Mostrar mensagens com a etiqueta Iracunda. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Iracunda. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24899: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (19): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Mês de Agosto de 1970



"A MINHA IDA À GUERRA"

19 - HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: CAPÍTULO II - ACTIVIDADES NO TO DA GUINÉ

MÊS DE AGOSTO DE 1970

João Moreira



SITUAÇÃO
1. TERRENO
O capim cresceu desmesuradamente, as bolanhas estão alagadas. Os percursos tornam-se mais difíceis embora de dia a chuva ajude pois refresca.
Emboscadas noturnas insuportáveis pois a chuva é permanente.

2. NT
Mais experientes e adaptados, como é natural. Actuação calma.

b. ACTIVIDADE
Actividade normal com 1 saída diária.
Em 07AGO70 operação ALMA MINHA do BCAÇ 2861.
Uma série de notícias referem concentração de Grupo IN (MAQUÉ) na região de NHANE, BISSAJAR, BANCOLENE.
A CCAÇ 13 de BISSORÃ e a CCAV 2721 seguem juntas até BISSAJAR onde se separam. A CCAV 2721 para se dirigir a NHANE a CCAÇ 13 para BANCOLENE e JAGALI MANCANHA. Dois contactos da CCAÇ 13 em que sofre 1 ferido grave e provoca 2 mortos confirmados ao IN, recupera 3 (M) e 3 (C), captura 1 pistola e 1 canhangulo e destrói 5 casas de mato e meios de vida.
A CCAV 2721 não contacta e recupera 1 (M) em NHANE.
A operação foi comandada por PCV pelo Cmdt. Batalhão e foi apoiada por 1 heli-canhão.
Em 19 fugiram 2 mulheres que tinham sido recuperadas em JULHO em IRACUNDA.
Domingo, 231700, grupo IN não estimado flagelou o quartel e povoação com morteiro 82 durante 10 minutos, de BINTA 7E6 provavelmente. Provocou 1 ferido grave e 1 ligeiro, ambos civis. Foi pedido apoio aéreo visto ser a melhor maneira de provocar baixas. Dois FIAT não se fizeram esperar e metralharam a zona.
Mais tarde, série de notícias C-3 recebidas da CCAÇ 2465 refere que o IN sofreu 5 mortos nesta flagelação, entre os quais um comandante de grupo. Estas notícias são no entanto improváveis no julgar deste comando.
Em 26 fugiu 1 homem que fazia parte do grupo recuperado em IRACUNDA. Com este homem iam a fugir mais 4 mulheres que no entanto foram impedidas por elementos da população nos trabalhos agrícolas.
Nota-se já com a experiência que fica de Companhias anteriores que os MANDINGAS fogem muito enquanto que os BALANTAS pouco.
Este facto não deverá ser só atribuído a idiossincrasia étnica, a mentalização, etc.
Assim o facto mereceu uma pequena investigação, e algumas conclusões expostas no relatório A/P.

​EXTRACTO DO RELATÓRIO PERIÓDICO DE ACÇÃO PSICOLÓGICA N.º 5/70

FACTORES DA SITUAÇÃO PSICOLÓGICA

POPULAÇÃO

Motivações susceptíveis de virem a ser exploradas pelo IN
Acerca da fuga de recuperados mandingas, muito mais frequentemente que de outras etnias, provoquei uma discussão aberta entre os chefes da população fixados no OLOSSATO e elementos recuperados tendo chegado a uma conclusão que é possível tenha interesse:
(a) Um dos motivos que os levam a fugir são laços afectivos com elementos que ficaram no mato, por ordem de importância: filhos, maridos, mulheres e irmãos.
(b) No entanto há um outro, talvez ainda mais importante e que segundo concluí, conhecida mesmo entre a população controlada pelo IN e que pode ser um dos factores impeditivos de apresentações além de, como já disse, provocar fugas:
- Os recuperados, quando são libertados para se integrarem na população, vão, como é natural, para casas de parentes com os quais habitam e colaboram até poderem adquirir a autonomia social e económica.
Ora, enquanto entre fulas e balantas existe uma verdadeira vontade de entreajuda, entre os mandingas (nos quais se nota desde a chegada dos parentes um excesso de zelo e de afinidades de parentesco) persiste um certo espírito de exploração económica e de cobiça sexual, que tentam efectivar à sombra da bondade e vontade de ajuda do parente desprotegido.
Assim este último, ao fim de algum tempo começa a sentir-se alvo de pressões a que dificilmente tem coragem para resistir (não têm os parentes as "costas largas" com o apoio e confiança das autoridades civis e militares, enquanto elas são as réprobas, têm a "cabeça cheia de vergonha" e não devem merecer a total confiança das autoridades? - possivelmente serão os próprios parentes que lho faz "ver" explícita ou implicitamente por meio de observações, conversas, insinuações, censuras) e vai cedendo lentamente, parte das vezes permitindo até violações à tradição que tão fortemente o marca. A rapariga que tem o noivo no mato e se vê a casar com um camafeu estabelecido. O artífice que vai começando a ganhar "patacão" e é explorado "ab início" sob a alegação que está a ser ajudado pelo anfitrião. O "tio"ganancioso que recolheu em casa a rapariga recuperada e põe dificuldades ao seu casamento com o rapaz de que gostou porque quer receber o pagamento respectivo, (pois o pai dela está no mato, "sabe-se lá onde e como coitado") mas não tem direito a esse pagamento enquanto o pai dela for vivo, podendo aparecer em qualquer altura e exigir o dote à família do rapaz que não está para pagar duas vezes (não se trata aqui de respeitar um direito de tutor visto a rapariga ter já entrado na maioridade). O velho ou quase, que cobiça os braços da rapariga para a lavoura e a sua beleza e juventude para carinho e prestígio senil, forçando-a sob pretexto de gratidão a união desigual.
Enfim, um sem número de pressões, pequenos ultrajes, a que recuperado se vê sujeito no seio dos seus próprios irmãos e que forçosamente afectam a sua vontade de permanência.
Quase me arriscaria a dizer que o problema dos familiares (mesmo os filhos) ficados no mato, é de somenos importância, perante a submissão a que se veem obrigados, até porque a psicologia gentílica é muito mais atreita a factores de ordem económica e social do que propriamente a uma afectividade na maior parte das vezes consequência daqueles mesmos factores.
Suponho que o problema existe realmente e não é de desprezar para recuperação e integração dos Mandingas.

Em 27 durante a picagem da estrada para BISSORÃ, para uma coluna de reabastecimento, foidetectada e levantada 1 mina A/C reforçada com 1 mina A/P em BINTA1I8.31.

Da crítica à Act. Op. n.º 78 do COMANDO-CHEFE consta que:
"A CCAV 2721, que vinha desenvolvendo apreciável actividade, acusou, no período, ligeira quebra de rendimento".
A esta crítica respondeu o BCAÇ 2861: "Em referência à crítica supra, informo V. Exª. que a ligeira quebra de rendimento da CCAV 2721 foi devido ao facto de nos dias 29 e 30 de Julho, embora previstas acções nas regiões de BISSAJARINDIM e COLI SARE, conforme constava do Planeamento da Actividade Operacional elaborado pela CCAV 2721, aprovado por este Comando, do qual se envia 1 cópia, se terem realizado colunas auto entre OLOSSATO-BISSORÃ e BISSORÃ-OLOSSATO.
Por lapso não foi mencionado no n/SITREP n.º 529, a realização da coluna auto, BISSORÃ-OLOSSATO, a cargo da CCAV 2721.

Da crítica n.º 80 transcreve-se:
" . . . anotando-se ausência da actividade noturna da guarnição do OLOSSATO (CCAV 2721)."

(c) RESULTADOS
- Baixas ao IN
Recuperado - 1 elemento da população
Apresentado - 1 Elemento da população

- Material capturado
Mina A/C - 1 levantada
Mina A/P - 1 levantada

- Baixas NT
feridos - 2 elementos da população


Com baixa para saídas, por ter arrancado uma unha e não poder calçar.
Bilhete de Identidade Militar

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24877: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (18): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Julho de 1970 - Acção "Bacará"

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18631: Notas de leitura (1066): “Tatuagens da Guerra da Guiné”, pelo Capitão Luís Riquito; Guerra e Paz Editores, 2018 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
O então Capitão Luís Riquito desembarcou em Bissau em 1965, andou a afeiçoar a sua CCaç 816 em territórios de inequívoca dureza, entre Bissorã e Olossato, e meses depois, quando o Olossato estava no centro do furacão, coube-lhe construir e reconstruir em Olossato, Ponte Maqué, desobstruir estradas e abrir caminho, ao tempo tão intimidativo, para a base do Morés.
Para surpresa de muitos leitores, aparece em relatos em que os grupos de combate se afoitam pela floresta e tratam gente que vive sob o controlo remoto da base do Morés e grupos incidentes. Foram reagrupados e de um modo geral não voltaram a fugir para o mato.
Um relato um tanto formal onde não se escondem dolorosas e também dulcificantes situações naquele contexto tão áspero em que o PAIGC firmava posições e era crucial afronta-lo, no dia-a-dia.

Um abraço do
Mário


Nas terras do Oio, entre 1965 e 1966

Beja Santos

“Tatuagens da Guerra da Guiné”, pelo Capitão Luís Riquito, Guerra e Paz Editores, 2018, é um relato memorial de quem comandou a CCaç 816, que desembarcou em 26 de maio de 1965, o narrador dá pelo nome do Capitão Fernando Gonçalves, usa a terceira pessoa do singular e centra o essencial do seu registo em terras do Oio, mais concretamente Mansoa, Bissorã e Olossato. Para quem desconhece aquela floresta densa e fechada, o narrador fala-nos de várias campanhas de pacificação e dos seus povos. É informado das bases do PAIGC espalhadas pelo Oio: Morés, Iracunda, Cai, Cansambo, Cambajo (quatro bases de segurança periférica da base central), e de Maqué, de Biambi, de Queré e de Rua, bases regionais vocacionadas para o apoio logístico e o controlo das populações.

É uma peça de literatura memorial que obedece à estrutura de um relatório desdobrado em itens. Depois do que ele denomina treino operacional, esta Companhia independente chega em finais de setembro de 1965. Descreve o subsetor do Olossato e as missões de que está incumbida a sua Companhia. Era tudo trabalhoso e tanto, as forças do PAIGC não davam descanso: frequentes emboscadas às colunas da estrada para o Olossato; a estrada para Farim estava interdita, fora limpa e aberta em julho de 1965, não deixou de haver violência; destruição em 3 de agosto de 1965 da ponte de Maqué, onde foram implantadas minas antipessoal; abatises na estrada entre Mansoa e Bissorã, foram removidos; ataque à guarnição de Olossato, em 15 de agosto de 1965, e muito mais. Havia que reabilitar e construir infraestruturas, procurar e acolher populações transmalhadas, gerar boa convivência, patrulhar, intervir em operações, assistir e abastecer as populações dentro das suas tabancas. E tudo se descreve: a destruição de uma serração, um ponto estratégico onde as forças do PAIGC atacavam quem partia ou chegava ao Olossato; o diálogo com os Muçulmanos. E é dentro desta formalidade descritiva, um tanto seca e rígida, que surge um episódio emocionante, uma memória de Bacar Queba, este diligentíssimo combatente é atingido por uma mina, levado para a enfermaria, ficara cego, quer falar com o Capitão, e este regista a conversa pungente e transmite-nos uma dor universal:
- Esta mina era mesmo muito perigosa, Bacar, e tu conseguiste safar-te, pá. Aquela era para limpar quem apanhasse e tu safaste-te. Tiveste mesmo muita sorte, Bacar. Sabes como foi e como podia ter sido, pá! Dentro deste azar, tu sabes que tiveste muita sorte por continuares aqui a falar comigo e tens todos os teus amigos da OITO16 a rezar por ti, para que fiques bem e continuares a trabalhar por esta tua gente. Uma vez que chegaste aqui, o nosso furriel está a preparar tudo para seres transferido para o Hospital de Bissau e os médicos podem resolver e recuperar a tua vista, percebes?
- Pois é, Capitão, mas eu estou aqui sozinho mesmo, pá, e o que eu quero mesmo, mesmo, é voltar para aí! Para sentir isso aí fora, percebes Capitão? Dá cá a tua mão, para eu sentir outra vez isso aí fora, pá!

O Capitão estendeu a mão direita a Bacar que, ao segurar, a apertou com força, num cumprimento de esperança, de camaradagem e de amizade correspondida, e desabafou:
- Agora já sinto, Capitão, já sinto isso aí fora onde tu estás e estou a ver-te, mas eu estou longe, pá; mas agora assim estou melhor, já sei onde estou e a lembrar com quem estou a falar, sabes. Parece que voltei, Capitão, já sinto mesmo, pá.

Há um aspeto que seguramente emocionará o leitor, a integração das populações espalhadas pelo mato que em sucessivas ações os homens da CCaç 816 vão ao contacto, e trazem quase sempre com sucesso gente que é forçada a cultivar e a alimentar as forças do PAIGC. Um conjunto de descrições que deverá doravante merecer a atenção dos historiadores para situar naquele tempo ainda fortes debilidades no controlo remoto exercido por Morés sobre populações que viviam foram da base.

A batalha de Maqué, expressão usada pelo autor para esmiuçar todo o trabalho desenvolvido para beneficiar o destacamento e garantir a segurança da ponte de Maqué, não deixando de referir que para além destas reconstruções, a CCaç 816 foi envolvida num conjunto apreciável de operações, patrulhamentos, emboscadas a que não faltaram duros confrontos, abrindo-se caminho para ir mais destemidamente até ao núcleo central do Morés.

Luís Riquito muniu-se de informação sobre as campanhas de pacificação, leu René Pélissier, Luís Cabral, Amílcar Cabral, seguramente que guardou arquivo de todas as atividades da CCaç 816, a não ser todo este arquivo não nos poderia dar com tal grau de minúcia as intervenções no Oio e no Morés. E destaca aquela coroa de glória que foi a Operação Castor, onde intervieram a CCaç 816 com um grupo de combate da CCAÇ 1418 e Caçadores Nativos do Olossato, saíram do Olossato em 19 de fevereiro de 1966 e apanharam muitíssimo material e algumas emboscadas pelo caminho.

Em 27 de julho de 1966 a CCaç 816 deixa o Olossato e vai para Mansoa, passa a intervenção e fica-se igualmente com um relato das operações por onde andaram. A memória detalhada do Capitão Luís Riquito culmina com um grande desastre ocorrido no quartel novo de Mansoa, o Capitão procurou evitar mais graves danos humanos e materiais, houve para ali um forte litígio verbal e não-verbal com um camarada de armas.
O documento termina com a orgânica da CCaç 816, os seus mortos e feridos e louvores.

Uma peça a considerar para o estudo da guerra da Guiné na zona crucial de Morés, entre 1965 e 1966.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18622: Notas de leitura (1065): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (34) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16733: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (23): Ainda a história rocambolesca do David Costa, meu camarada, que terá sido capturado pelo PAIGC em 17 ou 18 de maio de 1967, entre Mansoa e Braia, e que andou desaparecido 3 a 4 meses... (Jorge Lobo, ex-1º cabo at art, CART 1660, Mansoa, 1967/68)


Guiné > Mapa geral da província > Escala 1/500 mil (1961) > Posição relativa de Mansoa e Braia (NT) e Iracunda e Morés (PAIGC). O David Costa que saiu do quartel de Mansoa por volta das 15h do dia 17 de maio de 1967, terá seguido, sem rumo, na direção de Braia (onde havia um destacamento das NT) e sido intercetado nesta região, mais tarde,  por forças do PAIGC que o levaram até à base do Morés e depois para o Senegal, Ziguinchor, onde terá conhecido o médico, português, desertor, e militante do PAIGC, Mário Pádua.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


1. Comentário do nosso camarada Jorge Lobo ao poste P16721 (*)

Relativamente ao comentário que a nossa Tabanca Grande fez ao poste do  Jorge Araújo, eu gostaria de acrescentar algo ao que eu próprio já tinha cá escrito sobre a deserção do David Costa.(**)

Ora bem, depois da cena da carta com a fotografia que alegadamente teria sido enviada pela namorada de um camarada do David, de nome, Chantre, 1º cabo enfermeiro da Cart 1660, o David acabrunhado com a situação decidiu sair do quartel de Mansoa vagueando pelos arredores
da vila até se perder no terreno.


1º cabo at art, Jorge Lobo, CART 1660 (Mansoa, 1967/68),
subunidade que esteve adida aos BCAÇ 1857 e BCAÇ 1912.
Tem um pequeno blogue, com 9 postes publciados
desde 2011, Guiné 1967/1968. Vive em Corroios,. Setúbal,

Eu estava na caserna no momento em que começou a sua odisseia, isto em 17/05/1967. A sua saída do quartel aconteceu por volta
das 15 horas,   logo após a distribuição do correio....

Entretanto, anoiteceu e deduzo que o David se tenha desorientado seguindo a estrada na direção de Braia [- Infandre-Bissorã].

Pelo que ele conta no seu livro, viu as luzes do quartel de Braia (?) ou então Cutia, mas decidiu não arriscar a entrar dentro do arame farpado.

Sou de opinião que o pessoal das tabancas na saída de Mansoa-Braia colaboraria com os guerrilheiros do PAIGC e,  ao ver aquele militar fardado, só e desarmado,  a sair da vila, provavelmente comunicou isso ao PAIGC. Tê-lo-iam seguido durante a noite, penso que o local da captura não seria muito longe do quartel, talvez entre Mansoa e Braia.

Os guerrilheiros do PAIGC teriam capturado o rapaz [, já no dia 18 de maio de 1967,]  tendo-o levado para a zona de Morés e arredores, nomeadamente para Iracunda,  perto da estrada que liga Bissorã a Mansabá. É uma região que conheço bem devido a várias emboscadas e ataques que lá fui fazer com a Cart 1660.

O rapaz, após a sua captura teria estado em alguns acampamentos do PAIGC incluindo na mata de Iracunda perto da estrada Bissorã-Mansabá e onde a minha companhia posteriormente fez um golpe de mão com vário material de guerra apreendido. Iracunda situava-se junto à tal picada, Bissorã-Mansabá, que na altura estava intransitável devido a imensas árvores que o PAIGC atravessou nessa via e que eu próprio constatei em várias operações  em Morés.

De Iracunda o David deve ter partido em direção ao Senegal (Zinguichor), levado pelo grupo do PAIGC, o mesmo grupo que o tinha antes capturado.
  Recordo que o David esteve desaparecido cerca de 3 a 4 meses, período este em que viveu a sua terrivel odisseia atravessando a Guiné entre Morés, Zinguichor, etc, odisseia que só ele saberá contar em pormenor.

Sei que depois do seu regresso a Mansoa, ele foi interrogado no quartel Foi até bastante mal tratatado chefe de operações do BCAÇ 1912 ao qual a Cart 1660 estava agregada, tendo inclusive saído com uma das companhias desse batalhão na tentativa de se conseguir que ele os levasse aos locais que antes ele tinha visitado, o que não foi conseguido porque o David compreensivelmente não conseguiu descobrir o seu anterior trajeto até à sua captura.

Segundo o rapaz contou na altura, o regresso dele foi feito através de Dacar, mas também já li por cá outras histórias diferentes em relação ao local onde a avioneta militar o foi buscar no Senegal.

Está correta a data da sua saída do quartel, 17/05/1967.
O caso da fuga do Daniel Alves deve ter acontecido já depois do julgamento do David, ao qual eu assisti, ao vivo.

O meu camarada foi condenado a 2 anos,  um mês e um dia de prisão nos primeiros dias de novembro de 1968, cerca de uma semana antes da CART 1660 ter regressado à metrópole. (***)

Jorge Lobo, 1º cabo Lobo, atirador da CART 1660 (Mansoa, 1967/68).
__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de novembro de 2016~>  Guiné 63/74 - P16721: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XII: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [III]: o encontro, em Boké,com o médico português Mário Pádua (Jorge Araújo)

(**) Último poste da série > 15 de novembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16722: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (22): Quem terá sido o Daniel Alves, "duplamente desertor" ? Primeiro, fugiu das nossas fileiras, possivelmente em 1967, e depois das fileiras do PAIGC... Amilcar Cabral, traído e preocupado, escreveu: "O Daniel Alves conseguiu enganar a malta (sic) e fugiu em Dacar. É um facto banal numa luta (deserção ou traição), mas pode complicar-nos muito a vida em relação aos amigos"....

(***) Sobre o caso do David Costa, vd. ainda os postes de;

5 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16686: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (18): Mais um caso "atípico", o de David [Ferreira de Jesus] Costa, ex-sold at art, CART 1660, Mansoa, 1967/68 (Virgínio Briote)

27 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7351: Controvérsias (112): David Costa, da CART 1660 (Mansoa, 1966/68): Déserteur malgré-lui ? / Desertor à força ? (Jorge Lobo, ex-1º Cabo, CART 1660)

23 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6776: Notas de leitura (133): Desertor ou Patriota, de David Costa (Mário Beja Santos)

domingo, 14 de outubro de 2012

Guiné 63/74 – P10531: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (21): Operação Outra Vez, objectivo: Iracunda

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 11 de Outubro de 2012:

Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro.O que sai logo à ideia é enviar-vos um grande abraço, e este mail encontrar-vos em plena boa saúde.
Aqui vai mais uma página “ arrancada” do meu caderno de memórias “ Páginas negras com Salpicos cor-de-rosa”.

Passem bem
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

- 22 de Junho de 1965 (quase 1 mês de Guiné) -

IRACUNDA 
(ainda hoje, ao falar, há ainda uma residual sensação)

Foi o batismo de fogo da 816: mais de 20 minutos de fogachada em Iracunda. Julgo que toda a espécie de arma que o inimigo usava na altura em toda a Guiné, estava toda ali.
Não foi a minha primeira vez no mato mas lá que foi a primeira vez que chamei a Nossa Senhora lá isso foi!
Iracunda ao tempo era o verdadeiro braço armado da base de Morés, no OIO.

Localização de Iracunda, estrada Bissorã-Mansabá, a sul do Olossato e a NW do Morés, bastião do PAIGC no Oio. 
Vd. carta da Província da Guiné.
Legenda de CV

Certo dia então chegou a ordem para os 2.º e 3.º Grupos de combate prepararem-se para saírem para o Olossato. Não sabíamos, mesmo nós os Sargentos, qual seria o objetivo. Se bem que não estranhássemos (?) a falta de dados, uma vez que sabíamos que na guerra o sigilo tem toda a importância, ficamos na desusada expectativa quanto ao que nos estava reservado com a Operação Olossato. A ordem veio lacónica embora concisa, à boa maneira militar. Sem fazermos qualquer objeção (pudera!) ou simples pergunta (pr’a quê?), embora a nossa curiosidade nos incitasse a tal, vestimos uma vez mais o camuflado, armamo-nos como de costume e abalamos rumo às viaturas que se encontravam já alinhadas, à saída do aquartelamento de Bissorã, na direção da estrada para o Olossato, ali bem perto do edifício civil da Administração de Bissorã e da rotunda com um pequeno monumento no meio. O centro de Bissorã, afinal.

Encarávamos o trajeto com certo pessimismo, (periquitices) pois a estrada que liga Bissorã a Olossato tinha fama de aparecerem muitas emboscadas, principalmente na zona da “carreira-de-tiro”, nome que a tropa deu e que ficava sensivelmente a meio caminho até Maqué e que atravessava um local de capim muito denso, mesmo propício a uma cilada. Também nesta estrada era frequente aparecerem minas e fornilhos, dizia-se. Sabíamos também que era uma zona batida pelos terroristas da fortíssima base de Morés e que a estrada passava por Maqué, a meio caminho, onde algures também existia uma casa-de-mato.

No entanto, uma vez que esta nossa saída foi rodeada do maior segredo (o que até em Bissorã parecia não funcionar muito bem), havia toda a possibilidade de os não termos à perna, o que não queria dizer que, pelo menos, não tivéssemos de depararmo-nos com minas e outras quaisquer armadilhas. Assim, e como era de contar com isto, a estrada foi picada por uma secção e à vez. Porque a coluna levava à frente homens apeados - os picadores -, obrigava a uma progressão lenta, embora segura, quanto a minas.

Os cerca de 15 quilómetros que separavam Bissorã do Olossato, ou melhor até Maqué (~8-9 Kms.) , percorridos de tal forma, pareciam não ter fim. As secções alternavam-se à frente na picagem da estrada, e quando essa mudança acontecia, havia uma longa paragem da coluna, o que fazia ainda mais enervar.

O trajeto, o primeiro que fazíamos naquela estrada, que tão badalada era - já em Bissau, quando passamos por Brá, ouvíamos falar dela, pelos seus perigos -, foi feita no clima da maior “suspense” e expetativa. Os “longos” quilómetros foram-se então calcorreando até que chegamos a Maqué sem qualquer novidade.

Logo divisei do lado oposto e do outro lado do pontão (ponto de encontro) uma auto-metralhadora e alguns soldados de camuflado já muito coçado, muito queimados (era a velhice). Rostos queimados do impiedoso sol, grandes barbas e/ou bigodes, tudo aquilo denunciador de velhos amigos daquelas paragens. Eram elementos da Companhia de Artilharia n.º 566, a Companhia que estava sediada no Olossato. Tinham picado a estrada do lado deles e portanto dali para a frente já ninguém foi apeado, pelo que a marcha foi imposta pela velocidade das viaturas.

Alguns quilómetros volvidos, deparam-se então as primeiras moranças, outras mais, mais ainda e eis que nos aparece o aquartelamento de Olossato. Troncos de palmeiras já muito gastos a fazerem de paliçada em toda a volta do aquartelamento; abrigos de sentinela cilíndricos e em cone no teto nos 4 cantos do quadrado da fortificação. Tudo no entanto bem arrumadinho e cuidado. Troncos de palmeiras, chapa dos bidões da gasolina e barro da Guiné para encher, eram os materiais utilizados. Na ponta de um mastro, já bem dentro do quartel, bem alto, ondulava a bandeira portuguesa, orgulho nosso e a chama do nosso valor e coragem. Numa alisada chapa de bidão logo sobre a “Porta d’armas”, podia-se ler em letras e números bem grandes, pintados à mão e com relativa habilidade: “C. ART. 566”. Esta chapa estava bem ao alto e logo à entrada do quartel. Eram ali que moravam os “velhinhos” da 566, Companhia que tinha muita fama pelo valor evidenciado através de êxitos e mais êxitos por aquela temerosa zona do Oio.

Tive mais tarde ocasião de o assim constatar, ao trabalhar com eles no mato.

Poucos meses atrás, pouco antes de virmos para a Guiné, tinham eles tido um formidável êxito na base de Morés. Aprisionaram entre 2 a 3 toneladas de material de guerra entre ele diversas e valiosas metralhadoras pesadas.

Aquele cenário no Olossato fez-me lembrar logo os filmes de cow-boys do western americano: muros construídos com trocos de palmeiras, cavalo-de-frisa e arame farpado a embrulhar tudo, e homens armados de carabina (diga-se G3) e em tronco nu e bem queimados; barbas, barbichas e exóticos bigodes e muita descontração; chão vermelho e poeirento também.

Olhei em redor a ver se encontrava por ali algum conhecido, mas não encontrei ninguém. Ouvi então risos e palmadas nas costas, mesmo atrás de mim. Virei-me e era o Zé Baião que tinha encontrado um seu conterrâneo eborense e amigo. Este era o Furriel Martins. Conversaram, riram, mas não era preciso haver conhecimentos, pois ficávamos logo em família sempre que se davam estes encontros. O Martins usava um chapéu à cow-boy, mais um dado característico dentro daquela encenação.

Receberam-nos muito bem e logo se aprontaram a arranjarem-nos comer na messe deles. Embora fosse da praxe, os visitantes serem bem recebidos pelos seus anfitriões, o certo é que os camaradas da 566 foram inexcedíveis em gentilezas, pelo que, viríamos a manifestar o nosso reconhecimento com grande ênfase. Ficamos desde o primeiro minuto a gostar daquela maralha e, diga-se de passagem, que também conquistamos a simpatia deles. Almoçamos então em clima de grande confraternização e depois de contarmos, e principalmente ouvirmos as aventuras da malta ali na Guiné, fizemos uma partida de futebol na parte da tarde.

O pequeno campo de futebol dentro do aquartelamento do Olossato que ficava junto às messes quer dos Oficiais quer dos Sargentos onde, antes umas horas de irmos à base de Iracunda, jogamos à bola com a malta da 566. A casa atrás da baliza seria mais tarde a secretaria da 816 onde estava o saudoso 1.º Rodrigues (falecido cá e já com alguma idade - paz à sua alma) e o desenfiado do “Boavista”, sempre com o Primeiro a perguntar-nos onde andava este, …na bola quase sempre. A casa do lado direito, já civil, e fora do aquartelamento, julgo ser a casa do Sr. Fodé, nativo,vendedor de panos e outras miudezas e apetências nativas.

Ao fim desta, fomos então, nós os da 816, chamados ao nosso Capitão (não foi preciso lembrar-nos que não fomos ali para jogar futebol) e por ele fomos postos ao corrente da nossa missão, agora com a informação em detalhe. O objetivo era para nós desconhecido, mas que lá ia ficar bem no nosso conhecimento lá isso ficou. Os velhinhos da 566 já o conheciam, e bem o notei logo no olhar apreensivo dos que iam alinhar com a gente, que tal refúgio não era nenhuma pera doce. Diante de um mapa estendido sobre uma mesa, fomos então elucidados pelo Alferes Victor da 566 coadjuvado pelo nosso Capitão, quanto ao efetivo do inimigo, seu armamento, quantidade e posição dos sentinelas, dispositivo que nós íamos adotar, etc., etc. A hora de saída do aquartelamento foi fixada para a 1 hora da madrugada. Objetivo: IRACUNDA!

Nada nos dizia (a nós os da 816), mas, só até lá chegar…

Depois da operação ficamos com a certeza que na verdade Iracunda era uma grande base terrorista, talvez até mais bem operacional do que a de Morés, isto dito também pelos da 566 e pelo chinfrim que houve também.

As lavadeiras do Olossato evidenciavam bem como a Guiné era muito fértil em boa fruta

Por gentileza de um colega Furriel da 566, dormitei um pouco na cama dele, acumulando energias, até à hora da partida. O jogo da bola tinha sido um grande desgaste, mas como havia o maior segredo, esse desgaste não foi poupado. Nesta altura, calmamente e com tempo, foi-me preparando. Peguei na minha G3, verifiquei o funcionamento da culatra, apalpei os carregadores nas cartucheiras, fixei bem a fivela do cinto do camuflado e fui beber um pouco de café. Um pouco de bagaço também para aquecer e a malta foi aparecendo. A noite estava com um intenso luar. A coluna foi-se formando no maior dos silêncios e, como autómatos, depois de tudo verificado, guarnições de “bazooka” e de morteiro, pessoal indígena carregador de granadas, nativos voluntários (de Mauser”!!) etc., fomos deixando Olossato no sentido oposto aquele pelo qual tínhamos vindo de manhã de Bissorã. A operação Iracunda tinha-se iniciado.

Olossato ia ficando para trás e a sua iluminação ia-se assim reduzindo para dar lugar às trevas. Como sempre, calculávamos o tempo de maneira que chegássemos às imediações do objetivo (refúgio) algumas dezenas de minutos antes da hora previamente combinada para o assalto. Servia tal interregno para nos refazermos um pouco da caminhada e ultimarmos também pormenores (se necessário), sobre o assalto. O facto de na maior parte das vezes chegarmos muito cedo às proximidades do objetivo devia-se também à progressão ter sido feita sem sobressaltos, nomeadamente do guia não nos ter feito andar às voltas, como não raras vezes acontecia, e que o tempo previsto também contemplava estes tipos de atraso mais ou menos previsíveis. Com o dito descanso, recuperávamos da caminhada e as nossas condições quer físicas quer psicológicas (sem nos vermos livres do nervoso miudinho, contudo), eram bem melhores. Até que chegamos junto de uma zona mais ou menos descoberta mas com folhagem suficiente para nos encobrir e camuflar uma vez sentados ou deitados. Estávamos ao longo de uma sebe e a escuridão da noite fazia o resto. Teríamos os cantares dos variadíssimos pássaros em breve a denunciar o nascer do dia.

(A descrição seguinte, em itálico, que faz parte integrante da narração desta operação “tirei-a” para introito do livro das minhas memórias - “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”- e nessa qualidade já saiu no Blogue (post 1809). Para aqueles que não gostam de ver coisas repetidas, as minhas desculpas)

"Eram 4 horas e meia da madrugada quando paramos. Fazia noite, noite escura. Já tínhamos andado um bom par de quilómetros.

Olhares que se interrogam e… era a espera.

Era aquele terrível espaço de tempo que se repetia sempre em todas as operações de “Golpes de mão”. Era aquela inquietante altura do tempo que nos punha na maior tensão e ansiedade. Era o aguardar da hora H, a hora do assalto ao refúgio inimigo e era ao mesmo tempo o retempero das energias gastas ao longo da caminhada.

Algumas dezenas de metros mais adiante estava o inimigo, oculto, algures acoitado naquela densa e emaranhada mata. A obscuridade dava às árvores e à sua folhagem feições de figuras fantasmagóricas e assustadoras. Estávamos todos reunidos, uns sentados, outros deitados, outros ainda nas posições que mais lhes apeteciam. Havia o maior silêncio, apenas cortado por um ou outro pigarrear inevitável ou pelo estalar de folhas secas provocadas pela mudança de posição deste ou daquele.

De olhos extasiados, circunspectos e de músculos contraídos, entreolhávamo-nos e parecia interrogarmo-nos: Como vai ser?..., Haverá surpresa?..., Conseguiremos o objetivo?, ou estarão eles já alertados e à nossa espera com uma emboscada montada?

Eram estas as pertinentes interrogações que nos martelavam o cérebro numa expectativa profundamente emocional. Que pesadelo!!... Não, naquela altura não éramos seres humanos, sentíamos e pensávamos como irracionais, quais animais selvagens prontos a atacar a presa.

Estávamos ali para matar, sim, matar, matar o semelhante, só que este tratava-se do inimigo, que, também… nos queria matar.

…E chegou a hora!!

O dia começou a nascer. Era na semi-obscuridade a altura ideal para atacar. Em pé e como autómatos tomamos as posições iniciais de fila indiana e a coluna retomou a marcha. Os cuidados agora redobravam-se. Era a etapa final, a curta etapa que precedia o ataque. As armas foram tomando nas mãos a posição adequada e os cuidados de progressão cingiram-se ao máximo.

De repente, inesperadamente, soa um tiro!... e foi o começo! Foi como que uma gigantesca trovoada então entoasse no silêncio da madrugada. As rajadas ouviam-se incessantemente; o matraquear da metralhadora pesada inimiga fazia-se destacar com as suas fortes detonações; os rebentamentos de granadas de “bazooka” e lança-“rockets” faziam-se aqui e acolá; o fogo era pleno… de parte a parte. A nossa reação, como que impelida por uma mola, foi imediata. Vi os soldados de dentes cerrados e feições crispadas apertarem com raiva os gatilhos, e trocarem os carregadores em movimentos nervosos mas calculados.

Foram 25 minutos de fogo cerrado e ininterrupto, e… embora lentamente, o inimigo foi cedendo… cedendo….

A peito descoberto e ainda debaixo de fogo, avançamos em “leque” em passos firmes e decididos na direção do refúgio inimigo que, entretanto, se põe em debandada, mas sem, no entanto deixar de atirar na nossa direção, com rajadas cada vez mais esporádicas e cada vez também mais distantes.

E o refúgio de Iracunda deu então lugar a gigantescas chamas que reduziram a cinzas aquela importante e estratégica base inimiga algures no Oio, zona de grande poderio e concentração inimiga.

O inimigo reagiu, e, de que maneira! Reagiu forte e decididamente!

Aliás foi o primeiro a atacar, pois tinha-se gorado o fator surpresa que contávamos, o que aliás acontecia em grande parte das vezes, e então emboscou-se aguardando a nossa aproximação.

O tal tiro era o sinal para abrir fogo.

Deram bem a noção da sua força, quer humana quer bélica. Tinham-nos também escapado, mas o seu tributo não tinha deixado de ali ser pago e de forma implacável: no chão, jaziam os corpos de três inimigos; três corpos despedaçados, por, presumivelmente, granadas das nossas “bazookas” ou dos nossos morteiros".

Foi uma terrível emboscada junto àquela base, e a atestar essa força, viu-se no que alguém da 566 nos disse já no regresso: “Eu já sabia que isto era assim, mas não convinha vos dizer”. Compreensivelmente aquiesci.

Depois do inimigo desbaratado e destruído completamente o seu refúgio, começamos a reagrupar as respetivas Secções. O intenso e demorado tiroteio tinha-nos tirado parte da lucidez e por momentos a malta viu-se desorganizada. O Capitão Riquito e o Alferes Castro tiveram mesmo que gritar para que a malta começasse a andar e ao mesmo tempo a reorganizar-se. As casas-de-mato mais importantes na Guiné (julgo) tinham também uma escola. A de Iracunda tinha a sua. Deu bem para ver. Os djubinhos das tabancas adjacentes não andavam ao Deus dará, não. Escola limpa, bem arrumada e asseada que indiciava muita disciplina e ordenação e que me ficou na retina.

Uma escola do PAIGC algures nas matas da Guiné. A que presenciei em Iracunda não fazia muita diferença no ordenamento, mas era mais simples e artesanal. Ao legítimo proprietário da foto a minha vénia pela reprodução aqui feita por mim.

Folhas de papel impressas, soltas (algumas podem ser vistas em reprodução de seguida) que recolhi para recordação (!!) que serviam para ensinar as crianças a escrever e a ler. As folhas que ensinavam o A E I O U e nas “entrelinhas” o incentivo ao combate aos colonialistas e à independência do povo nativo. Muito pedagógicas em todo o sentido.


Entretanto aqueles minutos de hesitação e desorganização permitiram ao inimigo o seu reagrupamento e o ensejo de fazerem ainda algum fogo bem dirigido àquilo que fora o seu refúgio e onde nos encontrávamos agora nós. Imediatamente ripostamos, embora que com poucas armas, pois estávamos desorganizados e até de algum modo desprevenidos. Ficamos a saber que era assim, quando o inimigo era desalojado reagrupava-se adiante umas dezenas de metros e agora disparava sobre os novos locatários do refúgio. Isto deveu-se mais à falta de experiência do que a outra coisa, pois se para o meu Grupo de combate era ainda o segundo contacto com o inimigo, para o 2.º Grupo era mesmo o primeiro. O inimigo “calou-se” então, se bem que tornasse a fazer-se ouvir através de tiros isolados e de muito longe, mais a querer dizer “até logo”. Começamos então a andar rumo à origem: Olossato.

Dada a resistência inimiga e às possibilidades de reagrupamento do mesmo, e uma vez que o nosso abandono do refúgio foi demorado, contávamos com emboscadas por o caminho. No entanto, e ao contrário do que era de supor, o inimigo não se emboscou, razão a que não foi alheia, concerteza, a impressão que lhe causamos com o destemido assalto ao refúgio ainda debaixo de fogo. E por vezes também haviam erros de cálculo. Talvez isto. Terá acontecido isso.

No regresso fomos queimando, sistematicamente, as tabancas e moranças que nos iam aparecendo, aliás como era habitual em análogas circunstâncias. Ao chegarmos a elas e como também invariavelmente acontecia, encontrávamo-las com um aspeto de recentemente abandonadas, portanto numa ação denunciadora de que ali habitavam terroristas ou pró-terroristas.

Completamente extenuados física e psicologicamente, chegamos junto do cruzamento, local, que como tinha ficado combinado, nos encontrávamos com as viaturas. Pousei o capacete no chão e deixei-me cair, deitando-me um pouco. Naquelas alturas que se lixe a guerra. O desgaste físico e psicológico fazia-nos olhar para o céu de forma absorta e descontraidamente. A segurança, se bem que em caso algum era de descuidar, não seria muito pertinente, pois estávamos muito perto do Olossato. E às vezes que se lixe a segurança também; queríamos era o chão para as costas e a lembrança: “Oh(!) Rui olha a nossa cervejinha à espera”, como me dizia muitas vezes no mato o meu amigo, Furriel também, o açoriano Vieira, falecido recentemente - paz à sua alma.

Iracunda tinha então ficado bem conhecida da 816. Chegados ao Olossato logo tratamos de regressar a Bissorã. Uma vez chegados aqui fomos logo “assaltados” por os colegas que ali tinham ficado, que nos “metralharam” com perguntas e mais perguntas, satisfazendo assim a sua curiosidade e o conhecimento de causa. Afinal a 816 tinha andado aos tiros pela primeira vez.

Compreensivelmente, fomos respondendo com maior ou menor humor, se bem que o que mais me apetecia era sentir o mais depressa possível a água a jorrar pelo corpo abaixo e de seguida abocanhar o gargalo de uma garrafa de cerveja bem fresquinha. Estas duas coisas (banho logo seguido de uma cerveja fresca ou, ao contrário, a maior parte das vezes - haja paciência!- era o nosso prazer e a nossa alegria quando chegávamos do mato. A operação “Outra vez”, que curiosamente até era a primeira para a 816, a Iracunda, marcou-me indelevelmente para sempre e porquê: Saraivada de fogo durante longos e longos minutos a abrir a nossa operacionalidade. Só em ficção e em filme tinha visto daquilo. Armamento atualizado e estratégia poderosa do lado do inimigo.

E carago(!), aquilo não era para brincar, vi que andava por ali muito quem me queria tirar o sarampo e sem me conhecer de lado nenhum e sem eu ter feito mal a alguém.

____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 – P10348: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (20): Um sapo com asas no Olossato