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quarta-feira, 27 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23206: 18º aniversário do nosso blogue (7): "O senhor vai responder-me com toda a verdade: era o meu filho que vinha naquela urna de chumbo?" (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)



Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)



Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor, com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belmiro Tavares".]


I. Aqui vai, em republicação (*), c0m adaptações, uma das muitas (e boas) histórias, daquelas que nos tocam fundo,  contadas pelo Belmiro Tavares , ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66.

O Belmiro Tavares foi  Prémio Governador da Guiné (1966), é membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009; é empresário hoteleiro em Lisboa: é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014. 

É também autor (em parceria com o nosso saudoso JERO, acrónimo de  José Eduardo Reis de Oliveira, 1940-20221) do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675" ( edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp.) (cuja capa se reproduz acima).

Este poste é  uma tripla homenagem ao Belmiro Tavares, que hoje faz anos; ao JERO, que nos deixou há um ano atrás, vítima de Covid-19  (em 27 de janeiro de 2021, iria fazer 82 anos se fosse vivo, em 4 do corrente); e ao nosso blogue, que fez 18 anos em 23 do corrente, o blogue que nos tem permitido, aos amigos e camaradas da Guiné,  partilhar memórias e afectos.(**)

Honremos também a memória do infortunado fur mil Álvaro Manuel Vilhena Mesquita,  natural de Vila Nova de Famalicão,  morto por uma mina A/C em 28 de dezembro de 1964, no subsetor de Binta.



Vila Nova de Famalicao > Cemitério local  > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.


Cortesia do blogue JERO > 12 de julho de 2010 > M 276 - SENTIMENTOS / PARTE UM

(...) O Álvaro morreu na Guerra do Ultramar. Morto em combate em 28 de Dezembro de 1964 na “quadrícula” da sua Companhia na região de Caurbá, a poucos Kms. do aquartelamento de Binta, Norte da Guiné. Nessa altura eu estava por perto pois pertencíamos à mesma “família”. A Companhia de Caçadores 675, então no mato desde Julho de 1964. Ele regressou à sua terra natal para ser sepultado nos primeiros dias de Dezembro de 1965.

Passaram desde essa data fatídica cerca de quarentas e cinco anos. Na minha memória , e ao longo de toda uma vida , o Álvaro continuou – continua – a ser o meu “irmão” dilecto dos tempos da guerra.

O seu irmão Francisco, que conheci fugazmente muitos anos depois da morte do Álvaro, num encontro casual no Hotel D. Carlos, em Lisboa, faleceu agora, com 69 anos, em 1 de Julho corrente no Hospital de Cochin, em París.

Estive presente no seu funeral , na terra da sua naturalidade, em 8 de Julho de 2010. Estive no seu funeral por diversas ordens de razões. Em preito à sua memória, em homenagem à família Vilhena Mesquita e em nome da minha CCaç. 675, onde militou o seu e meu “irmão” Álvaro (...) 


"O senhor vai responder-me com toda a verdade:
 era o meu filho que vinha naquela urna de chumbo?" 

por Belmiro Tavares 


1. Como alferes miliciano estive dois anos na Guiné, algures a norte do Cacheu, mais precisamente em Binta, integrado na CCaç 675 uma companhia extraordinária (foi lá e, mais de 40 anos depois, continua a sê-lo cá) que deu “água pela barba a muita gente”. 

O nosso comandante era o Capitão Tomé Pinto, hoje Tenente General, um militar fora de série, autenticamente um homem doutra galáxia. Podemos descrevê-lo parafraseando o poeta: “Homem dum só parecer, dum só rosto e duma só fé... d’antes quebrar que torcer”...! É o Homem que sabe ser militar (de que maneira o sabe!) e o Militar que não deixa de ser Homem, qualidades que juntas se acham raramente.

Entre os graduados da companhia havia um furriel miliciano, natural de V. N. Famalicão, de seu nome Álvaro Manuel Vilhena Mesquita o qual é o epicentro dos factos que aqui vão ser contados.

Em fins de Dezembro de 1964 o Mesquita estava de “baixa”; aguardava transporte para o HMP 241 em Bissau.

No dia 28 desse mês, dois grupos de combate (pelotão com morteiro, Breda e LGF – lança granadas foguete, vulgo bazuca) iam fazer uma patrulha para além do limite oeste da nossa zona na margem direita do rio de Buborim, um afluente do Cacheu. O Mesquita pertencia ao 1.º Gr Comb mas estava inoperacional.

A companhia à qual aquela zona pertencia e tinha a incumbência de a patrulhar, estava sediada em Bigene; para ali chegar, teria de passar pela tristemente célebre base de Sambuiá (um mito de inexpugnabilidade que a CCaç 675 se encarregou de fazer desaparecer) que era a base inimiga mais forte do norte da Guiné.

O nosso Capitão decidiu estabelecer no “terreno do vizinho” aquilo a que se chama “uma zona tampão”. Pretendia-se ter o inimigo não só fora da nossa zona mas também bem afastado. Aliás a CCaç 675, dentro da mesma estratégia foi a única companhia que, entre Junho de 1964 e Abril de 1966, “bateu” a Península de Sambuiá como se de “passeio” se tratasse... ou quase.

Nota: aconselhamos a leitura do Cap 26 do livro Golpes de Mão’s, de José Eduardo Reia Oliveira, Fur Mil Enf da CCaç 675. [Foto ca capa, à esquerda]

Voltemos aos carris! Os dois Gr Comb seguiram de viatura durante cerca de 12 km. Quanto se apearam e partiram para o cumprimento da missão, a segurança das viaturas passou a ser feita por alguns (poucos) soldados europeus, alguns soldados africanos e uns tantos milícias.

Entre os militares europeus havia doentes e feridos ligeiros que não necessitavam de cama para se restabelecer. Entre os doentes “leves” estava o fur Vilhena Mesquita, pois a sua doença – não sei qual - não o impedia de andar de camuflado e armado em cima duma viatura. Ele próprio se apresentou voluntariamente para tomar parte na segurança das viaturas. Um alferes comandava esta escolta muito heterogénea, como se depreende.

Quando os dois Gr Comb regressaram às viaturas, iniciou-se a viagem de volta em direcção a Binta. Alguns quilómetros à frente ouviu-se um rebentamento enorme: uma mina anti-carro explodiu estrondosamente debaixo da roda direita traseira, duma das viaturas. Por cima dessa roda seguia o malogrado Mesquita que naquele momento abandonou o mundo dos vivos.

Nota: ver página 181 e seguintes do livro atrás citado.

A primeira viatura era uma GMC e a mina rebentou na roda de trás da 2.ª viatura, um Unimog, o que nos levou a crer que se trataria duma mina telecomandada, o que seria numa novidade na actuação do inimigo.

Era o nosso segundo morto e pela 2.ª vez custeámos a urna própria (de chumbo) para que a família do nosso companheiro pudesse fazer-lhe um funeral condigno e “com o corpo presente”. Fizemos o mesmo também ao nosso 3.º morto, o malogrado soldado Nascimento.

Mais uma vez nestas situações a CCaç 675 foi ímpar; talvez tenham sido poucas as unidades - ou talvez nenhuma – a proceder deste modo... à maneira da CCaç 675.

Neste caso não temos certamente um ”suicida altruísta” mas na verdade o Mesquita – que a terra lhe seja leve – partiu voluntariamente para um “encontro marcado com a morte”.


2. O nosso capitão informou dolorosa e comovidamente os pais do Mesquita sobre o trágico acontecimento.

Eles também receberam, à posteriori, o tal “telegrama seco, brutal, frio, impessoal” a informar que a urna com os restos mortais de seu filho se encontrava no D.G.A. (Depósito Geral de Adidos) na Calçada da Ajuda, [em Lisboa]. 

[Na foto, à esquerda, o Mesquita, de camuflado, na Guiné, Binta, 1964].

Os familiares enlutados deslocam-se a Lisboa com a Agência Funerária; entram na Unidade Militar, o pai contacta o graduado de serviço, um ordenança é mandado indicar-lhe o local onde se encontra a urna. Havia várias; O soldado procura pelo nome e informa com toda clareza, sem pestanejar:

- É esta! Pode levar!

Mais “seco, brutal, frio, impessoal” nem o telegrama. Só faltou mandar embrulhar!

Devemos, apesar de tudo, ter em conta que se tratava dum soldado talvez pouco letrado, talvez mesmo analfabeto, sem formação nem preparação para tal e que não tinha vivido os horrores da guerra. Não terá sido ele de certeza o único culpado nem até talvez o maior culpado.

Na tropa, naquela época, todos tínhamos de ser “pau para toda a colher” – frequentemente seríamos pau tosco,... demasiado tosco até... Naquela época, na tropa de cá, quantos soldados haveria preparados para informar cabalmente e com humanidade os familiares dos nossos mortos em combate?!

Por cá, naquela época, quem se apercebia e sentia por dentro os pesadelos da guerra? – Os pais, os irmãos, os amigos íntimos dos combatentes e poucos mais! A guerra travava-se muito longe... lá noutro continente.

3. Os pais do Mesquita terão sofrido – sofreram mesmo – a bom sofrer aquela morte absurda (como absurdas são todas as mortes da guerra) e antecipada de seu filho. Eles não eram diferentes dos outros pais! Também eles eram de carne e osso e tinham dentro do peito um coração que sangrou... sangrou muito! Disso temos a certeza!

Naquela altura chegou a Famalicão um combatente vindo da Guiné (creio que seria um cabo) que tinha acabado a comissão. Como muitos combatentes, especialmente os da “guerra de Bissau” ou do “ar condicionado” sabiam tudo à cerca de tudo sem saberem nada de nada e para se impor aos concidadãos inventavam estórias por vezes sem sentido e sem ponta de verdade.

O Pai do Mesquita, profundamente fragilizado pela dor que o atormentava, teve o azar de encontrar (não sabemos como nem por quê) um autêntico charlatão que lhe fez uma narração rocambolesca, malévola e mentirosa dos factos. Inventou e deturpou! Chamando o boi pelo nome: “mentiroso sem escrúpulos”.

 [Na foto, à esquerda, o Fur Mil Mesquita, ao lado do Cap Tomé Pinto].

Aproveitou a depressão emocional daquele Pai com o coração desfeito para dar asas à sua imaginação. O cabo em questão terá eventualmente contactado com o Mesquita em Maio ou Junho de 1964 em Bissau.

Este hipotético encontro – se realmente aconteceu – ocorreu antes de irmos para o mato, ou seja seis meses antes da fatíidica morte do Mesquita. Assim sendo o tal cabo não podia saber o quer que fosse à cerca do que, em 28 de Dezembro de 1964, aconteceu nos arredores de Binta.

Este pobre pai acabrunhado e desesperado pela morte dum filho querido, de “mal com a vida” até pela maneira como foi tratado no DGA e por outros motivos que nos ultrapassam... Por tudo isto e talvez muito mais, o Pai do Mesquita, apesar de homem de letras, tornou-se terreno fértil para acreditar na mentira e tê-la-á publicado no Jornal de Famalicão de que era Director e creio que proprietário.

Até onde um coração desesperado, esfrangalhado nos pode conduzir!...

A verdade nua e crua dos factos terá no entanto ficado por contar aos amigos do nosso companheiro Mesquita.

Mais uma vez... que a terra lhe seja leve.


4. Em 1967, creio que em Abril, o companheiro e camarada JERO e o autor destas linhas deslocámo-nos a Valença para assistir ao casamento dum dos seus furrieis.

Por mero acaso (ou propositadamente?) pernoitámos em Famalicão. De manhã pedimos a um taxista que nos conduzisse ao cemitério. Não encontrámos a sepultura do Mesquita. 

[Foto à esquerda,  o nome do Mesquita, inscrito no mural dos mortos do Ultramar, Forte do Bom Sucesso, Belém , Lisboa].

Pedimos apoio ao taxista que logo nos informou que o Mesquita estava sepultado no cemitério novo e para lá nos levou. Lá estava o sepulcro do Mesquita, bem diferente – para melhor, muito melhor – das demais sepulturas. Lá encontrámos, cravada no mármore a lápide de bronze que os seus companheiros da CCaç 675 lá fizeram chegar, perpetuando a camaradagem e aquela amizade pura, simples, desinteressada que sempre nos uniu e, incorruptível, continua a enlaçar-nos.

Por motivos que não são aqui chamados, tínhamos dúvidas se íamos ou não visitar os pais do Mesquita. Por um lado entendíamos que devíamos visitá-los; por outro sentíamos que não tínhamos o direito de reabrir ou mesmo avivar aquela ferida no peito e na alma daqueles pais que sentiram o filho partir tão novo, tão na flor da idade.

Não estamos (raramente estamos) preparados psicologicamente para ver os nossos pais partir (e isso é o normal); mas um filho partir antes dos pais é a inversão total das leis da vida! Daí a dor ser mais intensa, mais marcante, mais profunda, mais feroz!

A atitude do taxista foi decisiva e nós fomos visitar os pais do nosso companheiro. A mãe apareceu logo. Toda de preto vestida, rosto carregado de pesar, olhos plenos de tristeza, baços, penetrantes. Já tinham decorrido mais de dois anos sobre a morte do filho!...

Conversámos durante breves instantes. A senhora aproximou-se de mim, olhou-me bem por dentro, poisou nos meus ombros as suas mãos brancas de cera, pesadas como chumbo e disparou:

- O senhor vai responder-me com toda a verdade sobre o que vou perguntar-lhe?

Respondi afirmativamente e ela perguntou de chofre, ansiando pela resposta:

- Era o meu filho que vinha naquela urna?

Olhos nos olhos respondi sem vacilar (por quê vacilar se ia transmitir a mais pura das verdades?!) tentando levar um pouco de paz e tranquilidade àquela mãe desesperada, destroçada pela morte do seu filho e a dúvida que lhe mordia na alma.

- Pode ter a certeza absoluta que era o corpo do seu filho que vinha naquela urna; não podia haver troca!

- Mas morreram muitos juntamente com o meu filho! (versão do tal informador).

- Mesmo que assim fosse não podia haver troca; mas felizmente e infelizmente só morreu o seu filho; foi o nosso segundo morto naquele ano; houve também três feridos graves, é certo, e alguns feridos ligeiros mas só um morto.

- Fico-lhe eternamente grata porque me tirou um tremendo peso de cima! Todos os dias tenho ido rezar junto daquela sepultura mas essa dúvida terrível atordoava-me, dilacerava-me a alma; agora sei que vou rezar junto do meu filho pois fiquei com a certeza que ele está ali.

Houve mais umas palavras de circunstância e... apareceu o pai do Mesquita com ar de pessoa mais velha, acabrunhado, triste, cheio de dor de alma, parecia ter ouvido a nossa conversa. A dor pela morte do filho e a doença não perdoavam; cremos que sofria da doença de Parkinson, em estado bastante adiantado. Pouco falou ou nada para além dos cumprimentos. Pelo menos nada recordo... já lá vão 42 anos!

A nossa missão estava cumprida e o nosso dever também. Despedimo-nos e retomámos a viagem para Valença onde chegámos a meio do almoço mas satisfeitos connosco.

5. Desde Abril de 1974 trabalho no Hotel Dom Carlos Park em Lisboa – passe a publicidade. Um dia, em meados da década de 80, ouvi um recepcionista dizer que ia chegar ao hotel o Eng. Vilhena Mesquita. O nome era muito familiar; era impossível não ser parente próximo do nosso Mesquita.

Perguntei pela sua naturalidade mas só sabiam que era do Norte e tinha escritório em Paris. Pedi que me avisassem, logo que chegasse.

Quando o vi, tremi, fiquei atónito, estupefacto... parecia que estava ali à minha frente o Álvaro Mesquita; era apenas um irmão mais novo mas muito, muito parecido.

Apresentei-me, perguntei pelos pais - um deles, creio que a mãe, ainda era vivo – sabia que os tínhamos visitado. Os pais iam frequentemente visitá-lo em Espanha (Galiza) onde ele se deslocava vindo de Paris.

Depois duma longa conversa sobre a CCaç 675 (como não podia deixar de ser) contou-me as peripécias da sua curta passagem pela tropa.

A meio da recruta fez um requerimento a pedir para não ser mobilizado porque o seu irmão falecera na Guiné! Requerimento indeferido! O Mesquita deu o “salto”; “aterrou” em Paris; ali fundou uma empresa de construção civil, já de boa dimensão àquela data.

Após a revolução dita dos cravos vinha a Portugal com certa assiduidade. Casou com uma sobrinha do ex-ministro Bettencourt Rodrigues, o tal que indeferiu o requerimento.

A vida dá cada volta!...

Lisboa, terça feira, 24 de novembro de 2009

Belmiro Tavares 

[Fixação / revisão de texto / negritos e itálicos / título: L.G.]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5336: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (1): Quatro Histórias com Mural ao Fundo

(**) ÚLtimo poste da série > 26 de abril de  2022  > Guiné 61/74 - P23201: 18º aniversário do nosso blogue (6): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte II: 29 de agosto de 1972: no mato com Spínola, "a simpatia como arma de guerra"

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13082: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (47): CCAÇ 675, "A Gloriosa": "Uma ilha isolada"


1. Em mensagem do dia 26 de Fevereiro de 2014, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), fala-nos da sua Unidade como sendo "Uma ilha isolada", pelo que fez enquanto força de intervenção e quadrícula no sector de Farim e pelo que faz na actualidade em prol dos seus ex-militares vivos, não esquecendo honrar os camaradas mortos.




HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

Resposta a: 

47 - “Uma ilha isolada”

Com muito agrado, acabo de ler (desta vez fora de horas por motivos que não cabem aqui) o editorial do “Jornal de Famalicão” da pretérita sexta-feira, dia 21 de Fevereiro. Entendi não dever calar-me, não para contrariar a Exma. Diretora de tão prestigiado semanário, a minha amiga muito cara, Drª Teresa Mesquita, mas para corroborar a sua opinião, trazendo a lume uma exceção – seguindo o velho ditado em que a “dita” confirma a regra.

Peço mil desculpas aos muitos e mui dignos leitores do referido jornal por voltar a falar dum tema que já aqui foi, em parte, largamente escalpelizado, quer por mim quer pelo amigo JERO, o meu querido companheiro de armas – “hermano de sables”, como se diz do outro lado da paliçada -; eu lutei de espingarda na mão e ele usou, quase sempre apenas, a seringa. Ele sabe o que isto significa! Hoje aproveito a oportunidade que surgiu, a talho de foice – como soe dizer-se – para expor uma não menos heróica faceta da nossa CCaç 675, a Gloriosa.

A esta unidade que combateu incansavelmente, na Guiné Bissau, de 1964 a 1966, pertenceu um brioso famalicense, Álvaro Manuel Vilhena Mesquita, que lá faleceu, a 28 de Dezembro de 1964; era irmão da Exma. Diretora do J.F. Por ele por todos nós a CCaç 675 portou-se digna e heroicamente, durante os dois anos de dura luta; no após guerra, a gloriosa tem vindo a provar que, sem espingardas na mão, continua a ser uma unidade de elite, exemplar e diferente de todas as outras unidades, sem desprimor para ninguém. Não é essa, juro, a nossa intenção.

Há tempos, escrevendo para ex-alunos do Colégio de Oliveira de Azeméis (estabelecimento de ensino que frequentei) eu defendi que a minha “ida à guerra” foi uma das coisas boas que me aconteceram na vida e apresentei as seguintes razões:

1º Lá aprendi muito e, como ser humano, cresci bastante – no respeito pelo próximo, na disciplina, na camaradagem, etc.
2º Como consegui sobreviver tenho matéria quase infinda para transmitir e o bom Deus deu-me vida para levar a cabo esta complicada tarefa;
3º Naqueles dois anos intermináveis vividos à sombra de tremendas intempéries e no meio de desmedidos perigos constantes – 60 minutos por hora e todos os dias – entre inimagináveis dificuldades e carências de toda a sorte, tivemos oportunidade (e aproveitámo-la da maneira mais conveniente) de edificar um numeroso agregado familiar de mais de 160 membros, amigos de todas as horas (antes quebrar que torcer) e sempre prontos a enfrentar os maiores sacrifícios para safar o companheiro do lado de qualquer situação calamitosa em que se encontre.

Isto só foi possível porque fomos superiormente comandados e ensinados por um oficial (capitão) rico em qualidades sublimes. Não uso mais adjetivos porque, mesmo que citasse todos os qualificativos do mais completo dicionário da nossa língua, todos não seriam suficientes para classificar com rigor tão destacada figura de homem e de militar. Alguém já disse que nós “endeusamos” aquele capitão (há anos que é general) mas fazemo-lo em plena consciência de que ele merece todo o nosso carinho e reconhecimento e que ele sente o mesmo por nós. A CCaç 675 foi célebre na Guiné, fomos a unidade mais badalada de todas durante aqueles dois anos porque:

- “Limpámos” completamente a nossa zona;
- Conseguimos trazer do Senegal largas centenas de portugueses que ali se refugiaram para escapar às represálias dos “independentistas” que os espoliaram de seus bens. Passada a fronteira, no regresso, eles diziam: “não temos nada a não ser a fiança do capitão”!
- Por solicitação, devidamente fundamentada, do célebre “capitão do quadrado” (como os adversários o apelidaram) o Governador-geral, Sr. General Arnaldo Shulz forneceu toneladas de arroz e amendoim para semear, toneladas de arroz para comer e 100.000$00 para adquirir alimentos para aquela gente;
- Beneficiámos estradas e reconstruímos pontes que haviam sido queimadas para impedir a nossa passagem;
- Construímos duas pistas de aterragem;
- Edificámos uma escola onde umas dezenas de crianças nativas aprendiam a ler e a escrever na língua de Camões e contratámos, a expensas nossas, um “professor” para as alfabetizar.

Um belo domingo, cerca de 30 crianças, alinhados por alturas, compareceram junto à sede da Companhia para assistir respeitosamente ao hastear da Bandeira; enquanto Ela subia garbosa ao longo daquela haste tosca e informe, as crianças cantaram jubilosamente o Hino Nacional – uma agradável surpresa para todos nós.

- Construímos um posto de enfermagem e a nossa equipa médica preparou um eficiente grupo de “enfermeiros” que ali tratavam com desvelo assinalável os seus familiares e amigos;
- À volta da nova aldeia construímos CREB (circular regional exterior de Binta) entre o arame farpado e o casario; militarizámos uma série de jovens que, sob a nossa supervisão, faziam a defesa da tabanca;
- Custeámos a transladação dos nossos mortos para que as famílias pudessem fazer o funeral condigno;
- A cereja no topo do bolo – pusemos a funcionar as aulas regimentais (certamente caso único) e 32 militares que tinham apenas a 3ª classe de adultos, fizeram, em Farim, o exame da 4ª classe;
- O indomável capitão de Binta pretendia que os seus rapazes estivessem permanentemente ocupados com tarefas válidas e úteis para que não pensassem em coisas tristes, o que os desencorajaria. Regressámos da Guiné, em Maio de 1966, e a nossa obra continuou, agora em moldes diferentes:
- Conseguimos os endereços completos de toda a gente; foi a primeira tarefa bastante complicada… mas conseguiu-se;
- Todos os anos, no primeiro ou no 2º domingo de Maio, a companhia reúne-se; no 1º ano éramos 24 elementos, mas chegámos a reunir 150 pessoas. É um encargo complicado juntar tanta gente, tendo em conta que temos militares em todas as províncias e na Madeira, apenas não tínhamos representação nos Açores. Se um companheiro não tem condições para pagar o almoço, pouco importa e alguém há-de pagar:
- todos os presentes o fazem sem regatear. Antes do almoço rezamos missa pelos nossos já 43 mortos;
- Temos vindo a colocar lápides nas sepulturas de todos os que já partiram;
- Os familiares de alguns dos nossos falecidos reúnem connosco;
-Conseguimos alguns empregos para companheiros ou familiares em dificuldades;
- No meio disto surgiu uma briga (uma boa briga) na nossa companhia; como todos somos adultos e pessoas de bem a contenda foi resolvida a contento. É caso para dizer: entre nós não há casos insanáveis; se surgem… ultrapassam-se sem molestar ninguém.

Um dos nossos “colocadores” de lápides alegava ter celebrado um contrato válido com o S. Pedro, segundo o qual ele ficava autorizado a viver até aos 120 anos, para colocar as lápides nas sepulturas de todos os companheiros; logo surgiu um desmancha-prazeres a “puxar a brasa à sua sardinha”: Não! Não! O último sou eu! Vimos a cara dele e todos concordámos, pois o seu nome é nem mais nem menos, este: Firmino António Carola Padre Eterno! Vejam só o que nós temos na CCaç 675!

- Surge agora a última obra de longo alcance que continuará a fazer-nos diferentes; vai ser agora divulgada para confirmar o editorial do Jornal de Famalicão da passada semana, sendo a exceção que confirma a regra. A CCaç 675 é agora também uma Associação se Socorros Mútuos.

Tivemos conhecimento que um dos nossos elos estava em dificuldades com o fisco; foi aconselhado a aceitar a divisão da dívida em parcelas suaves e temos vindo a colaborar no seu pagamento para que não vão “sobre a sua casa” o seu único bem material.

“Vejam agora os sábios da escritura / que segredos são estes da natura!”

Parece que não restam dúvidas que a CCaç 675… É realmente diferente de todas as outras.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2014
BT
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12700: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (46): Ocupação dos tempos livres

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12700: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (46): Ocupação dos tempos livres

1. Em mensagem do dia 23 de Dezembro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), fala-nos da ocupação dos "tempos mortos" e da actividade da sua Unidade para combater o stress do pessoal.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

46 - Ocupação dos “Tempos Livres”

Uma das primeiras regras ordenadas pelo nosso capitão versava o tema dos “tempos mortos”; os oficiais foram “aconselhados” a acompanhar os seus soldados o mais possível e de sol a sol para que eles não se isolassem cada um em seu canto pensando em coisas tristes.
Podiam jogar a tudo e a nada; podiam escrever à namorada, à família, aos amigos e às madrinhas de guerra; era permitido contar anedotas, cantar e até assobiar; enfim: deviam estar sempre ocupados com qualquer tarefa.

Uma coisa era absolutamente proibida: passear em Bissau enquanto por lá estivemos, para não serem negativamente influenciados pelos boatos e aldrabices que circulavam vivamente entre a tropa da capital para que não partissem para o mato já “vencidos”.

Chegámos ao mato a 29 de Junho, dia de S. Pedro, à tarde; ao cair da noite, um pelotão fez uma caminhada de 3/4 km para incendiar umas “moranças”, já abandonadas (fogueiras de S. Pedro) avisando os independentistas da nossa chegada e das nossas boas intenções.

Iniciou-se logo, com grande azáfama a limpeza e a defesa do aquartelamento e o alojamento de todo o pessoal. Estas tarefas, porém, não se sobrepunham à actividade operacional.
Ao quarto dia, fizemos a primeira visita à “casa” do inimigo: fomos recebidos a tiro; houve mortos e feridos (do lado deles) e uma aldeia foi riscada do mapa.
O quinto dia foi célebre! Um imponente “baptismo de fogo” (ponham imponência nisso!) que nos marcou positivamente para o resto da comissão. O chamado pelotão de acompanhamento foi “desmantelado”; o pessoal (e respectivas armas) foi distribuído pelos outros pelotões que passaram a chamar-se “grupos de combate” (GComb).

A partir do baptismo de fogo, em dias alternados, dois GComb actuavam em qualquer recanto da zona. Ao fim de duas semanas (aproximadamente) alterávamos o ritmo actuando em dois dias consecutivos… para “enganar” o in., quebrando rotinas.

- Domingos e feriados eram diferentes… apenas porque se hasteava a bandeira.
- Nos dias livres (saída para o mato) continuávamos a preparar a defesa e a beneficiar as instalações.
- A Gulbenkian ofereceu-nos uma pequena biblioteca.
- De vez em quando, líamos jornais de há três ou quatro meses… mas líamos!
- Sempre que possível também líamos uns livros. Eu levei apenas os dicionários de alemão (correspondia-me com uma qualquer Merkel) e Os Lusíadas, o meu livro de cabeceira.
- Em Bissau só havia livros de guerra: J. Larteguy e L. Uris; comprei do que havia.
- Também dávamos lugar à música; a rádio Bissau emitia durante algumas horas em dois períodos; podíamos ouvir dezenas de vezes por dia o “Tango dos Barbudos” o disco que todos pediam – incrível!
- Também pescávamos, caçávamos e petiscávamos com os amigos; Mais tarde tivemos nativos (as) que regressaram no exílio forçado no Senegal; elas vieram embelezar as imediações do quartel
- Dedicámo-nos a construção civil:
- Reconstruímos pontes – beneficiámos estradas e picadas (uma picada com doze quilómetros passou a estrada)
- Construímos, partindo do nada, duas pistas de aterragem (uma era o aeroporto internacional de Binta)
- Ajudámos a reconstruir duas tabancas;
- Construímos o nosso estádio e a nossa igreja;
- Demos nomes às ruas (avenida Marginal, Avenida Capitão de Binta, Avenida do aeroporto, Rua Pathé Baldé, Largo “tomada da pastilha”, Rua 4 de Julho, etc.)
- Construímos uma escola para os miúdos “retornados”
- “Contratámos um professor (que não fazia greve) para leccionar a primária

NOTA: Para grande surpresa nossa, os alunos daquela escola, descalços e semi-nus, alinhados por alturas, assistiram ao hastear da bandeira e cantaram, orgulhosamente, o Hino Nacional (ainda com canhões).
Nesse dia, a nossa verde/rubra (ainda tinha o vermelho) “tremeu”, heroicamente, por ter mais aqueles dedicados filhos.


Reprodução das páginas 4 e 5 do trabalho do nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO), ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 675, intitulado "O Sabre - 47 anos depois do regresso - Ontem e Hoje"

- Durante cerca 6/7 meses funcionaram eficientemente as aulas regimentais (prova que a nossa CCAÇ 675 se comportava como um grande Regimento) e trinta e duas praças, com apenas a 3ª classe de adultos, fizeram lá a 4ª classe.
- Quando nos acontecia um trágico acidente, no dia seguinte a companhia saía toda para o mato, ficando o quartel entregue ao 1º sargento (por vezes ao médico), aos “não operacionais” e doentes.
Dávamos assim cumprimento a duas teorias:
Primeira: se caíres de um cavalo monta logo outro cavalo;
Segunda: se formos todos para o mato os turras não têm a preocupação de vir procurar-nos ao quartel, pois estamos lá, perto deles.
- A nossa actividade operacional começou a diminuir - lentamente - a partir dos quinze meses porque já tínhamos a zona completamente limpa, e também porque seria humanamente impossível manter aquele ritmo durante os dois anos.
- Quando um alferes entrava de férias, os furriéis faziam o mesmo e o GComb só fazia serviço de escala; os soldados tinham assim as suas férias.
- Todos escreviam cartas e bate-estradas; alguns abusavam; eu escrevia e recebia 15 a 20 cartas por semana.
Como podem depreender, ali havia tempo para tudo e os “tempos mortos” eram quase, quase, quase nulos, graças ao nosso heróico e admirável capitão, o maior sábio da tropa àquela época que pretendia que o seu pessoal estivesse sempre ocupado. Penso que por isso mesmo nenhum dos nossos elos veio a sofrer do dito stress de guerra.

Valeu a pena!
Lisboa, 23 de Dezembro 2013
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12637: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (45): Carta de condução

domingo, 26 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12637: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (45): Carta de condução

1. Em mensagem do dia 27 de Junho de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais algumas das suas curiosas histórias, desta vez subordinadas ao tema carta de condução:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

45 - Exame de condução
(Complementando o texto do Zé Castro Lopes.)

Em tempos idos fazer exame de condução era uma aventura tremenda, tendo em conta o exame em si e a competente preparação, culminando com a deslocação até terras de longe.
Eu tirei a minha carta (militar) na Guiné em Abril de 1966; no fim do mesmo mês, embarquei de regresso a Lisboa, no navio Uíge, o mesmo que me havia levado para a Guiné, dois anos antes.

Outro alferes e eu deslocámo-nos de avião até à capital da província (por via terrestre era impensável, pois a estrada Farim/Bissau estava em boa parte do percurso, totalmente vedada ao turismo vedada ao Turismo).
Aqui chegados dirigimo-nos ao QG para fazer a inscrição de candidatura ao tal exame.

Os camaradas que nos proporcionaram os papeis que havíamos de preencher, tiveram o especial cuidado de nos informar, em off, que só havia dois oficiais examinadores: um capitão e um alferes. Transmitiram também que o capitão examinava todos os oficiais candidatos; o alferes ocupava-se da maior parte dos menos graduados (sargentos e praças).
Soubemos também, pela mesma fonte, que em cerca de 16 meses de comissão, aquele capitão havia reprovado, todos os oficias que lhe haviam aparecido pela frente, à primeira vez.
Ficámos um tanto alarmados!

Uma outra fonte, na messe de oficiais, confirmou que aquela informação era absolutamente verdadeira. O alferes Mendonça, meu companheiro de infortúnio, na Guiné, no mato e no exame de condução – já conduzia o carro do pai, lá na sua quinta em Felgueiras; às escondidas, arriscava, de vez em quando, uma escapadela pelas estradas da região, para se exibir perante as garotas.
Nunca foi apanhado pelas autoridades. Entre os oficiais subalternos da nossa companhia (a CCaç 675) ele era, portanto, o mais experimentado naquelas lides.

A minha única experiência de condução, antes da tropa, foi com carros de bois, pois a minha aldeia, antes da “bronca” (leia-se revolução dos cravos) não era servida por qualquer estrada digna desse nome. No mato, depois da “pacificação” total da nossa zona, os oficiais “podiam” (um pouco às escondidas) usar as viaturas militares para se embrenharem na arte da condução.
A companhia dispunha de 3 jeeps (da 2.ª Grande Guerra), 10 ou 12 Unimogs e 3 ou 4 Mercedes, viaturas de maiores dimensões.
Como os jeeps raramente estavam disponíveis, eu, com a mania das grandezas, habituei-me a conduzir uma caminheta Mercedes, uma viatura anormalmente grande, mas já com direção assistida, uma maravilha!

Perante as informações surpreendentes e assustadoras colhidas no QG, eu tomei logo uma decisão que considerei ser a mais acertada: fazer exame de condução usando um caminhão militar, uma Mercedes que requisitei na Intendência. Deliberei deste modo, por dois motivos:
- 1.º eu estava habituado a conduzir, quase em exclusivo, carros grandes, especialmente a Mercedes;
- 2.º considerei que poderia ser uma boa maneira de escapar ao exame com aquela fera (o capitão). - 3.º era mais económico que alugar um carro na Escola.

Sem perda de tempo, contactámos uma Escola de Condução (a única em Bissau) para adquirir um pouco de prática em estradas civilizadas (leia-se alcatroadas, com passeios laterais, com sinais de trânsito e movimento. Conduzi um “velho carocha” durante meia hora e uma viatura pesada, durante hora e meia. Esta segunda parte foi extremamente útil; o instrutor civil “levou-me” a todos os locais por onde o capitão costumava passar durante o exame. Elucidou-me também sobre as “armadilhas” que ele usava habitualmente: mandar entrar em rua de sentido proibido, ultrapassar com sinal sonoro junto a um hospital, estacionar em local proibido, etc.
Informou também que ele ordenaria que entrasse em determinada rua estreita e que voltasse na primeira à esquerda, entrando numa rua perpendicular e também acanhada.
Chegados a este cruzamento ele mandou parar e explicou: "há apenas uma maneira de sair daqui! Se não fizer como vou ensinar-lhe, não consegue concluir o exame; como vou transmitir-lhe, sai com uma pequena manobra”.

Conduzi como ele ensinou e… tudo bem! Dei a volta ao quarteirão e voltei ao mesmo local para repetir a manobra agora sem ajuda – nenhuma complicação!
De seguida, juntamente com o alferes Mendonça, percorremos, a pé, todas as ruas por onde o capitão haveria de nos “levar” para nos familiarizarmos com os sinais (no mato não havia disso): aqui podemos entrar, ali não, acolá não podemos estacionar, além não podemos voltar à direita, etc.

No dia e hora aprazados, compareceram mais de 20 candidatos dos quais 3 eram alferes; um dos oficiais era candidato apenas à carta de mota. Uns 7 ou 8 chumbaram antes da condução: uns na prova escrita, outros na oral e alguns nos testes psicotécnicos. Qualquer destes exames “parciais” era eliminatório.
Os três oficiais superaram a 1.ª fase, passando à condução. O alferes Mendonça foi o primeiro a ser chamado para ser examinado num “carocha” que alugara na Escola. Entrou na viatura e aguardou a ordem do examinador:
- Ligue o motor! - Se está tudo bem, inicie a marcha!

O Mendonça “arrancou” de tal ordem (os pneus derraparam, levantando poeira a rodos) que o capitão gritou que parasse imediatamente e, com voz doce, informou sarcasticamente:
- Desligue o motor se faz favor e vá à sua vida! O seu exame terminou agora! Com isto não se brinca!

O outro alferes foi chamado para o exame de mota; não sei o que se passou; voltaram pouco depois, e… não conseguiu levar a carta.
Chegou a minha vez!

O capitão ordenou que entrasse e ligasse o motor – de nada serviu o meu estratagema – e se tudo está em ordem siga em direcção à Baixa.
Tudo correu de acordo com os sábios ensinamentos do instrutor civil. Que sorte! Regressados ao QG ordenou que arrumasse a viatura de marcha atrás, num barracão ali existente, entre duas outras que lá se encontravam.
De seguida ordenou que aguardasse. Eu tinha a “certeza”(?) que não tinha cometido qualquer atropelo… mas a minha preocupação era enorme; creio que era mais terror que outra coisa.
Pouco depois, um soldado, por ordem do examinador, informou-me que voltasse depois do almoço e que trouxesse duas fotos tipo passe para a carta de lista branca (penso que era branca) que me seria entregue nesse mesmo dia, mediante pagamento da módica quantia de 10$00 (pesos).

Usei-a durante uns anos; em 1972, quando saí da tropa, troquei-a pela carta civil. Em cerca de 16 meses fui, portanto, o único oficial a conseguir a carta à primeira tentativa… graças aos ensinamentos pertinentes do instrutor civil. Acontecia que àquela data, eu tinha bem mais de 30.000km de condução em estradas e “picadas” onde o que aparecesse estava destinado ao abate.

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Outra estória

Em 1961, conheci em Coimbra, um estudante, natural de Lamego (Britiande) que no ano anterior vivera na mesma casa na qual eu estava hospedado e aparecia lá com certa frequência.
Ele foi chamado a cumprir serviço militar em Mafra (EPI) no início de 1963; em Agosto do mesmo ano eu “bati com o costado” naquela mesma Escola Prática. Ele foi mobilizado para Angola e, pouco depois, eu embarquei para a Guiné.

Em Junho de 1966, regressado da Guerra, fui colocado no Colégio Militar, onde esperava preparar-me para concluir o curso. Em Outubro, o Walter Carvalho, o tal companheiro de Coimbra, encontrou-se lá comigo. Como aos dois faltava fazer quase as mesmas cadeiras, logo combinámos que estudaríamos juntos. Em primeiro lugar tentaríamos duas cadeiras mais simples. Havia um DL que permitia aos ex-combatentes fazer exame em qualquer época do ano; de seguida, já mais ambientados ao estudo e já “esquecidos” das complicações bélicas, tentaríamos uma cadeira nuclear para aquilatar as nossas capacidades psíquicas e psicológicas para continuar os estudos a sério, depois dum interregno de 3 anos em grande parte passados na Guerra de África – outros chamam-lhe colonial.

Um ano mais tarde, o Walter decidiu “tirar” a carta; adquiriu os papeis, preencheu-os e foi entregá-los na D.G.V.
Ao conferir os documentos, um funcionário extremamente zeloso e cumpridor informou, emproado:
- Oficial miliciano não é profissão!
- É disso que eu vivo! Mas se não é aceite… eu sou estudante!
- Também não é profissão!
- Não tenho outra! Estudo e recebo salário como oficial miliciano! Será que não posso obter a carta para se profissional de condução?
- Claro que não!

Devolveram-lhe a papelada! Preocupado com o que estava a acontecer-lhe, decidiu contactar uma Escola de Condução para que tratassem dos documentos de candidatura ao tal exame. Recolheram logo os elementos considerados necessários, mas não perguntaram pela profissão e sugeriram que voltasse no dia seguinte para assinar.
Curioso, logo foi verificar qual a profissão que lhe haviam atribuído. Ao certificar-se que era “agricultor”, comentou, sorrindo:
- Não tenho nada contra os agricultores, mas é tão verdade como afirmar que sou médico ou engenheiro.
- Na verdade, ou aceita ser agricultor, ou outra profissão que não necessite de comprovativo académico (carpinteiro, pedreiro, etc.) ou não pode habilitar-se à carta de condução.

Assinou! Foi essa a sua profissão (apenas na carta) enquanto o documento foi de cartolina; agora, com o cartão substituído por plástico, será diferente.

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Mais uma 

Um jovem frequentava o Liceu em Goa, quando, em finais de 1961, a União Indiana decidiu anexar a, até então, Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu, bem como, os enclaves de Dadrá e Nagar Haveli, escreve-se assim?).

O jovem, com a sua família “sem armas e com pouca bagagem” rumou à capital do Império onde concluiu o curso liceal, matriculando-se de seguida na Faculdade de Medicina. Ainda antes do fim do curso candidatou-se ao exame de condução; seria de bom-tom que o Sr. Doutor conduzisse a sua viatura.

Preencheu os impressos necessários e entregou-os na DGV; solicitaram que apresentasse o diploma da 4.ª classe, habilitação” mínima “exigida na Lei.
- Não possuo tal documento! Fiz esse exame em Goa e, na hora da “anexação” no meio da grande azáfama e perigo, trouxe apenas o que tinha… ali à mão. Estou prestes a concluir o curso de medicina; posso apresentar o certificado do 7.º ano que concluí no Liceu Camões!
- Eu quero apenas o comprovativo da 4.ª classe! O resto é conversa! Não interessa!

É certo que o futuro “galeno” conseguiu a sua carta de condução, mas viu-se obrigado a mover influências – as tradicionais e sempre atuais “cunhas” – para que alguém” sugerisse” ao zeloso funcionário que fizesse o “favor” de não exigir o tal documento… mas ninguém teve coragem de o informar que tinha… vista curta!
Se o candidato tivesse mais habilitações que as “mínimas”...tanto melhor.

Como dizem os nossos irmãos do outro lado do Atlântico: “o que abunda (ou a bunda?) não prejudica”.
Os burocratas esqueciam que era possível tirara um curso superior sem fazer a quarta classe...
Questões… de mangas de alpaca!
Ainda há disso a rodos… nas repartições públicas e Câmaras Municipais emperrando todo o sistema!

Saudações colegiais
Junho 2013
BT
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11496: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (44): A gloriosa CCAÇ 675 foi realmente única

domingo, 28 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11496: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (44): A gloriosa CCAÇ 675 foi realmente única

1. Mensagem do nosso camarada Belmiro Tavares, (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 15 de Abril de 2013:

Caro Carlos Vinhal, Será isto uma doença?
Caso afirmativo… não tenho cura!

Somos levados a concluir que a gloriosa CCaç 675 foi realmente única; não, é claro, por não haver outra com este número, mas porque ela foi realmente diferente, para melhor, em comparação com a grande maioria das unidades que “guerrearam” (sem ódio) nos três teatros de operações.

O Jero, eu e outros temos apregoado intensamente que fomos e continuamos a ser ímpares – perdoem a nossa vaidade. A verdade é como o azeite: vem sempre à superfície.

Quem leu os nossos textos no blogue e os deliciosos livros do Jero ficou a conhecer, em parte, as razões do nosso orgulho.


Prestem atenção: 

- 1º - Tivemos um capitão sem par! Grande parte da nossa obra é consequência disso mesmo.

- 2º - Limpámos completamente a nossa zona e mantivemo-la sem “intrusos” até ao fim da nossa comissão.

- 3º - Os nossos militares distinguiam-se, no aquartelamento, no mato ou na cidade, pela sua valentia, coragem e pelo seu comportamento e disciplina.

- 4º - Recuperámos milhares de civis que, para fugirem à guerra, se refugiaram no Senegal vizinho; voltaram quando se aperceberam que ali já havia paz e condições “ótimas” para viver.
Por ação direta, dedicada e intensa do nosso capitão conseguimos sementes para as suas “lavras”. Tiveram uma colheita “astronómica”; foram “ensinados” que era necessário semear e colher o máximo para alimentar também os que ainda haviam de voltar – e vieram muitos.

- 5º - Mais de três dezenas de militares habilitados apenas com a 3ª classe de adultos frequentaram, nos intervalos a guerra, as “nossas aulas” regimentais e concluíram em Farim a 4ª classe.

- 6º - Construímos uma Igreja e duas pistas de aterragem.

- 7º - Para uso dos nativos, edificámos um posto de Primeiros Socorros e preparámos pessoal de enfermagem; construímos uma escola para a miudagem nativa.
Um dia, Domingo, os miúdos, alinhados por alturas compareceram frente ao comando da companhia; enquanto a Bandeira subia garbosa, ao topo daquela haste tosca, eles cantaram, donairosos, o Hino Nacional. Não se tratou de ordem ou sugestão nossas; foi decisão do professor “improvisado” que trouxemos de Farim.

- 8º - Transformámos uma singela e ruim picada de 12Km em estrada e reconstruímos duas pontes.

- 9 - Custeámos a trasladação dos nossos três mortos em combate.

- 10 - Além de vários louvores e condecorações individuais, a CCaç 675 recebeu dois merecidos louvores coletivos.


Depois do regresso, continuámos a nossa senda de diferenças: 

A) Todos os anos, em Maio, sem falha, realizamos o nosso almoço de confraternização sem esquecer a missa pelos nossos mortos, de lá… e de cá.

B) Nos intervalos dos almoços anuais tem havido as chamadas “mini 675”, com 3; 5; 10; 20 ou mais de sessenta convivas.

C) Desde a 1ª hora, os nossos familiares participam nas nossas reuniões; os familiares de alguns dos nossos mortos fazem questão de confraternizar connosco.

D) Há alguns anos, iniciámos a colocação de lápides nas sepulturas dos nossos “elos” falecidos. Este rol, longo, mas por certo, incompleto, veio a lume na sequência do lembrete para requerer as medalhas em epígrafe; acontece que todos nós, oficiais, sargentos e praças somos detentores de tais insígnias que nos foram presenteadas pela própria CCaç 675, a gloriosa.

Belmiro Tavares e José Eduardo Oliveira (JERO) juntos de um "Elo" falecido

Eis mais um tema que não consta do rol.
Obrigado, Carlos, pelo tempo roubado, mas no que à CCaç 675 diz respeito, nós sentimos sempre ganas de agarrar o mote.
Não nos levem a mal por isso!

Aquele abraço!
BT
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Notas do editor:

- Quem quiser conhecer a história da CCAÇ 675, além de ter de ler o livro do nosso JERO, "Golpes de Mãos - Memórias de Guerra", podem ler aqui no Blogue as Histórias e memórias de Belmiro Tavares e Histórias do JERO

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11355: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (43): Eu, aprendiz de perfeito, apresento-me

domingo, 7 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11355: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (43): Eu, aprendiz de perfeito, apresento-me

1. Em mensagem do dia 25 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

43 - Eu, aprendiz de prefeito, apresento-me!

Em Setembro de 1960, fiz, em Aveiro, a minha última cadeira do 7º ano, Literatura Portuguesa, ficando, assim o curso liceal concluído. No mês seguinte candidatei-me a caloiro na Faculdade de Letras de Coimbra; o exame de aptidão correu mal e… mandaram-me voltar lá no ano seguinte.
Uma grande injustiça! Digo eu, claro!

Para me preparar para o mesmo exame de aptidão à Universidade, em Janeiro de 1961, voltei ao COA. Entendi que não seria necessário passar lá um ano lectivo completo, pois o meu trabalho – aprender mais umas coisas de Inglês e Alemão – o suficiente para não borregar de novo, não exigiria – imaginei – tanta dedicação, tanta azáfama que me ocupasse todo o tempo de que dispunha, entre as 07h e as 22h; claro que neste espaço de tempo estava incluído o tempo de recreio e para comer. Mesmo assim, haveria tempo para uma qualquer ocupação extra-curricular que pudesse proporcionar-me algum benefício material.

Conversei com o Sr. Almeida – Homem que sempre admirei, mesmo tendo em conta as duras regras que nos eram impostas – e por quem tive sempre grande admiração, estima e respeito. Dada a minha maneira muito pessoal de transmitir factos, poderá haver quem pense o contrário por essa minha pecha ou por esconsos motivos indecifráveis.
Seja como for, o melhor é conversar e pôr os pontos nos ii.

Propus (roguei) ao Sr. Almeida que me arranjasse um “tacho” mesmo que pequeno, pois um grande “tacho” não estaria disponível para mim. A sua resposta foi imediata e precisa, de tal maneira que me passou pela cabeça que ele já teria ponderado aquele assunto; certamente, não teria, mas ficou mesmo essa imagem.

Eis a sua douta decisão:
- Ficas como adjunto do Sr. Correia, substituindo-o, na sua ausência, se estiveres disponível; sempre que no salão de estudo houver mais alunos que lugares, principalmente das 17h00 à 19h00, tomas conta de um grupo de alunos mais novos numa das salas da Primária, no piso de cima; depois do almoço, enquanto o portão dos rapazes estiver aberto, ficas incumbido de não permitir que os alunos se aglomerem lá, implicando com as alunas que por ali vão passando; em contrapartida, não pagas alojamento nem alimentação – Está bem assim?

Respondi que concordava com as condições propostas e que iria cumpri e fazer cumprir as regras habituais emanadas da direcção.
Ordenou que o acompanhasse e, na minha presença, transmitiu ao Sr. Correia, o prefeito, as condições acordadas… verbalmente. Tudo funcionou, talvez melhor, do que se houvesse papel passado – nada melhor do que a boa fé entre as partes envolvidas.

Pareceu-me que o negócio não era mau de todo, embora eu, pessoalmente nada ganhasse com ele; o único beneficiado era o meu pai que deixou de pagar determinada verba. Mas… avante!

O mais interessante das minhas incumbências era afastar a rapaziada dos terrenos próximos do portão para que não molestassem as garotas com os seus despropositados (ou não) piropos. Eu sentava-me numa fiada de pedras mais afora da parede do edifício principal e, no cumprimento da minha superior missão, fumava (apenas queimava) o meu cigarro (felizmente nunca soube o que era o vício do fumo); logo apareciam uns voluntários para me fazer companhia – “lavavam” ali os olhos e fumavam sem ser obrigados a deslocar-se ás instalações sanitárias.
Lembram-se, certamente, que, apenas os alunos do 3º ciclo e os mais crescidos do 5º ano, podiam fumar… mas apenas nas instalações sanitárias.

Antes da construção do ginásio, havia um sanitário único para todos os alunos; ficava na parte mais alta do antigo recreio, frente ao salão de estudo, e de “costas voltadas” para o quintal com laranjeiras (e que boas eram aquelas laranjas!) do senhor arquiteto Gaspar; era um dos mestres simpáticos e divertidos e que um dia me disse que o meu desenho “estava com iterícia”; teve a sua graça – pois… toda a gente se riu!

Ao fundo do edifício ficava a “sala de fumo”. Os próprios alunos mais velhos não permitiam que a malta mais nova fumasse – outros tempos! Fumar fora daquele local era absolutamente proibido… arriscado e ninguém ousava sair do ritmo.

Logo estabeleci que só podia estar junto de mim um aluno de cada vez. Fumava o cigarrito e logo dava o lugar a outro. Quando foi acrescentado mais um piso ao internato, eu passei a dormir lá com não sei quantos alunos. Deste modo foi “inventado” o quarto adjunto do velho Correia (e também este temporário).

É justo recordar que o Sr. Almeida nunca me chamou a atenção (repreendeu) por qualquer desmando, desvario ou incumprimento do contrato verbal entre nós estabelecido.

Como aluno universitário visitei o COA várias vezes; cumprimentava os nossos directores e tinha “direito” a almoçar ou jantar lá e creio que uma vez também lá dormi.

Em meados dos anos 70, depois da revolução dita dos cravos (ou dos cravas) passei pelo COA.
A menina Dina, na sua Livraria e Papelaria, informou-me da recente transformação do colégio em Liceu. Solicitei-lhe o endereço do Professor Santos e visitei-o também; senti-me lisonjeado porque ele logo me reconheceu; puxou-me para junto a janela (a vista já não ajudava) e, com alegria, logo comentou:
- “Tu és o Belmiro”! Sem tirar nem pôr.

Saudações colegiais
Fevereiro 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 24 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11305: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (42): Desporto no COA - Outras modalidades

domingo, 24 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11305: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (42): Desporto no COA - Outras modalidades

1. Em mensagem do dia 25 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

42 - Desporto no COA

Outras modalidades

Há poucas semanas, vários ex-alunos recordaram e transmitiram o de que se lembravam sobre o desporto no COA, citando os nomes mais representativos no futebol, basquetebol e voleibol; mas praticaram-se ainda outras modalidades.

Recordo que na sala por cima do velho laboratório do Dr. Vide - mais tarde era da Dª Maria? Odete - foram colocadas umas mesas de pingue-pongue, creio que emprestadas pelos bombeiros, e ali foram disputados uns tantos jogos. Era a mesma sala onde o Zé Alberto nos presenteou com a exibição de um vídeo muito bem elaborado aquando do almoço de 2012.
Não recordo o nome de nenhum jogador dessa modalidade mas talvez alguém se lembre.

A partir daqueles jogos, no salão de estudo, fazíamos uma “réplica” do ténis de mesa; a carteira dupla dos alunos internos tinha um tampo horizontal e servia de mesa, um livro ou um caderno servia de raqueta; a bola era normal.

Além dos desportos citados praticou-se também, e em larga escala, um outro desporto característico do Norte do país – joga-se também no sul, mas não com a mesma intensidade. Exige dura preparação física, muita concentração e também boa memória, inteligência acima da média; é um desporto de equipa (2 de cada lado) e exige, também treino assíduo. Refiro-me, claro, à “sueca”.

Iniciei-me neste duro desporto no COA. No meu 2º ano, noite após norte, jogávamos na camarata, à luz da vela, até alta madrugada; não recordo se alguma noite fizemos uma “directa” mas, certamente andámos lá perto. Logo que o velho Correia (não é ofensa) se deitava “armávamos a tenda” no canto da camarata, à entrada à esquerda; prendíamos um lençol na janela, na parede e no bloco de cacifos, servindo de quebra-luz; acendíamos uma vela e iniciávamos a jogatina. A nossa camarata ficava ao fundo do corredor, à direita, frente à do prefeito.

Jogávamos a dinheiro vivo! – Ai de mim se o meu pai soubesse! Não me recordo quanto se perdia em cada partida; ganhava quem completasse quatro vitórias.

Recordo que uma noite eu perdi 1$60 (o Valdemar Coutinho conta que só perdi 1$20); o que interessa é que perdi! Na noite seguinte, triste que nem um peru em véspera de Natal, transmiti aos restantes jogadores que desistia de jogar porque, na noite anterior, havia perdido quase uma fortuna.

Lembro que estávamos no início dos anos 50, do século XX e nessa altura o dinheiro não abundava nas nossas magras algibeiras.

Outro membro da minha equipa, o Valdemar Coutinho, e os adversários, ficaram desolados, furibundos; insistiram que eu voltasse à lide. Mantive a minha posição em não jogar. Eles conferenciaram e apresentaram-me a seguinte proposta:
- Nós devolvemos-te o dinheiro que perdeste e tu vens ”trabalhar” connosco. Certo?

Perante tanta insistência e tendo em conta que recuperava o meu dinheiro, dei o dito pelo não dito e voltei às lides. Pode depreender-se que a malta… já estava viciada, ou para lá caminhava.

Os meus adversários arrependeram-se profundamente da sua atitude pois, naquela noite, a “vaca” andava à solta e estava do meu lado. Ganhei, nessa noite 2 ou 3$00; quase ficava rico naquela madrugada.

O Valdemar e eu jogávamos sempre juntos; éramos companheiros inseparáveis… na sueca e não só.

Quando frequentava o 3º ano, entraram no COA vários alunos provenientes da região de Espinho/Vila da Feira; entre eles veio o Hec Sá Rosas (acompanhado pelo irmão mais novo, o “Rositas”) e o Pais Loureiro; estes dois frequentavam o 5º ano. Tomaram conhecimento da nossa nomeada na batota e decidiram desfiar-nos para uma “suecada”; de bom grado aceitámos o repto. Era uma situação nova e complicada para nós; eles eram mais velhos e jogavam juntos (equipe entrosada e batida) havia uns tempos. Medo não tínhamos! E como dizem lá na santa terrinha: - quem nasce bom… é sempre bom.

Iniciado o jogo, logo verificámos que havia equilíbrio de forças. Pouco depois, após a distribuição das cartas, olhei para o meu jogo e só “via duques”; não tinha na mão qualquer carta de valor; apercebi-me que o meu companheiro – sinalética própria da batota – estava também na penúria. Nisto, o Américo, que até tinha bom jogo, cometeu um erro crasso que foi a nossa salvação. Num inglês macarrónico, dando às palavras um tom profundamente gutural, perguntou ao Rosas:
- How many “trunfs” have you?
- I have four! - Replicou o Sá Rosas
- I have six! - Foi a resposta concludente do Américo

Como eu frequentava o 3 ano e portanto já sabia umas tretas de Inglês, coloquei “as cartas na mesa”, alegando:
- Tu perguntaste ao teu companheiro quantos trunfos ele tinha; ele respondeu que tinha 4 e tu acrescentaste que tinhas 6. Isso até é verdade pois nós não temos nenhum. A sueca foi inventada por quatro mudos! Vocês falaram… perderam o jogo! Vitória nossa!

Nos jogos seguintes a “sorte” passou definitivamente para o nosso lado e ganhámos por larga margem. Escreveu-se direito... por linhas tortas. Mas a sorte não era tudo!

Algum tempo depois o Sá Rosas (mano velho) apercebeu-se que o Valdemar e eu éramos companheiros inseparáveis, perguntou:
- Vocês são irmãos? É que nunca vos vi um longe do outro!

Eu respondi:
- Nós somos apenas “meio-irmãos”!

Perante a sua estupefação eu esclareci:
- Somos meio-irmãos porque o meu pai namorou com a mãe dele e o pai dele namorou com a minha mãe; entretanto mudaram de campo; eis a razão porque somos apenas meio-irmãos.

A nossa dupla desfez-se já lá vão uns bons anos!

Na Guiné, nos intervalos da Guerra, joguei bastante, com outro parceiro, claro! Para não haver confusão de galões e divisas, eu jogava com um dos meus furriéis e a outra dupla era também formada por um alferes e um furriel; o prémio era uma cerveja para cada um; uma cerveja “à melhor de três”. Para quem não está familiarizado com a linguagem, eu troco por miúdos: a equipa que ganhasse duas partidas seguidas ou alternadas, recebia duas cervejas, uma para cada jogador.
Acontece que eu não bebia cerveja. Quando perdia pagava ao “cantineiro”; se ganhava ficava crédito da minha conta-corrente. O cantineiro controlava.

Quem bebia o que eu ganhava, eram os meus soldados que não recebiam o suficiente para beber uma cerveja por dia. Para que não haja dúvidas, é bom esclarecer que cada um de nós recebia apenas 1/3 do salário; 2/3 ficavam cá. Mas mesmo assim era uma miséria!

O Valdemar, ainda hoje, é um acérrimo”suequista”. Todos os sábados e domingos, ele desloca-se (1Km) até à taberna do irmão (Mário) e ali passa uma tarde/noite bem passada à volta de uma mesa com as cartas na mão. Ali, a sueca é rainha! Não há por lá um café onde se não pratique este desporto, extremamente exigente, física e intelectualmente. Só não sabe isto quem não joga!

Saudações colegiais!
Fevereiro 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 17 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11268: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (41): O Chissóia e tantos outros que fomos obrigados a abandonar

domingo, 17 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11268: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (41): O Chissóia e tantos outros que fomos obrigados a abandonar

 

1. Em mensagem do dia 21 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), volta a aflorar o doloroso fim de muitos dos camaradas africanos que lutaram ao nosso lado e que foram abandonados à sua sorte aquando da independência dos territórios ultramarinos.



O Chissóia

Este título encabeçava um texto que me foi enviado, há já algum tempo, via mail, por um amigo de longa data que reside, há anos, para lá da outra margem do Atlântico. Logo pensei escrever sobre tão desgraçado tema; eu estava, porém, assoberbado com outro longo assunto… trabalho do dia-a-dia, e o tempo foi passando, inexoravelmente.

Como assunto escreveu: “Homenagem de gratidão ao Chissóia e a tantos outros que fomos obrigados a abandonar”. “Malhas que o Império teceu”!

Faço agora duas perguntas:
- Quem terá sido obrigado a abandonar?
2ª - Foi obrigado por quem?

De seguida relata: extraído do livro "Quinda" de Carlos Acabado, da coleção Império, nº 3.
Mais abaixo, transcreve algumas passagens das páginas do autor acima referido, narrando um pouco da vida dos Chissóias, pai e filho

O progenitor fez-se pisteiro e caçador de elefantes - saber de experiência feito - para proteger (e não só) as culturas do povo da sua aldeia que - sabe-se lá porquê - ficavam na zona de passagem dos paquidermes, à procura da água do rio Lungwebungo, destruíam ou danificavam seriamente, em trânsito, as lavras dos seus vizinhos; com os seus estragos lançavam às malvas o trabalho estrénuo de meses. Destruídas as culturas, o povo pagava as favas… com meses de fome.

Ao mesmo tempo que protegia as sementeiras do seu povo, o pai Chissóia acompanhava também os abastados colonos da região na caça aos elefantes; a carne, às toneladas, era distribuída pela população da aldeia de Lucusse; apenas os dentes, depois de extraídos dos maxilares - tarefa de que o pai Chissóia, de bom grado, se encarregava - eram entregues aos colonos que haviam abatido os animais de… tromba.

Naqueles tempos conturbados - estávamos no início da Guerra Colonial - um grupo de gente armada, pessoas desconhecidas naquela aldeia, entrou em Lucusse para conversar com o soba. Perante a “incompreensão” daquela autoridade gentílica e até de alguma pretensa e/ou manifesta “hostilidade”, o chefe do bando armado, sem mais delongas, e perante a população aterrorizada, fuzilou o soba por ser um “chefe corrupto”; o velho Chissóia foi também barbaramente abatido, por ser “lacaio dos colonialistas”.

O filho Chissóia fugiu à pressa, embrenhando-se na selva protetora e conseguiu chegar a pé, são e salvo, à capital do distrito; procurou o chefe militar português a quem transmitiu a malvada notícia. De seguida, um destacamento militar fixou-se na aldeia e o jovem Chissóia foi colaborador dos militares, ficando para “sempre” ligado à nossa tropa; os seus conselhos e atuação eram cada vez mais imprescindíveis. Veio a ser condecorado com a Cruz de Guerra, por atos heróicos em combate, e, durante a cerimonia, ouviu do general que lha colocou no peito:
- Portugal sente orgulho por ter filhos como tu.

Os anos passaram… lentos; chegou a não menos sangrenta fase de transição para a independência; de novo ocorreram os ajustes de contas, talvez ainda em maior quantidade e, por certo, também mais atrozes.

Alguns elementos da aguerrida equipa de Chissóia foram selvaticamente abatidos; as chacinas generalizaram-se; outros companheiros, porém, tiveram tempo de se proteger na mata, às escondidas, com elevadíssimo risco, mantinham contacto com o chefe.

O Chissóia conseguiu chegar ao comando militar da zona, onde um “tenente de barbas”, depois de saber o seu nome, lhe transmitiu que isso “tinha de acontecer aos lacaios do imperialismo e traidores do povo”. O indígena sentiu o mundo cair dos eixos sobre a sua cabeça; ficou descoroçoado!

No Comando Militar, ele pensava ser absolutamente protegido; afinal ouviu do tal ”tenente de barbas” o mesmo que disseram ao seu pai antes de o fuzilarem: 
- Lacaio dos colonialistas.

Ao seu interlocutor, um militar da FAP, o Chissóia, incrédulo, referiu: 
- Mas, no caso do meu pai, os matadores eram negros… um tenente branco, ao serviço do Exército Português, não podia dizer-me o mesmo! Será que já fui riscado do rol dos portugueses para ser livremente abatido pelos africanos independentistas?!

Solicitou ao mesmo interlocutor o especial favor de, em meio aéreo, o colocar - bem como à sua família ali presente e mais duas mulheres - em determinada pista militar próxima da fronteira e já abandonada; dali eles partiriam, através da mata, ao encontro dos seus companheiros que haviam conseguido debandar antes de serem abatidos. Tinha a certeza que um dos “movimentos” estaria disponível para aproveitar a sua experiência e o seu saber fazer. Com desmedido perigo para as duas partes envolvidas na arriscada viagem, até à dita pista, o Chissóia foi ali colocado e, em poucos segundos, despareceu no soturno silêncio da brava selva africana que a todos, irmãmente, protege.

No dia seguinte, ao proceder-se à limpeza habitual do aparelho voador, alguém encontrou, por baixo do banco usado pelo Chissóia, uma Cruz de Guerra com a qual aquele herói tinha sido agraciado, anos antes. Tê-la-á perdido involuntariamente? Ou terá sido abandonada intencionalmente? Só ele e Deus o sabem. Aquela condecoração poderia ser um elemento comprometedor, pois confirmaria a sua íntima e longa ligação às Forças Armadas Portuguesas.

E mais não disse!

Como português, fiquei profundamente magoado - e como me doeu! - por ficar a saber (aliás já sabia de acontecimentos semelhantes) que alguns portugueses, embora de cor (o que nada significa) fossem maltratados, molestados, abatidos, selvaticamente chacinados, sendo tão portugueses como nós.

Quem assim agiu ou permitiu que se obrasse seria português apenas no BI ou até talvez isso; no coração a nacionalidade seria outra.

Neste momento, apetece-me perguntar às chefias, aos responsáveis no terreno, daquela época:
- Quantos Chissóias criámos nos três teatros de operações durante os longos e funestos anos da nossa guerra do Ultramar, para, no fim, serem cobardemente abandonados à sua triste sina?

A nova força africana... O major Fabião, na altura (1971/73) comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.
Autor da foto: desconhecido. (Reproduzidas com a devida vénia)

Guiné-Bissau > Região Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > 1970 > Pel Caç Nat 54 >
Foto: © Mário Armas de Sousa (2005). Todos os direitos reservados.
 
Militares da 1ª Companhia de Comandos Africanos, comandada pelo Capitão João Bacar Djaló
Foto retirada do nosso Blogue - Poste 6149

Estou a escrever para um blogue de ex-combatentes da Guiné. A esses eu pergunto de outro modo:

- Quantos Malans viveram, lutando sabiamente, corajosamente, lado a lado connosco, como portugueses de rija têmpera? O seu sangue, independentemente da cor da pele, que nada importa, era tão rubro, tão português como o nosso!

Quem saberá informar o que, na verdade aconteceu aos valorosos e portuguesíssimos militares do célebre Batalhão de Africanos, aquartelado em Bissau?

Citei o nome Malan, não só por ser comum na Guiné, mormente entre os mandingas, mas principalmente porque era o nome do brioso, ousado e valente guia da nossa gloriosa CCaç 675; no fim da Guerra terá sido cobardemente abandonado à sua sorte e veio a ser desumanamente fuzilado (sem qualquer sombra de julgamento) no Senegal onde se refugiara, tentando fugir ao destino que lhe traçaram.

Antes da Guerra, por ser muito conhecido e benquisto na região de Farim, o PAIGC tentou arrebanhá-lo. Impossível! O seu puro portuguesismo não o permitia!

Profundo conhecedor da maior parte do território a norte do Cacheu e de boa parte do Oio tornou-se guia da CCaç 675, a primeira companhia a sediar-se em Binta, que ficava a escassa meia dúzia de quilómetros da sua aldeia natal, Genicó Mandinga. Esta tabanca fora incendiada pelos independentistas, bem no início da Guerra e a mãe do guia foi ali cruamente abatida, porque o filho, o nosso querido Malan, não aceitou bandear-se.

Foi uma figura marcante, preponderante, e a ele devemos uma boa parte dos extraordinários sucessos operacionais da sua e nossa CCaç 675.

Com o acordo do então comandante da companhia, eu tentei conseguir, no QG, em Bissau, a necessária autorização para que o Malan pudesse vir passar seis meses na Metrópole, a expensas nossas; o Governo Português apenas seria sobrecarregado com as viagens de ida e volta em navios de transporte da tropa. O requerimento foi indeferido, alegadamente, por “motivos operacionais”. Nada mais se podia fazer!

Nos últimos dias de 1964, o indómito capitão Tomé Pinto decidiu “invadir e destruir” a base de Sambuiá, sita na Península com o mesmo nome (Península porque ficava entre os rios Sambuiá e Malibolon que são tributários do Cacheu); esta era sem dúvida a base inimiga mais poderosa a Norte do Cacheu. Deste modo, o nosso ilustríssimo capitão pretendia vingar a morte do furriel Vilhena Mesquita, abatido pelo rebentamento de uma poderosíssima mina anticarro, no dia 28 de Dezembro de 1964. Já em Janeiro de 1965, a bordo de um Dornier, o Cap. Tomé Pinto fez o reconhecimento aéreo da dita península.

O piloto Honório, homem já muito experimentado nestas andanças apercebendo-se das enormes movimentações de combatentes fortemente armados, perguntou:
- Que efetivos vão atuar nesta zona?
- A minha companhia! - Respondeu secamente o nosso valente comandante.
- Apenas uma companhia? Isso é uma temeridade!

No dia 5 de Janeiro, a CCaç 675, reforçada com alguns homens da frágil guarnição de Guidage (havia ali apenas um pelotão) calcorreou livremente (quase) aquela Península de lés-a-lés; o sucesso da operação só não foi estrondoso (como previsto) porque algo muito grave aconteceu; o Pelotão de Morteiros 980, a quem cabia a missão de proteger (impedir a fuga) a ponte de Malibolon sofreu um gravíssimo revés: um terrível naufrágio em que oito militares, na flor da idade, perderam ingloriamente as suas vidas nas revoltas águas turvas do Cacheu. Assim aquela ponte ficou sem vigilância e foi por ali que os “corajosos” donos da Guerra da base de Sambuiá se escapuliram apressadamente, antes que fosse tarde, colocando-se a seguro em terrenos próximos de Bigene ou no Senegal, ali ao lado.

Anos mais tarde, houve nova tentativa de aniquilar aquela base. O General Spínola apareceu a meio da operação para transmitir mais confiança às tropas. O governador ficou tão agradado coma a atuação do nosso guia, Malan Sissé, que de seguida o galardoou com o Prémio Governador da Guiné - um mês de férias na Metrópole (no Puto).

Os africanos beneficiários daquela benesse ficavam instalados no DGA e faziam ma série de visitas programadas para ficarem a conhecer os locais e os monumentos mais significativos da História de Portugal.
Ao segundo dia da sua estada em Lisboa, o nosso famoso guia foi “raptado” no DGA; durante uma semana ficou “adido” em minha casa; depois andou de mão em mão, sempre acompanhado pelos seus indefetíveis amigos da CCaç 675. Voltou ao DGA na véspera do seu embarque de regresso à Guiné.

Mal tu imaginavas, meu caro Malan, depois de tantos sacrifícios, tanta guerra, tanta manifestação de puro portuguesismo, que virias a ter o mesmo trágico e cobarde fim de tantos outros Malan's... e Chissóia's.

Ficam as perguntas atrás formuladas. Quem saberá responder convenientemente?

A todos um alfa bravo muito cordial neste início de novo ano (já vai ficando velho) de 2013.

Fevereiro 2013
BT
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 10 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11228: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (40): O sr. Dr. Matos