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sexta-feira, 28 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24512: Notas de leitura (1601): "Palavras e Silêncios – Memórias Femininas da Presença Militar no Ultramar", por Ana Maria Taveira, Maria Armanda Taveira e Maria de Fátima Pina; Âncora Editora, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
O assunto está longe de ser inédito, mas tanto quanto me é dado saber a metodologia é original para abarcar diferentes gerações, posturas que gradualmente se irão demarcando ao longo de sucessivas décadas, este precioso alfobre de mentalidades ajudará seguramente o historiador a olhar de maneira diferente o papel da mulher dos militares que trilharam o Império. São narrativas acaloradas, a organização da obra exemplar, é tónico estimulante para debates e conferências, abre janelas para novos trabalhos, é talvez este o não menos despiciendo préstimo de "Palavras e Silêncios", uma verdadeira surpresa no panorama editorial e acertadamente no programa Fim do Império, a que estão associadas a Câmara Municipal de Oeiras, a Liga dos Combatentes e a Comissão Portuguesa de História Militar.

Um abraço do
Mário


Aquelas mulheres de militares portugueses que percorreram o Império e a História esquece

Mário Beja Santos

A iniciativa tem o seu travo de originalidade: três mulheres decidiram reunir 32 outras de militares portugueses que serviram na Índia, em África, em Macau e Timor, e pedir-lhes testemunhos de vida desses anos. Respeitando a ordem cronológica, vamos ouvi-las desde a Maria de Lourdes, nascida em Bragança em 1924 a Patrícia, nascida em Lourenço Marques em 1975. É um abrangente retábulo de mentalidades, do modo de encarar o seu ligar de mulher, mãe e colaboradora nesta ou naquela parcela do Império, sentir-lhes nostalgia ou melancolia, aprazimento ou mortificação nesta ou naquela experiência, mas o resultado é deveras aliciante, de questionamento obrigatório, com estas memórias femininas não há nenhuma dificuldade em perceber como se praticou uma omissão indesculpável silenciando na historiografia o papel exercido pelas mulheres dos militares, na frente ou na retaguarda. É este o valor documental de "Palavras e Silêncios – Memórias Femininas da Presença Militar no Ultramar", organizado por Ana Maria Taveira, Maria Armanda Taveira e Maria de Fátima Pina, Âncora Editora, 2020.

Mulheres cujos maridos cumpriram cinco comissões, viveram doze anos em África, viveram no Estado da Índia e dali saíram precipitadamente em 18 de dezembro de 1961, mulheres que partiram para a guerra casadas de fresco, viram partir o noivo ainda em tempo de paz que os acompanharam em tempo de guerra, mulheres de oficiais das Armas, mas também de médicos e de engenheiros. Mulheres que nasceram em Goa e que ainda hoje lutam pelos seus direitos de propriedade. Mulheres que dizem abertamente que a sua identidade foi moldada dentro dos princípios da moral cristã e dos valores da ética, transmitidos pelo meio castrense. Mulheres que ensinaram em liceus e escolas, que ajudaram nos hospitais, e mesmo depois da descolonização deram apoio a quem regressou em estado de grande aflição. Mulheres que falam num estado de grande felicidade pela experiência que tiveram ao lado do seu marido. Mulheres que conheceram a permanente itinerância, a fazer e a desfazer malas, a percorrer espaços imensos, a ter que pôr os filhos nos colégios.

E vamos, no afã da leitura, apercebendo-nos de que estas mulheres não só aprenderam línguas ou a bordar ou a cozinhar, foram ampliando o seu modo de olhar as missões dos seus maridos e a própria evolução da guerra, houve aquele moroso processo de perceber e sentir a pouca ligação entre as frentes de combate e a grande indiferença na retaguarda. Em dado momento, neste sortilégio de testemunhos, alguns deles de leitura compulsiva, há que ouvir o que Maria da Graça, nascida em Luanda em 1943, diz quanto à motivação que a levou a escrever sobre a sua vida passada:
“Em primeiro lugar, porque há muita informação sobre o que foram aqueles anos no nosso antigo Ultramar, sobre a guerra, os militares, sobre a descolonização, sobre o que foi feito ou devia ter sido feito, mas tudo numa perspetiva, não só predominantemente masculina, mas também política e documental. Ficou, nalgum esquecimento, o facto de que todos os envolvidos nos processos destes anos tinham famílias, mães, mulheres, filhas que, ou os acompanharam, ou ficaram sozinhas, tendo de gerir todas as situações que lhes surgiram. Em segundo lugar, porque, passados tantos anos, as gerações dos nossos dias têm pouca noção da dor e dos problemas que passaram os que viveram aquela época. Toda essa realidade já está muito distante, faço-o para que não fique no esquecimento. Porque tenho netos adolescentes e outros ainda mais pequenos, para quem, cada vez mais, a nossa História recente será um episódio longínquo, resolvi deixar o meu testemunho. Para que compreendam por que andámos sempre com a casa às costas, porque só acabei o meu curso 20 anos depois de o começar e, acima de tudo, para que fiquem com um olhar mais verdadeiro sobre aquela vida, a minha e a de tantas outras mulheres daquela época”.

Maria Beatriz, nascida em Setúbal em 1945, conta a sua experiência na Guiné entre 1966 e 1968. Casou, e quinze dias depois o marido partia para Farim. Quatro meses depois veio buscá-la. Viveu em Farim e lembra-se do choro das hienas como lembra o fantástico pôr-do-sol. Ouviu um ataque ao K3. O marido recebeu ordem para ir para Barro com a companhia, ela ficou em Farim, só mais tarde foi para Barro, surpreendeu-se que havia muita gente que parecia nunca ter visto uma mulher branca.
“Quando me levantei e cheguei cá fora, estavam muitas mulheres e crianças para me verem, todas me tocavam e riam. Eu levava as unhas pintadas, o que foi motivo de um grande espanto. A tropa construiu uma escola. As paredes eram de uma palha entrelaçada, o teto de zinco e as carteiras foram feitas no quartel. Veio de Bissau um quadro, e o armário da escola era um barril com uma porta, onde se guardavam os livrinhos e as lousas. Eu dava aulas na escola, às meninas, da parte da manhã, de tarde os rapazes tinham aulas dadas por um rapaz guineense, que foi educado numa Missão. Normalmente, as meninas vinham-me buscar à porta do quartel para irmos para a escola. Todas queriam ir de mão dada comigo, pelo que dava um dedo a cada uma, mas empurravam-se e zangavam-se porque eu só tinha dez dedos. Passado um tempo, houve uma operação, e eu fui. Caminhámos 50 quilómetros a pé, 25 para lá, até Canja, e 25 no regresso. Na primeira vez em que saí, quando fomos inspecionar as armadilhas, ainda levei a minha pistola à cintura, para fingir que poderia fazer qualquer coisa. Fomos a Canja, não se encontrou o acampamento inimigo que se estava à espera que existisse. O regresso é que foi uma tragédia, as pernas não queriam andar”.

Não sei se outra mulher de capitão teve experiência idêntica a esta, ela descreve com a maior das naturalidades operações e patrulhamentos, conta a história de um alferes de uma outra companhia que no início da operação disse “se a senhora vai, eu não vou”. A notícia chegou a Bissau e o Quartel-General mandou uma mensagem a perguntar se havia uma senhora branca que ia às operações. Trocaram-se mensagem em tom azedo, Bissau exigia que a senhora branca saísse dali e o capitão de Barro retorquiu: “Bem, então temos um problema. As mulheres dos meus soldados (era uma companhia de caçadores nativos) são senhoras guineenses e estão com os maridos. Se as senhoras não podem estar, o que eu vou fazer com elas?”. A resposta veio seca e terminante: “Não levanta problemas que isso não é nada consigo”.

No entretanto, o quartel foi flagelado e um outro capitão foi render o marido de Maria Beatriz. “Eu estava de camuflado, e o senhor viu-me de costas. Bateu-me no ombro e, quando me virei, ia caindo ao chão. Estava para me dizer: ‘É pá, estás com o cabelo muito grande, corta-o!’”. Depois da Guiné foi a Moçambique, mas não foi a mesma coisa. “A Guiné era como se fosse minha, criei uma forte relação afetiva com a terra e com as pessoas. Tenho muitas saudades do que lá vivi, e tive muita sorte, de ter um marido que apoiava as minhas loucuras”.

Depoimentos sumarentos, documentos de valor irrefragável, conhecíamos bem o papel das enfermeiras-paraquedistas, mas nunca se entrara nos bastidores com esta grande angular cronológica, mesmo sendo justo referir que nos últimos anos têm surgido diferentes trabalhos acerca da mulher de militares nas diferentes parcelas do Império.


Palavras e Silêncios é um trabalho inexcedível, será referência obrigatória, digo-o sem hesitar.
Investigação de Sara Primo Roque, Edições Pasárgada
As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial, por Margarida Calafate Ribeiro, Edições Afrontamento
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24501: Notas de leitura (1600): A Guiné pós-colonial e o funcionamento de um Estado “suave”: Um importante artigo de Joshua B. Forrest sobre a Guiné a caminho do multipartidarismo (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24425: Notas de leitura (1591): "Negreiros Portugueses na Rota das Índias de Castela (1541 - 1556)", por Maria da Graça A. Mateus Ventura; Edições Colibri, 1999 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
A dissertação de Mestrado de Maria da Graça Alvares Mateus Ventura contribui para contextualizar o comércio negreiro feito por mercadores portugueses tanto ao serviço dos reis da Casa de Avis como dos Áustrias, fazia-se na circulação entre Sevilha, Rios da Guiné, Santiago e as Índias Ocidentais, aquele vasto e indefinido território da Senegâmbia deu muitos ancestrais a quem vive nas Antilhas, na América Central e na América do Sul. A autora veio mesmo aos arquivos e dá-nos um quadro surpreendente sobre a participação de portugueses no tráfico negreiro na hispano-américa no período compreendido entre 1492 e 1557 e mais, ficamos a conhecer o universo de todos estes agentes que permitiu aos portugueses lançarem-se nas rotas indianas movidos por um comércio lucrativo. Uma investigação que não pode ser descurada para quem estuda o tráfico negreiro e mesmo a história da Guiné e de Cabo Verde no século XVI.

Um abraço do
Mário



Sevilha, Costa da Guiné, Cabo Verde, Índias Ocidentais, Negreiros Portugueses no século XVI

Mário Beja Santos

A dissertação de Mestrado da Maria da Graça A. Mateus Ventura teve exatamente o título da presente obra, Edições Colibri, 1999. Como escreve no prefácio o professor António Borges Coelho:
“Os navios negreiros de que se fala neste texto não vinham ainda de Angola, mas do Cacheu, da Mina, do Rio dos Escravos, do Níger e principalmente do grande entreposto e armazém que era Cabo Verde. No novo continente, os escravos negros afeiçoaram a terra e seguiram nela o preceito bíblico: crescei e multiplicai-vos. Mas os seus filhos já nasciam escravos. Na América Espanhola esperava-os o trabalho brutal nas minas de ouro e de prata. Os grandes financeiros, genoveses e principalmente portugueses, estiveram envolvidos no negócio, mas eram os portugueses que dominavam as fontes de abastecimento e rapidamente o principal do trato firmou-se nas suas mãos. O contrato renderia à Coroa grossas somas e constituiria um dos mais lucrativos negócios privados desde o tempo do infante D. Henrique. A autora do presente trabalho identificou e acompanhou a trajetória de alguns destes negreiros portugueses como Gaspar de Torres e principalmente Manuel Caldeira, argentário cristão-novo que se tornou fidalgo da casa del-rei. O próprio Fernando de Noronha, cidadão de Lisboa no tempo de D. João II, cristão-novo, contratador do pau do brasil em 1502, aparece ligado ao trato dos escravos na costa da Guiné. Aliás, o contrato com o rei D. Manuel concedia-lhe não só o exclusivo da importação do pau do brasil como o autorizava a exportar índios escravos”.

A autora vasculhou na Casa da Contratação de Sevilha importante documentação destes contratos e licenças onde sobressaem negreiros portugueses, como ela escreve, “É um mundo onde pululam agentes, feitores, onde se constituem companhias efémeras, se retêm ou desembargam avultadas quantias, onde, em última instância, se digladiam ou complementar interesses públicos ou interesses privados”.

Os denominados Arquivo-Geral de Simancas e o Arquivo-Geral das Índias conservam documentação referente a Manuel Caldeira, os irmãos Torres têm contratos assinados em Antuérpia, e há no Arquivo Nacional Torre do Tombo alguns documentos complementares dos processos em Simancas. A autora dá-nos um quadro da organização do trato ao regime do comércio e ganha destaque o natural domínio dos portugueses como fornecedores ou contratantes, um universo onde se arriscavam pequenas fortunas num negócio de humana mercadoria, lida-se com o dinheiro dos outros, apura-se a presença de muitos judaizantes e cristãos-novos. Os memoriais permitem saber quais as áreas de exploração em África. No memorial que o mercador Jerónimo de Herrera apresentou à Coroa espanhola sobre a compra de escravos, em 1568, esclarece-se quais as principais regiões abastecedoras e fala concretamente em Brames, Beafadas, Nalus, Berberes, Cassangas e Jalofos. André Alvares de Almada no "Tratado Breve dos Rios da Guiné e Cabo Verde" descreve em 1594 as regiões onde se encontram estes povos.

Recorde-se que durante todo o século XVI, Cabo Verde, por Santiago, foi a feitoria mais importante a nível do fornecimento de contingentes de escravos, só virá a ser superada por S. Tomé. Enquanto Cabo Verde controlava os rios da Guiné, São Tomé iria absorver os escravos dos reinos que povoavam a região do Níger. Angola só no século XVII se tornaria o principal centro negreiro. Convém também não esquecer o arrendamento do trato da Guiné a Fernão Gomes que ficou obrigado a explorar a costa ocidental africana. Os contratos de arrendamento dependiam da Casa da Índia, mas havia quem contratasse diretamente com Castela, caso de Manuel Caldeira. Comércio lucrativo, mas com todos os riscos inerentes à pirataria, ao corso e aos naufrágios, isto para já não falar no contrabando e nos negócios particulares dos feitores. A autora descreve os negócios dos irmãos Torres, influentes negreiros portugueses durante a União Ibérica, foram os principais fornecedores da província de Honduras.

A autora dá-nos o quadro das viagens, a natureza das cargas, as operações da compra e do transporte, as fortunas destes mercadores, o português Gaspar de Torres era de longe o mais poderoso. E dá-nos o estudo de Manuel Caldeira, sobre o qual há imensa documentação, foi-lhe possível compor a biografia, os parentescos, por onde andou, o que contratou, até o seu testamento é altamente esclarecedor. Manuel Caldeira não foi um mercador sedentário, viajou de Lisboa à Serra Leoa, a Azamor, à Flandres, e andou por terras de Castela. Caldeira integrava em 1556 a lista de banqueiros credores de Filipe II, era cavaleiro da Casa Real, e cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo. Seria cristão-novo, a autora classifica-o assim: “Homem de muito comércio e negócio, abonado para todas as finanças, envolto em numerosos pleitos, autor de grandes embaraços, traficante de coisas indevidas, eis um retrato possível deste negreiro português, de cujo percurso nos aproximámos, afigura-se mercador rico e caudaloso além de excelente gestor de influências nas esferas de poder das cortes ibéricas. O seu testamento dá exatamente conta das quantias que ele deixa para descanso da sua alma".

E cuidadoso no estabelecimento de redes sociais:
“Interioriza os valores do seu tempo, orientado pelo valor do dinheiro. Casa o primogénito com a filha de um embaixador castelhano e institui um morgado. Garante a continuidade do seu nome e a inalienabilidade de parte significativa dos seus bens. Insiste no casamento como forma de consolidar laços de poder. Casara com Guiomar, filha de um sócio, ligou os Roiz aos Caldeira. Casa André com Catarina, ligando os Caldeira também aos Hurtado de Mendonça. Duas alianças, dois poderes – o dinheiro e a influência política. Para Beatriz, filha mais velha, quer casamento rico. Di-lo no testamento. Parece tê-lo conseguido, se foi ela a esposa de Luís Mendes de Vasconcelos, célebre pelos cargos na Índia e pelos textos que deixou. Enfureceu-se com os filhos desobedientes pelo facto de não lhe terem dado ouvidos sobre o seu matrimónio. Só lhes perdoa se forem pobres, agora que não sabe deles lá pela Índia.
O comércio da pimenta levou-o à Índia, o trato de escravos levá-lo-ia à América. Com a pimenta e a armação de navios, ligou-se aos mercadores e banqueiros portugueses e estrangeiros que prosperavam em Portugal. Com os escravos negros de Cabo Verde e São Tomé, gozando já dos favores de D. João III, liga-se a Castela. Feitor do rei de Portugal, tesoureiro da Sereníssima Princesa de Portugal, Manuel Caldeira sintetiza a atitude dos mercadores portugueses que, alheios a questões de nacionalidade, viam nos negócios com Castela e as suas Índias um prometedor espaço de prosperidade”
.

A autora anexa documentos importantes, caso da relação da partida de escravos. Obra com muito significado para quem estuda o tráfico negreiro, particularmente o que se exerceu na região da Guiné e Cabo Verde, no século XVI.


Maqueta alusiva ao transporte de escravos e mercadorias rentáveis no comércio negreiro, modelo do Museu Nacional da História Americana, Smithsonian Institution
Imagem de tráfico negreiro
Pintura maneirista dos finais do século XVI, Igreja de São Sebastião de Lagos, vejam-se as embarcações de um porto algarvio que esteve ligado ao tráfico negreiro
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24423: Notas de leitura (1592 ): "Uma ilha no nome: pequena crónica dos dias líquidos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário do meu querido e saudoso amigo, o arquiteto José António Boia Paradela, 1937-2023) (Luís Graça)

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24415: Notas de leitura (1591): "História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva; Temas e Debates, 2020 - Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Neste novo olhar da História Global, entendeu-se que este caso de exploração económica pluricontinental que se encetou com o exclusivo do comércio da costa da Guiné a Fernão Gomes, iria marcar um comportamento do poder régio durante séculos. Mesmo desconhecendo-se o teor do contrato, Fernão Gomes ficou com uma enorme responsabilidade, que terá cumprido, explorou cerca de 3 mil quilómetros de costa, chegou até ao atual Gabão. Contrato que enfatiza para além das iniciativas da Coroa a iniciativa privada nunca foi arredada a participar na exploração económica do Império, era tudo uma questão de oportunidade, a monarquia tanto podia explorá-los diretamente por meio de oficiais régios, como cedê-los a privados por meio de contratos de arrendamento. E o de Fernão Gomes foi o primeiro de uma longa série, expediente jurídico que se revelou essencial não só na captação de rendimentos para a monarquia mas também para que esta se alinhasse, ao longo de séculos com os particulares.

Um abraço do
Mário



Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468

Mário Beja Santos

"História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva, Temas e Debates, 2020, é seguramente um dos acontecimentos editoriais do ano transato, na medida em que rompe com o velho paradigma da escala local e nacional e tece uma abordagem inovadora do que se pode entender por História Global de Portugal, as permanentes interações que conduziram à identidade que temos e à globalização em que nos inserimos. Como os diretores nos explicam:
“Anteriormente, através dos velhos manuais escolares, que refletiam o que se produzia nas academias, aprendia-se a conhecer a história de um país. Adotava-se uma perspetiva iminentemente nacional, centrada no Estado-nação. Cada nação era o umbigo do mundo, sendo o resto uma paisagem necessariamente secundária e ignorada, ou um campo de projeção das vanglórias nacionais. Além da Pátria, existia um conjunto de países com os quais se estabeleciam relações de cooperação, transação, influência, domínio, conflito, separação, negação ou, nalguns casos, acolhimento. A história era conhecida de forma bipolar, dualista: existíamos nós e os outros (…) À luz das tendências da história global, os países, as regiões, as cidades e as aldeias já não são considerados espaços fechados nas suas fronteiras, antes devem ser perspetivados como plataformas territoriais tomadas na extensíssima duração do processo de humanização”.

E ao longo de largas dezenas de textos vários especialistas ocupam-se de longos períodos da Pré-História e História de Portugal tomando conta desse trânsito de trocas bem anteriores à chamada Era dos Descobrimentos, o povoamento das nossas regiões atlânticas, a passagem do Bojador e o que significou em termos de globalização o monopólio da Guiné. Como escreve a autora do referido trabalho, D. Afonso V concedeu, em novembro de 1469, por um período de cinco anos, o exclusivo do comércio da costa da Guiné a Fernão Gomes. O monopólio excluía o comércio da feitoria de Arguim (em território da atual Mauritânia). O monarca terá exigido a Fernão Gomes que explorasse anualmente cem léguas do litoral africano para lá da Serra Leoa, limite meridional das navegações henriquinas. Conhecemos esses aspetos através do historiador João de Barros, cerca de 80 anos depois, o texto do acordo não chegou aos nossos dias. A data atribuída do contrato será junho de 1468. O arrendamento terminou em 1474, depois de ter sido prorrogado por um ano. Enquanto vigorou, caravelas armadas por Fernão Gomes exploraram cerca de 3000 quilómetros da costa, tendo descoberto todo o litoral setentrional do golfo da Guiné, até ao atual Gabão.

Este contrato de arrendamento do comércio da costa da Guiné obviamente que suscitou debates em torno do papel da monarquia nas navegações do Atlântico Sul. Houve quem o visse como expressão do desinteresse do monarca, seria um contrato monopolista que permitiria à Coroa concentrar recursos financeiros na persecução das conquistas em Marrocos, deixando à iniciativa privada as navegações e a atividade mercantil na costa da Guiné. Mas há outras leituras que lembram o facto de a monarquia não ter voltado a doar o exclusivo da navegação do comércio da Guiné que integrara a casa do Infante D. Henrique. D. Afonso V foi o responsável pela constituição da Casa da Guiné, em Lisboa, no ano de 1463. Para uma certa historiografia, Fernão Gomes seria o exemplo paradigmático de interesses mercantis pela costa ocidental africana, por oposição às conquistas militares de Marrocos. Era como se a atenção da nobreza estivesse polarizada em Marrocos e outros setores da sociedade portuguesa se tivesse mobilizado na abertura de novas rotas e na comercialização de novos produtos. Mas há mais dados que contribuem para um novo olhar. Fernão Gomes exerceu o cargo de recebedor dos escravos da Guiné, para o qual fora nomeado em 1455, ofício que não só lhe deu acesso privilegiado à informação sobre o comércio da região como terá permitido a sua inserção em redes de negócio. Como não se conhece o contrato, ignora-se se a iniciativa se deveu à monarquia ou ao próprio Fernão Gomes. Para além do exclusivo, Fernão Gomes recebeu ainda o privilégio de isenção de pagamento de direitos alfandegários de todos os bens que os seus navios trouxessem da Guiné, com exceção da malagueta, monopólio régio, mas que mais tarde acabaria por ser cedido a Fernão Gomes, por 100 mil reis anuais.

Se se pensar que o Papado, através da bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, excluía toda e qualquer navegação na Guiné sem licença expressa do rei de Portugal, pode compreender-se que a Coroa via este regime como o mar que lhe pertencia exclusivamente, fundado na prioridade da descoberta, na evangelização dos gentios e na Guerra Santa movida contra os infiéis. Só que este privilégio foi contestado por outras potências e rapidamente todo o Litoral desta vasta Senegâmbia de então passou a ser percorrido por uma forte concorrência. A despeito desta, manteve-se formalmente o exclusivo da navegação e do comércio nos senhorios ultramarinos – Índia, Brasil, Guiné, Costa da Malagueta, Mina, Angola, Ilhas de Cabo Verde e de São Tomé, a Coroa cedia aos vassalos este exclusivo consoante as áreas geográficas do Império.

Neste exclusivo imperial, como igualmente observa a autora, a monarquia reservou para si a distribuição de certos bens. Foram os casos da malagueta africana, do ouro da Mina e do pau-brasil no Atlântico. Também o comércio dos escravos foi exclusivo da monarquia até 1659. Mas o que fica também esclarecido é que a iniciativa privada nunca esteve arredada da possibilidade de participar na exploração económica do Império, tanto na navegação e no comércio como na distribuição de bens monopolizados. E a autora conclui que o acordo estabelecido com Fernão Gomes foi tão-só o primeiro de uma longa série de arrendamentos contratados com particulares. No quadro da exploração do Império, este expediente jurídico mostrou-se crucial, não só na captação de rendimentos para a monarquia, mas também no alinhamento de interesses com os particulares.

Carta Corográfica da Guiné Portuguesa, 1862, Biblioteca Nacional, com a devida vénia
Retirado do trabalho Tecnologias geoespaciais na demarcação da fronteira da Guiné-Bissau, por Maria do Carmo Nunes, Fernando Lagos Costa, Ana Raquel Melo e Ana Maria Morgado, publicado nas Atas das I Jornadas Lusófonas de Ciências e Tecnologias de Informação Geográfica, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, com a devida vénia
Pormenor do Monumento ao Esforço da Raça, Praça dos Heróis Nacionais, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24403: Notas de leitura (1590): "O Cântico das Costureiras - Crónicas D'Uma Vida Adiada - Guiné 1964 - 1965", por Gonçalo Inocentes; Modocromia Edições, 2020 - As Peregrinações de Gonçalo Inocentes, zombeteiras e resilientes (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24263: Notas de leitura (1576): Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (2): "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Em nova incursão sobre essa área tão sensível que são as conexões entre o Império Português, o ideário imperial e as relações raciais, optaram-se por dois estudiosos com créditos firmados, e a verdade fica dita de que relações raciais sempre as houve, com diferentes cambiantes entre o Oriente, África e o Brasil. E não se pode responder ou iludir uma escrita ao longo de séculos, invocando a inferioridade da raça negra, a indispensabilidade da tutela da raça branca, por um lado, e a tese de superioridade da civilização ocidental, muito utilizada no decorrer da guerra, não só por Salazar, toda a política externa estava para aí virada, com o seu rol de alianças que iam de Israel à África do Sul. Com a distância do fim do Império, há que meditar no legado, e ele é muito válido, temos a língua e a disponibilidade para cooperar sem tentações neo-colonialistas, são argumentos de grande peso.

Um abraço do
Mário



Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (2)

Mário Beja Santos

É nítido o constrangimento que se verifica nos estudos sobre o Império Colonial Português quando se aflora à matéria das relações raciais. É inviável, ninguém o ignora, querer estudar a essência do Império Colonial Português sem abordar pontos sensíveis: a verdadeira ideologia do projeto henriquino, o ideal imperial instituído por D. Manuel I, como era percecionado o tráfico de escravos até na ótica religiosa, como evoluíram as relações raciais em mundos tão distintos como o Oriente, África e o Brasil. Dada a vastidão do questionamento, cingimo-nos a esta escolha de dois autores, Charles Ralph Boxer e Valentim Alexandre, historiadores credenciados. Em "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967, aquele que terá sido o mais influente historiador estrangeiro do Império Marítimo Português abordou as relações raciais num conjunto de conferências que proferiu em Virgínia. O professor Boxer estendeu o seu olhar a três áreas distintas: o início do Império em África e como se desenrolou a sua presença na costa ocidental africana: em Moçambique e na Índia; e no Brasil e Maranhão. Obviamente que nos cingimos à natureza das relações raciais na costa ocidental africana, demonstradamente elas existiram e manifestaram-se em muitíssimos preconceitos, até à independência das colónias.

O trabalho de Valentim Alexandre, "Velho Brasil, Novas Áfricas", Edições Afrontamento, 2000, é um volume onde se coligem textos de estudos sobre a História Colonial Portuguesa dos séculos XIX e XX, desde a desagregação do sistema luso-brasileiro à formação e desenvolvimento do último império em África, que desapareceu em 1975. São estudos do maior interesse que vão desde o nacionalismo vintista, a independência do Brasil, passando pelo Império Colonial do século XX até uma visão geral de Portugal em África entre 1825 e 1974. Atenda-se ao que ele escreve sobre o Estado Novo e o mito do Império e algumas conclusões que extrai no final dos seus trabalhos.

Recorde-se o artigo segundo o Ato Colonial de 1930: “É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendem”. O conceito não era original, vinha na tradição imperial, a expansão ultramarina era encarada como a sobrevivência da nação. Apetite para apanhar tais territórios coloniais não faltava sobretudo à Alemanha e à Itália, mas o Império sobreviveu, montou-se uma mística, incentivou-se o amor quase incondicional dos domínios coloniais e tentou-se educar as elites para que se pudesse viver indiferentemente na Metrópole e no Ultramar. Momento alto desta mística foi aquele esforço mobilizador que desaguou em 1940 na Exposição do Mundo Português.

Atenda-se ao que Valentim Alexandre escreve mais adiante: “Iniciada logo nos começos da Ditadura Militar, em 1926, e completada depois com o Ato Colonial, a política de centralização traduz-se no cerceamento das autonomias dos territórios coloniais no domínio financeiro (…) A política de reforço do regime de pacto colonial tinha em vista relançar o velho projeto de fazer das colónias um mercado reservado para a produção da metrópole e um fornecedor de matérias-primas para a indústria portuguesa. Como mecanismos de proteção aos artigos nacionais, utilizam-se agora não apenas os diferenciais nas pautas alfandegárias, mas também o controlo de divisas e os contingentamentos. Embora o leque de produtos remetidos para os territórios de África se alargue (incluindo nomeadamente os cimentos), o núcleo fundamental das exportações continua a ser constituído pelos tecidos de algodão e pelo vinho”. E o historiador observa que em meados do século a intensidade das relações entre a metrópole e os territórios da África negra atingiram um nível até então inigualado.

Mas havia muito grão de areia que impedia que o projeto imperial do Estado Novo granjeasse uma força integradora – a própria população africana. E aqui vem uma observação sobre as relações raciais que é importante não descurar:
“Pode dizer-se que durante o regime salazarista coexistem duas correntes principais na forma de ver os ‘nativos’ das colónias de África, ambas com raízes no século XIX. Uma delas tributária das teses do ‘darwinismo social’, parte do postulado da inferioridade da raça negra, a qual, insuscetível de civilização, estaria condenada a viver sob a tutela da raça branca. É esta teoria dominante até meados da década de 40: estava-se na época da afirmação dos valores de raça a impor às etnias bantas; repudiava-se a mestiçagem e falava-se muito de colonização étnica, ou seja, do povoamento das colónias africanas por uma população branca numerosa, de ambos os sexos, de modo a evitar as misturas raciais.
A segunda corrente é mais etnocêntrica do que propriamente racista: proclama-se a superioridade, não da raça branca, mas da civilização ocidental, imbuída de valores cristãos, de validade universal, a que os povos negros podem aceder, quando devidamente educados – cabendo a Portugal essa tarefa missionária. Marginal até ao conflito de 1939-1945, esta doutrina assume depois foros de teoria oficial, em resposta às tendências descolonizadoras no concerto das nações. Mas, para além das justificações ideológicas, a realidade mantinha-se inalterada, no essencial, traduzindo-se pelo que foi referido como ‘assimilação seletiva’. Poucos preenchiam os requisitos exigidos: em 1961 (data da abolição do estatuto dos indígenas), menos de 1% do total da população africana de Angola e Moçambique. Manifestamente, o regime via-se incapaz de formar e captar as novas elites; quanto às tradicionais, procurava minar-lhes o poder, reduzindo-as, na melhor das hipóteses, a meros auxiliares da administração. Nestas condições, é muito estreita a margem de manobra do Estado Português, quando o movimento de descolonização de África se acelera. Prisioneiro dos seus próprios mitos, cego em relação aos nacionalismos africanos, cuja autenticidade nega, resta ao regime a via da resistência militar por tempo indefinido, via que conduz ao colapso de 1974”
.

Em jeito de conclusão, Valentim Alexandre é explícito quanto às relações com as populações africanas, marcadas por um etnocentrismo rígido, quando não por formas mais extremas de racismo. E conclui: “A análise histórica mostra que o modo de estar do português em África varia também com o tempo e o lugar, dependendo sobretudo da específica relação de forças existente entre as duas comunidades: com o aumento da emigração para Angola e Moçambique cresce igualmente o racismo nos dois territórios, em formas mais ou menos abertas”. Resta-nos a confiança de que há uma força histórica, uma parte significativa da população portuguesa passou pelas antigas colónias, conhecem-se gente de todas as cores, como muito próximos, ligados por um património comum, e o desmembramento do Império deixou a comunidade da língua, para Valentim Alexandre temos bem vincadas as bases para o relançamento do ‘africanismo’ em Portugal.

Historiador Valentim Alexandre
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24248: Notas de leitura (1575): Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (1): "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967 (Mário Beja Santos)

domingo, 13 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23075: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXIX: Ìndia, Cochim, novembro de 2016




Índia >  Cochim > 17 de novembro de 2016 >  O autor e a esposa. junto à catedral-basílica de Santa Cruz

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2016) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Cochim, União Indiana, novembro de 2016

por António Graça de Abreu

[Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de três centenas de referências no blogue; texto enviado em 10 do corrente]


Na boca deste rio tem el-rei nosso senhor uma fortaleza mui formosa, 
derredor da qual está uma grande povoação de portugueses 
e de cristãos naturais da terra 
que se fizeram cristãos 
depois de assentada a nossa fortaleza.

Duarte Barbosa, O Livro de Duarte Barbosa, em 1516



Pois, os façanhudos portugueses de antanho, pouco ajuizados, indomáveis, valentes lusitanos da era de quinhentos, Cabral, Gama, Albuquerque. Hoje, na velha Cochim um cemitério holandês e uma imensidão de túmulos vazios. Da fortaleza do tempo de Afonso de Albuquerque resta um pequeno troço da muralha debruçado sobre o mar.

Entro na igreja de S. Francisco, o primeiro templo católico europeu a ser construído pelos portugueses na Índia, em 1503. Lá dentro, lápides e sepulturas de gente da nossa pequena nobreza e a tumba vazia onde esteve Vasco da Gama falecido em Cochim em 1524. O corpo aqui permaneceu até 1539 quando foi transladado para Portugal, pelo seu filho Estevão da Gama. 

Recentemente, uns brasileiros amantes do futebol passaram por esta igreja e tiveram a original ideia de deixar num expositor ao lado do túmulo uma bandeirinha do Club de Regatas Vasco da Gama, homenagem ao nosso navegador. Algum orgulho num não esquecido, ainda faiscante nome português que até deu o nome a um grande clube de futebol do Rio de Janeiro.

Entro numa escola primária, católica, dirigida por freiras. As salas de aula têm as portas abertas para os miúdos verem os turistas estrangeiros, e vice-versa. Rapazes bem dispostos vestem todos umas camisas com quadrados vermelhos, brancos e pretos e saúdam-nos alegremente num inglês macarrónico.

Adiante, fica a catedral-basílica de Santa Cruz. Edificada por portugueses em 1550, foi reconstruída de raiz em 1888. É por isso, um templo mais moderno, imponente, com mil histórias para contar. Um altar com a Senhora de Fátima.

Avanço para o outro lado da antiga de Cochim, com a sinagoga e o quarteirão judaico. Ainda cruzes de David na fachada de seculares habitações e lojas. Existem judeus em Cochim desde o século XI, e a sinagoga, sóbria, com um conjunto notável de candelabros de vidro e o chão revestido com azulejos chineses, foi construída em 1568. A cidade albergou durante centenas de anos franjas de judeus que fugiam das perseguições na Europa, chegados da Holanda, de Espanha, de Portugal, condenados a um distante exílio definitivo. 

Recordo o nosso médico Garcia da Orta (1501-1568) judeu de Castelo de Vide, que por aqui andou e faleceu em Goa. Dizem-me que com a fundação do estado hebraico, em 1948, a maioria dos judeus de Cochim partiu para Israel e hoje apenas meia dúzia de crentes na religião do ramo plural de Abraão e Isaac vivem neste bairro judaico.

Há uma cidade nova de Cochim do outro lado do braço de mar, que não visitei. É nos quarteirões antigos deste burgo que o meu coração melhor pulsa e o sangue melhor circula.

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sábado, 21 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22474: In Memoriam (404): Gen Cav Carlos Manuel de Azeredo Pinto Melo e Leme (1930-2021), falecido na cidade do Porto no passado dia 19 de Agosto de 2021... Entra para a Tabanca Grande, a título póstumo, sob o lugar nº 848

IN MEMORIAM

Gen Cav Carlos Manuel de Azeredo Pinto Melo e Leme
(Marco de Canaveses, 4 de Outubro de 1930 - Porto, 19 de Agosto de 2021)


Doente há já alguns anos, faleceu na passada quinta-feira, na cidade do Porto, o senhor General Carlos Azeredo.

Figura importante do 25 de Abril porque lhe foi incumbida a coordenação do Movimento no Norte do Pais, foi desde o tempo em que esteve prisioneiro na Índia, um militar ímpar e um exemplo para os seus superiores e subordinados. (*)

A propósito, lembro o P4043 - Falando do General Carlos Azeredo, de 17 de Março de 2009, onde o nosso camarada José Belo fala das qualidades, como militar, do então Capitão Carlos Azeredo que comandou na Guiné a CCAV 1616 / BCAV 1897 (Mansoa, Cutia, Mansabá e Olossato, 1966/68) e o COP 1, sediado em Aldeia Formosa, de 12 de Junho de 1968 até à sua extinção em 15 de Janeiro de 1969.

No mesmo Poste podemos também ler uma entrevista feita pelo Jornal Matosinhos Hoje Online ao senhor General Carlos Azeredo, aproveitando a sua presença no Convívio dos Combatentes do Concelho de Matosinhos, do mesmo ano.


Entre outras funções, foi depois do 25 de Abril Comandante-Chefe e Governador Militar da Madeira, Governador Civil do Distrito Autónomo do Funchal, 2.º Comandante da Região Militar do Norte e Chefe da Casa Civil do Presidente da República Mário Soares.

Escreveu o livro "Invasão do Norte - 1809 - A Campanha do General Silveira Contra o Marechal Soult" e uma autobiografia a que deu o título "Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império", que mereceu uma recenção do nosso camarada Mário Beja Santos.


Das presenças do senhor General Carlos Azevedo nos convívios dos Combatentes do Ultramar do Concelho de Matosinhos ficam aqui estes instantâneos:
Apesar de estar sempre presente na qualidade de convidado de honra, nada o demovia de pagar o seu almoço.
Fotografia de Família com o senhor Presdidente da Câmara, Dr Guilherme Pinto e alguns dos organizadores do Convívio
Momento de troca de algumas palavras com um Antigo Combatente
O senhor General Carlos Azeredo e o Dr. Guilherme Pinto, os nossos Convidados de Honra em 2009
O senhor General Carlos Azeredo durante a entrevista ao Jornal Matosinhos Hoje Online
Momento do corte do Bolo Comemorativo do III Convívio de 2009
António Maria, Fernando Silva e Gen Carlos Azeredo, três Antigos Combatentes da Guiné
Estará o senhor Gen Carlos Azeredo a dirigir-se às "Tropas em Parada", despedindo-se e prometendo voltar. Ele e o Dr. Guilherme Pinto fazem já parte dos amigos que da lei da morte se libertaram.

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À família do senhor General Carlos Azeredo, especialmente a sua esposa, filhos e netos, os Combatentes do Ultramar do Concelho de Matosinhos, a Tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, assim como o editores deste Blogue, endereçam as suas mais sentidas condolências pela perda do seu ente querido.  (**)

Por sugestão dos nossos editores Carlos Vinhal e Luís Graça, o Gen Carlos Azeredo, que tem 10 referências no nosso blogue e uma forte ligação à Guiné, passa a integrar a nossa Tabanca Grande, a título póstumo, sob o lugar nº 848. (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

17 DE MARÇO DE 2009 > Guiné 63/74 - P4043: Falando do General Carlos Azeredo (José Belo / Joaquim Queirós)

17 DE DEZEMBRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P9217: Efemérides (80): O Gen Carlos de Azeredo recorda, em entrevista à TSF, a invasão de Goa (que faz hoje 50 anos)

1 DE FEVEREIRO DE 2016 > Guiné 63/74 - P15693: Notas de leitura (804): “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império”, por Carlos de Azeredo, Livraria Civilização, 2004 (1) (Mário Beja Santos)

5 DE FEVEREIRO DE 2016 > Guiné 63/74 - P15708: Notas de leitura (805): “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império”, por Carlos de Azeredo, Livraria Civilização, 2004 (2) (Mário Beja Santos)

(**) Último poste da série de 11 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22448: In Memoriam (403): João Dinis (1941-2021), ex-sold cond auto, CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65), e empresário em Bafatá, há mais de meio século... Morreu ontem de Covid-19, em Bissau (Patrício Ribeiro)

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22347: Historiografia da presença portuguesa em África (270): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (7) (Mário Beja Santos)

Sociedade de Geografia de Lisboa > Uma das salas com os tesouros da Sociedade de Geografia de Lisboa


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
O Ultimatum de janeiro de 1890 indignou os sócios da Sociedade de Geografia, mas o trabalho não esmoreceu, como é patente na súmula destas atas. Moçambique passou a ser uma questão de fundo, os heróis da expedição de Lourenço Marques serão alvo de uma grande homenagem com a presença da família real. Mas há outras questões quentes que são os negócios e a necessidade de impulsionar missões constituídas por religiosos portugueses, isto reconhecer-se a crescente necessidade de missionários protestantes. A leitura destas atas, que se prolongarão até ao fim do século, e que terão desaparecido porventura com a morte do grande dinamizador da Sociedade de Geografia de Lisboa nesta época, Luciano Cordeiro, não permite uma leitura absoluta do que era o pensamento imperial, carreia motivações, desvela o papel de alguns protagonistas, mostra inequivocamente a Sociedade de Geografia de Lisboa como uma agência científica e o principal centro de interesses para onde converge a construção do Terceiro Império Português. Aqui se louvam heróis ou figuras dadas como decisivas na implantação imperial, caso de António Enes, em Moçambique, ou Henrique Dias de Carvalho, em Angola. Caminhamos para o fim, o painel de heróis da pacificação organiza-se, a Sociedade de Geografia de Lisboa, sobretudo graças a Luciano Cordeiro, ganhou o seu papel na História.

Um abraço do
Mário


O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (7)

Mário Beja Santos

Passado o choque do Ultimatum, as reuniões dos fundadores prosseguiram, havia as explorações em curso, continuaram as homenagens e os agradecimentos. Recorde-se que em novembro de 1890 fora apresentado um documento intitulado “A questão da Lunda”, tratava-se do agradecimento dos comerciantes da região ao trabalho desenvolvido pelo então Major Henrique Dias de Carvalho. E havia propriamente a pressão exercida junto dos departamentos governamentais, em setembro desse ano a Direção da Sociedade de Geografia enviara um documento ao rei D. Carlos intitulado “As concessões de direitos majestáticos a empresas mercantis para o Ultramar”, curiosamente terminava assim:
“Senhor, gratos ao patriótico incitamento e ao generoso favor com que Vossa Majestade e os seus governos nos têm animado a perseverar no estudo e na defesa dos graves interesses nacionais empenhados na consolidação e na prosperidade do nosso vasto património ultramarino, dedicando a este e aos variadíssimos problemas que nessa causa de contêm, o melhor dos nossos esforços, queremos mais uma vez corresponder a esse incitamento e favor e à confiança oficial e pública que não decerto pelo valor de tais esforços (…), vindo pedir a Vossa Majestade que se reconsidere e não se persista e continue no processo de alienar a administração e a exploração geral de toda ou parte da província de Moçambique em companhias mercantis dotadas de direitos e privilégios majestáticos”.

Já vimos como a composição do núcleo fundador conhecera graduais acréscimos, a dinamização económica que África possibilitava atrai imensos comentários e tomadas de posição. Por exemplo, o sócio João Augusto Barata mandou para a mesa a seguinte proposta:
“As colónias modernas devem ser não só centros de produção, mas também mercados de consumo. E é debaixo deste último ponto de vista que algumas potências manufatureiras procuram estabelecer o seu domínio nas regiões africanas e atropelam todos os direitos para alargar as suas esferas de ação.
A França, a Bélgica, a Itália, a Alemanha e a Inglaterra, todos esses países com excesso enorme de produção que o velho continente não pode consumir, e que a poderosa indústria norte-americana tenta desviar do novo mundo, têm as suas atenções fixadas sobre as terras de África, que civilizam para estabelecer as necessidades materiais das populações a fim de atraí-las ao consumo dos produtos das suas indústrias.
O nosso país tenta, de alguns anos para cá, estabelecer o desenvolvimento das suas colónias, mas esse desenvolvimento nunca se tornará útil à metrópole se no seio desta não se derem progressos industriais notáveis. Não são os produtos agrícolas que a África precisará importar porque segundo as narrações dos abalizados africanistas há zonas naquelas feracíssimas paragens onde as culturas próprias do clima europeu se desenvolvem com prodigiosa exuberância e pasmosa produção.
Mas há muitos produtos que as colónias virão pedir à mãe-pátria e há uma infinidade de artigos que a metrópole lhe deve fornecer. Não deixemos, pois, que o desenvolvimento das possessões portuguesas vá aproveitar às indústrias de outros países; preparemo-nos para delas obtermos o excesso de exportação que tão necessário é ao regime económico da nação portuguesa”
.

E posta esta advertência o sócio fala nos caminhos-de-ferro, nos produtos siderúrgicos, no carvão e no ferro, alude à enorme montanha de minérios de ferro nas serras de Roboredo e Rates, as serras dos Monges, S. Tiago do Escoural e Alvito, antracites e outras riquezas que não podíamos continuar a descurar.

Em janeiro de 1891, após eleições o Presidente da Sociedade de Geografia passa o ser o Conselheiro António do Nascimento Sampaio. E pela segunda vez se fala da Guiné, através de uma comunicação da Direção que conheceu aprovação unânime: “A Sociedade de Geografia profundamente deplora o desastre sofrido na Guiné por forças encarregadas de guardar, manter e defender a autoridade e o prestígio da Soberania Portuguesa”. Procura-se um novo espaço para a sede da Sociedade, está-se a negociar o palácio da Rua das Chagas, pertencente ao sócio Sr. Carvalho Monteiro (o conhecimento Monteiro dos Milhões, o proprietário da Quinta da Regaleira), onde mais tarde veio a funcionar o Instituto Comercial Lisboa. Fica-se igualmente a saber que há muitos portugueses no Brasil que anseiam emigrar para Angola.

Com uma certa regularidade, os sócios pronunciam-se sobre a questão da missionação e um deles aproveita um artigo publicado no jornal Districto de Lourenço Marques para nos dar conta do que seriam as aspirações para o perfil do novo missionário: “O missionário de hoje tem que ser necessariamente um homem do seu tempo, prático e positivo, como convém ao ideal do seu mister. Só ele pode traduzir bem o pensamento da civilização, envolvendo nas práticas religiosas o nome da nação que representa. A ideia de Deus anda ligada, mais que coisa alguma, com a ideia da pátria. E estes dois nomes, por si tão grandes e tão magnânimos, são os únicos que, espalhados de selva em selva, poderão fazer do preto um bom homem e um ente digno de si. É necessário que sejam portugueses os missionários de terras portuguesas, porque só eles saberão realizar com o máximo proveito para a pátria, a sua missão tão simpática a todos os respeitos. Até há muito pouco tempo, achava-se o distrito de Lourenço Marques desprovido de missionários portugueses”. E refere a preocupante presença dos missionários protestantes, eles andam a educar mulheres indígenas, vê-se agora em Lourenço Marques um grande número de mulheres vestidas com trajes europeus e têm diminuído a embriaguez e a prostituição das mulheres. Seria motivo de reflexão para se tomarem medidas efetivas de lançar no terreno missionários portugueses.

Em 1892 já se fala explicitamente na fusão do Museu Colonial com o Museu da Sociedade de Geografia (o Museu Colonial existia junto do Ministério da Marinha e do Ultramar). Aqui e acolá as sessões debruçam-se sobre temas internacionais, é o caso da Exposição Universal de Chicago que se iria realizar no ano seguinte, havia que fazer um estudo sobre as relações marítimas e comerciais de Portugal com os Estados Unidos. Na sessão de maio desse ano, com a presidência do Dr. Sousa Martins, Luciano Cordeiro faz revelações sobre o Padrão de Diogo Cão que entrara nas coleções do museu. Emite-se parecer sobre a importância das missões ultramarinas, trabalho que coube à Comissão Africana, analisa-se a delimitação de Manica bem como as celebrações do Centenário do Nascimento do Infante D. Henrique, bem como do Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia.

Em meados desta década de 1890 ganha ênfase a glorificação dos heróis e das forças expedicionárias em campanhas de pacificação em Moçambique. E quando o Major Calda Xavier morre a alocução de Luciano Cordeiro é vibrante:
“Quando, penetrada do mesmo santo entusiasmo que agita generosamente a nação, a nossa Sociedade vê, satisfeita e consolada, refletir-se nesse entusiasmo a sua obra de vinte anos de confiada e persistente propaganda e o esforço heroico de tantos dos seus sócios que vão por dias voltar da última campanha de África, chega-nos inesperadamente a notícia de que não voltará com eles, de que não mais veremos entre nós um dos nossos mais antigos e dedicados companheiros, o valente de Mopéa e de Maciquece, o intrépido e rijo explorador do Inharrime e do Limpopo, e que de há tanto e há tão pouco tempo ainda ensinada todos a vencer a insubordinação insolente dos vátuas, e que deu a ideia e a vida para nos redimirmos dessa longa vergonha do Gungunhana; em suma o inspirador experiente, o provedor acrisolado, o guia e o conselheiro autorizado, modesto, obscuro dessa campanha tão brilhantemente dirigida por outro consócio nosso, o Coronel Galhardo, tão heroicamente encerrada por outro consócio ainda, o Capitão Mouzinho.
Caldas Xavier morreu.
Partira deixando na pobreza os pais, a mulher e os filhos.
Morreu deixando-os na miséria. Ao partir, aquele belo coração supunha salvar a família. Depois de ter estragado a saúde na vanguarda dos que seguem a Pátria, não tinha garantido o pão quotidiano dos seus. Morreu na vanguarda dos que morrem por ela, certamente entregando-lhe no último alento a prece pelo futuro dos filhos (…) Por isso, a vossa mesa tem a honra de propor-vos, que, com o registo público do nosso profundo sentimento, a autorizeis a que em vosso nome recomendasse à justiça e à munificência do Estado a família de Caldas Xavier”
.

Confere-se medalha de ouro a António Enes, Comissário Régio. E em 25 de abril de 1896 há uma sessão solene no Real Teatro de S. Carlos, os heróis da expedição de Lourenço Marques vão ser homenageados e vitoriados.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22329: Historiografia da presença portuguesa em África (269): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (6) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22329: Historiografia da presença portuguesa em África (269): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (6) (Mário Beja Santos)

Uma das salas com os tesouros da Sociedade de Geografia de Lisboa


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Estamos em 1890, aquele Ultimatum que surgiu em janeiro ajuntou uma comoção nacional, estava-se há pouco tempo a cerzir o tecido do III Império Português, a procurar dar-lhe forma, isto no meio de uma tormenta económico-financeira completamente nova, parecia que se voltara ao tempo anterior à Regeneração, os sócios fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa pareciam apóstolos iluminados pelo farol da civilização, pediam tudo ao Governo, cultuavam os nossos heróis africanos, Capelo e Ivens, Serpa Pinto, dentro em breve Caldas Xavier, Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro. Querem-se caminhos-de-ferro, inflexões no surto migratório, quem vive mal no continente europeu deve ser canalizado sobretudo para Angola e depois para Moçambique, apela-se a leis que ponham o indígena a trabalhar. Estas atas são o espelho de um admirável mundo novo onde os portugueses retomam a sua consciência colonizadora, o Oriente longínquo a poucos interessa, fazem-se fortunas nas roças de São Tomé, em Portugal insiste-se na industrialização, ela está a chegar sobretudo a Lisboa, uma parte da intelectualidade, da pequena burguesia e a massa operária aproximam-se do Partido Republicano, que quer uma mudança de regime mas que prossegue de braço dado com o sonho imperial que está a sarar a ferida do trauma brasileiro.

Um abraço do
Mário


O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (6)

Mário Beja Santos

Como é óbvio, é pedir demasiado às atas das sessões dos sócios da Sociedade de Geografia, no período correspondente aos cerca dos primeiros quinze anos de vida, que elas exprimam com meridiana clareza o que de mais vigoroso sobressaía na época quer ao nível do entusiasmo pelo ressurgimento imperial, quer pelos interesses económicos subjacentes, e até mesmo é difícil poder contabilizar as aspirações científicas exclusivamente pelas propostas apresentadas nestas reuniões. Mas que é uma ferramenta indispensável para o culto dos heróis, para o estudo da vida portuguesa neste período em que já passara a Regeneração e que emergiam alterações no xadrez político, não tínhamos dúvidas. Vimos como em 20 de janeiro de 1890 os sócios-fundadores se revelaram compungidos com a natureza do Ultimatum, e reagiram, pedindo afastamento do mundo da libra. É sintomático que nesse dia se tenham apresentado propostas para o estabelecimento de carreiras de navegação regulares entre a barra principal do Zambeze e o começo das Cachoeiras; deu-se a sugestão da abertura de estradas e permitiu-se o trânsito tão longe destas Cachoeiras; e mais se pedia ao Governo: a construção de linhas telegráficas ligando Quelimane, o Lago Niassa, Tete, Zumbo, Manica, Beira, Sofala, Inhambane e Lourenço Marques; e que se mandasse proceder ao estudo das linhas férreas de penetração de Inhambane à fronteira do Transval. Uma leitura possível de tal proposta é que houvesse afastamento dos interesses exclusivamente britânicos e se privilegiasse a região Bóer.

No início de fevereiro, o rei D. Carlos recebe os Órgãos Sociais da Sociedade que protestam contra o insólito procedimento do Governo britânico. O Presidente da Sociedade expôs ao monarca o que estava a ser idealizado para a celebração do IV Centenário da Partida para a Descoberta da Índia e pediu a confirmação da Carta Régia pela qual o chefe de Estado se declarara em 1878 protetor da Sociedade de Geografia. Tudo quanto afirmasse a solidez de Moçambique era de bom augúrio, e na primeira sessão de fevereiro o presidente anunciou que a embaixada da regente de Maputo visitara a Sociedade e manifestara fidelidade à soberania portuguesa. Quatro figuras foram proclamadas sócios honorários: Joaquim José Machado (que proferira antes do Ultimatum conferências avisando para a natureza a cobiça britânica nos territórios situados entre Angola e Moçambique), António Maria Cardoso, Henrique de Carvalho e Victor Cordon. E discutiram-se direitos majestáticos para as companhias que se pudessem implantar em Moçambique, a opinião dominante foi de rejeição, entrara-se num quadro nacionalista e de profunda desconfiança dos interesses britânicos: “Deve ser rejeitada como contrária ao direito constitucional português e como politicamente inconveniente e economicamente errónea a ideia de entregar parte ou todo o território de uma província ultramarina à ocupação e exploração de uma grande companhia mercantil de todos os quaisquer direitos, privilégios ou poderes de soberania ou de jurisdição pública”.

Em junho, muito à moda da época, apresenta-se a proposta de um estudo que hoje é encarado como caricato por qualquer cientista: “Proponho que se promova um inquérito ao estado hodierno físico, moral, intelectual, industrial e artístico do povo português, comparando-o, tanto quanto possível, com o das suas épocas passadas e com o das outras nações europeias”. Pedia-se o impossível, seguramente que se andava à procura de uma base da lusitanidade, queria-se ir ao âmago de uma raça portuguesa, e num país de penúria, já sacudido por uma crise financeira sem precedentes, parecia que se queria conhecer tudo: dados antropométricos; dados sobre a natalidade, mortalidade, crescimento da população, emigração; estudo de todas as doenças, não esquecendo as nervosas e mentais, as dos órgãos de respiração e circulação, lepra, paludismo, febres tifoides e raquitismo; estudo sobre a alimentação principalmente das classes trabalhadoras; estudo tendente a determinar se a indolência, a falta de energia física, que alguns viajantes nos atribuem, é maior que a de outros povos europeus do Sul. Era um estudo de arromba, os membros da Sociedade de Geografia devem ter ficado a olhar uns para os outros e a não saber como moderar o ímpeto do proponente. Porque o estudo ia em todas as direções: pretendia determinar as nossas aptidões industriais e artísticas; até determinar se o uso ou desuso dos antigos jogos tradicionais contribuía para a conservação ou diminuição das forças físicas do povo. E queria-se apurar o estado intelectual do país, até os progressos das ciências desde o estabelecimento do regime institucional, comparado com o absolutismo, em praticamente todas as áreas: matemáticas, física e química, história natural, fisiologia e medicina, ciências sociais, ciências históricas e geográficas, ciências filológicas e filosofia. Que grande empreitada!

Suceder-se-ão propostas mais conformes ao realismo como o pedido de um estudo sobre a iluminação e balizagem no arquipélago de Cabo Verde e a homenagem prestada a Henrique Dias de Carvalho, um militar que se revelara um importante administrador colonial. O pretexto da homenagem viera da análise de um documento de Henrique Dias de Carvalho intitulado “A questão da Lunda”, seguira-se um agradecimento de comerciantes da região do Malange aos empreendimentos deste prestigiado major, e é neste papel que vem um curioso apelo colonizador:
“Uma missão que por modesta que seja, no meio da barbárie indígena, significa sempre um esforço generoso da civilização e do cristianismo para melhorar a condição social dos nossos irmãos, e, portanto, é respeitável e respeitada. Uma ocupação militar no meio do sertão, realizada por alguns soldados pretos e um cabo, só desafia o ridículo, e apresenta perante o indígena a fraqueza e a decrepitude daqueles que este julgava fortes e invencíveis. Deixemos, pois, quanto for possível as espadas nas suas bainhas e as balas nos seus cartuchos e lancemos mão do homem da cruz do missionário, e não só do missionário, da irmã educadora, do negociante e de todos os que tiveram a coragem das privações e do sacrifício”.

E com alguma regularidade constata-se que continua a insistir-se na urgência de haver caminhos-de-ferro em Angola e Moçambique. Aparece nesta sessão um texto de uma conferência sobre o Porto, o caminho-de-ferro e o distrito de Lourenço Marques onde em dado momento o Major de Engenharia António José de Araújo proferiu o seguinte:
“O indígena de Lourenço Marques conhece do europeu apenas as vantagens que ele pode proporcionar-lhe, mas recusa completamente, ou executa de má vontade, os encargos que tais vantagens exigem. O indígena deste distrito considera-se credor do dever do europeu em fazê-lo viver, reservando, porém, para si, o gozo da liberdade. O indígena de Lourenço Marques adquiriu os vícios que o convívio do homem branco lhe incutiu, mas guardou bem vivaz a noção da liberdade ociosa e selvagem que gozavam os seus antepassados. Em 1882, via eu o indígena lançar orgulhosamente fora a moeda portuguesa de cobre com que se lhe pagava um pequeno serviço que prestara. Em 1883, via eu os indígenas serviçais dos habitantes do distrito abandonarem a cidade, porque estranhos bem intencionados lhes sugeriram que uma corveta portuguesa de guerra, então surta em Lourenço Marques, pretendia obter indígenas para serviço de bordo, sendo preciso nada menos que a palavra de um governador para que o régulo do Amule fosse visitar aquela corveta, muito embora acompanhado pelos seus secretários grandes e ficando os seus súbditos esperando, armados, na praia, o seu regresso.

Em 1886 e 1887, graças à fome que assolava o distrito, tive o prazer de vê-los a fluir em abundância ao trabalho, mediante 225 reis diários, mas logo no ano seguinte os encontrei exigindo 2,3 e 4 xelins diários para salários. Como, pelas atribuições do meu cargo, eu podia de algum modo regular o custo do braço indígena, intentei lutar, mas fui vencido! E quando eu penso que estes semisselvagens, estes homens problematicamente civilizados, consomem salários superiores aos dos nossos trabalhadores europeus, bebendo álcool e sustentando até ao último requinte o gozo dos seus prazeres sensuais; quando os vejo miseravelmente cobertos, cheios de andrajos, sofismando as leis, mesmo envergonhando-nos, compreendo então que há uma grande lacuna no nosso regime colonial; que é indispensável a todo o custo criar, não só uma lei de trabalho prática, útil e sobretudo eficaz, mas ainda uma reforma judicial que habilite os magistrados a rapidamente aplicarem justiça”
.

(continua)

Durante anos, era este o aspeto do vestíbulo da Sociedade de Geografia, o quadro de Veloso Salgado estava à altura dos nossos olhos
Pormenor da Sala Portugal no decurso de uma exposição
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22310: Historiografia da presença portuguesa em África (268): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22310: Historiografia da presença portuguesa em África (268): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (5) (Mário Beja Santos)

Instalações da Sociedade de Geografia antes de vir para a Rua das Portas de Santo Antão


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
A Sociedade de Geografia vai entrar num período de consternação, chegou a hora do Ultimatum britânico, como veremos das atas das sessões anuncia-se um tanto sub-repticiamente, nos anos anteriores fala-se muito dos estudos científicos, dos caminhos-de-ferro, e subitamente chega um tenente-coronel que faz uma exposição mais do que minuciosa sobre a presença portuguesa e os conflitos surdos que estão a surgir com os ingleses, mais adiante o mesmo tenente coronel lança um brado alerta em dezembro de 1889 e Luciano Cordeiro, indiscutivelmente a figura motora da Sociedade de Geografia de Lisboa deste tempo, faz aprovar uma moção histórica, é um texto vigoroso, de indiscutível firmeza e patriotismo. Ninguém desconhece que o Ultimatum de janeiro de 1890 terá consequências profundissimas na vida portuguesa, é como que uma espada de Dâmocles no prestígio do rei D. Carlos, o símbolo da realeza, sobre o qual irão cair as maiores acusações, emerge o republicanismo, culturalmente o país será avassalado pelo decadentismo, toda aquela humilhação é um rastilho de pólvora que conduzirá à incapacidade dos partidos do constitucionalismo perceber que se vivem horas de emergência, seguir-se-á o governo de João Franco, depois o regicídio e as peripécias do curto reinado de D. Manuel II, finge-se que nada tem a ver com aquela humilhação e aquele abatimento provocados pelo Ultimatum, mas todo aquele entusiasmo em pôr de pé o III Império não naufragou na praia, a República tomará porta-estandarte.

Um abraço do
Mário



O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (5)

Mário Beja Santos

Recapitulando os textos anteriores, verifica-se que os primeiros dez anos de vida da Sociedade de Geografia de Lisboa nos conduzem ao melhor conhecimento das aspirações das camadas sociais que apostavam com entusiasmo no levantamento do III Império Português. África seria o coração do novo Império, o do Oriente era então um amontoado de pequenas parcelas e o Brasil tornara-se independente. Havia que ocupar África, conhecê-la e defendê-la da cobiça de outras potências, a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, a Itália, os bóeres da África do Sul, e até mesmo Leopoldo da Bélgica, sonhavam em fazer recuar as possessões portuguesas. A leitura das atas das sessões destes primeiros anos permite conhecer o que estes homens sugerem, que ideologia possuem, como funciona este grupo de pressão constituído por membros da aristocracia, políticos influentes, cientistas, financeiros, comerciantes e, a diferentes níveis, muitos curiosos. Dá-se como demonstrado que esta Sociedade de Geografia de Lisboa cresceu e enrijeceu como impressionante grupo de pressão, é inegável o papel histórico que desempenhou: no incremento das explorações, como as de Serpa Pinto, Capelo e Ivens, nos estudos sobre hidrografia, cartografia, o Meridiano de Greenwich… Mas nem tudo se concentra exclusivamente em Angola e Moçambique, aqui e acolá há referências ao termalismo no Gerês, a estudos etnológicos e antropológicos, ao Padroado Português do Oriente, às cristandades da Índia e Ceilão.

Passada esta década de verdadeiro entusiasmo, vejamos agora o período que precede o Ultimatum Britânico. Continuam a aparecer trabalhos do foro das ciências filológicas, geográficas e etnológicas, caso do Dicionário Corográfico de Moçambique, os dialetos crioulos de Cabo Verde. Em 1887 presta-se homenagem ao falecido Presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, António Augusto de Aguiar. Na primeira sessão de janeiro de 1888, um sócio apela a que se iniciem as investigações demográficas nas províncias de além-mar, “a fim de que possam apreciar-se as qualidades e aptidões da raça tropical e as suas tendências para formar colónias e dar incremento à população indígena na África Central”. O cunho científico da Sociedade revela-se bastante apurado, já dera parecer no ano anterior sobre o sistema internacional de boias e balizas. O novo Presidente é o Conselheiro Francisco Maria da Cunha. Dá-se igualmente parecer para que a Sociedade empreenda a publicação de um Dicionário Toponímico Português, em que se determinem quanto possível os nomes de lugares portugueses em todas as épocas e onde igualmente constem as designações locativas dadas pelos descobridores, viajantes e escritores portugueses aos diversos lugares por onde andaram.

Entretanto, concede-se a Medalha de Honra da Sociedade a Paiva de Andrade, mas os caminhos-de-ferro são preocupação permanente e em 5 de março de 1888 Luciano Cordeiro fez uma exposição sobre a linha do caminho-de-ferro de Lourenço Marques a Pretória e na sua sequência aprovou-se a seguinte moção: “A Sociedade de Geografia continuando a interessar-se vivamente pela prosperidade e segurança do distrito de Lourenço Marques, e congratulando-se pelas diligências e medidas tendentes a acautelar e a prevenir as necessidades e perigos da transformação que se está operando naquele distrito, faz votos por que se empreguem todos os esforços para consolidar, desenvolver e garantir a mais rápida e completa nacionalização de Lourenço Marques como parte integrante e inalienável do território e nação portuguesa”. As sessões da Sociedade diversificam os temas, tanto se apela à organização do serviço de pescas no continente e ilhas como se emite parecer sobre as obras públicas no Ultramar e a construção dos caminhos-de-ferro ou na Índia ou de Ambaca e Lourenço Marques.

Estamos já em 1889, e na aparência ainda não se sente a carga explosiva que está a caminho, o Ultimatum Britânico. Em março, o Major Serpa Pinto, acalorado e patriótico, mandou para a Mesa uma proposta para que a Sociedade tornasse a insistir para que se formasse uma Sociedade Antiescravagista Portuguesa, que secundasse e auxiliasse a generosa propaganda aberta na Europa pelo Cardeal Lavigerie contra o tráfego da escravatura. No mês seguinte, destaca-se o Tenente-Coronel Joaquim José Machado que discursou largamente acerca das condições das nossas colónias na costa oriental e também na costa ocidental de África, chamando a atenção da Sociedade para que se representasse ao governo com relação à expansão colonial inglesa que é extraordinária e rápida nos territórios portugueses do sul de África e à qual precisamos opor medidas enérgicas, marcando fronteiras e afirmando a ocupação portuguesa; passando à costa ocidental, falou da extrema riqueza do planalto de Moçâmedes e da necessidade urgentíssima de abrir comunicações com o litoral a fim de que o desenvolvimento se amplie. Foi uma enorme comunicação, ocupou-se de muita coisa: reocupação de Maputo, dos impraticáveis limites fixados pela sentença de MacMahon, da vontade de toda a gente de Maputo em ser governada por portugueses, das intrigas de alguns ingleses contra Portugal, da urgência em marcar fronteiras para o norte do rio Incomati, chamou a atenção para a “inglezação” de Lourenço Marques e os seus perigos; a necessidade de aumentar a população portuguesa em Moçambique. É um documento extenso, espalha-se por 45 páginas das atas das sessões, e tanto quanto parece é de leitura obrigatória para os investigadores que se ocupam deste período colonial e focados nesta região.

Começa também a falar-se nas comemorações da descoberta da Índia, tem-se em mente a Exposição Internacional Marítima e Colonial de 1897. E o que até agora pareciam sinais de alarme já emite fumos de incêndio. Em novembro de 1889, o Tenente-Coronel José Joaquim Machado prossegue com informações do que se está a passar nos territórios de África que delimitavam a Província de Moçambique.

Em dezembro, Luciano Cordeiro declarou que se havia reunido a Direção juntamente com a Comissão Africana para apreciar e resolver acerca das propostas do Tenente-Coronel Machado. Alguém mandou para a Mesa a seguinte proposta:“Proponho que seja nomeada uma comissão que estude as bases para a organização de uma companhia nacional, à qual sejam conferidos amplos poderes para utilizar toda ou parte da província de Moçambique, valorizando as inúmeras riquezas que ali existem inertes”. Luciano Cordeiro riposta, era absolutamente contrário à organização de companhias soberanas e que só admitia soberania no Estado. Citava-se a Companhia das Índias, mas devia lembrar que a Inglaterra sentia o solo da Índia tremer-lhe debaixo dos pés e que não estava longe o momento em que perdesse aquele grande império, que afinal não conseguira senão escravizar. A Austrália havia-se desenvolvido sem companhias soberanas, e era um império civilizado. Não receava, pois, a nova companhia sul-africana, recentemente organizada em Inglaterra, se finalmente a nossa administração e a nossa política colonial se resolvessem a serem o que deviam ser: previdentes, práticas e enérgicas; mas que cada povo tinha os seus processos e as suas tradições, e que não sendo Portugal um povo de mercantões como o povo inglês, não lhe parecia ser este o modo de opor-se à invasão inglesa nos territórios africanos. Há nuvens negras no horizonte e aprova-se uma moção relativamente a uma nota diplomática em que o governo britânico protesta junto do governo português contra a área atribuída ao distrito do Zumbo pelo decreto que o reconstituiu, e declara não reconhecer nenhum direito ao exercício da soberania portuguesa nestes territórios. A moção refere que não há fundamento para a ocupação ou jurisdição britânica em todos estes territórios, tudo isto deve derivar de falsas e capciosas informações geográficas, históricas e políticas com que o espírito de seita e aventura tem ultimamente pretendido iludir a opinião sobre a influência de Portugal em África. E o documento assinado em 2 de dezembro de 1889 por Luciano Cordeiro, a moção da Sociedade de Geografia reza o seguinte: “1.º - Faz votos porque a diplomacia britânica, melhor informada, lealmente afaste o equívoco em que evidentemente labora, de sobre a antiga cordialidade e recíproco respeito dos dois países, cujo honrado acordo tão proveitoso há sido e tão necessário é à paz e à civilização de África; 2.º - Confia que os poderes públicos, inspirados na vontade unânime e na incontestável justiça da nação, manterão firmemente o direito e a integridade da soberania portuguesa; 3º - E afirma que os territórios incorporados no distrito de Zumbo e os das zonas do Zambeze, do Chire e do Niassa a que se refere a nota inglesa, sempre, desde as suas primeiras descobertas e explorações, feitas pelos portugueses, foram em boa ciência e segundo o direito, considerados como incluídos na influência e na tradição jurisdicional da soberania de Portugal, tendo sido e estando por ela ocupados onde e como entende conveniente e sem interrupção de nenhuma outra soberania culta, em qualquer tempo e lugar”.

E assim chegamos à sessão de 20 de janeiro de 1890, espelha a indignação pelo Ultimatum, chovem protestos, distingue-se o de Luciano Cordeiro, fazem-se propostas concretas de afastamento dos interesses britânicos: deixar de usar a libra-esterlina, cunhando moeda do tipo da convenção monetária de que fazem parte alguns países continentais, abolindo o curso legal da moeda inglesa; denúncia do tratado luso-britânico de 1842; decretar um imposto especial de residência para os ingleses estabelecidos na metrópole, etc.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22286: Historiografia da presença portuguesa em África (267): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (4) (Mário Beja Santos)