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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Dificilmente se entenderá o comércio de escravos na ampla faixa da Senegâmbia, a partir do século XV, e depois em espaços mais reduzidos, nomeadamente após o período filipino, sem decifrar a narrativa como tão admiravelmente António Carreira desenvolve na sua magna investigação Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878). 

Os primeiros colonos aportaram à ilha de Santiago em 1462, na Ribeira Grande, ali se fundou uma feitoria, daqui emergiu uma sociedade como nunca o português tinha forjado, com base na miscigenação prolongada, três grupos étnicos foram formando este espaço insular: brancos (os reinóis), negros maioritariamente provenientes da costa africana e de Angola, e mestiços, aqui convivem os "senhores" (portugueses, italianos, espanhós, flamengos...), os brancos da terra (os mestiços) e os escravos (a grande maioria da população). 

Começa-se por habitar Santiago e Fogo, só mais tarde se estenderá a ocupação efetiva das outras ilhas. Como Carreira sublinha, a designação de escravos de confissão ou ladinos irá ser atribuídas àqueles que frequentaram a catequese e que ascenderam a um patamar que se aproximava do modelo civilizacional de então. Como escreve Carreira, o papel dos agentes do Cristianismo em Cabo Verde foi decisivo na formação cultural das populações em missões, colégios e escolas de todo o espaço insular, e os seus frutos são visíveis nos dias de hoje.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura, trabalho solitário, que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Atenda-se ao que nos diz na nota explicativa:

“Na redação, como é meu velho hábito, não me preocupei em apurar o estilo. Expressei-me informalmente sem qualquer pretensão de fazer trabalho literário. Fui dominado apenas pela ideia de clareza e da honestidade na exposição e apreciação dos problemas, dando sempre o ‘seu ‘ a ‘seu dono’. 

O tema tratado é ingrato e por motivos diversos não entusiasma a maioria dos leitores. Seja por preconceito próprio de uma educação tradicionalista (no mau sentido do termo), seja por receio descontentar certos setores, tudo quanto envolva a apreciação do tenebroso período da escravatura mexe com a maneira de ser de algumas camadas da nossa sociedade. Todavia é preciso vencer esse sentimento de culpa acerca de um passado para o qual as atuais gerações nada puseram, nem depuseram. E isso só se consegue mostrando as duas faces da questão: a boa e a má, comprovadas por documentação honesta e incontestada. 

É indispensável ver o problema da escravidão no seu próprio tempo e segundo a mentalidade da época.
Neste particular é de apontar o exemplo da Inglaterra. Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com esse negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo sentido, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Abusou da sua força. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por nenhum outro povo.”


São incontestáveis os pontos de coincidência, as linhas tangentes nas histórias de Cabo Verde e Guiné. Carreira descreve metodicamente os contratos de arrendamento, o papel exercido pelos mercadores em Santiago; dedica um aprimorado capítulo à figura dos lançados ou tangomaos (em espaço separado aqui se referenciou cuidadosamente o pensamento do autor sobre este fenómeno que acabou por ser marcante sobre a presença portuguesa no continente); situou a atividade de judeus autênticos ou de cristãos novos bem como de fidalgos no tráfico de escravos e tece a seguinte observação:

“As medidas restritivas da fixação de residência de fidalgos e de cristãos novos em Santiago e nos Rios de Guiné, inseria-se no plano manuelino de perseguição de judeus e cristãos novos, e para além da questão religiosa, no receio deles se fixarem e, com o seu conhecido tato comercial, prejudicarem ainda mais o negócio dos cristãos e do próprio monarca.”

Prossegue a exposição sobre as operações de captura e vamos percecionando que o espaço onde se exerce este comércio é inicialmente o correspondente ao da Senegâmbia, mas a área, um tanto aproximada do que é hoje a Guiné, deu um enorme contributo a este tráfico, como ele observa:

“De Arguim ao Gâmbia a melhor mercadoria para a compra de escravos era o cavalo; do rio Gâmbia para Sul passava a ser a manilha de latão. Compreende-se perfeitamente esta preferência. Nas áreas alagadas, na floresta húmida, o cavalo não tinha grandes condições de sobrevivência. A mosca do sono por um lado, o alto grau de humidade, o mosquito e os pastos pouco adequados, por outro, condenavam a sua presença. As populações das rias (do Gâmbia para Sul) não o conheciam nem o sabiam tratar convenientemente. 

Nos primeiros trinta anos de Quinhentos as espécies mais utilizadas e as cotações seguidas variavam consoantes os setores. Assim temos:
- No rio Senegal, terra de jalofos, dava-se 1 cavalo por 10 escravos;
- No rio Gâmbia, ou Cantor, 1 cavalo por 7 escravos. 
- No rio Grande de Buba, terra de biafadas, 6 a 7 cavalos ou 20 a 25 manilhas de latão; ou 10 a 14 cavalos; ou ainda 6 a 7 cavalos por 1 escravo.
- No rio de S. Domingos e na Serra Leoa (1526) segundo os valores estabelecidos nos regimentos dos capitães dos navios do trafico, cada escravo podia ser adquirido por qualquer das seguintes quantidades de mercadorias: 17 ou 18 côvados mouriscos de pano; 38 a 40 alaqueca (pedra semipreciosa); duas mantas de Alentejo; 40 a 50 manilhas de latão; 5 bacias grandes de barbeiro; 1,5 côvados do Reino de pano vermelho (?); 30 a 40 côvados mouriscos de lenço francês.”


E, mais adiante, Carreira refere que em toda a Guiné a valia da cera de 3 quintais por negro era um pagamento corrente (opinião do investigador P. António Brásio). O autor não esquece também do preço dos escravos em moedas quando eram reexpedidos com destino a Lisboa, Antuérpia, Sevilha, Índias de Castela, dá-nos referências de preços até ao fim da escravatura.

Carreira dedica um capítulo para a indicação das diferentes mercadorias levadas à costa africana, que vão desde panos, mantas, contaria e muitas outras. Trata igualmente com cuidado os contratos de arrendamento das áreas dos tratos e regastes. 

O período filipino, abundantemente estudado também no que toca à presença portuguesa na costa ocidental africana, deixa claro como se ia reduzindo a presença comercial, tornara-se precária, cada vez mais distante, a conceção entre Arguim e Cabo Verde, eram holandeses e franceses que usufruíam então a posição vantajosa; aliás, os holandeses irão ocupar a fortaleza de Arguim em 1638. Tentar-se-á animar todo este tráfico com uma sucessão de Companhias e revitalizar a importância de Santiago como placa giratória da reexpedição de escravos.

Vale a pena retomar o discurso de Carreira:

“Cabo Verde e a Guiné atravessaram no final do século XVII aos meados do século XVIII um período difícil, durante o qual se acentuou a decadência: crise de comércio, ausência absoluta de navegação nacional e com tudo isso a progressiva fuga de capitais e de homens brancos, mestiços e pretos, tanto os de Cabo Verde como os de Cacheu.

Todo o período decorrido até à instalação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, ficou marcada pela ruína das vilas e das fazendas agrícolas, pela fuga de homens brancos, pela queda vertical das atividades económicas – desde o comércio de géneros e mercadorias até ao de escravos.”


E há as crises de fome e de epidemias, outra via para o despovoamento, Carreira vai anotando as datas destas calamidades até ao século XIX, é indispensável estar atento a estes acontecimentos para se entender a resiliência e a vontade de emigrar do cabo-verdiano. Obviamente que o autor dedica muita atenção à ocupação e exploração das ilhas, ao braço escravo como força de trabalho, refere o algodão e a urzela como os primeiros géneros da economia destes ilhéus, vem depois a cana do açúcar, a tecelagem, as produções de subsistência, os milhos, os feijões, a batata-doce a mandioca, um pouco de vinho. O pescado era economicamente insignificante, um quase recurso alimentar, faltavam embarcações capazes de permitir uma saída para o largo.

Não menos relevante é a narrativa tecida pelo autor quanto à religiosidade, já que datam da primeira década de 1500 as primeiras leis para a ministração do batismo aos escravos. Aparecem assim os ladinos, batizados e ensinados a trabalhar e a falar a língua portuguesa (certamente que o crioulo. Faziam-se batismos em massa, os missionários não escondiam o que pensavam da escravização injusta, daí as tentativas tendentes a obter a ladinização dos escravos, um dos caboucos que irão fundamentar a identidade cabo-verdiana e a sua cultura. Assim se cristianizaram as gentes de todas as ilhas. 

“E de tal forma a semente deu seus frutos desde os alvores de Quinhentos, que no decurso deste quase meio milénio, a doutrina e a moral cristã, se propagaram de geração em geração radicando-se no espírito das atuais 270 mil almas que povoam o arquipélago. E terá havido algo de parecido em qualquer outra terra portuguesa, nos trópicos ou no equador?”

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Veja-se o pormenor da capa deste livro, parece objeto estranho, mas é peça em chapa de ferro espessa, destinada à prisão de escravos pelos tornozelos e pelos pulsos, simultaneamente. O indivíduo era obrigado a permanecer sentado, sem se poder levantar; a peça é provida de um fecho com chave, tem 35cm de comprimento, e é proveniente de Ouro Preto, pertence à coleção do Museu Nacional de Etnologia. No seguimento da primeira narrativa, estamos chegados agora à existência de companhias majestáticas, António Carreira encontrou documentação do maior interesse nos arquivos, refere os dois grandes mercados do tráfico, a Senegâmbia e Angola e a importância de Santiago, daqui "a mercadoria" partia para o Brasil e Cuba. Obra fértil em explicações quanto à importância da economia cabo-verdiana, a contabilidade das companhias majestáticas, ficamos a saber como era identificados os escravos, a conhecer os tipos de instrumentos de prisão, de tortura ou de humilhação, a dor maior virá na descrição dos tipos de castigos corporais, é arrepiante. Obra pioneira, é justo aqui realçá-la por ter aberto portas a estudos mais fundamentados para o conhecimento de aspetos do nosso colonialismo que permaneceram muito tempo na penumbra.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (2)

Mário Beja Santos

O livro Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos, por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O comércio negreiro feito por portugueses irá sofrer uma profunda alteração em 1755 com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que iria atuar numa área entre o Cabo Branco a Angola, limites que vieram a ser restringidos para a área entre o Cabo Branco e o Cabo das Palmas, limitação que tinha em vista a formação de uma outra empresa, a Companhia de Pernambuco e Paraíba, atuando no setor de Angola. Interessa-nos falar da primeira, António Carreira encontrou farta documentação sobre este tráfico e procura explicações para o seu reduzido volume: a existência entre grupos étnicos de cultura islâmica de um forte poder dos régulos, em particular dos Mandingas; o desvio de levas de escravos para os mercados do interior (no Senegal, no Mali, e zonas periféricas). É uma pertinente investigação, que ele assim remata: “A conclusão a tirar da análise da evolução do tráfico através dos tempos e dos sectores é de que foi a Angola a grande sacrificada. O sector Senegal-Serra Leoa gozou de verdadeiro privilégio. O território angolano sofreu uma sangria demográfica em benefício da América do Sul (em especial o Brasil) e central (Cuba)”. Mas também esclarece o seguinte: “Por reduzidos que tivessem sido os contingentes saídos dos rios de Guiné e de Cabo Verde, não podiam ser tão insignificantes. E se não tivéssemos levado a efeito o levantamento da contabilidade da empresa monopolista do século XVIII, pouco ou nada se podia apresentar”.

A posição portuguesa que fora de relevo no século XVI e até às primeiras décadas do século XVII não suportou a concorrência da Inglaterra, da Holanda e da França, que passaram a ter um papel dominante nesta área do Atlântico. E tece o seguinte comentário: “O nosso traficante era tímido e hesitante. Não se aventurava a empates de dinheiro a médio ou longo prazo. Tanto na Inglaterra como na Holanda as casas reinantes e a alta finança investiam no tráfico e em navios para o corso. O século XVII marcou a viragem para a formação de companhias fortemente apetrechadas, destinadas aos tratos e aos resgates. A situação na Guiné e em Cabo Verde continuou a piorar e levou à formação da Companhia de Cacheu, Rios e de Comércio da Guiné, mal terminou o prazo concedido a esta empresa foi criada a Companhia do Estanco, do Maranhão e Pará, empresa que foi muito mal recebida. Anos volvidos é formada outra empresa, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde”.

O investigador António Carreira analisa um conjunto de fenómenos sociopolíticos e económicos suscitados pelo aparecimento do ouro e de diamantes no Brasil, que vai criar um entusiasmo entre os portugueses para ali irem viver, e disserta sobre as relações económicas entre a colónia brasileira e Lisboa. Os dados que compulsou permitiram-lhe apresentar dados sobre os escravos comprados pela Companhia do Grão-Pará e Maranhão, o papel económico desempenhado pela urzela de Cabo Verde, os panos de algodão produzidos nas ilhas de Cabo Verde, a natureza de subsídios, donativos e outras taxas, as alcavalas cobradas na última fase do tráfico e assim chegamos à marcação a ferro quente dos escravos. Escreve Carreira: “Numa primeira fase a marcação tinha por finalidade principal a identificação dos escravos pertencentes à Coroa, fossem eles adquiridos, fossem recebidos em pagamento de direitos ou de rendas pelos contratadores. Poucos anos depois, os contratadores, para não serem defraudados, passaram igualmente a marcar os seus escravos”.

Refere também a identificação dos escravos, e desperta-nos para alguns aspetos curiosos quanto a designações:
“Adultos: cabeça; peça; marfim ou ébano de Guiné; escravo ou negro lotado; escravo ou negro com ponta de barba; escravo ou negro boçal; escravo de grilhão; escravo mulato; escravo mascavo ou mascavado.
Adolescentes: moleque ou moleca; moleque ou moleca lotado; molecão ou molecona; molecona de peito atacado (a que tivesse os seios bem formados); mocetão ou mocetona.
Crianças: minino; cria de peito; cria de pé (a que anda).
Peça-de-Índia definia o escravo jovem, alto, robusto e sem defeitos físicos. Em época adiantada do tráfico, usou-se a bitola de 1,75m de estatura para designar a peça-da-Índia.
Escravo ou moleque lotado era aquele que, pela sua compleição física, podia fazer parte de um lote para efeito de venda.
Escravo barbado ou com ponta de barba correspondia ao adolescente com barba bem formada. Era já homem.
Escravo boçal era todo aquele que não se soubesse expressar em crioulo ou português, e não tivesse ainda sido submetido à catequese e batismo.
Escravo ladino era o escravo esperto que se fazia compreender facilmente em crioulo ou português, ou que tivesse alguma profissão ou ofício.
Escravo de grilhão era todo aquele que tivesse sido alguma vez castigado com a pena de prisão com grilhão nos pés.
Escravo mulato correspondia ao produto de mestiçagem de sangue entre homem branco e mulher preta ou mesmo de pais mestiços.
Escravo fujão era aquele que tivesse propensão para fugir ao trabalho ou à tutela do seu senhor.
Escravo mascavado era aquele que possuísse aleijão ou deformidade física.”


Carreira também nos dá uma lista de tipos de instrumentos de prisão, é uma lista horrível, inclui instrumentos de tortura, de prisão ou de humilhação, devem ter sido copiados e aperfeiçoados os modelos usados pela Inquisição. Esta lista de castigos corporais merece a Carreira bastante detalhe, custa ler tanta violência, tanta severidade e tanta desumanidade.

É vasta e muito útil a bibliografia que António Carreira anexa sobre o tráfico português de escravos. Obra pioneira pois, é justo relembrá-la pelo timbre de rigor e a abertura que deu a novas investigações.

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É inegável que a historiografia sobre a Guiné portuguesa tem uma enorme dívida com o António Carreira. Aqui se faz jus a um trabalho pioneiro sobre o comércio negreiro na costa ocidental africana, Carreira era homem de arquivos, deplora frontalmente a negligência dos investigadores no estudo do tráfico português de escravos. Felizmente que todo este acervo documental passou a ser muito mais escrutinado nas últimas décadas, todo este fenómeno socioeconómico cultural começa a esclarecer-se. A narrativa de Carreira é profundamente didática, tem o mérito de poder ser acompanhada por iniciados e leigos, verifica-se que é um trabalho altamente fundamentado e cumpre o desejo do autor: abre imensas portas a quem queira investigar o papel dos portugueses no tráfico de escravos.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (1)

Mário Beja Santos

O livro "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O investigador abre as suas considerações enfatizando a dívida com que o continente americano ficou com o escravo africano, sem este imigrante forçado teria sido inviável a cultura da cana sacarina, o cultivo do fumo, o apanho das drogas do sertão, a criação extensiva de gado, a extração de ouro e pedras preciosas. A situação do comércio negreiro só conhecerá profunda alteração com a Imigração branca iniciada no século XIX. E adianta também: ”Não foi apenas na América e em África que se sentiram os efeitos da grande imigração forçada de povos africanos e que ficou mais conhecida como tráfico de escravos. Este tipo de migrações transformou a economia de muitas nações europeias, em especial a da Inglaterra, a da França, a da Holanda, a da Espanha, a de Portugal, e outras. No final do século XVIII, só na Inglaterra existiam mais de 14 mil escravos negros. A América cultivava o algodão, utilizando para o efeito o escravo africano, e a Inglaterra industrializava-o, produzindo os tecidos de exportação. Tudo irá mudar com a independência dos EUA, houve que procurar noutras áreas as matérias-primas, e Inglaterra decidiu coartar o fornecimento de mão de obra escrava à América do Norte e a outros países que se lhe opunham como concorrentes ao comércio africano”. Iniciava-se a campanha abolicionista, mas a ilegalização do sistema da escravização, em termos que não foram absolutamente práticos só foi alcançada no final do século XIX.

Carreira dá conta da vastidão do seu trabalho: “Dobrado o Cabo Bojador, a área conhecida por Guiné passou a ter enorme extensão: abrangia a faixa de território que, a partir da foz do rio Senegal, se estendia até ao rio Orange! Depois, quando se conheceu melhor a costa, foi encurtada, limitando-se ao setor do rio Senegal até à Serra Leoa, espaço da capitania de Cabo Verde.” Para baixo temos a Costa da Mina, indo até à Costa de Angola, abrangendo os chamados reinos de Loango, Sonho, Cabinda, Congo, Angola e Benguela.

Debruça-se Carreira sobre as motivações do Infante D. Henrique, a literatura de viagens, a captura de negros, mas o tráfico autêntico ainda não se organizara, a Coroa não possuía organização adequada, confiou a exploração do negócio a particulares, logo Fernão Gomes, em 1468, ele podia resgatar escravos com exceção da terra firme defronte das ilhas de Cabo Verde e do castelo de Arguim. É um período em que surgirão muitas desinteligências com os moradores Santiago, com transgressões ao estipulado pela Coroa. Aumentarão os conflitos entre os negociantes de escravos e as populações africanas, a Coroa tomou decisões: proibiu expressamente as operações de razia e captura de negros, impondo a prática da compra, por permuta por vestuário, manilhas de latão, missangas, contaria, etc., assim como por animais domésticos, isto dentro de uma lógica das preferências dos mercados africanos. E sintetiza Carreira:
“Podemos, em resumo, e baseados em textos portugueses dos séculos XVI e XVII, determinar os principais processos usados na obtenção de escravos:
1. Os prisioneiros de guerra e os capturados nas frequentes operações de razia.
2. Os aprisionados nas lutas travadas entre classes sociais ou profissionais (corporações de ofícios nos Mandingas), de uma mesma etnia e também os resultantes da imposição de credos religiosos.
3. Os condenados por decisões de régulos à pena de morte, e a seguir comutada pela de escravização.
4. Os condenados por decisões proferidas através de ordálios a serem vendidos e a suas famílias como escravos.
5. Os vendidos pelas famílias e os que se vendiam a si mesmos e aos seus familiares nas épocas de fome ou calamidade, etc., etc.”


Dá-nos seguidamente o role dos sistemas de exploração entre o século XV e o século XVII, refere alguns dos principais contratos de arrendamento e nomes dos contratadores, num arco geográfico entre os rios da Guiné e Angola. O comércio da Guiné no século XVI foi o primeiro, destinava-se sobretudo a terras brasileiras. O autor dá-nos a relação do tráfico africano para a Baía em vários ciclos, a concorrência estrangeira, como a dominação espanhola afetou profundamente o comércio português, e dá-nos conta das suas investigações: “Através de números compilados dos livros de registos alfandegários, de relatórios e de correspondência oficial endereçada a Lisboa, e ainda das estatísticas organizadas em algumas áreas do Brasil, podemos ter uma ideia, embora incompleta, da evolução do tráfico de escravos na costa ocidental africana. Há falta de dados durantes longos períodos e temos de ter em linha de conta o contrabando de escravos em todos os setores, parece situar-se numa ordem de grandeza aproximada entre 40-50% do total de saídas registadas na documentação oficial.” Interessa-nos aqui referir a região da Senegâmbia, área compreendida entre a foz do rio Senegal e o limite sul da Serra Leoa, englobando as ilhas de Cabo Verde, das quais a de Santiago teve durante mais de um século a função de depósito ou entreposto de escravos destinados à exportação. Na segunda metade do século XV faz-se referência a uma média anual de 700 a 800 escravos destinados à Península Ibérica e a mercados árabes. Nas primeiras décadas de 1500, o tráfico passou a processar-se mais a sul, entre o rio Senegal e a Serra Leoa, são analisados os contratos de arrendamento. E em meados dos século XVIII surgem as companhias majestáticas do comércio em geral e a do tráfico de escravos.

(continua)


O comércio negreiro feito pelos árabes, os antecessores dos europeus
Livro importante para o estudo do tráfico negreiro árabe-muçulmano
Pintura do francês Jean-Baptiste Debret, 1826, retrata escravos no Brasil
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24111: Historiografia da presença portuguesa em África (357): História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira; Edição do Autor, 1983 (Mário Beja Santos)

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24037: Os nossos seres, saberes e lazeres (554): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (88): Leeds, a próspera, sempre em renovação, aqui dá gosto ser pedestre (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Era a véspera do regresso, assim se programou esta visita relâmpago a Leeds, uma metrópole que se orgulha de ser gigante mas onde tudo (ou praticamente tudo) se pode fazer a pé, saí do autocarro, andei a farejar as novidades (pus aqui os pés um pouco antes da pandemia), dirigi-me aos meus locais de culto, fui bem compensado, até encontrei promoções a uma libra de cd's na Grande Biblioteca, deslumbrei-me com as mudanças na arquitetura, olhei sempre com admiração para o quadro de Francis Bacon, dei pela falta da Paula Rego, andava em itinerância, fechei os olhos agradecido por tão belo passeio, houvesse tempo e até iria visitar com imenso gosto a uns quilómetros daqui Harewood House, uma propriedade que pertenceu a uma princesa real e que tem uns jardins de sonho, nestas, como noutras coisas, pensa-se que a vida nos tem dado enormes dádivas e compensações, oxalá que possa voltar a este Yorkshire tão amigável.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (88):
Leeds, a próspera, sempre em renovação, aqui dá gosto ser pedestre


Mário Beja Santos

Imponente pela arquitetura, praça financeira de indiscutível importância, aqui respira-se prosperidade. Pega-se no guia do visitante e fica-se a saber que depois de Londres é a única cidade que tem companhias de ópera e ballet residentes, a Opera North e o Northern Ballet, atuam num espaço opulento, a Leeds Playhouse e no Leeds Grand Theatre.
Desembarca-se no terminal rodoviário, ali perto fica uma praça que nos deixa boquiabertos, uma magnificência escultórica entre arranha-céus, muitas obras, muito dinamismo, ora vejam este triunfalismo arquitetónico e no ponto central da praça a estátua do lendário Príncipe Negro.

Daqui, com o mapa na mão, procuro a Leeds Art Gallery, encravada entre o Instituto Henry Moore, a Biblioteca Central e o magnificente edifício da autarquia. Perguntei por uma pintura de Paula Rego que em visita anterior estava exposta no vestíbulo, frente a um quadro de Francis Bacon, tinhas ido para uma exposição, voltava em breve. Entrei e fui ver a sala dos românticos e naturalistas, nada de assombroso, mas há para ali quadros que a retina acolhe muito bem, saíram da mão de mestres, aqui deixo alguns exemplos.
Escultura de Barbara Hepworth, a minha escultora contemporânea preferida

A Galeria de Arte de Leeds tem em permanência exposições, não resisti a visitar a exposição “Rebellion to Romance”, dedicada à 2ª geração de britânicos provenientes das Índias Ocidentais, um trabalho brilhante de levantamento etnográfico e etnológico, acho que esta imagem vale por mil palavras.
Era inevitável contemplar este genial Francis Bacon e depois o escultor Antony Gormley e sua maquete para o Homem de Tijolo de Leeds. É sempre com enorme prazer que aqui venho, oxalá volte depressa, também tenho saudades de ir contemplar outro génio, Henry Moore, num instituto aqui ao lado, tem mesmo de ficar para a próxima, ainda quero amesendar na cafetaria da Biblioteca, adoro o edifício, estes interiores marcados pelos períodos vitoriano e eduardiano são fabulosos, aqui fica uma amostra.
Com o estômago reconfortado, prossegue a viagem, este palácio autárquico parece ser o cartão de visita da prosperidade de Leeds, outrora uma cidade cerealífera e têxtil de largos poderes, hoje zona financeira só superada pela City londrina, não esconde ser uma praça das artes (recordo que possui um importante concurso internacional de piano, Artur Pizarro foi primeiro prémio há umas décadas), capricha, para além do mundo dos negócios em ser uma atração turística e possuir uma enorme capacidade de adaptação dos seus armazéns marítimos em prédios de habitação. Vamos então prosseguir viagem.
Um gigantismo de pedra a rivalizar com os gigantismos de Londres, a torre do relógio é uma beleza, transfigura todo aquele tamanhão de pedra e a pomposidade da colunata
Imagens avulsas do passeio pedestre, a elegância da escadaria para a Galeria de Arte, onde avulta a escultura “A Mulher Reclinada” de Henry Moore, as flores outonais e um impressionante design aposto à Galeria de Arte, inteligente e suscetível de uma leitura rápida e completa
Leeds é famosa pelo seu comércio no chamado Victoria Quarter, sãos as arcadas vitorianas que dão pelo nome de Queen’s Archade, Thornton’s Archade, Grand Archade, de ourivesaria às boutiques de maior luxo tudo aqui se pode encontrar.
Imagem do interior daquele que será o edifício mais icónico de Leeds, The Corner Exchange, a Bolsa dos Cereais transformou-se num centro comercial onde primam os valores da contemporaneidade, o contraste é uma guloseima para os olhos
Vista do exterior da Bolsa dos Cereais
Estou a despedir-me de Leeds, aqui estão os velhos armazéns e a prova de que a arquitetura pode andar ao lado da pintura, da escultura, o que estamos a ver são belas-artes, a sublime capacidade de reaproveitar o que parecia destinado à demolição num espaço de arquitetura com laivos modernizantes com inserções de bom gosto e que garantem a Leeds estar na vanguarda da inovação. Adeus, até ao meu regresso.
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Notas do editor

Vd. poste de 28 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24018: Os nossos seres, saberes e lazeres (552): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (87): Uma visita a legados presidenciais, a pretexto da exposição Pintasilgo (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 31 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24026: Os nossos seres, saberes e lazeres (553): As matanças eram tempos de celebração e de paz entre as famílias (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

sábado, 14 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23981: Os nossos seres, saberes e lazeres (550): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (85): Com que alegria revisitei Buscot Park, entre Faringdon e Lechlade (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Último dia de permanência no Condado de Oxford, mais propriamente em Faringdon, dia ameno, podia gozar de total disponibilidade, foram dadas sugestões para ir aqui ou acolá, vinha entristecido do norte de Inglaterra, depois de visitar um querido amigo, acometido de doença incurável, carecia de palmilhar um belo espaço natural e edificável, ocorreu-me Buscot, natureza e arte. Todo aquele verde, toda aquela natureza bem estimada me atrai e há Burne-Jones, o mais genial dos pré-Rafaelitas. Ele percorreu toda esta região, uma fronteira das Cotswolds, perto de Buscot há uma igreja normanda, Eaton Hastings, onde ele introduziu belíssimos vitrais. E relativamente perto está Kelmscott Manor, a casa de férias de William Morris, outro génio, o grande pioneiro do movimento Arts and Crafts. Ficará para próximo passeio. É com grande satisfação que partilho estas imagens convosco.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (85):
Com que alegria revisitei Buscot Park, entre Faringdon e Lechlade


Mário Beja Santos

Peço ao leitor que aceite a minha discrição sobre a visita que fiz a Wakefield, vim despedir-me de um grande amigo, preso a uma doença incurável. Só guardei esta imagem de uma passeata por vários quilómetros em locais que dão pelo nome de Lofthouse, Rothwell e Robin Hood. Nunca me passara pela cabeça que uma figura mítica da minha infância, Robin Hood, tivesse direitos a nome de localidade. Não é surpresa para ninguém que os britânicos preservam a memória dos seus combatentes, particularmente da Primeira Guerra Mundial, a tal que os generais britânicos prometiam resolver em semanas e que durou quatro anos nos lamaçais da Flandres e de França, com milhões de mortos. Era impossível não reter esta imagem, a simplicidade do monumento e o permanente cuidado de gente anónima que aqui deixa as flores da sua gratidão.

Regresso amanhã a Lisboa e pedi aos meus anfitriões que me depositassem em Buscot Park, a residência do Lord Faringdon, agora sob os cuidados do National Trust, algo como o Instituto do Património Nacional, que zela não só sob o parque e as propriedades agrícolas e conserva Buscot House, que é visitável entre abril e setembro, no seu interior guarda-se uma coleção de pintura, mobiliário, cerâmica e porcelana e objetos de arte de incalculável valor. Coube a Alexander Henderson, primeiro Lord Faringdon, a expandir o espaço de jardim e sistematizar a coleção das obras de arte. Não escondo o que me atrai no interior desta casa, são as pinturas de Burne-Jones, a figura suprema dos pré-Rafaelitas, que cirandou por esta área e deixou marcas do seu genial trabalho. É no salão que se encontra uma série de quadros baseados na alegoria da Bela Adormecida, de uma qualidade estarrecedora, os olhos ficam presos a tal apuro pictórico.

Buscot House, austeridade neoclássica, influências neorrenascentistas
Uma escultura de Centauro à frente da fachada de Buscot House
O grande salão de Buscot House, mobiliário estilo Império e quadros de Burne-Jones sobre a alegoria da Bela Adormecida
Retrato de homem por Rembrandt, coleção de Buscot House
Pandora, pelo pré-Rafaelita Dante Gabriel Rossetti, Buscot House

Imprescindível é vir ao Salão de Chá construído no antigo estábulo. Dá gosto ficar aqui a contemplar esta pintura contemporânea e depois percorrer durante algumas horas o belo jardim murado chamado das quatro estações, visitar a avenida egípcia, onde não falta um obelisco, bisbilhotar o edifício do teatro, o grande lago e o charco, estava um dia ameno, daí ter que advertir o leitor que não era viável captar a intensidade do verde, passeei em todas as direções e aqui deixo o produto do meu trabalho, sinto-me sempre preso pela magnificência com que todo este espaço ajardinado se mantém cuidado, tornava-se imprescindível partilhar convosco o deslumbrante destes verdes, destas águas, destes arvoredos, destas esculturas.
E aqui me despeço, regressarei em breve, virei acompanhar este meu querido amigo à sua última morada.

Os frescos das paredes da Casa de Chá de Buscot Park foram pintados no final do século XX por Ellen-Ann Hopkins e evocam o estilo renascentista de Veronese, aludem a cenas familiares da família de Lord Faringdon e também estão relacionadas com motivos do parque. É um grande prazer beber um chá e comer uma fatia de bolo em ambiente tão prazenteiro e paredes tão coloridas, é uma animação que convida a voltar.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23957: Os nossos seres, saberes e lazeres (549): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (84): Em Oxford, em dia de exéquias reais (Mário Beja Santos)

sábado, 7 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23957: Os nossos seres, saberes e lazeres (549): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (84): Em Oxford, em dia de exéquias reais (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Era a completa euforia de regressar a Oxford, palmilhar as artérias que se tornaram inesquecíveis. Quando ia a caminho do Museu Ashmolean, não resisti a entrar na loja HMV (His Master's Voice), guardo um bom punhado de cds com gravações fenomenais, remasterizações, a 5 libras cada. Entrei em estado de choque, agora é bonecada e roupa, a música é uma mera adição aos negócios. Já tivera a má experiência na Waterstone, outrora uma livraria icónica, agora tem espaço reduzido, os principais andares estão destinados a comes e bebes, dói que se farta. Houve a tentação de ir até aos jardins, depois da grande acumulação de imagens que aquele belo museu Ashmolean oferece. Mas a tentação de regressar a sítios tão prezados venceu, daí a visita à igreja de S. Miguel e depois a grande surpresa da catedral do Christ Church, despedi-me com um bom passeio pelos jardins. Segue-se amanhã uma pequena viagem até ao Wakefield, a razão de ser desta vinda a Inglaterra é abraçar alguém que tem pouca vida pela frente, segue-se uma curta estadia em Faringdon, dela vos quero fazer um relato.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (84):
Em Oxford, em dia de exéquias reais


Mário Beja Santos

Feita a visita ao Museu Ashmolean, há um apelo irresistível para entrar na igreja de S. Miguel Arcanjo, templo religioso que é a igreja da cidade de Oxford, criação milenária, a sua torre é um dos mais antigos edifícios de Oxford, aqui se alberga o tesouro da igreja, valiosas alfaias religiosas. Conheceu alterações no século XVIII, tem um belo púlpito que data do século XV, os vitrais são uma preciosidade, alguns deles datam do século XIII, o seu interior possui uma enorme harmonia como se pode ver nas imagens seguintes, felizmente havia claridade que permitiu registar as cores genuínas da pedra da torre, o património mais antigo de Oxford.

Numa dessas buliçosas ruas de Oxford dei com esta bela casa Tudor, obviamente bem intervencionada, a cidade universitária vem da Idade Média, ainda há espécimes arquitetónicos do período Tudor, aliás membros da casa real desta dinastia apoiaram a fundação de colégios.
Carfax é considerado o centro da cidade de Oxford, faz a junção de importantes ruas, caso de St. Aldate’s. Sempre que passo por aqui, lembro-me de uma memorável história do detetive amador Sherlock Holmes, criado por Sir Arthur Conan Doyle, que inventou uma Lady Frances Carfax.
É dia das solenes exéquias em honra da Rainha Isabel II. Passa-se à porta da Catedral de Chirst Church, os porteiros perguntam se se vem homenagear a inesquecível rainha, diz-se prontamente que sim, só se pode visitar a catedral, a famosa coleção de arte hoje está encerrada, nada de fotografias, pode-se permanecer uns minutos a ouvir o ensaio geral do Requiem de Mozart, que será escutado esta noite. Com muita discrição e alguma manha por ali se deambulou, olhou-se à volta a ver se havia vigilância, tomaram-se algumas imagens, sentado, enquanto subiam os acordes com plena intensidade dramática do Requiem de Mozart apanhei uma nesga daquela fabulosa abóbada em palmeira de leque que me lembrou a King’s Chapel, de Cambridge, foi um regalo para os olhos e para os ouvidos. O Christ Church College é gigantesco, conforme se pode ver nas imagens seguintes.
Um dos aspetos mais cativantes desta vida universitária passa pelo anúncio dos eventos culturais, que são imensos, sobretudo no período escolar. São quilómetros de cartazes a publicitar conferências, recitais, espetáculos teatrais, exposições. Em Cambridge é a mesma coisa.
Ia a caminho do belo edifício do Sheldonion Theatre, uma belíssima rotunda, uma obra-prima de Sir Christopher Wren, em estilo barroco contido, não resisti a fotografar dois edifícios bem demarcados, o que mais me tentou foi a ilusão ótica da sua aproximação.
A ponte dos suspiros é uma construção icónica desta cidade universitária, une dois edifícios, tem as suas semelhanças com a celebérrima ponte veneziana, é um regalo para os olhos. É hora de partir, amanhã vou para o norte, viagem breve para me despedir de alguém que muito amo e que tem pouca vida pela frente. E depois regresso a Faringdon e espero dar-vos mais notícias.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23934: Os nossos seres, saberes e lazeres (548): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (83): Uma visita ao Ashmolean, o Museu de Arte e Arqueologia da Universidade de Oxford (Mário Beja Santos)