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quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21517: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (10): Relembrando a morte, por acidente com um dilagrama, no CIM de Bolama, em 10/7/1972, do alf mil Carlos Figueiredo


Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Bolama >  c. jun/jul 1973 > O jardim colonial,  com a estátua em bronze de Ulysses S. Grant (1822-1885), o presidente norte-americano que em 21 de abril de 1870 resolveu, por sentença arbitral, a questão da soberania de Bolama, disputada entre Portugal e a Grã-Bretanha... 

A estátua em bronze desapareceu em 2007, sendo mais recentemente substituída por uma em cimento, A foto é do nosso camarada Luís Mourato Oliveira, que em meados de 1973 fez um estágio,  de preparação para o comando de subunidades africanas, no Centro de Instrução Militar (CIM)  de Bolama. Um ano antes, estiveram  aqui o Carlos Barros e a sua 2ª CART / BART 6520/72 a fazer a IAO.

 Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Carlos Barros, Esposende


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros [, um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; membro da Tabanca Grande nº 815; vive em Esposende, é professor reformado]

Recorde-se que o BART 6520/72 foi mobilizado pelo RAL 5 (Penafiel), tendo embarcado em 23 de junho de 1972 (Cmd, CCS e 2ª Companhia )... Após a realização da IAO, com as suas companhias, de 30 de junho de 1972 a 26 de julho de 19l72, no CIM, em Bolama, seguiu, em 28 de julho de 1972 ara o sector de Tite, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com o BArt 2924.

Em 20 de agosto de 1972, assumiu a responsabilidade do Sector SI, com sede em Tite e englobando os subsectores de Tite, Jabadá, Nova Sintra e Fulacunda, este até 4 de janeiro de 1973, por transferência para a zona de acção do COP 7. Em 19 de junho de 1973, por extinção do COP 7, a zona de acção do batalhão foi alargada com os subsectores de Fulacunda e Ganjauará.

Desenvolveu intensa actividade operacional, orientada para a realização de patrulhamentos, emboscadas, reconhecimentos ofensivos e acções sobre os grupos inimigos instalados na área, além de garantir a segurança e protecção das populações e a reacção contra flagelações efectuadas sobre os aquartelamentos e aldeamentos.

Dentre o material capturado mais significativo destacam-se: 1 metralhadora ligeira, 2 pistolas-metralhadoras, 8 espingardas, 1 lança-granadas foguete e a detecção e levantamento de 38 minas.

Após ter coordenado a desactivação e entrega do subsector de Nova Sintra ao PAIGC, em 17 de julho de 1974, recolheu em 20 de agisto de 1074 a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso, tendo as subunidades dos restantes subsectores assumido a responsabilidade das medidas de desactivação e entrega dos aquartelamentos respectivos: Jabadá (1º Companhia), Nova Sintra (2ª Companhia) e Fulacunda (3ª) Companhia.
 

Relembrando a morte, por acidente com  um dilagrama, no CIM de Bolama, em  10/7/1972, do alf mil Carlos Figueiredo  (CCS/BART 652o/72)

 por Carlos Barros (**)


Em Bolama, quando os militares da 2ª CART/BART 6520/72 estavam a fazer a IAO, uma pré –preparação militar para nos ambientar à guerra, a carreira de tiro era o local onde treinávamos com o material de guerra: G3, bazucas, dilagramas, morteiros 60...

Foi um mês [. junho / julho de 1972,] de intenso treino com “fogo real”…

O furriel Barros tinha estado, no quartel,
perto do rio Geba, não longe do destacamento dos dos fuzileiros, com o seu amigo, alferes Carlos [Manuel Moreira de Almeida]  Figueiredo, da CCS [, natural de São Pedro do Sul,] e, numa conversa amena, este tinha-lhe confessado que estava farto da carreira de tiro e que ia pedir ao comandante para o deixar descansar.

O Barros ouviu o seu desabafo do seu amigo e concordou com a ideia do Alferes, seu amigo, porque não era fácil ouvir tanto tiro, tanto rebentamento, durante semanas “a fio”!

No dia seguinte, o pelotão do Barros estava no mato em exercícios militares e vê uma urna a ser transportada numa viatura militar. Perguntou a si mesmo, o que teria acontecido? ...

Naquele momento, uma grande e mortífera cobra passou por ele... O Barros não fez qualquer movimento e ela seguiu o seu caminho…

Em pleno treino, na carreira de tiro, no lançamento de um dilagrama, com defeito de fabrico, uma granada deflagrou-se inesperadamente, e atingiu mortalmente um cabo de outra companhia (talvez de Empada) e o Alferes Figueiredo, ficando os dois irreconhecíveis.

À noite, o Barros e outros camaradas foram jantar num designado Hotel, mas não conseguiram jantar, e os pratos encheram-se de lágrimas de dor!

Perdeu-se um amigo num insólito acidente e  o Barros pensava:

Ao fim de quinze dias de  Guiné, já temos dois mortos!...

Foram noites sem dormir, e foi este o primeiro “banho de tragédia e sofrimento” que ele sentiu.

Meus Deus, dizia ele para os botões do seu camuflado:

 Irei resistir a isto?

Com muita sorte, o pessoal da companhia resistiu em 24 meses e 48 dias de guerra, tendo regressado à Metrópole, no dia 10 de agosto,

 Talvez o dia mais feliz da minha vida!...− exclamou ele.

Carlos Barros

Furriel Miliciano

Guiné 1972/74

Nova Sintra, 26 de junho de 1973 
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28 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21398: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (8): os meus livros de bolso, da RTP, oferecidos pelo MNF, em 25/1/1973, deixei-os a alguns guerrilheiros do PAIGC, em 17/7/1974... E comigo trouxe "farrapos" da nossa bandeira, e ainda os guardo, como símbolo do nosso sofrimento e coragem

19 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21371: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (7): os craques da bola...

14 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21358: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (6): a evaporação das cervejas

12 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21349: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (5): A visita da Cilinha ao destacamento de Nova Sintra, em 1973...

7 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21332: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (4): A cabrinha Inha...

4 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21325: Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (3): As ratazanas (e o PAIGC) ao ataque em Gampará

3 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (2): A fuga da 'beijuda

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15614: Álbum fotográfico de Armando Costa, ex-fur mil mec auto, CCAV 3366 / BCAÇ 3846 (Susana, 1917/73): Parte II: Chegada a Bissau e ao Cumeré


Foto nº 1 >  Guiné > Bissau > A zona portuária vista do convés do T/T Angra do Heroísmo, à chegada da em 9/3/1971 (1)


Foto nº 2 > Guiné > Bissau > A zona portuária vista do convés do T/T Angra do Heroísmo, à chegada, em 9/3/1971 (2)


Foto nº 3 > Guiné > Bissau > A zona portuária vista do convés do T/T Angra do Heroísmo, à chegada da em 9/3/1971 (3)


Foto nº 4 > Guiné > Bissau > Abril de 1971 > Avenida marginal


Foto nº 5 > [Sem indicação de fonte, não sendo do autor, trata-se de um bilhete postaol:] Guiné > Vista aérea parcial e Ilhéu do Rei. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 142". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).




Foto no 6 > Guiné > Bissau > Cumeré > Abril de 1971 > A CCAV 3366 fez aqui a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional).

Fotos (e legendas): © Armando Costa (2016). Todos os direitos reservados.



1. Segunda parte da publicação de fotos do álbum do Armando Costa, ex-fur mil mec auto, CCAV 3366 / BCAV 3846, Susana, 1971/73) (*) [, foto atual à direita[.


Recorde-se que ele partiu para a Guiné em 3 de março de 1971,  num navio da carreira Lisboa-Madeira-Açores, o Angra do Heroísmo, fretado ao Exército para transporte de tropas e material.

O BCAV 3846, além da CCAV 3366 (Susana, Cumeré), era composta pelas CCAV 3364 (Ingoré, Cumeré) e CCAV 3365 (S. Domingos, Cumeré),

A unidade mobilizadora foi o RC 3. O Comando e a CCS ficara m em Ingoré; o comandante do Batalhão era ten cor cav António Lobato de Oliveira Guimarães.

O pessoal deste Batalhão regressou a casa em 8/3/1973, exceto o da CCAV 3365 que embarcou mais tarde (17/3/1973).

Não sabemos quanto tempo a CCAV 3386 esteve no Cumeré. Provavelmente só de passagem, ou pelo menos até abril de 1971 (fotos nº 4 e 6). Fez aqui a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). Em junho de 1971 já há fotos de Susana e Varela,. no álbum do nosso camarada Armando Costa, membro nº 707 da Tabanca Grande.

2. Comentário dos editores:

Armando: começámos a publicar as tuas fotos... É pena terem pouca "resolução"...Tivemos que as ampliar para o dobro (200%). As próximas que mandares vê se as podes mandar com pelo menos 300/400 Kb, as que mandaste têm à volta de 30/40 kb... Estes parâmetros têm que ser definidos na digitalização... De qualquer modo, o nosso muito obrigado. Manda sempre as legendas.


Guiné > Mapa geral da província (1961) > Escala 1/ 500 mil > Posição relativa do Cumeré, a nordeste de Bissau, abaixo de Nhacra, ma margem direita do estuário do Rio Geba.

Infogravura: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné (2016)

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Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior  da série > 11 de janeiro de  2016 > Guiné 63/74 - P15607: Álbum fotográfico de Armando Costa, ex-fur mil mec auto, CCAV 3366 / BCAÇ 3846 (Susana, 1917/73): Parte I: A caminho de CTIG, de 3 a 9/4/1971, no navio "insular" Angra do Heroísmo, fretado nesse ano ao Exército para transporte de tropas

terça-feira, 12 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14603: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (4): Segunda semana de campo

1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

[Recapitulando o anterior poste: 27-03-1973 – Reunião de graduados com o Gen. Spínola; 09-04-1973: Início da 1ª semana de campo; 15-04-1973: Fim-de-semana em Bolama]

4 - 2.ª SEMANA DE CAMPO

16 de Abril de 1973 (segunda-feira) – 2.ª semana de campo 

Desta vez deslocámo-nos para uma zona do interior mais próxima da cidade de Bolama, mas menos aprazível que a anterior. Montaram-se as tendas bem dentro da mata agreste, não muito longe da picada, mas ficámos amontoados. Demasiada tropa para a área designada. Isso fez-se sentir no ambiente, mais tenso e opressivo, muito diferente do primeiro acampamento. Constante, como antes, foi a mosquitada e a mosquinha do capim. Prosseguiram as manobras militares nas manhãs frias e tardes tórridas. Logo na primeira noite deu-se um caso insólito: todo o acampamento dormia em aparente tranquilidade e eis que, aos berros e em pânico, um soldado pôs fora das tendas a maioria do pessoal, de armas aperradas mas sem entender os porquês nem os azimutes da hipotética ameaça. Ainda mais, em completa escuridão. Confuso, passou-me pela cabeça que alguém tinha sido apanhado à mão... Entretanto, alguns correram para a tenda do aflito e saíram depois a explicar que não havia ameaça nenhuma, não era nada: o pobre do soldado, muito perturbado, sonhara com uma cobra!...

Foi durante a estadia neste acampamento que, num dia de descanso, fiz com o meu amigo Furriel J. R. uma deslocação à anterior povoação à procura das nossas saudosas bajudas da fonte, caso que aflorei no poste anterior e que descrevo agora, assumindo o risco de me expor desnecessariamente, e de maçar quem me leia. Só pelo grotesco da situação...

Estávamos de descanso e enfadados daquela pequena clareira no meio do mato. Pedimos autorização ao Comandante de Companhia para sair, com o pretexto de fazermos uma visita aos camaradas que ocupavam agora o nosso primeiro acampamento. Autorizados, fizemos uma longa caminhada a pé e armados de G3. Passámos pelo referido acampamento (não recordo se contactámos alguém) e descemos para a fonte. Cumpríamos a nossa palavra de que voltaríamos para fazer felizes as nossas bajudas. E elas prometeram-nos o céu, muito divertidas com as expectativas. Pelo menos era o que nos parecia. Estivemos com elas muito tempo e, como sempre, ajudámos nas suas higienes. Encheram os alguidares de água e disseram-nos que teriam primeiro de levar a água e as pequenas bajudas à tabanca, depois voltariam sós, que aguardássemos...

Pessoalmente arrefeci logo um pouco, céptico. Esperámos. Voltámos a esperar.
- Ó J. R., chega! Vamos embora.
- É pá, espera aí, aguentamos mais dez minutos!.

Apetecia-me concordar com ele, mas começava a fazer-se tarde e tínhamos um longo caminho para o regresso. De passo acelerado metemos pela estrada de terra batida a caminho do acampamento, dizendo mal da vida e de tanta parvoeira. Íamos alvitrando impedimentos para o regresso das bajudas, que nos salvasse a face, enfim..., entrámos numa recta longa e com declive que nos ajudou a estugar o passo. Arborizada de ambos os lados, a estrada tinha do lado direito uma pequena rampa depois da berma, talvez com metro e meio. Caminhávamos desse lado. No fundo da recta, de uma curva que surgia à esquerda, apareceu, quase indistinto, um jipe militar. Demos um salto para a valeta e ficámos breves instantes a observar, indecisos quanto à atitude a tomar.
- Só nos faltava mais esta... É, quase de certeza, o jipe do Comando - disse eu, já a preparar-me para grandes justificações.

O J. R., sem hesitar, sobe a rampa a partir da valeta e diz-me lá de cima:
- Não nos viram. Sobe aí, rápido!
- Não faças isso! Não nos reconheceram, mas viram-nos de certeza. Vai dar merda, porque fugir é pior.

Tudo se passou muito de repente e, enquanto o jipe tardava em se aproximar, o J.R. dá uma corrida e mete-se na mata densa. Fiquei numa situação ainda mais delicada pois, ficando na estrada, para além de ter de justificar a nossa presença ali, ainda tinha de explicar a atitude dele. Se entrasse na mata e fossemos apanhados, criava uma situação deveras grave. Vinha ainda a meio da recta o jipe, saltei a lomba e corri também para a mata, furioso e desapontado com o J. R.
Mesmo em situações limite sempre assumi as minhas atitudes de cara levantada. Ficámos a aguardar uns instantes, pois já se ouvia o motor do jipe e disse eu para o J. R.:
- Se pararem, saímos imediatamente para eu explicar tudo! - E teria de ser eu a explicar, por ser o mais graduado.
- Não saímos nada! Metemo-nos por aí a baixo a corta-mato! - respondeu-me ele com ligeireza e nada assustado.
- Não, não! Já fiz mal em seguir-te e como sou eu a ter de assumir esta garotice, agora és tu que fazes como te estou a dizer!.

Entretanto já se ouvia o jipe em marcha lenta – vinham à procura das nossas pegadas – até que parou mesmo frente ao sítio por onde nos metemos. Mal parou, ainda antes de desligarem o motor, em passadas largas apareci ao cimo da lomba da berma e, fingindo surpresa, exclamei:
- Oh! É o nosso Major!

Na verdade não estava certo de quem fosse -, ele olhou para cima e só então percebi que também ele desconhecia que se tratava de mim. Desci para a berma com o J. R. atrás de mim, fizemos a continência devida. O Major D. M. estava na nossa frente sem sinais de exaltação e, sentado no jipe, assistindo, o Cap. J.A.C. (Oficial de Operações).

Antecipando-me à primeira reacção do Major pedi desculpa pela atitude de sair da estrada, mas que a primeira coisa que nos ocorreu à vista do jipe, é que fosse alguém do Comando da Unidade de Bolama, que talvez não aceitasse as razões da nossa estada ali, etc. etc.
O Major nem olhava para mim, concentrado a olhar o chão com as mãos na cintura. Depois disse:
- Se fôssemos turras, vocês estavam apanhados, porque bastava pôr os olhos nas marcas que vocês deixaram no chão!
- Tem razão, meu Major. Foi de facto uma precipitação irresponsável que nunca aconteceria se imaginássemos que era alguém do nosso Comando - menti.

Perguntou, ainda, o que fazíamos por ali estando a nossa Companhia lá em baixo, respondi-lhe com a história da nossa visita aos camaradas de cima, enfim..., foi entrando no jipe e dizendo:
- Quando chegarmos a Bolama, apresente-se no meu gabinete.

Partiram, estrada acima. Nunca tinha passado por um vexame assim.
- Ora aí tens o resultado da tua atitude! - disse eu para o J. R. que caminhava a meu lado sem abrir a boca.

Apesar da minha apreensão, nunca ouvi comentários a este respeito, nem a camaradas nem ao Capitão da nossa Companhia que nos autorizou a saída e que podia muito bem ter sido abordado pelo Major. A verdade é que chegados a Bolama me apresentei no seu gabinete e, com toda a sinceridade, expliquei melhor a situação, reconheci a minha inqualificável falta, pedi desculpa e submeti-me ao seu julgamento. Ouviu-me com atenção e depois mandou-me embora em paz, sem qualquer comentário que eu tivesse retido. Ao longo da comissão outras situações surgiram entre nós, do foro militar, mas todas se resolveram sem problemas. Parecia-me que lhe merecia uma consideração especial, mas nunca entendi porquê. Na verdade, eu tentava corresponder com igual consideração.

As novidades que nos vão chegando do desenrolar da guerra no interior da Guiné não são nada animadoras. Mesmo na cidade de Bolama é possível ouvir o ribombar dos canhões lá longe, fala-se em Guilege e Gadamel, bem no sul da colónia. Os “velhinhos” do quartel de Bolama dizem “a embrulharem”! Guilege está a “embrulhar”! Gadamael está “a embrulhar!”
Vou tomando nota.


21-04-1973 – (sábado) – Primeiras mortes. 

Soube hoje – fim da 2.ª semana de campo – que um alferes que viajou comigo no Uíge, mas que não recordo, e que estava a fazer a IAO no interior da província e não em Bolama, morreu acidentalmente com uma rajada na cabeça. Era de noite e levantou-se para ir urinar. Ao regressar, uma das sentinelas, seu soldado, não o reconheceu. É a versão que corre. Ontem, aqui no porto de Bolama, estava também num caixão, dentro de um barco da Marinha, o corpo de um rapaz que morreu nas mesmas circunstâncias. É o medo e a inexperiência a fazerem das suas.

Aqui em Bolama continuamos a estranhar a ausência de um ataque com mísseis do PAIGC a partir de S. João, ali no continente, mesmo em frente a esta parte da ilha. Todos os Batalhões que nos antecederam foram atacados, quase sempre logo após a chegada, com objectivos evidentes. [Viria a saber, mais tarde, que também o Batalhão que nos sucedeu foi atacado, tendo havido várias vítimas]. Talvez gostem de nós... Há oito dias foram presos aqui em Bolama nove elementos do PAIGC e devem ter informado os seus camaradas a nosso respeito. (Sabem sempre quando parte um Batalhão e chega outro, e também sabem o efeito que tem nos novatos um susto logo nos primeiros dias, marca a fogo que não os vai largar mais). Eram indivíduos que nos viam diariamente. Já tinha ouvido falar que aqui numa tipografia local havia elementos suspeitos, mas a PIDE, que obviamente nunca vi nem sei onde tem a sua sede, não deixa “passar” nada.

Quase no fim da IAO tivemos ainda uma tarde de manobras com helicópteros, (durante a espera destes ocorreu o “meu” incidente dos cajueiros que talvez calhe, lá para a frente, relatar), e a visita do Alf. Marcelino da Mata com alguns homens do seu Grupo para uma demonstração de fogo com armas do PAIGC.


Bolama, Abril de 1973 – Capitão B. D. (1.ª CCAÇ do BCAÇ 4513) observa uma granada de RPG 7 (ou 3?). A seu lado, um dos elementos do Grupo de Combate do Marcelino da Mata.


Creio que esta demonstração se desenrolou na pista de aviação de Bolama. Uma das acções que mais me impressionou foi o Marcelino ter feito um disparo com RPG apontado para o chão a pouco mais de dez metros da nossa posição. Fê-lo de pé, com o tubo à altura da cintura e demonstrando total confiança. Deduzi que estas granadas, tal como as nossas anticarro da bazuca, só podiam ser de carga-de-efeito-dirigido, portanto, perfurantes. Caso contrário, ter-nos-iam atingido na retaguarda do impacto. Contudo, lançadas sobre o pessoal, são muito perigosas por se desintegrarem em pequenas lâminas cortantes.


27-04-1973 – (sexta-feira) – Calha a todos

Faz hoje um ano e dois dias que entrei para a tropa. Hoje entra o meu irmão Zé, exactamente mais novo que eu um ano e dois dias.

(continua)

Texto e foto: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14570: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (3): Reunião com o Gen Spínola e início do IAO em Bolama

terça-feira, 5 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14570: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (3): Reunião com o Gen Spínola e início do IAO em Bolama

1. Mensagem do nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com data de 28 de Abril de 2015:

Luís Graça e Carlos Vinhal, Camaradas amigos.
Antes de mais, quero felicitar-vos pelo sucesso do X Encontro em Monte Real. Com muito mérito vosso e dos demais organizadores, acho que esteve à altura da dimensão e prestígio da Tabanca Grande. Então, pode dizer-se que todos estamos de parabéns.
Junto em anexo mais um texto das minhas memórias. Noutro mail que enviarei já de seguida, segue novo texto.

Um abraço fraterno para ambos,
A. Murta


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

[Recapitulando o anterior poste: 23-03-1973 – Chegada a Bolama; 1ªs impressões; Início da IAO; Boas vindas do Gen. Spínola ao Batalhão 4513; Desfile das tropas perante o CMDT-Chefe e demais individualidades].


3 - REUNIÃO DE GRADUADOS COM O GEN. SPÍNOLA

Concluídas as cerimónias, enquanto a maioria debandava, todos os oficiais e sargentos estavam convocados para uma reunião com o General num salão do Hotel Turismo, actual messe de oficiais. Durou duas horas, esta reunião.

(Do que se passou naquela sala soturna e constrangida, creio que já em tempos aflorei (ou dei mesmo conta?) no nosso blogue. Na dúvida, e por uma questão prática transcrevo do meu diário):
Acomodados todos os presentes, fixaram-se as atenções na mesa presidida pelo Gen. Spínola, ladeado por todo o Comando do Batalhão e outros oficiais da sua comitiva. Era notória a frieza do General para com o Comandante do Batalhão, votado ao ostracismo e visivelmente incomodado.

O General, depois de palestrar para todos sobre o retrato da situação na Guiné e do papel que nos cabia a nós no evoluir dessa situação, deu por encerrada a primeira parte da reunião e convidou os sargentos e furriéis a saírem. Prosseguiu de imediato a reunião apenas com os oficiais. Estava muito interessado em saber o que pensávamos nós sobre aquela guerra e sobre a nossa acção nela e junto das populações.

Para meu azar, aponta-me o dedo e diz:
- O nosso alferes que pensa de tudo o que já aqui foi exposto?

Surpreso, levantei-me com todas as atenções concentradas em mim e, num ápice, percebi que não iria falar apenas para ele, tendo de decidir rapidamente que versão escolheria entre várias hipóteses a considerar. Então, muito contrafeito e cobardemente, (sensatamente?), recitei-lhe a cartilha oficial, a que me ensinaram, sem introduzir originalidades nem virtuosismos, enfim, pensando que era o que ele queria ouvir (e não era), mesmo se o meu pensamento estava nos antípodas do que lhe dizia, devido à minha formação política, muito anterior à entrada para o Exército. O General ouviu-me em silêncio e depois mandou-me sentar. E eu a ler-lhe o pensamento: Mais um idiota!
Depois interpelou o Alf. Capelão com a mesma questão.

Quando este começou a falar, sem tibiezas e com uma audácia a roçar o desaforo, para as circunstâncias e para a época, eu não sabia onde me havia de enfiar... Foi então que o Gen. Spínola o interrompeu para o pôr à vontade, dizendo-lhe:
- O nosso Alferes pode falar à vontade, dizer o que pensa, porque daquela porta - e apontou - não sairá uma palavra. (O Comandante do Batalhão, enfiado, transpirava e bufava...).

E ele continuou, pondo em dúvida o colonialismo e a legitimidade de tudo aquilo que a maioria entende por legítimo, natural, a ordem das coisas..., mas também questionando o estado social da colónia, em pleno século XX, depois de 500 anos de colonização. Falou bastante tempo sem ser interrompido. Era um valente. (E não apenas intelectualmente: vi-lhe dar um murro nos queixos a um soldado que apalpou o rabo a uma adolescente estudante de Bolama que seguia à nossa frente no passeio, que ele até voou! Éramos amigos e com muito respeito mútuo: ele era padre católico e eu ateu empedernido. Desapareceu depois de uma distribuição clandestina de panfletos à tropa sobre, creio, a má alimentação que era distribuída aos soldados, - ou a toda a tropa?).

O General pareceu ter gostado do que ouviu ao Alferes Capelão e disse para o seu Ajudante-de-Campo tomar nota de que lhe devia enviar, de oferta, o seu livro “Portugal e o Futuro”, ainda não publicado. (Só mais tarde, quando o livro saiu, e com a polémica à sua volta, percebi o seu interesse em auscultar os militares a propósito da situação na Guiné e do seu desfecho político e militar, pois que ele preconizava uma solução diferente para a colónia. Adquiri o livro muitos anos depois).


9 de Abril de 1973 – (segunda-feira) – Início da 1ª semana de campo no interior de Bolama

Deslocámo-nos muito para o interior da ilha e acampámos numa zona elevada e, de certo modo, aprazível. Na nossa frente e em baixo podia ver-se o mar, ainda que a grande distância. Na verdade é o canal marítimo entre a ilha de Bolama e o continente. Próximo deste local fica uma pequena tabanca de etnia Mancanha ou Brames, não recordo, mas são as etnias maioritárias em Bolama. Da Guiné que eu conheci, foi o único local em que vi as mulheres usarem uma tanguinha de palha de arroz sem mais nada sobre o corpo. Excepção para a cidade de Bolama e, aqui na tabanca, num caso ou outro. Parece que é comum esta forma de “vestir” em todo o arquipélago dos Bijagós.

Pouco depois da nossa chegada fiz uma visita à tabanca e fiquei encantado, embora visse nos homens-grandes alguma desconfiança e agressividade. Talvez tenham razões para isso: já por aqui passaram muitos tropas e, por certo, nem todos respeitadores. Mas as bajudas e as crianças são adoráveis: à noite, quando acendemos fogueiras no acampamento para afastar os mosquitos e a horrível – e chata! – mosquinha do capim, aparecem de mansinho algumas bajudas e, pasme-se!, sentam-se no chão como nós, no meio das nossas pernas, encostadas a nós e viradas para a fogueira. Imagine-se, vestidas só de tanguinha e de um sorriso doce..., mas sem qualquer maldade. Perante este afecto e inocência, também da nossa parte estava fora de questão qualquer maldade. São miúdas com idades, talvez, a partir dos 13, 14 e 17 no máximo. Falam um português razoável, mercê, talvez, da proximidade da cidade de Bolama e, quem sabe, do já longo contacto com a tropa.

As mais velhitas não costumam aparecer à noite mas vamos encontrá-las de dia na fonte. Eu e o meu amigo J. R. já tínhamos bajudas “dedicadas”... A fonte era uma espécie de centro de convívio, (felizmente não era hábito aparecerem outros camaradas), para onde nos escapávamos nos tempos livres e aí íamos encontrar também as mulheres-grandes, sisudas e desconfiadas.

Quando abalavam, carregadas de cabaças e alguidares com água à cabeça, as bajudas mais velhitas começavam as suas higienes, largavam as tangas e pegavam no sabão e nas “esponjas” feitas de raízes secas e muito finas. Ensaboavam-se até onde chegavam e depois estendiam-nos as “esponjas” para que as lavássemos por trás. Aí, a nossa lascívia misturava-se com a falsa naturalidade e, era certo, com uma grande dose de maldade. Elas correspondiam com risadas e sensualidade, mas não se passava dali. Até que um dia... (talvez, de caminho, venha a contar um episódio lamentável, fruto da nossa ousadia e irresponsabilidade, mas que agora não cabe aqui).

Fiz junto desta população amizades fortes, especialmente com as crianças: um rapazito e três bajudinhas de uma doçura enorme. Quando chegou a hora de os deixarmos de vez, no momento da despedida até me beijaram. Só tive um caso em que me zanguei deveras: foi com um velho que não falava bem o português e que embeiçou com a minha faca de mato. Só quando lha passei para as mãos percebi que queria ficar com ela. Foi um problema para a reaver e receei ter que usar a força.

Havia na ilha, (na pequena parcela que me foi dado conhecer), outros encantos e outros prazeres. Um deles, era cruzar-me a meio da manhã, numa picada exuberante, com um vendedor de vinho de palma em marcha acelerada rumo à cidade. Distinguia-se ao longe, bamboleante, com a sua carga suspensa da vara que carregava ao ombro: de cada extremidade da vara pendia um grande garrafão. Parava, satisfeito, e nós enchíamos os cantis daquele líquido aromático e fresco, que se bebia de um fôlego, até se aprender como era enganadora aquela suave frescura... O homenzinho partia de novo na sua marcha, mais aliviado da carga que, a partir de agora, carregaria a nossa cabeça... Cabeça-grande, já se vê.

O treino militar propriamente dito, e era para isso que ali estávamos, foi muito desagradável. Não se esperava que fosse agradável, mas foi difícil a adaptação àquelas condições: manhãs muito frias, zonas de capim orvalhado e muito alto, (mais alto que um homem), e infestado de uma mosquinha minúscula que nos envolvia, metendo-se nas narinas, nos ouvidos, enfim... era com este incómodo e com os camuflados encharcados que fazíamos as emboscadas, os golpes de mão e as restantes peripécias do treino, incluindo ser-mos abatidos pelo “IN” num meio tão adverso. Mas já dava para antecipar o que nos esperava no cenário real da nossa futura actividade. Se este treino tinha como objectivo preparar-nos melhor para ela e compensar a deficiente preparação da Metrópole, então havia que aguentar e aproveitar ao máximo, sendo certo que não iria resolver o desnível da preparação dos graduados em relação aos soldados. Imaginava já os custos altos com que, gradualmente no mato ganhariam a prática que agora lhes faltava, frente a um inimigo experimentado e motivado. Não devia valer. Estava a chegar ao fim a primeira semana de campo.


15 de Abril de 1973 (Domingo) – Fim-de-semana em Bolama

Fomos passar o fim-de-semana a Bolama. Nesta data já sabia que em 24 de Abril partiria para Nhala, uma pequena povoação no interior e a sul da Guiné. Sem mais pormenores. Será aí que, finalmente, ficaremos a cumprir a comissão.

Foi um fim-de-semana em cheio. Retemperar forças, fazer higienes adequadas mas, principalmente, comer bem. Havia que aproveitar os derradeiros dias de relativa tranquilidade. Avizinhavam-se tempos difíceis e incertos. Nesta quase noite de domingo, foi um “fartar vilanagem”! Fomos à Pensão do Zeca, um tipo de Coimbra aqui radicado há 25 anos. Ostras! Queríamos ostras! Era uma mesa enorme bem composta de comensais. Eu estava sentado ao lado Alferes Capelão que, enquanto esperávamos pelo pitéu, se pegou com o camarada da frente por este, com simulacros de mau gosto, o ter provocado. Acho que era o Alferes M., sempre muito divertido mas que teve a ideia peregrina de fazer hóstias com miolo de pão e pôr-se para lá a benzê-las à frente do Capelão. A coisa esteve mesmo para azedar... Comemos, pois, muitas ostras. Mas no fim o estômago ainda reclamava. Mandaram-se fazer omeletes de carne com batatas fritas e, parecia, tudo se recompunha em definitivo. Mas, aproximava-se a hora do jantar (!) e já dali não saímos: aguardava-nos um leitão que havíamos encomendado com antecedência e ele chegou mesmo na hora.

(continua)

Texto: © António Murta
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Nota do editor

Poste anterior da série de 8 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14446: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (2): Partida para Bolama, IAO e visita do General Spínola

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14446: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (2): Partida para Bolama, IAO e visita do General Spínola

1. Mensagem do nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com data de 25 de Março de 2015:

Olá camaradas amigos Carlos Vinhal e Luís Graça.
Em anexo segue mais uma parte das minhas memórias no seguimento do anterior texto, e 2 fotografias.
Para quando der jeito publicar se assim o entenderem.

Abraço fraterno
António Murta


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA - GUINÉ, 1973-74

[Recapitulando: 16-03-1973 – Partida de Lisboa; 22-03-1973 – Chegada a Bissau, pequena incursão na baixa da cidade à noite, primeiras decepções, regresso ao Uíge].


2 - PARTIDA PARA BOLAMA

Deitei-me à 1h30 da madrugada (última noite no navio), para me levantar às 3 horas e preparar a saída para Bolama, com os soldados de duas Companhias, a bordo de uma LDG da Marinha. Pelo menos outra se lhe seguiria com o resto das tropas. Saímos de Bissau às 5 horas da madrugada e chegámos a Bolama às 10 horas. Era uma sexta-feira, 23 de Março de 1973.

[Lamentavelmente não tenho notas nem memória para descrever a viagem que deve ter sido uma experiência única. Pela mesma razão ficará sem registo o desembarque que, para a grande maioria, foi a primeira vez que pisaram solo africano].

Não recordo se a LDG ficou ao largo, se atracou no cais. Essas situações dependiam sempre do estado das marés que, em toda a costa da Guiné, e pelo seu interior adentro, é sempre de alguns metros de altura. O que recordo foi a recepção que nos fizeram dezenas de crianças e algumas mulheres, habituadas que estavam a que à sua terra estivessem sempre a chegar novos contingentes, à medida que outros saíam. E zumbiam à volta dos tropas a oferecer os préstimos das lavadeiras que, sabiam, poucos iriam dispensar. Pediam também dinheiro (patacão) de mão estendida. Eram uns safados e umas safadas, muito batidos naqueles contactos, mas muito bonitos e gentis. Foi o primeiro contacto com o calor humano local, a suavizar angústias, medos indefinidos e dúvidas sobre o futuro.

Faltava instalarmo-nos e fazer o reconhecimento da cidade. Um espanto! Como fora possível que uma cidade daquelas, tão pequena e desprezada, tenha sido a capital da Guiné? Só estou a ver uma explicação: em toda a Guiné não havia outra com melhores condições e infra-estruturas para ser a capital da colónia. Até ao desenvolvimento de Bissau. (Ou seria por estar a bom recato das beligerâncias do interior da colónia? Ou para evitar novas ocupações estrangeiras? Em termos de história, isso foi anteontem, em quinhentos anos de presença portuguesa...). Ainda assim, uma avenida – não asfaltada – leva-nos, subindo, a um grande jardim público abandonado, no topo do qual se apresenta o imponente edifício que fora a Administração da colónia. Lateralmente e não muito distante havia o Hotel Turismo, pequeno mas com alguma nobreza, que fora a filial do Banco Nacional Ultramarino inaugurado em 1903 e que, agora, era a Messe de Oficiais.

Para além dos quartéis, havia as escolas, a igreja, a tipografia, o Clube dos Bombeiros com os seus matraquilhos, ping-pong e bar, onde íamos à civil beber uns copos e observar as senhoras brancas, mulheres dos outros oficiais. Junto ao cais, na baixa, havia uma piscina que só utilizei uma vez por receio daquelas águas. Melhor que tudo era o restaurante de portugueses onde, quando era possível, tirávamos a barriga e a alma de misérias.

Esta pequena urbe empoeirada e quente não é nada do que tinha imaginado mas, nas horas amenas dos fins de tarde, dava-me imenso prazer deambular pelas suas ruas quase desertas, apreciando as suas casas coloniais, muito abandonadas, com as sua varandas típicas, e ir descendo até ao cais onde me sentava sozinho a assistir ao pôr-do-sol, imaginando as praias da minha Figueira da Foz. Depois, lembrava-me que estava sentado ao contrário, virado para o canal de Bolama e para o continente, e que à minha esquerda tinha o norte e não o sul, e levantava-me irritado e virava costas. Para mais, dali de frente, de S. João, é que têm partido os mísseis do PAIGC nos ataques à cidade, segundo nos dizem, para susto dos periquitos. Mas, quando podia, voltava lá.

Nesses entardeceres cálidos e perfumados mas cheios de luz, era um espectáculo apreciar os bandos de morcegos, aos milhares, num esvoaçar barulhento e nervoso. Tudo era novidade. E os abutres (jagudis) com o seu ar decrépito nos ramos secos das árvores? Quando escurecia continuavam a ver-se as suas silhuetas, atentas e diligentes, para bem da salubridade da cidade.

O que para mim foi mais desagradável, quase chocante, foi o primeiro contacto com os habitantes da periferia na zona ribeirinha da cidade, na quase totalidade de confissão muçulmana. Numa das minhas deambulações, passei frente às suas modestas moradias e pude ver como me olhavam quase com hostilidade, tal como em Bissau à chegada, enfiados nas suas enormes roupas brancas, barretes da mesma cor, sentados às portas (parece que nunca tinham nada para fazer...), a mascar qualquer coisa (coca?) e a cuspir para o chão. Quase que não vi mulheres (estariam a trabalhar?) mas tinham que ser muitas, já que cada homem podia ter duas, três, quatro ou mais, segundo a suas posses!... Além disso havia muitas crianças. Pude ver, ainda, nos que caminhavam, como eram muito magros e, alguns, bem altos. Outros, mais jovens, passeavam-se aos pares agarrados pelo dedo mindinho. Se fosse na Metrópole seria um escândalo, mas ali era normal e não tinha nada a ver com o que parecia.

Apesar do registo de algumas notas mais cinzentas, não fora o objectivo que ali nos tinha levado, e poderia dizer que era bom estar em Bolama. De bom grado aqui passaria a comissão, mesmo se o preço fosse ficar sem saber como era o resto da Guiné.


26 de Março a 22 de Abril de 1973 – IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional)

Relata a história do meu Batalhão: «A IAO teve lugar na ilha de Bolama de 26MAR73 a 22ABR73. Foi um período duro de instrução, em que o esforço despendido, não terá talvez correspondido totalmente aos resultados obtidos, mas melhorou substancialmente a sua preparação».

Realmente, ainda antes de irmos para o interior da ilha, ali bem junto da cidade começaram exercícios bem duros, como atravessar na maré baixa zonas de lodo a dar pela cintura, com armas às costas e demais equipamentos. Era até desfalecer. Tive o privilégio de me poupar a parte destes exercícios por ter iniciado um período de aperfeiçoamento da prática com minas e explosivos, a minha especialidade.

Ainda na cidade de Bolama, um dia marcou de forma diferente a rotina dos afazeres da preparação militar. Foi a chegada do General Spínola (Caco-Baldé, como era conhecido), para dar as boas vindas ao Batalhão.


27 de Março de 1973 – (terça-feira)[ou dia 28?] – Chegada do General Spínola

Há muito que todo o Batalhão se encontrava em formatura frente ao edifício da Administração, no topo do grande jardim central de Bolama, aguardando a chegada do General. A meio da manhã já a temperatura começava a tornar-se insuportável, e a exposição ao sol e a quase imobilidade, não tardaria a fazer as primeiras vítimas de insolação. Finalmente ouve-se um helicóptero e não muito depois surgiu o General com o seu séquito. Aguardavam-no individualidades militares e os chefes nativos das tabancas locais. Provavelmente também representantes da Igreja, não recordo.

Enfim, toda a escadaria do edifício da Administração estava repleta de individualidades para assistir à cerimónia que não passava de uma rotina para a maioria deles. Essa rotina compreendia a apresentação do Batalhão a sua Excelência, a passagem de revista às tropas, o discurso de boas vindas e o desfile em parada. Tudo muito solene e rígido como convinha, porque sua Excelência era o Comandante-Chefe de toda a tropa na Guiné e o Governador da Província Ultramarina da Guiné. Todos estavam suspensos dos seus gestos, das suas palavras e do fuzilamento dos seus olhares. Éramos muitos, já enervados, para um só actor: autoritário, arrogante e vaidoso.

Bolama, 27 de Março de 1973 – Desfile perante o General Spínola, da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4513

4.º Grupo de Combate comigo à frente seguido dos dois Furriéis do Grupo

E as coisas começaram a não correr muito bem logo no início, na apresentação do Batalhão. Como era da praxe, o Comandante do Batalhão, TCor C. A. S., colocado na frente das tropas, em continência, apresentou o Batalhão. Para surpresa de todos, com um berro, o General disse:

- Centre-se em relação ao Batalhão!.

Desprevenido, o Tenente Coronel, olhou à esquerda, olhou à direita e deu uns passos laterais tentando centrar-se melhor. Repetiu a continência, repetiu o pedido de apresentação e, o General, no mesmo tom de voz, repetiu a ordem para que centrasse em relação ao Batalhão. Parecia demais para ser verdade, mas era o que estava a acontecer. Puro e gratuito achincalhamento na presença de todos os subordinados de um militar que fora o Comandante do Regimento de Infantaria das Caldas da Rainha, (meu comandante aí), entidade militar de respeito naquela Unidade e em todos os actos públicos da referida cidade, enfim, ali reduzido a um militarzeco desautorizado perante todos os homens que era suposto vir a comandar. (Talvez por isto não tenha comandado nada, porque logo após o final da IAO, mas já em Aldeia Formosa, foi evacuado para a Metrópole por motivo de doença em que nunca acreditei).

Como me tinham prevenido os “velhinhos” de Bolama, com ar de gozo, o discurso que o General faria às tropas, começaria assim: «Conheço-vos a todos! É como se tivesse vindo convosco no barco. Etc., etc.» 

E o General disse-nos do alto da escadaria: «Conheço-vos a todos! É como se tivesse vindo convosco no barco. Também eu sou um soldado como vocês! Etc. etc.». (Por sermos assim uns soldados tão iguais, é que ele tratou o Tenente Coronel daquela maneira...). 

Prosseguiu o discurso e, no final deste, (penso que foi por esta ordem), desceu das alturas e passou em revista as tropas. Também neste caso os “velhinhos” tinham prevenido: «Ele vai deslizar na vossa frente em passo curto e não vai tirar os olhos das vossas caras. A espaços, pára, e fixa com tal profundidade os olhos de quem tem na frente que, não raro, o coitado desmaia e cai-lhe aos pés... Especial atenção aos Alferes!, diziam ainda».

E assim foi. Não recordo se alguém desmaiou, mas foi como me tinham dito. Claro que o estado de quase insolação também ajudava. Por acaso também parou na minha frente, com o caco a brilhar de um lado e do outro lado o olho a vazar-me profundamente, as comissuras dos lábios torcidas para baixo e um semblante tétrico. Não era mais alto do que eu. Mantive-me firme olhando-o com a mesma intensidade, mas evitando ares de desafio que poderiam deixar-me marcado na sua memória. Mas é verdade que me incomodou.
(...)

[A este propósito, talvez venha a calhar um dia, tecer alguns comentários sobre a minha inadequação (intrínseca) ao serviço militar e à sua hierarquia, apesar do respeito que me merecem aqueles que seguem esse modo de vida. Pode ser que até dê uma boa polémica...].

Acabado o discurso seguiu-se o desfile das tropas. Junto uma fotografia e um corte da mesma com o Grupo de Combate a desfilar.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14373: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (1): Embarque para a Guiné, 16 de Março de 1973

terça-feira, 19 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8134: Memórias de um ex-combatente (2): O desembarque, a viagem e a estadia no Cumeré (Manuel Sousa)

1. Segunda parte das Memórias de um ex-combatente, trabalho enviado pelo nosso camarada Manuel Sousa* (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma), enviado em mensagem do dia 15 de Abril de 2011:


MEMÓRIAS DE UM EX-COMBATENTE (2)

O desembarque e a viagem até ao Cumeré

Atracou o navio ao porto de Bissau no dia seguinte de manhã cedo, onde desembarcaram os contingentes militares.

O meu Batalhão, o 4512, seguiu em coluna de viaturas em direcção ao Cumeré, a cerca de 40 quilómetros, atravessando primeiro a cidade, passando pelo Hospital Militar, pelo aeroporto de Bissalanca, Safim, Nhacra, por aí fora e, ao longo do percurso, fui registando sensações que ainda hoje tenho bem presentes na memória:

As populações indígenas e os seus trajes, - ora já a trabalhar nas bolanhas ao longo da estrada, ora agrupadas na berma a verem passar a coluna - os seus instrumentos agrícolas, especialmente a sua inseparável catana, a terra vermelha e os baga-bagas, o cheiro a terra seca e a capim queimado (era a época seca), as rectas intermináveis e onduladas da estrada, a neblina do calor intenso que se começava a sentir, à medida que o sol se levantava no oriente, não obstante de manhã ter estado um pouco frio, o aparecimento aqui e ali dos primatas, a plumagem e o canto das aves, etc.

Enfim, era o primeiro contacto com terras e culturas diferentes.

Chegados ao Cumeré, ali junto ao rio Geba, fomos instalados no campo de futebol em tendas, por não haver instalações disponíveis, por estarem ocupadas por militares em fim de comissão a aguardarem transporte para a metrópole.

Era um calor insuportável que se tentava atenuar pela frescura de uma cerveja, mas que tão difícil era obtê-la em intermináveis filas para o bar.


O meu achado

Um dia ou dois depois, fui incluído num grupo de militares recém-chegados para proceder ao arrumo e limpeza de uma das casernas que entretanto ficou de vago.

A desordem e o desarrumo era total, provocadas pela compreensível efusiva alegria dos“velhinhos” na última noite que ali passaram antes de embarcarem rumo à metrópole, precisamente no paquete Uíge que nos tinha levado.

Ao varrer sob uma das camas, entre papéis e poeira, vislumbrei algo minúsculo que me despertou a atenção.

Apanhei então uma pequena medalha em ouro, normalmente usada num fio ao pescoço, que ainda hoje guardo como relíquia, com a inscrição “Deus te Guarde”.

Uma medalha que teve comissão dobrada. Guardou alguém antes e continuou a proteger-me a mim depois.


O primeiro Natal na Guiné

Cerca de dez dias depois aproximou-se o Natal.

Na noite de consoada, já durante a instrução do IAO, o meu Pelotão pernoitou no mato, entre o Cumeré e Nhacra, onde, ali naquela zona, o nosso principal inimigo eram os mosquitos, as chamadas melgas, que nos deixavam o corpo numa autêntica chaga, por muito repelente que se aplicasse nas zonas descobertas, nos braços e no rosto.

Regressámos ao quartel no dia de Natal de manhã.

À hora do almoço, reparei que nas paredes do refeitório estavam afixados alguns motivos de natal.

Que Natal tão estranho! Não era só por estar longe dos meus familiares, mas porque para mim o Natal estava associado ao frio. A 40 graus de temperatura, pensava eu, não podia ser Natal.


Os turnos do camarada “porquinha”

Numa das muitas noites que ficámos no mato ali nas imediações de Nhacra, no decorrer do IAO, embora não houvesse grande risco de contacto com o IN, eram levadas a preceito todas as regras de segurança do Pelotão, preparando-nos assim, no âmbito do referido IAO, para a realidade futura que nos esperava no local de destino operacional.

Durante a noite, para uns descansarem, em cada equipa de um Cabo e quatro Soldados, um avançava para a frente uns passos, cerca de 5 a 10 metros, no meio do mato, e ficava de vigia em turnos de duas horas.

No silêncio duma dessa noites, ouvindo-se apenas em fundo o som dos batuques das tabancas ali próximas, ficámos sobressaltados quando o camarada “porquinha”, o vigia àquela hora, se lançou literalmente sobre nós, numa espécie de vala onde descansávamos, de tal modo em pânico que mal podia gritar:

- Ai que aí vêm eles…, aí vêm eles.

Perante este alerta de desespero, todo o pelotão se movimentou rapidamente e tomou uma posição de defesa para o que desse e viesse.

Entretanto apercebemo-nos, de facto, da presença de alguns “turras”já em debandada, mas deu para perceber que eles estavam disfarçados de esquilos.

Conhecida a fraqueza do “porquinha”, num dos dias imediatamente a seguir, no mesmo local, a sua coragem foi posta de novo à prova:

À hora do turno dele, o Cabo da equipa, o Martins, pegou numa garrafa de cerveja vazia, que tinha acabado de beber a acompanhar a ração de combate e, já com a intenção de o assustar, arremessou a mesma garrafa para longe, sobre o local onde se encontrava o “porquinha” em cujo trajecto o gargalo da garrafa em contacto com o ar provocou um silvo característico.

Qual corredor de meia maratona seria tão rápido como o “porquinha” que imediatamente correu e se precipitou em pânico sobre nós, completamente gago.

Os risos duraram até de manhã.

Gostaria imenso de reencontrar esse meu camarada, de seu nome verdadeiro, Salvador Rodrigues da Costa. À parte os seus receios, era um bom companheiro.


A viagem em ziguezague

Próximo do fim do IAO, nos primeiros dias de Janeiro de 1973, o Comando facultou-nos a passagem de um dia de folga em Bissau, disponibilizando-nos o respectivo transporte.

Boina, camisa n.º 1, calções, meias até ao joelho e sapato era o fardamento obrigatório.

A mesma indumentária punha em evidência a brancura das nossas pernas que denunciava o nosso escasso tempo de Guiné, que nos conferia o estatuto de “periquitos” de que os “velhinhos” tanto gostavam de nos lembrar.

Como transporte, coube-me em sorte um Unimog 411, o chamado “burrinho do mato”, conduzido pelo Soldado da minha Companhia, o Fernandes.

Saímos a porta de armas do Cumeré com destino a Bissau e entrámos na tal estrada, cujo traçado, como acima referi, é de longas rectas.

Só que o unimog era tão velho, com tanta folga no volante, e o condutor tinha tão pouca experiência, que não conseguimos fazer a viagem, quer de ida, quer do regresso, alinhados na estrada.

Ora guinava para a esquerda até à berma, ora guinava para a direita até à outra berma, a estrada era toda nossa e, com o consequente desequilíbrio provocado pelo peso dos seis ou oito militares que seguiam nos bancos laterais a trás, várias vezes estivemos prestes a despistar-nos para fora da via.

Conclusão: Um dia de canseira e preocupação. Num percurso de cerca de 80 quilómetros, ida e volta, devíamos ter percorrido quase o dobro com todas aquelas curvas, com muitas paragens forçadas pelo meio para evitar o despiste.


Desabafos do “Rio Mau”

Albino de Lima e Sá na foto, o primeiro da esquerda na fila de trás.

Albino de Lima e Sá de seu nome completo, natural de uma localidade chamada Rio Mau, algures em Vila Verde ou Viana do Castelo, no alto Minho, também conhecido por “santa mãe”, pelos motivos que adiante vereis, integrava também o meu Pelotão.

Um militar alto, bem constituído, de semblante carregado, de voz grave.

Quer no decorrer do IAO no Cumeré, quer mais tarde em Jumbembém na nossa zona operacional, quando o Pelotão se encontrava no mato, e principalmente de noite, era-nos exigido o máximo silêncio para a nossa própria segurança.

Por diversas vezes o “Rio Mau”, provavelmente em momentos de nostalgia, quiçá de desânimo, quebrava todas as regras de segurança e, com aquela voz grave, profunda, que no silêncio da noite parecia a voz de um fantasma, desabafava:

- Ai sannnnnta mãeeee, caraaaaalho...

Este camarada ex-combatente foi, ou continua a ser, motorista de transportes públicos em Cascais.

Num dos encontros de convívio dos ex-combatentes, a única vez que ele compareceu, já tive oportunidade de lhe relembrar estes seus sentidos desabafos.

A 12 de Janeiro de 1973, terminado o IAO, o Batalhão seguiu para o seu destino operacional, Farim, cuja viagem foi relatada por mim em O MISTÉRIO DO RIO CACHEU*.
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Notas de CV:

Vd. poste anterior de 18 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8129: Memórias de um ex-combatente (1): O desenrasca e a chegada a Bissau (Manuel Sousa)

(*) Vd. poste de 31 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P8020: Tabanca Grande (273): Manuel Luís Rodrigues Sousa, ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 (Jumbembem, 1973/74)

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4421: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (2): O IAO em Santa Margarida

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Maio de 2009:

Olá Carlos,
Em anexo encontrarás a continuação da minha experiência militar.
Como sempre deixo-te à vontade para fazeres com ela o que muito bem de aprouver.
Um abraço do
José Câmara


Memórias e histórias minhas

2 - O IAO em Santa Margarida

Três apitos! Saudação tradicional de despedida dos barcos que aproavam à Ilha das Flores. A âncora começou a subir na proa do n/m Ponta Delgada. Extremeci. O coração apertou… de ternura! Por uma lágrima que quisera saborear. Comigo, bem escondido no meu coração, levava uma linda recordação.

Olhei a minha ilha uma vez mais. Relutantemente, as costas lhe fui virando…

Um aspecto da linda ilha das Flores, Açores

Juntei-me aos outros camaradas oriundos das ilhas das Flores e Corvo que, tal como eu, estavam mobilizados, e íam juntar-se às suas Companhias, incluindo a CCaç 3327. Na chegada à Terceira, um piquete militar esperava por nós. Guias de marcha em ordem, passagens confirmadas. De repente, sem esperar, o som inconfundível de calcanhares à posição de sentido. O Aspirante de serviço, com a dignidade própria de um camarada de armas, estendeu a mão num cumprimento, desejou-nos boa sorte. Jamais esqueci esse gesto simples, mas cheio de um sigificado muito especial. Afinal eramos todos irmãos.

Ao largo, majestosamente boiando na baía de Angra, o luxuoso paquete Funchal esperava por nós. Esse navio, no seu giro tradicional, passaria pela Horta, Ponta Delgada, Funchal e Lisboa. Aqui, em perfeito contraste com o que se tinha passado na Terceira, não havia piquete, estafeta ou qualquer outro tipo de apoio militar. De malas às costas lá segui com os outros militares que me acompanhavam para o Depósito Geral de Adidos. Ali deparei com outro desastre, ou melhor, com uma afronta: não sabiam da chegada dos militares, mas sabiam que íamos para Santa Margarida no dia seguinte. Desenrasquem-se, foi a palavra de ordem. Foi isso que se fez, até à hora de tomar o combóio, no dia seguinte para Santa Margarida.

12/1970 – José Câmara a bordo do n/m Funchal, em frente à cidade com o mesmo nome, a caminho do IAO

A chegada àquele campo militar trouxe um pouco de comoção. Os meus camaradas desdobravam-se a contarem as suas experiências do IAO. Porém, não foi o retrato da instrução o que mais mexeu comigo. A grande notícia no campo militar era a deserção de três oficiais mobilizados para a Guiné. O madeirense Gonçalves, Aspirante a Oficial Miliciano, Comandante do 3.º GComb da CCaç 3327, era um dos oficiais desertores. Servi, ainda na Terceira, durante algum tempo debaixo do seu comando. Considerava-o um bom oficial, e nunca pensei ser capaz (e desejoso) de dar o salto. Enganei-me! A atitude daquele oficial trouxe-me a certeza de uma outra realidade: eu nunca seria capaz de abandonar os meus soldados, que treinei e que confiavam em mim para os guiar em terras da Guiné.

O IAO não teve, em mim, quaisquer proveitos práticos. Porque cheguei mais tarde, e porque no pouco tempo que estive em Santa Margarida, não me apercebi de nada ser diferente daquilo que já se fazia no Monte Brasil, Ilha Terceira. Os exercícios com o apoio de helicópteros foi a novidade programada mas, até isso, foi cancelado. Passavamos o tempo em exercícios de ginástica e ordem unida, treinos de penetração, progressão, patrulhamentos, emboscadas, e pouco mais. O mais importante, para mim, foi a manutenção do poder físico e da disciplina militar. Foi num desses exercícios que conheci o distinto e prestigiado coronel Maçanita, Comandante do campo militar. Observou o meu Grupo durante algum alguns exercícios, fez alguns comentários, desejou-nos sorte e prosseguiu a sua vistoria.

12/1970 – José Câmara no IAO, Santa Margarida

Mas nem tudo foi monótono no IAO. Três eventos muito importantes marcaram a minha estadia em Santa Margarida: a visita ao Santuário de Fátima, as festas de Natal e Ano Novo, e o festival da Batatada entre açorianos e madeirenses.

A visita que a Companhia fez ao Santuário de Fátima, foi o evento mais importante do IAO. Para os açorianos, profundamente religiosos, essa visita acabou por ser uma autêntica peregrinação de fé cristã. A magnitude do lugar, o silêncio, o simbolismo e as manifestações de fé que constantemente se podem observar são deveras impressionantes. Nesta visita ao Santuário, com cerca de quatro contos que conseguimos juntar entre os militares da Companhia, foi adequirida e abençoada uma linda imagem do Sagrado Coração de Maria, que nos acompanhou e protegeu durante toda a comissão. Hoje, a imagem, como muitas outras imagens que fizeram comissão no ultramar, faz parte do espólio religioso da igreja de São João Batptista, que se encontra edificada no Castelo, em Angra do Heroísmo.

Outro evento importante, para nós açorianos, foi a celebração do Natal de 1970 e a passagem de ano em terras de Santa Margarida. Para muitos soldados açorianos foi a primeira vez que o fizeram longe do aconchego familiar. Foi um Natal passado com saudades, tristeza e resignação. Para mim era a segunda vez que me acontecia. Mas tive uma consolação: voluntáriamente, estive de serviço contítuo à Companhia, permitindo, assim, que os meus camaradas continentais pudessem disfrutar, mais uma vez, do calor familiar, e das alegrias próprias que embelezam a época de Natal. Nunca me arrependi de o ter feito. A minha família, naquele momento, eram os militares da CCaç 3327.

Natal 1970 – Caserna da CCaç 3327 - Armas ensarilhadas e imaginação. José Câmara junto da árvore de Natal

Natal 1970 – José Câmara (Em pé – Primeiro da direita) – CCaç 3327 - A minha família

As Companhias em exercícios de IAO eram as CCaç 3325, do BII19, Funchal e as açorianas 3326, que foi para Mampatá, a 3327 (a minha) que ficou, no príncipio, em Bissau e a 3328 que foi para Bula. Com as férias de mobilização dos graduados continentais, essas Companhias ficaram decapitadas pela ausência de commandos a todos os níveis. Apenas sargentos de dia se encontravam presentes. As relações entre açorianos e madeirenses, que usufruiam do mesmo refeitório, começaram a azedar com a recusa dos madeirenses em descascar as suas batatas.

Pelo facto de ser açoriano, julgo eu, a minha ajuda foi solicitada, para ajudar a resolver o problema das batatas, ou melhor, da recusa pelos militares madeirenses em descascar as suas batatas. Em voz bem alta, e para que não houvesse dúvidas, dei ordem para que as batatas descascadas e por descascar fossem depositadas no mesmo caldeiro, cozidas e servidas ao jantar. Seguidamente, e com os sargentos de dia das outras Companhias, saí do refeitório, e fechei a porta. Nunca soube o que se passou a seguir. Ao jantar as batatas foram servidas descascadas, havia sorrisos, e, por incrível que pareça, vi açorianos e madeirenses sentados na mesma mesa. Tenho que confessar: o Sagrado Coração de Maria tinha feito o seu primeiro milagre: tinha tornado uma ordem muito perigosa em remédio santo. Julgo que Lhe agradeci

No príncipio do mês de Janeiro o frio começou a apertar, e apareceram os primeiros flocos de neve. Os exercícios de IAO cessaram e, começamos a contagem dos dias para a partida para a Guiné. Soubemos que o embarque estava marcado para o dia 5 de Janeiro de 1971. Por razões que desconheço só veio a acontecer no dia 21 de Janeiro de 1971.

Entretanto, mais uma surpresa me estava reservada. Fui nomeado, conjuntamente com o Aspirante Francisco João Magalhães, para fazer a vistoria do barco que nos levaria à Guiné. No dia da minha partida para Lisboa o Comandante da Companhia, Cap. Mil. Rogério Rebocho Alves, chamou-me ao seu gabinete, e mandou-me por as divisas de Furriel. Excusado será dizer que, ainda hoje, o braço direito me doi de responder a tanta pala feita com a mão esquerda: o gozo normal, nestas circunstâncias, dos meus camaradas. Porém, quando em frente do espelho as vi nos meus ombros, aquilo que podia ter sido um sentimento de honra e orgulho, foi substituído pelo peso acrescido das responsabilidades que se advinhavam: comandar tropas no teatro de guerra: a Guiné!

A 19 de Janeiro eu deixava Santa Margarida com destino a Lisboa no cumprimento da minha missão: vistoriar as acomodações do n/m Angra do Heroísmo, da Empresa Insulana de Navegação, que iria fazer, segundo se dizia, a sua viagem inaugural como navio transporte de tropas. O resto da Companhia chegaria a Lisboa dois dias depois.

NAVIO ANGRA DO HEROISMO


Tipo... Navio de passageiros de 1 hélice
Construtor... Deutsche Werft A.G. (construção número 690)
Local construção... Hamburgo
Ano de construção... 1954-55
Ano de abate... 1974
Porto de registo... Lisboa
Número de registo... I 358
Indicativo de chamada... C S B P
Comprimento ff... 152,71 m
Comprimento pp... 138,34 m
Boca... 19,87 m
Pontal... 11,00 m
Calado máximo... 8,71 m
Capacidade de carga... 4 porões com capacidade para 9.019 m3 de carga, incluíndo 536 m3 de carga frigorífica
Tonelagem... 10.187 TAB, 6.230 TAL, 6.870 TPB, 13.900 T deslocamento
Aparelho propulsor... Um grupo de turbinas a vapor AEG, construídas em Berlim Ocidental, por Allgemeine Electric Gesellschft, 2 caldeiras.
Potência... 11.500 shp a 119 r.p.m.
Velocidade máxima... 19 nós
Velocidade normal... 18 nós
Classificação... +100A1 LRS
Passageiros... Alojamentos para 80 em primeira classe, 43 em turistica A, 80 turistica B e 120 em turistica C, no total de 323 passageiros.
Tripulantes... 139

Photo and Copyright Carlos Russo Belo
http://navios.no.sapo.pt/angrah.html

O resto da Companhia chegaria a Lisboa dois dias depois.
José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4353: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (1): O início do Serviço Militar

Em tempo:
Poste rectificado em 29 de Maio por ter sido publicado originalmente com parte do texto suprimido.
As minhas desculpas ao José da Câmara
CV

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3484: História da CART 2340 (Ferreira Neto) (6): Relatório de treino operacional

1. Mensagem do nosso camarada Ferreira Neto, ex-Cap Mil da CART 2340, (Canjambari, Jumbembem e Nhacra, 1968/69), com data de 15 de Novembro de 2008:

Caro Vinhal:
Continuando a rebuscar as minhas coisas, eis que topo o meu relatório de 17 de Dezembro de 1967, referente ao treino operacional antes da partida para a Guiné.
Cumprimentos generalizados
F. Neto


RELATÓRIO

1. Especialidade da Escola de Recrutas

1 - Deficiências notadas

1.1 - Má preparação dos recrutas apresentados para frequentar a parte da especialidade. Esta má preparação da parte geral notou-se até na simples marcha e ordem unida, factores estes que indicam a falta de disciplina.

1.2 - A instrução da especialidade não pode ser dada em boas condições, pelo facto de não haver instalações adequadas no quartel, mormente nas primeiras semanas em que houve sobreposição com o batalhão da escola anterior. Por este motivo o pessoal só pode dispor de armamento e das instalações, depois da partida do pessoal do batalhão.

1.3 - Houve prejuízo na instrução motivada pela festa de despedida do pessoal do batalhão.

1.4 - A falta de locais apropriados para a instrução, principalmente no que se refere a parte da táctica, foi compensada embora tardiamente nas duas últimas semanas, pelo facto de passar a ser ministrada no campo, fora do quartel.

1.5 - A falta do armamento (metralhadoras, lança-granadas, morteiros), motivou perturbações na instrução, que se resolveu, alterando os horários de instrução das companhias, de forma a todas se poderem servir do armamento disponível.

2 - Instrução de aperfeiçoamento operacional – IAO

Após a semana de preparação com vista à deslocação para o campo onde se fariam os exercícios, e em que se fez o tiro na pista de combate, deslocou-se a companhia para a zona de estacionamento a cerca de 10km do quartel. Foram postos à disposição da companhia os seguintes materiais: Material de acampamento que foi suficiente, cozinha rodada, rádios, munições, viaturas e explosivos. As deficiências foram notórias, mormente no que respeita:

2.1 - Viaturas
3 GMC sem cobertura, uma das quais funcionando em más condições. A viatura para reconhecimento não esteve totalmente à disposição da companhia o que motivou que não se pudessem fazer a maior parte dos reconhecimentos para os exercícios. Não foi fornecido um autotanque para a companhia, sendo o abastecimento de água durante a maior parte do tempo feito por uma só viatura para as três companhias. No entanto o abastecimento foi bem planeado ao ponto de não se fazer sentir a falta de água.

2.2 – Armamento
A parte de armamento pesado (lança granadas, morteiros, metralhadoras, etc.) não foi fornecida, sendo as razões alegadas a sua possível deterioração durante os exercícios. Todos os soldados foram armados de espingarda Mauser, tendo os graduados espingarda automática G3.

2.3 – Munições
Foram recebidas instruções para evitar ao máximo o seu consumo.

2.2 – Explosivos
Foram fornecidos em quantidade razoável.

2.3 – Rádios
Foram fornecidos três rádios, um THC, um NA/PRC e um outro de tipo desconhecido para os operadores.
É certo que todos eles podiam fazer a ligação entre si, mas até uma distância não superior a 2km.
Por este motivo não foi possível tirar rendimento dos exercícios mormente na parte de ligação, como também não foi possível manter o aquartelamento (PC) informado acerca das operações efectuadas pelos pelotões empenhados nos exercícios.
Todos os exercícios foram planeados de véspera, bem como criticados após a sua execução.

No dia 27, fez-se o deslocamento para a zona de estacionamento n.º 1, a 10km do quartel, fez-se a instalação e montagem do dispositivo de segurança. Durante a instalação houve flagelação ao acampamento, tendo o pessoal actuado em conformidade. Durante a refeição houve novos ataques.

Dia 28, deslocamento de dois pelotões para o contacto com o inimigo e o consequente ataque.

Dia 29, montou-se uma série de emboscadas, tendo duas delas funcionado, a 1.ª com êxito, uma segunda foi um fracasso devido à má posição das forças empenhadas. Neste mesmo dia, dois pelotões fizeram o patrulhamento de itinerários, dentro da zona de acção da companhia.

Dia 30, foram efectuados dois golpes de mão distintos, o pessoal empenhado nas acções foram dois pelotões, tendo duas secções de um terceiro pelotão simbolizado o inimigo.
Neste mesmo dia iniciou-se a nomadização à base de dois pelotões, esta nomadização prolongou-se até ao dia seguinte. Este exercício não teve um carácter real, uma vez que devido a dificuldades logísticas não foi possível deslocar a cozinha rodada a fim de alimentar o pessoal empenhado na acção. Desta forma o pessoal às horas da refeição regressava ao acampamento, sendo o exercício neutralizado durante este período. Se houvesse rações de combate distribuídas, seria possível tirar maior rendimento do exercício.

Dia 2 de Dezembro, organizou-se a protecção de pontos sensíveis, sendo o ponto escolhido a fábrica de pimentão, próxima da estação de Torres Novas. Foi talvez o exercício melhor executado no aspecto técnico. Duas secções simbolizando o inimigo não conseguiram danificar o objectivo. As forças empenhadas na defesa foram dois pelotões.

Dia 3, foi destinado a limpeza do material e descanso do pessoal. Aproveitou-se para fazer crítica construtiva acerca dos exercícios efectuados durante a semana.

Dia 4, a companhia deslocou-se para o local de estacionamento n.º 2, a 20km do quartel. Fez a sua instalação e montou o seu dispositivo de segurança.

Dia 5, iniciou-se a nomadização da companhia que foi guiada pelo Cmdt respectivo. Este exercício foi de bastante utilidade. Devido às mesmas dificuldades logísticas, este exercício foi interrompido a fim do pessoal se alimentar.
Devido à alteração do horário, os exercícios de limpeza de uma zona e limpeza de uma povoação não se efectuaram. O pessoal continuou a sua nomadização durante toda a noite de dia 5 para o dia 6, regressando cerca das 8H00 ao acampamento.
Cerca das 16H00, houve uma demonstração sobre a forma de o pessoal se aproximar a um helicóptero.
Seguindo-se pelas 18H30, o deslocamento da companhia para o GACA 2.

Dia 7, durante a manhã, na serra do Aire, o pessoal do pelotão de acompanhamento, fez fogo real com morteiro e lança granadas foguete.
Durante a tarde estava previsto o lançamento de granadas, ofensivas e defensivas, devido ao adiantado da hora não se pode realizar.
Todos os exercícios no campo foram completados com acções do inimigo.

Quartel em Torres Novas, 17 de Dezembro de 1967

O Cmd da Cia. 2340
Joaquim Lúcio Ferreira Neto
Cap mil Art.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P2101: História da CART 2340 (Ferreira Neto) (5): Punições e Louvores

Guiné 63/74 - P3480: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (2): IAO, Bolama, Outubro de 1970

1. Mensagem do nosso camarada Luis Faria, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, datada de 9 de Novembro de 2008, com a segunda viagem às suas memórias (*).

Caros Luís e Vinhal
Em anexo segue mais um capítulo da Viagem...
Um abraço e parabéns extensivo a toda a Equipa
Bem hajam
Luis S Faria




BOLAMA - IAO (Instrução Aperfeiçoamento Operacional)

Ao largo, no Pijiguiti, após 12 dias de viagem no luxuoso Paquete inclinado - em que o passatempo era mergulhar na piscina imaginária, jogar ao atira garrafas bebidas borda fora, mentalização à soldadagem, umas leituras e recordações – dou uma escapada a Bissau. Os Praças não tiveram essa sorte. Umas voltitas, umas cervejolas (à altura ainda não sabia que eram bazucas) acompanhadas com uns tremoços que, coisa esquisita, mais me pareceram camarões! Gasto o chamado patacão e tomado o contacto com a nova realidade, há que regressar ao Paquete… para pernoitar, pois o tempo esgotou-se e não estava ali para férias.

Na manhã seguinte, a minha CCaç 2791 (FORÇA) rumaria à ilha de Bolama a bordo de uma LDG, para início do IAO.

Após a confusão ordenada de embarque na dita LDG e depois de uns tiros da sua arma pesada - se foi para porem os periquitos à rasca, conseguiram-no - chegamos à que se dizia sossegada ilha de Bolama.

Instalado e ao fazer os primeiros reconhecimentos à zona de comes e bebes e outros… tive oportunidade de sentir a que teria sido uma agradável estância de férias, - com a sua boa piscina, com aquelas praias, aquele mar, a vegetação com aqueles palmares, aquela fauna (a macacada, as aves do paraíso, as iguanas…) - e os primeiros contactos com a população local, olhando com alguma desconfiança os homens que, sabia lá (?!), podiam ser turras, e com olhos de ver, lindas Bajudas com as suas mamitas (?) ao léu e que não seriam turras com certeza (!!)

Enfim…

Mas a guerra estava lá, dura e impiedos, e eu queria que o 4.º Grupo, que comandava, coadjuvado pelo J. Fontinha (Op Esp) e o M. Chaves (açoriano), estivesse à altura de a enfrentar sem baixas, ou com as menos possível. Não queria que famílias chorassem por esse motivo.

Para isso era preciso trabalhar a sério com a rapaziada (Jericada como dizia/diz com ternura o meu grande amigo Fur Op Esp Castro, do 2.º Gr) nas técnicas de combate, assalto, progressão, observação e outras.

Ordem unida? Nessa matéria (detestada) necessária à disciplina, autocontrolo, unidade de grupo e mais… a rapaziada fez dela uma bandeira para mostrar ao resto da Companhia que o 4.º Grupo, o mais recente, mais pequeno (salvo erro, 20 elementos) e comandado por Furriéis tinha uma garra do caraças, e não ficava atrás dos outros, antes pelo contrário! (Eh Pessoal… e na parada de apresentação ao Gen Spínola? O General até se passou com aqueles Ombro-arma e batimentos recordam? Isto para não falar no nosso Cap Mil Mamede de Sousa. Foi demais! Quase que rachávamos a parada (!!!)

Com esta passagem não quero dizer que houvesse rivalidades ou equiparados na 2791. Pelo contrário, era uma Companhia muitíssimo unida. Para isso contribuíram os seus Quadros operacionais iniciais, que se davam muito bem e interagiam muito com o pessoal.

Como dizia, havia que trabalhar no duro e mentalizar a rapaziada de que o esforço dispendido podia fazer a diferença entre viver e …!

Atendendo a que o Fontinha e eu tínhamos treino especial e o Chaves nos acompanhava, o IAO foi realmente puxado, especialmente em Treino de combate, progressão, observação e auscultação do meio envolvente e outras. Tudo foi treinado até atingirmos a autoconfiança individual e de grupo. E a morfologia da ilha prestava-se bastante a esse treino.

Durante este período e para nos lembrar que havia guerra, que nem em Bolama se estava 100% seguro e não se podia facilitar, fomos brindados com um míssil numa hora de refeição, que nos fez abrigar por baixo das mesas e onde possível. Caiu perto e felizmente sem consequências.

Claro que também houve muitos momentos de descontracção. Convívios, cerveja, uísque, vinho, camarão e outros manjares, como provam as fotos. E esses eram momentos em que libertávamos o nosso Eu numa sã camaradagem e amizade, com conversas afiadas em que as estórias e as réplicas levavam por norma à gargalhada. Aquela do Alf Quintas, Op Esp do 1.º Grupo, conduzir um Unimog carregado de guineenses a toda a velocidade pela picada, ter chegado ao destino e ficar espantado por não estar mais ninguém na viatura (tinham saltado ou caído, felizmente sem problemas), ainda por vezes hoje é recordada.

E havia também os momentos em que se desabafava com os mais chegados, dos amores e desamores, das saudades, de situações vividas, dos anseios, dos medos e receios, normal na Juventude, que nos estava a fugir muito depressa.

E assim se foi esgotando o tempo na paradisíaca ilha e, a 30 de Outubro de 1970, embarcámos de novo numa LDG com destino a Bissau, de onde partimos em coluna auto para Bula.

Um abraço a todos
Luís S Faria


Bolama > Outubro de 1970 > Luís Faria

Bolama > Luís Faria na marginal

Furrielada com Oficiais e Sargentos > Ao fundo com cigarro Faria; ao lado e por ordem decrescente, de alturas Fontinha; Urbano (enfermeiro); Alf Quintas; Sarg Guerreiro; Mesquita; Ferreira. À minha frente, sentado, o Cap Mamede, à esqerda o Castro, Lourenço (TRMS), Alf Barros (?); Mealha (?) (Mecânico) e Belchiorinho (Vaguemestre)

Furrielada > Da esquerda: Madaleno, Belchiorinho; Mealha; Ferreira; Lourenço Fontinha; eu; Urbano; ? ; Marques; 1.º Cabo Trms Ribeiro
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3397: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (1): A ida, do RI5 a Bissau