É o que acontece em todas as ilhas atlânticas (incluindo a de Bissau), em grande parte do «chão» dos Manjacos e na quase totalidade da massa continental do Leste.

No resto do território o inimigo faz as suas incursões de surpresa mas regressa logo ou às bases que tem no Senegal e na República da Guiné, ou aos refúgios das matas mais espessas. 

Dentro da política que resolvemos seguir, as bases exteriores do PAIGC são verdadeiros santuários pois nós não as atacamos visto estarem em país estrangeiro. Mas os refúgios inimigos no interior da Província andam sempre a mudar pois as nossas tropas procuram-nos constantemente , quando os detectam, atacam-nos e destroiem-nos sistemàticamente.

Desta forma, é totalmente falso que o PAIGC ocupe realmente e em permanência qualquer parcela da Guiné. Nós vamos a qualquer ponto da província e só em pequenas áreas precisamos, para lá ir, de mais de uma Companhia.

Sem dúvida que o inimigo dispõe de numerosos grupos todos excelentemente armados. Sem dúvida também que a sua actividade é grande, especialmente em flagelações nocturnas a aquartelamentos e povoações, em colocação de minas anti-pessoal e anti-carro e em emboscadas contra as nossas forças, utilizando nestas acções um considerável potencial de fogo.

A verdade, porém, é que, como dissemos, a eficiência militar do inimigo é felizmente muito pequena - isto apesar de já ir possuindo um treino de sete ou oito anos. Regra geral o inimigo debanda após as suas acções, não conseguindo explorar qualquer sucesso inicial obtido pela surpresa. Casos há em que as nossas guarnições, depois de suportarem flagelações de duas e mais horas, ficam sem munições à espera de um assalto inimigo que, afinal, quase nunca se dá.

Por outro lado, os nossos soldados, pretos e brancos, adaptam-se fàcilmente à situação.

Não vamos aqui afirmar que a vida na Guiné de hoje, nas áreas contaminadas, seja boa. Tenho 4 anos dessa vida. Mas se uma unidade adoptar sistemàticamente um espírito ofensivo, as suas possibilidades de viver relativamente sossegada são grandes pois o inimigo passa a receá-la.

Se quisessem os resumir a actual situação militar na Guiné diríamos que o Inimigo:

a) Executa incursões de surpresa em quase todo o Sul, na faixa fronteiriça entre Suzana e Cuntima, e em parte da região entre os rios Cacheu e Geba;

b) Esforça-se por se infiltrar no enorme sector dos Fulas, exercendo pressão em especial a partir do Sul  Sudeste, mas sem que até agora tenha obtido qualquer êxito pois as populações, armadas em auto-defesa e reforçadas pelas nossas tropas, opõem-se abertamente aos seus desígnios;

c) Fazendo base em território estrangeiro, flagela as nossas povoações e aquartelamentos fronteiriços,embora quase sem nos causar baixas, dada a falta de eficácia dos seus fogos.

Quanto às nossas tropas:

a) Ocupam todas as povoações da Guiné e seus arredores;

b) Repelem com relativa facilidade todas as acções inimigas;

c) Impedem o alastramento da subversão e da actividade militar inimiga para fora das zonas inicialmente contaminadas;

d) Executam acções e operações ofensivas em toda a província.

7 - Perspectivas

Em face do que dissemos atrás, quais são então as perspectivas que antevemos para a luta na nossa Guiné?

Em nossa opinião, o PAIGC já deve ter compreendido que, a não ser que empregue meios, forças e tácticas diferentes, jamais poderá ganhar militarmente a guerra.

Por outro lado, nós também temos de compreender que, enquanto o Senegal e a República da Guiné constituirem santuários para o inimigo, nunca mais poderemos acabar com a guerrilha. Ainda que empurrássemos o PAIGC até às fronteiras, não poderíamos depois impedir que ele se infiltrassem novamente dada a característica especial dos grupos de guerrilheiros.

Portanto, no que nos respeita, o problema não é só militar, é também político: desde que consigamos levar os governos de Dakar e de Conakry a alterar a sua política de protecção ao PAIGC, este não terá quaisquer possibilidades militares de se manter.

 O difícil está porém em conseguir alterar a política do Senegal e da República da Guiné, países que estão solidamente integrados na engrenagem internacional de apoio aos movimentos subversivos.

Quanto ao PAIGC, ele sabe que conta com largo apoio internacional quer no campo político quer no auxílio financeiro, social e militar.

Sucede porém que, apesar de todo este auxílio, o PAIGC não pode, sem grave risco próprio, prolongar muito mais tempo a luta. As condições em que actuam os seus grupos armados são duríssimas, mesmo para nativos africanos habituados a poucas ou nenhumas comodidades. Falta-lhes comida, roupa, alojamento e remédios. Só o armamento e as munições são abundantes, embora sempre mal conservados.

Além disso quer os guerrilheiros quer a população que está sob seu controle, começam a dar sinais de saturação e de desilusão. Começam a não acreditar em Amílcar Cabral que todos os anos lhes promete ganhar a guerra, sem nunca o conseguir.

Com o cansaço físico e moral, surge mais nítida a secular rivalidade entre os guineenses e os cabo-verdianos que militam no PAIGC. Mais difícil se torna portanto a direcção do partido que tende a perder coesão.

Ora Amílcar Cabral sabe tudo isto. E sabe que ou acelera a luta ou a perde.

Admitimos por isso que o PAIGC esteja realizando ou vá realizar novos e mais profundos esforços no sentido de tornar insustentável a nossa posição na Província.

Estes novos esforços serão desenvolvidos em todos os campos desde o diplomátíco ao militar. O colapso repentino do Biafra não pode deixar de favorecer o PAIGC, em especial quanto a armamento. Outro tanto sucederá se a guerra do Vietname acabar pois os contactos entre o PAIGC e o Vietcong já se encontram estabelecidos, como dissemos,

No entanto, se por um lado temos obrigação de admitir o reforço da actividade geral do inimigo - tanto mais que sabemos ele estar sendo apoiado pela OUA e por grande
parte dos países membros da ONU -, por outro lado não podemos deixar de reconhecer as tremendas dificuldades com que o PAIGC vai continuar a deparar se insistir em cumprir o programa que se propôs.

De facto, em primeiro lugar, há que contar com a nossa determinação em defendermos o solo cinco vezes centenário da Guiné Portuguesa. Em segundo lugar, é natural que a um esforço maior do inimigo respondamos com outro esforço também maior. E em terceiro lugar, não vemos como, nos anos mais próximos, o PAIGC terá possibilidade de levar a Cabo Verde a guerra que nos move na Guiné, dadas as características para nós favoráveis que o arquipélago apresenta.

[Digitalização / revisão, fixação de texto e atualização ortográfica, e negritos, para efeitos de publicação neste blogue:  LG. ]



Major General Hélio Esteves Felgas (1920-2008): duas comissões na Guiné, um dos militares portugueses da sua geração mais condecorados, autor de dezenas de livros e artigos sobre a "luta contra o terrorismo", a guerra ultramarina... 

Foi comandante do Comando de Agrupamento n.º 1980 (Bafatá, 1967/68), como o posto de ten cor inf e do Comando de Agrupamento n.º 2957 (Bafatá, 1968/70), já com o posto de cor inf. A qui é de destacar o planeamento e  a execuação da Op Mabecos Bravios (evacução do aquartelamento de Madina do Boé, de trágicas consequências, sector do Gabu, 2-7 fev 1969) e a Op Lança Afiada (Sector l1, 8-19 de março de 1969). 

Mas antes tinha passado pelo comando do BCAÇ 239 (Bula, São Domingos e Farim, 1961/63), e ainda pelo BCAÇ 507 (Bula, 1963/65),  o que lhe permitiu conhecer bem o início da luta armada desenvolvida pelo PAIGC, sobretudo a partir de 23/1/1963. Passou ainda pelo comando do BART 1914 (Tite, 1967/69). Ao todo, esteve quatro anos no CTIG.

Comparou a Guiné ao Vietname. Também considerava que a solução para a Guiné não era militar mas política... Foi, todavia, um crítico de Spínola que lhe terá roubado, entretanto, a ideia dos reordenamentos (aldeias estratégicas). Um oficial intelectualmente brilhante, professor a Academia Militar,  mas controverso, dizem alguns dos seus pares, mais novos.

Condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, em 1970, foi passado compulsivamente à reserva, a seguir ao 25 de Abril de 1974. (Estava m Angola nessa altura; e sempre se considerou vítima de um saneamento político-militar.)

Tem meia centena de referências no nosso blogue.

Foto gentilmente cedida pela filha, dra. Helena Felgas, advogada, colega e amiga do nosso saudoso camarada Jorge Cabral, e com quem estive no funeral do pai (LG).
__________

Nota do editor:

(*) Vd. Último poste da série > 22 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23284: Documentos (39): Amílcar Cabral, a "honra militar" e o assassinato dos 3 majores e seus acompanhantes, no chão manjaco, em 20/4/1970: acta (informal) do Conselho de Guerra do PAIGC, Conacri, 11 de maio de 1970, um "documento para a história"

quarta-feira, 31 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22053: Casos: a verdade sobre ...(21): a jangada que fazia a travessia do rio Corubal, em Cheche, já era assente em três canoas, no meu tempo, c. set 1967 / c. abr 1968 (Abel Santos, sold at, CART 1742, Nova Lamego e Buruntuma, jul 1967 / jun 1969)

Foto nº 1 > Guiné > Região de Gabu > Cheche > Rio Corubal > CART 1742 > c. set 1967 / c. abr 1968 >  A jangada com estrado assente em três canoas... O Abel Santos diz que a a foto é de janeiro de 1968, ou seja, um ano antes da Op Mabeco Bravios.


Guiné > Região de Gabu > Cheche > Rio Corubal > CART 1742 > c. set 1967 / c. abr 1968 >  O pessoal puxando a braço a corda que fazia deslocar a jangada.

Fotos (e legendas): © Abel Santos  (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de Abel Santos (ex-Sold Atir,  CART 1742, "Os Panteras",
 Nova Lamego Buruntuma, 1967/69)

Data - terça, 16/03/2021

Assunto - Poste 21949 Retirada  de Madina do Boé. 

Boa tarde,  meu amigo e camarada Luís Graça.

Lendo o poste em epigrafe (*) e as declarações nele introduzidas pelo senhor tenente coronel José Aparício, noto que há algumas inverdades inseridas no texto.

A certa altura o ten cor  José Aparício escreve que não havia jangada com três canoas, mas só com duas,  o que não é verdade, e para confirmar o que digo envio fotos da jangada na qual a minha CART 1742 fazia a travessia do rio Corubal (4 x 2) para Madina do Boé e Béli, aquando das colunas de reabastecimento aos camaradas ali colocados. 

Uma foto mostra a rapaziada da minha companhia que fazia o trajeto de ida e volta [Foto nº 1] , na outra foto vemos o pessoal puxando a braço a corda que fazia deslocar a jangada, porque não havia o tal motor auxiliar.[Foto nº 2]

A minha opinião em relação ao acidente no rio Corubal foi excesso de peso que a jangada levava a bordo, o que originou entrada de água nas canoas e, com corrente forte a meio do rio, adornou. Por precaução e segurança o nosso comandante nunca excedia o peso, levando em cada travessia 2 viaturas e os dez homens que puxavam a corda, que eram substituídos após a segunda travessia. (**)

Abel Moreira dos Santos, 
soldado de artilharia da CART 1742,
Nova Lamego, Buruntuma 
30 de Julho 1967/06 junho 1969. (***)

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21949: Op Mabecos Bravios: a versão da CECA e do ex-cap inf José Aparício, comandante da infortunada CCAÇ 1790, a última companhia de Madina do Boé

(...) A travessia do rio Corubal era então [, antes da Op Mabecos]  feita por uma jangada constituída por uma plataforma sobre 2 canoas; um longo cabo ligando 2 pontos fixos instalados em cada margem corria numa roldana instalada na plataforma; a impulsão necessária para mover a jangada era dada pela força braçal dos militares puxando manualmente o cabo.

Como segurança do movimento, uma embarcação "Sintex" com motor fora de bordo acompanhava lateralmente cada movimento de vaivém, pronta para qualquer emergência. (...)
 


(**) Vd. postes de:

25 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2984: Op Mabecos Bravios: a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche (Maj Gen Hélio Felgas † )

(...) No Gabu (então Nova Lamego) construiu-se uma nova jangada que depois foi levada para o Cheche onde a que lá estava foi devidamente reforçada. 

Estas jangadas eram constituídas por um forte estrado dotado de vedações laterais e assente em bidões vazios e em três “barcos” formados por grandes troncos de árvores escavados [canoas]. Estrutura esta que, com a jangada descarregada, colocava o estrado a cerca de um metro da água.

As jangadas eram consideradas muito seguras e incapazes de se voltarem ou afundarem, desde que não fossem excessivamente carregadas. 

Calculava-se que aguentariam um peso de dez toneladas. Mas para maior segurança a O.Op. proibia que fossem transportados mais de 50 homens de cada vez. (...)


26 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18871: Para que os bravos de Madina do Boé, de Béli e do Cheche não fiquem na "vala comum do esquecimento" - Parte III: A operação rotineira de manobra e montagem da segurança da jangada que fazia a travessia do Rio Corubal, no Cheche: fotos do álbum do Manuel Coelho (ex-fur mil trms, CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Béli e Madina do Boé, 1966/68)


(***) Último poste da série > 15 de fevereiro e 2021 > Guiné 61/74 - P21903: Casos: a verdade sobre... (20): a canoa abandonada na bolanha, na Tabanca Velha, Nova Sintra, e que servia de diversão para a rapaziada... (Carlos Barros, ex-fur mil, 2ª C / BART 6520/72, 1972/74)

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21531: Casos: a verdade sobre... (14): as razões da retirada de Madina do Boé em 6 de fevereiro de 1969... Já oito meses antes, em 8 de junho de 1968, havia saído uma Directiva do Comando-Chefe da Guiné para a transferência da unidade ali estacionada, a CCAÇ 1790, comandada pelo cap inf José Aparício


Fotigrama nº 1


Fotograma nº 2

 

Fotograma nº 3


Fotograma nº 4


Fotograma nº 5

Fotogramas do filme "Madina Boe" (Cuba, 1968, 38'), do realizador José Massip (1926-2014), obtidas a partir da função "print screening" do teclado do PC e da visualização de um vídeo. de menor duração (28' 22'') , disponibilizado no You Tube, na conta "José Massip Isalgué".  

O documentário (ou excertos) foi carregado no You Tube no dia da morte do cineasta (ocorrida em Havana, em 9/2/2014). 

O documentário chama-se "Amílcar Cabral" (e pode ser aqui visualizado): é narrado em espanhol, tem subtítulos em espanhol, mas também pequenos diálogos em crioulo e em português (por ex., com o médico dr. Mário Pádua, angolano branco, oficial do exército português, de que desertou, tendo saído de Angola para se juntar mais tarde ao PAIGC). 

Possivelmente o documentário do You Tube baseia-se em grande parte na média metragem "Madina Boé", mas parece estar amputado da parte final, incuindo a ficha técnica. (Faltam-lhe cerca de 10').

Esta média metragem, "Madina Boé" (1968),  foi  financiado pelo Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematográficas, de que o José Massip foi cofundador, e pela Organização de Solidariedade com os Povos da Ásia, África e América Latina. O documentário retrata a organização do  PAIGC na região do Boé, e o quotidiano dos seus guerrilheiros. O Boé
é considerado como "área libertada". 
 
O cineasta José Massip e o operador de câmara Dervis Pastor Espinosa  estiveram no Boé em março e abril de 1967,  pelo que as imagens do  ataque ao quartel de Madina do Boé em 10 de novembro de 1966 (, trágico para o PAIGC, com a morte de Domingos Ramos e outros militantes) só podem ser de arquivo e, nessa medida, são (ou podem parecer) um embuste: a verdade sobre o que se passou nesse dia trágico foi pura e simplesmente ignorada ou escamoteada.

Sabe-se que em março-abril de 1967,  a equipa cubana não filmou nenhuma cena de guerra, alegadamente por razões de segurança. As imagens de guerra que foram incorporadas no filme terão sido obtidas por outra equipa cubana, que estava no terreno em 10 de novembro de 1966, o que ainda está por esclarecer. (Já fizemos referência à operadora de câmara argentina Isabel Larguia, que estava ao lado do guineense Domingos Ramos e do cubano Ulises Estrada) (**)

O filme foi estreado entre nós no doclisboa'16, em 24 de outubro e 2016, às  15h30, na Cinemateca Nacional, Sala M. F. Ribeiro.  Sinopse que vinha no programa, e que não deixa de ser reveladora de alguma ingenuidade dos organizadores.

"Filmado nas áreas libertadas [sic] da Guiné-Bissau, durante a sua guerra de libertação de Portugal, o filme segue o Exército Popular para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, documentando a educação política dos combatentes, as técnicas de guerrilha e o treino físico."  

De resto, tanto Cuba como  PAIGC mantiveram inicialmente em segredo a "ajuda estrangeira" em conselheiros, médicos e combatentes cubanos... No filme não aparecem combatentes estrangeiros, a não ser o médico Mário Pádua, de costas (que diz no filme: "eu sou um médico português antifascista e anticolonialista"... e acrescenta: a guerra que aqui se trava não é do povo guineense contra o povo português mas contra um regime político fascista...)

O filme do José Massip foi várias vezes premiado (. nomeadamente em países do chamado bloco soviético), passou na televisão cubana mas não obteve grande entusiasmo  da crítica interna. Há cenas no filme que não terão agradado ao regime de Fidel Castro, Em contrapartida, foi muito útil à propaganda do PAIGC. Amílcar Cabral era hábil, a explorar, no plano mediático e diplomático, testemunhos como este que devem ter seduzido, por exemplo, os suecos do partido de Olof Palme.

 Legendas: 

Fotograma nº 1 > Amícar Cabral cambando o rio Corubal,  acenando para uma das margens.

Fotograma nº 2 > As colinas do Boé

Fotograma nº 3 > Aspecto do aquartelamento de Madina do Boé (que José Massip chama "base"), vista seguramente obtida de teleobjetiva: vê-se um militar português, junto a duas dificações de alvenaria, abrigos e valas protegidoes por bidões cheios de terra.

Fotograma nº 4 >  Aspeto parcial de Madina, com algumas moranças da milícia ou guias locais ao serviço do exército potuguês. Imagem obtida seguramente por uma teleobjetiva, a partir de uma colina.

Fotograma nº 5 > Disparo de canhão s/r contra Madina do Boé [ possivelmente em 1o de novembro de 1966]

Reprodução, edição e legendagem, com a devida vénia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)



Foto nº 1 > O Manuel Coelho, na margem direita do rio Corubal, montando segurança à travessia do Rio Corunal, em Cheche, que se fazia através de um  jangada. 



Foto nº 2 > O Manuel Coelho dentro da jangada com um guineense, que tanto pode ser milícia como militar do destacamento de Cheche... Ambos ajudam a segurar o cabo (ou a corda) ao longo do qual se desloca a jangada (que também tinha um pequeno motor auxiliar)...


Foto nº 3 > A jangada que se começa a deslocar da outra margem (Cheche), seguindo o cabo, esticado de um lado a outro... No ancoradouro, é visível uma segunda jangada.


Guiné > Região de Gabu > Sector de  Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas" (Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 1966-68) > 1967 > 

 O Manuel Coelho, fur mil trms,  com uma secção, montando segurança à jangada que fazia a travessia do Rio Corubal em Cheche (Foro nº 1). Ou puxando a corda que ligava as duas margens e ajudava deslocar a jangada (que tinha um pequeno motor auxiliar) (Fotos nºs 2 e 3)... Uma operação rotineira, ao lomgo de anos, de permanência das NT em Madina do Boé, até ao fatídico dia 6 de fevereiro de 1969, o da retirada do aquartelamento de Madina do Boé e do destacamento de Cheche (Op Mabecos Bravios).

Fotos (e legendas): © Manuel Caldeira Coelho (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Junho, 8 [1968] - Directiva do Comando-Chefe da Guiné para a transferência da unidade estacionada em Madina do Boé

Devido à sua localização, cercada de elevações de terreno {, as famosas "colinas do Boé", contrafortes do Futa Jalom, na Guiné-Conacri], Madina do Boé era considerada a Dien-Bien-Phu portuguesa-

A guarnição militar, uma companhia do Exército, reforçada com artilharia, era frequentemente atacada e vivia dentro de abrigos, sem capacidade para outra actividade  operacional que não fosse garantir o seu reabastecimento.

Não existia qualquer interesse operacional em manter ali uma guarnição, não existiam populações locais que fosse necessário enquadrar ou proteger, pelo que a manutenção de uma unidade em Madina do Boé resultava apenas do preconceito que sair podia ser visto como uma derrota.

A ordem de Spínola para abandonar a guarnição resultava da sua visão pragmática de fazer a guerra  e era reveladora do seu conceito de manobra, decididamente orientada para a conquista das populações. Abandonava terreno  desabitado e  libertava uma unidade que podia colocar numa zona de maior interesse.

In: Carlos de Matos  Gomes e Aniceto Afonso - Os anos da guerra colonial, vol 9: 1968 - Continuar o regime e o império. Matosinhos, QuidNovi, 2009, pp. 52-53.

[Nota do editor LG: a última companhia a guarnecer Madina do Boé, a CCAÇ 1790, não dispunha de artilharia p.d., mas apenas de morteiro 81 e canhão s/r, que são armas pesadas de infantaria]


2. Era também essa a opinião do comandante da Op Mabecos Bravios, destinada a assegurar a retirada de Madina do Boé, o cor inf Hélio Felgas [, do Comando de Agrupamento nº 2957, Bafatá, 1968/70], reformado com o posto de major general, e falecido em 2008.
 

O Paulo Raposo, ex-alf mil da CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/70), membro da primeira hora da nossa Tabanca Grande, organizador do nosso I Encontro Nacional, na Ameira, Montemor-o-Novo, em 2006, mandou-me, em devido tempo, uma fotocópia de um depoimento do então Brigadeiro Hélio Felgas, sobre a trágica retirada de Madina do Boé.

Se não erro,  esse depoimento terá sido escrito em 1995, a pedido dos "baixinhos de Dulombi", os ex-alf mil Rui Felício, Paulo Raposo, Jorge Rijo, Victor David e , e demais pessoal da CCAÇ 2405, a unidade que perdeu 17 homens na travessia do Rio Corubal, em Cheche, 6 de Fevereiro de 1969. Só o Rui Felício perdeu 11 homens do seu Grupo de Combate. (As restantes vítimas mortais, 29,  foram da CCAÇ 1790.)

Desse documento  ("A retirada de Madina do Boé", até então inédito, publicado por nós em 2008)(*), retiramos alguns excertos em que o Hélio Felgas avança com as razões que levaram à retirada de Madina do Boé (e, consequentemente, ao lançamento da Op Mabecos Bravios). 

Enfim, são mais dois contributos para se esclarecer a verdade que está por detrás da retirada de Madina do Boé, rapidamente transformada pela propaganda do PAIGC em  grande vitória militar... e "trunfo diplomático"  (***)
 
2. A retirada de Madina do Boé (excertos)


pelo Brigadeiro Hélio Felgas  (1995)

[Digitalização, fixação e revisão do texto e subtítulos: L.G.]


Todo o sudeste da Guiné, ao sul do rio Corubal, era uma região praticamente despovoada onde só havia dois postos administrativos: Beli e Madina do Boé.


(i) Um ponto sem valor estratégico

Já antes de, em 1968, eu ter assumido o comando do sector Leste [, Agrupamento nº 2957, com sede em Bafatá], Beli fora abandonado [, em 15 de julho de 1968]. O pelotão que aí se encontrava fora transferido para Madina, completando a companhia aí instalada [, CCAÇ 1790, comandanda pelo cap inf José Aparício].

Madina fica a cerca de 5 quilómetros da República da Guiné-Conacri. Não tinha qualquer população civil e só dispunha de um ou dois pequenos edifícios. Nem ruas tinha. Havia sido apenas uma minúscula tabanca (aldeia nativa), sem importância de qualquer espécie.

À medida que o PAIGC aumentava o seu poder de fogo com morteiros pesados e artilharia, os bombardeamentos e flagelações a Madina, executados em geral a partir do lado de lá da fronteira, passaram a ser quase diários.

Por isso a guarnição dormia em abrigos, escavados 4 ou 5 metros abaixo do nível do solo. Muitas vezes os bombardeamentos nada destruíam, caindo os obuses e granadas fora do perímetro do aquartelamento. Mas outras vezes causavam estragos e baixas que, em caso de necessidade, eram evacuadas de helicóptero para o hospital militar de Bissau.


(ii) A rotina dos bombardeamentos e flagelações

Apesar desta situação certamente pouco agradável, o moral da guarnição era levado. Lembro-me da primeira vez em que fui pernoitar a Madina. Pouco antes do anoitecer comecei a ouvir os soldados à porta dos seus abrigos gritando “Está na hora! Está na hora!”. 

O comandante da Companhia elucidou-me que era a altura de o PAIGC começar o usual bombardeamento e os homens já tomavam aquilo como uma brincadeira, habituados como estavam ao estrondo do rebentamento das granadas. Por acaso nesse dia as granadas só de madrugada caíram e não causaram baixas nem prejuízos.

Claro que a nossa guarnição respondia com morteiros e com canhão sem recuo e toda a gente estava sempre preparada para disparar a curta distância do arame farpado. Que eu saiba, porém, nunca o adversário tentou assaltar o aquartelamento.

Na manhã seguinte um destacamento saía do recinto e percorria os arredores procurando descobrir o local de onde teria sido feita a flagelação. Umas vezes tinha êxito e o local era cuidadosamente assinalado nas nossas cartas de tiro. Mas outras vezes nada se descobria pela simples razão de o bombardeamento ter sido feito a partir do território da Guiné-Conacri e os nossos militares cumprirem escrupulosamente a ordem que tinham de não atravessar a fronteira.

As viaturas da Companhia encontravam-se dispersas pela área do aquartelamento, em especial junto às árvores para melhor protecção. E até ao princípio de 1969 havia algum gado para consumo do pessoal. O último boi foi porém abatido por uma granada do PAIGC e a isso se referia com certo humor o relatório-rádio do comando local, confirmando assim o bom moral da unidade.

(iii) Missão: defender-se a si próprio!


De qualquer forma, tornou-se pouco a pouco evidente a inutilidade da presença de uma Companhia em Madina.

A tropa estava na Guiné para defender a população civil que nos era afecta, tentando suster o seu compulsivo aliciamento pelos guerrilheiros do PAIGC vindos do Senegal, a norte, ou da Guiné-Conacri, a sul e a leste. Procurava também evitar ou dificultar a penetração desses guerrilheiros em território então considerado nacional. E pretendia ainda impedir a destruição das estruturas económicas e administrativas: pontes, estradas, edifícios, etc.

Ora em Madina e em todo o sudeste guineense a sul do rio Corubal, não havia população alguma. Não havia estruturas de qualquer importância. E a fronteira era totalmente permeável em dezenas de quilómetros.

Então, se a tropa não estava a proteger qualquer ponte nem qualquer tabanca e não tinha a menor possibilidade de impedir penetrações territoriais, o que é que estava a fazer em Madina ?

A resposta era simples: a Companhia de Madina estava lá “para se defender a si própria”! Quando, afinal, fazia tanta falta em outros pontos da Guiné!

Por outro lado, ponderou-se também a possibilidade de o PAIGC aproveitar uma possível evacuação de Madina pelas nossas tropas, para declarar a região como “libertada”.

Mas isso podia o PAIGC fazer em qualquer outro ponto, do imenso sudeste guineense. Na zona de Beli, por exemplo, que nós abandonámos havia muito tempo e onde nunca íamos por falta de objectivo.

Aliás, mesmo com a Companhia em Madina, o PAIGC podia declarar o sudeste guineense uma “zona libertada” e até lá levar jornalistas estrangeiros, como parece que fez. (...) (*)




 
Major General Hélio Esteves Felgas (1920-2008): duas comissões na Guiné, um dos militares portugueses da sua geração mais condecorados, autor de dezenas de livros e artigos sobre a "luta contra o terrorismo", a guerra ultramarina... Comparou a Guiné ao Vietname. Também considerava que a solução para a Guiné não era militar mas política... Foi, todavia, um crítico de Spínola que lhe terá roubado, entretanto, a ideia dos reordenamentos (aldeias estratégicas). Um oficial intelectualmente brilhante mas controverso, dizem alguns dos seus pares, mais novos.

Condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, em 1970, foi passado compulsivamente à reserva, a seguir ao 25 de Abril de 1974. (Estava m Angola nessa altura; e sempre se considerou vítima de um saneamento político-militar.)

Foto gentilmente cedida pela filha, dra. Helena Felgas, advogada, colega e amiga do nosso camarada Jorge Cabral, e com quem estive no funeral do pai (*) (LG)

_____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

25 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2984: Op Mabecos Bravios: a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche (Maj Gen Hélio Felgas † )

24 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2980: In Memoriam (5): Morreu ontem o Major General Hélio Felgas, antigo comandante do Agrupamento nº 2957, Bafatá (1968/69)

(**) Vd. poste de 3 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21510: FAP (122): A batalha das Colinas de Boé, ou a tentativa (frustrada) dos cubanos de fazerem de Madina do Boé o seu pequeno Dien Bien Phu (Abril-julho de 1968) - Parte I (José Nico, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1968/70)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20448: Notas de leitura (1245): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (36) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Impunha-se um confronto de opiniões, entre as expressas por Leopoldo Amado e as de Hélio Felgas, para o mesmo período, não para saber quem tem razão e manipula com mais rigor os dados. Sabe-se que Hélio Felgas tinha claramente objetivos promocionais, mas há momentos em que o seu trabalho atinge o nível do paradoxo: o inimigo recua mas entretanto cresce, está cansado mas recebe melhor equipamento, há etnias desavindas com a guerrilha mas o apoio internacional é cada vez maior, etc.
Arnaldo Schulz, de toda a documentação publicada, como anteriormente Louro de Sousa, responderam ao desafio com a contingência dos meios oferecidos. Há um dado no livro de Hélio Felgas que forçosamente tem que impressionar o leitor de hoje, quando ele fala do Plano Intercalar de Fomento da Guiné que, ao contrário de províncias como Cabo Verde e Timor, não conhecia quaisquer benefícios, escândalo clamoroso num território a viver a ferro e fogo, e a situação alterar-se-á radicalmente com Spínola. Mas disso os estudiosos hoje não falam. Lendo as instruções e diretivas de Schulz, forçoso é constatar a veracidade da sua informação, ela ficará bem patente quando aqui se referir, com maior extensão, o que ele vai escrever e dar a conhecer ao Governo de Lisboa em 1 de Dezembro de 1966.
Fiquemos hoje por aqui.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (36)

Beja Santos

“Muito armamento se capturou
na primeira Companhia.
A 5 de Janeiro no Cacheu
grande desastre surgia.

Rapazes distinguiram
ao fim de uma caminhada.
E dentro da mata cerrada
um acampamento se destruiu.
Muitos objetos lá se viram
quando nossa tropa avançou.
Para Farim se levou
um rádio e munições
e com três pelotões
muito armamento se capturou.

Foi um dia recordado
ao fazerem 16 meses.
Com os Alferes Azevedo e Menezes
este tormento passado
foi Fausto e Abogão evacuado
com Naciolindo no mesmo dia.
O Natálio também se feria,
a 19 deste mês.
E fez bom serviço o Garcês
na primeira Companhia.

Tivemos grande azar
com o Pelotão de Morteiros.
Morrem oito companheiros
por não se poderem salvar.
14 deles a nadar
a sorte lhes apareceu
21 G3 se perdeu
no fundo da água salgada.
Foi esta coisa amargurada
a 5 de Janeiro no Cacheu.

Iam para uma operação
dentro da barca pequena
deu-se então a triste cena
morrendo dois cabos na aflição.
Morreu o Alberto e o João
Batista e António Maria.
Junto ao Gonçalves também morria
o Patornilho Ferreira.
E naquela maldita traineira
grande desastre surgia.”

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Já aqui se fez referência à tragédia vivida por estes homens do Pelotão de Morteiros. No compulsar da documentação, sempre que possível, importa tentar a procura do contraditório. O historiador Leopoldo Amado dá-nos uma versão do ano de 1964 que não é coincidente com o que escreve Hélio Felgas, fora comandante do Batalhão de Caçadores 507 e escreveu o livro “Guerra na Guiné”, editado por um serviço de publicações do Ministério do Exército em 1967. A seu tempo se referiu que foi propósito do autor fazer um enquadramento do território, da sua etnografia e etnologia, dando igualmente dados sumários sobre transportes e comunicações, situação económica, história dos movimentos de libertação e elementos afins. Há na sua exposição a propósito das perspetivas económicas da Guiné um dado muito curioso. Fala ele do Plano Intercalar de Fomento da Guiné e observa que não conhece este Plano qualquer benefício, dizendo que o de Timor foi concedido a título de subsídio gratuito, o de Cabo Verde não vence juros mas a Guiné terá de pagar o seu plano como se nada de anormal se estivesse a passar naquele território. Subtilmente conclui que “não é difícil compreender-se que com receitas orçamentais tão reduzidas, a Guiné não tem qualquer possibilidade de acompanhar o progresso das outras províncias”. Estamos na era Arnaldo Schulz, que recebeu armamento, mais unidades militares, mais meios aéreos e navais. Mas teve que fazer um desenvolvimento com a prata da casa, situação que se alterará radicalmente em 1968, António Spínola entrará na Guiné com meios farfalhudos. Mas desta discrepância de recursos os estudiosos não falam. Havia inegáveis intuitos promocionais no trabalho de Hélio Felgas, não se iludia no seu escrito que estava a apresentar serviço, respondendo euforicamente no balaço efetuado e atribuindo à governação Schulz a travagem do alastramento da guerra.
Faz logo um comentário que pode ter uma leitura contrária, vejamos:
“1964 foi um ano decisivo na guerra da Guiné. Em todo o primeiro semestre o PAIGC despendeu esforços enormes para obter qualquer resultado palpável. Graças à actuação dos nossos soldados, nada conseguiu, porém. Enfraquecido, dispersou-se, tentando abrir novas frentes e provocar a diluição das forças portuguesas. Esta diluição foi-lhe fatal pois com a ocupação militar da província estabeleceu-se uma rede que coartou por completo a sua liberdade de acção”.

Se aceitarmos os princípios da teoria da guerrilha, esta diluição funciona a favor dos guerrilheiros, a dispersão faz crescer exponencialmente os problemas logísticos, a gestão dos recursos humanos, avoluma as dificuldades operacionais, guerrilha é sinónimo de bate e foge, de casa de mato ou de santuário que pode ter algumas dimensões de inexpugnabilidade, exige meios de destruição fortíssimos, depois regressa-se ao destacamento, e o guerrilheiro regressa ao seu ponto de partida. Ora o primeiro semestre, e agora vamos fazer fé no que escreve Hélio Felgas, denotou uma atividade guerrilheira intensa, foi-se alastrando, e há logo um ponto no que ele diz ao norte do Geba que tem a ver com a vida do BCAV 490.
Escreve ele:
“No final de Janeiro, Farim, centro populacional já importante, encontrava-se quase isolada, pois os bandoleiros, destruindo pontes, montando emboscadas, colocando abatises e minas, procuravam cortar as estradas que ligavam a vila às povoações de Bigene, a oeste, Bissorã, a sudoeste, Mansabá, a sul, e Cuntima, a nordeste. A situação agravou-se durante os meses de Fevereiro e Março, tendo Farim e Binta sido flageladas pelos terroristas que destruíram novas pontes e pontões e começaram a fustigar as populações nativas da área de Jumbembem-Canjambari-Cuntima. Esta actuação levou Fulas e Mandingas a fugirem para o Senegal e originou a paralisação quase completa das serrações locais e da actividade madeireira de que Farim é um dos principais centros da Guiné”.
E também escreve que o PAIGC alastrara a sua atuação na direção de Binar e Bula, e a tornar-se intransitável a estrada Mansabá-Bafatá, a sua posição dentro do Oio tornara-se uma realidade. Em abril a atividade em torno de Farim incrementou-se, como ele escreve:
“Conjugada com a obstrução das estradas que, na margem sul do Cacheu, dão acesso à região, aquela actividade abrangeu o ataque às serrações madeireiras que restavam e a destruição das tabancas Fulas da zona fronteiriça de Cuntima”.
E, escreve mais adiante:
“Também entre os rios Cacheu e Mansoa aumentara a actividade guerrilheira. A leste de Binar, ocorreu a primeira emboscada na estrada de Nhamate. Os chefes das tabancas de Ponta Fortuna e Ponta Penhasse, ambas a norte de Bula e habitadas por Balantas e Mancanhas, foram assassinados por acolherem bem as tropas portuguesas. As populações da importante península de Naga, a nordeste de Bula e a oeste de Bissorã, começaram a fugir das nossas patrulhas de reconhecimento. O aquartelamento do Olossato foi atacado no dia 21 de Abril, aqui se empregou pela primeira vez uma metralhadora pesada de calibre 12,7 milímetros. Mansabá foi flagelada novamente e as estradas que lhe dão acesso tinham cada vez mais abatises”.

Também no chamado Centro-Leste, a situação estava longe de ser boa (a região pode incluir o Cuor, o Enxalé e todo o regulado do Xime). Flagelações em Enxalé e Xime, atos terroristas junto das populações de Missirá e Finete. E na margem direita do Corubal passou a haver flagelação às embarcações. Iniciava-se um problema sério, como garantir a navegabilidade do Geba, numa importância nada comparável com a do Corubal. E pouco há a dizer que não se saiba sobre o crescimento da influência do PAIGC na região Sul: Cabedu, Fulacunda, Cacine, Bedanda, Cumbijã, Cachil, Enxudé, Empada, Catió, flageladas com regularidade. Fez-se a reabertura da estrada Guilege-Campeane. Procedendo ao balanço deste primeiro semestre, Hélio Felgas não mostra nenhum otimismo. E quanto ao campo externo, Amílcar Cabral averbara sucessos político-diplomáticos, na organização da unidade africana, na NATO, colhia simpatias até junto de certas democracias ocidentais. E Hélio Felgas passa a analisar o segundo semestre, logo dizendo que as forças portuguesas começaram a assenhorear-se da situação na Guiné. O autor considerava que os grupos do PAIGC tinham perdido a iniciativa mostrada em 1963 e na primeira metade de 1964. Diminuíra a sua atividade nas áreas habituais. No entanto, e de um modo paradoxal, refere o crescimento organizativo do PAIGC, a sua iniciativa a partir de setembro, tanto ao norte do Geba como nas regiões de Farim e do Oio. Aumentara o apoio internacional em armamento e equipamento. Nas regiões fronteiriças das Repúblicas da Guiné e do Senegal, os centros do PAIGC ganhavam importância. Se por um lado havia uma aparente frenagem da atividade do PAIGC, próximo do fim do ano relata o autor um crescendo de ações, sobretudo no Sul, mas também no Norte e no Leste. Fala de sucessos à sombra da bandeira portuguesa: a colaboração prestada pelas populações nativas, o início da africanização da guerra, a ação psicossocial, a melhoria dos serviços de saúde, o desenvolvimento do ensino primário por todos os lugares.

Em novo capítulo, diz que a situação militar melhorara a olhos vistos em 1965, isto ao mesmo tempo em que vai falando das atividades operacionais do PAIGC em número alargado.
E já não se sabe muito bem o que melhorou quando ele escreve coisas como esta:
“Quanto ao Sul da Província, o aumento da actividade terrorista, verificado já em Dezembro de 1964, manteve-se nos primeiros meses de 1965, tendo sido especialmente visados os aquartelamentos das forças portuguesas. Em Janeiro, alvejaram os quartéis fronteiriços de Cameconde, Cacoca, Sangonhá e Ganturé, além de Buba, Bedanda, Fulacunda, Cachil e Cufar. Também o quartel de Tite sofreu diversas flagelações, tal como as tabancas vizinhas”.
E introduz uma novidade, a presença da guerrilha no nordeste da Província, em especial no triângulo Piche-Buruntuma-Canquelifá.

Em jeito de conclusão, faz previsões de grandes dissidências dentro do PAIGC, cansaço dos seus guerrilheiros, fala nas grandes qualidades do militar português e termina de forma sibilina: “Seja qual for a sua evolução, podemos estar certos de que o Exército, a Marinha e a Aviação saberão manter na Guiné as melhores tradições militares portuguesas".

(continua)

Depois da explosão de uma mina anticarro
Imagem retirada do livro de Hélio Felgas

Jangada a atravessar as margens do Corubal em Cheche
Fotografia de Hélio Felgas, datada de 1969
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Notas do editor

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Último poste da série de 9 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20432: Notas de leitura (1244): “Missão na Guiné, Cabedu, 1963-1965”, por António José Ritto e Norberto Gomes da Costa, com a colaboração de José Colaço; DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)