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segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24538: Notas de leitura (1604): Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Será porventura a mais recente das biografias de Amílcar Cabral, trabalho mais de ruminação, sem acompanhamento de factos novos. Está bem estruturado, tem uma descrição cronológica relativamente bem montada, cai constantemente na hagiografia, o que significa que o autor cuidou pouco do distanciamento, foge em permanência das questões fracturantes, caso predominante da unidade Guiné - Cabo Verde. Não cuidou de bibliografia recente, esquece trabalhos de Toby Green, Joshua Forrest, Carlos Cardoso ou António Duarte Silva.Talvez útil para alunos das universidades norte-americanas, não traz inspiração para investigações guineenses ou mesmo portuguesas.

Um abraço do
Mário



Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy

Mário Beja Santos

Será porventura a mais recente biografia de Amílcar Cabral, Peter Karibe Mendy é um gambiano filho de guineenses de Bissau, ganhou notoriedade com a sua tese de doutoramento A tradição da resistência na Guiné-Bissau, 1879-1959; é professor de História e de Estudos Africanos no Rhode Island College, Providence, esta biografia foi ditada pela Ohio University Press em 2019.

Há que deplorar não trazer nada de significativo relativamente aos trabalhos mais recentes de Patrick Chabal, Toby Green, Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa. Tem-se a sensação de que o investigador leu muito o que já sobre Cabral se escreveu, ficou espartilhado por considerações hagiográficas que não têm o cuidado em depurar, usa pouco o contraditório e sente-se incapaz de nos dar uma observação refrescada sobre a atualidade do legado ideológico de Cabral. Reconheça-se, no entanto, que a biografia goza de uma estrutura bem organizada e acolhe os passos mais significativos da vida e do pensamento de Cabral.

Em Terra Natal, procura contextualizar a colónia da Guiné em que o líder do PAIGC nasceu, fala-nos da sua família, da ancestralidade cabo-verdiana e em Terra Ancestral insere a educação de Cabral em Cabo Verde, entre 1932 e 1945. Observa bem a atmosfera cabo-verdiana e não se esforça por fazer a distinção entre os aspetos radicalmente diferentes que separam duas formas de civilização e cultura, Guiné e Cabo Verde, e deixa no limbo o ressentimento multisecular dos guineenses face aos cabo-verdianos, que virá a ser exacerbado durante o período da governação de Spínola. Segue-se a preparação universitária do fundador do PAIGC em Portugal, a Mãe Pátria, continuamos sem novidades, e bem interessante seria que o autor tivesse invocado a obra de Dalila Mateus que ilumina como nenhuma outra a vida destes estudantes coloniais no pós-guerra do Estado Novo, as suas expetativas, laços de amizade, pois só assim se tornará compreensível a devoção de Cabral numa prática corrente de pan-africanismo com os líderes das outras colónias portuguesas.

E temos o regresso à Terra Natal, chega à Guiné em 1952, irá trabalhar na Granja de Pessubé, entrega-se devotadamente ao recenseamento agrícola, estabelece uma rede de amizades que preparará a ligação dos quadros cabo-verdiano e guineense que despontará formalmente em 1959. Como é sabido, dentro das diferentes desmontagens mitológicas, palavra de Julião Soares Sousa, este põe em causa o significado da reunião de 19 de setembro de 1956 que se tornará a mantra anos depois. O próprio Leopoldo Amado, em entrevistas feitas a dirigentes do PAIGC, a propósito da biografia de Aristides Pereira, encontrará incongruências e profundas hesitações entre aqueles que disseram ter estado no ato fundador do PAIGC em 1956. Como também faz parte da mitologia a expulsão de Amílcar Cabral da Guiné, ele regressou a Lisboa acompanhado da mulher, vinham profundamente doentes.

Peter Mendy dá-nos uma boa síntese da Lisboa da década de 1950 e a emergência provocada pelo desejo de libertação dos países inseridos em impérios coloniais. Cabral irá trabalhar para Angola e estará presente em agosto de 1959 na reunião determinante para a criação do PAI, embrião do PAIGC, de quem só se falará a partir dos anos 1960. Encetada a estratégia por ele delineada, fica um núcleo subversivo no interior da Guiné dirigido por Rafael Barbosa, Cabral parte para o exílio em Conacri, em condições precárias lança uma escola piloto e começa a obter apoios internacionais, o de maior realce é a preparação de jovens quadros na Academia Militar de Nanquim, serão estes que irão irromper em cena a partir do segundo semestre de 1962, o PAIGC procura responder de forma congruente às ações desenvolvidas pelo Movimento de Libertação da Guiné no ano anterior. Escolhe-se a região Sul para desencadear a subversão, a catequização e o ajuntamento de populações apoiantes da independência.

O autor, sem justificar as bases da sua afirmação, considera que as autoridades de Bissau estavam à espera de ações do tipo da UPA em Angola e que por isso começaram a disseminar forças militares pela extensa região fronteiriça, em rigor isso não é verdade, o contingente português ainda é muito pequeno, houve a noção elementar, logo no início da subversão, de que era necessário apoiar os núcleos populacionais que se temiam ser afetados, o êxito do PAIGC na região Sul decorreu da forma como foi bem recebida a subversão e como se isolaram povoações como Cacine, Catió ou Cufar, no Sul, ou Jabadá, no rio Geba. Quínara e Tombali, pela própria natureza do terreno, garantiram uma relativa segurança à presença das forças subversivas.

Quando se diz que Peter Mendy cai na armadilha da hagiografia basta ler a flagrante explicação que ele dá para a Operação Tridente, como se fosse um êxito absoluto do PAIGC. A ilha do Como, como é bem sabido, perdeu rapidamente a importância estratégica que a propaganda do PAIGC lhe atribuiu, encontraram-se outras posições no Sul muito mais influentes.

Chegamos ao Congresso de Cassacá e não se sabe por que carga de água é que aparece o nome de Inocêncio Kani, um dos futuros assassinos de Amílcar Cabral, acusado de ter vendido um motor, coisa que não aconteceu em 1964, mas sim em 1971.

Também a biografia nada traz de novo sobre o apoio cubano, as referências a Schulz é de um comandante-chefe que larga bombas de napalm e fósforo branco por toda a parte e que é obrigado a abandonar a colónia depois de um ataque perto de Bissalanca, onde o autor inventa a destruição de aviões e hangares, mais outra prova que não teve tempo ou interesse em ler o contraditório. Segue-se a descrição do período de Spínola, parece-me formalmente correto, tal como o capítulo subsequente sobre a solidariedade pan-africana e a ascensão mediática do líder do PAIGC. E assim chegamos ao assassinato, novo quadro hagiográfico, mais uma vez a incriminação da PIDE que se teria aproveitado do ressentimento dos guineenses contra os cabo-verdianos.

Peter Mendy esquece-se de referir que não se conhece o teor das sessões dos interrogatórios às centenas de acusados e às dezenas de incriminados, todo o documento escrito e magnético desapareceu. Em nenhum arquivo português se encontrou qualquer dado útil para a implicação das autoridades guineenses ou da PIDE de Bissau ou de Lisboa. Em nenhuma circunstância Peter Mendy manifesta vontade em dissecar a fragilidade da conceção teórica da unidade Guiné – Cabo Verde, ele fala de insurreições dos povos guineenses contra a ocupação portuguesa, nem uma palavra sobre as guerras sanguinolentas desencadeadas no século XIX com a queda do Kaabú e a ascensão dos Fulas que conduziram ao período dramático das guerras do Forreá, está possuído de um raciocínio limitativo de que as etnias guineenses viviam pacificamente entre si e coligavam-se para fazer frente ao opressor colonial português.

O capítulo A Luta Continua descreve a viragem da luta em 1973 e assim chegamos ao legado de Amílcar. Peter Mendy enfatiza documentos da maior importância produzidos por Cabral que denotam o seu génio, o vigor da sua habilidade diplomática, a sua comunicação e inspiração mantêm pertinentes: as suas advertências para o perigo de uma pequena burguesia gananciosa querer aspirar a ganhos pessoais aliando-se ao neocolonialismo; a essência de uma democracia revolucionária, baseada na participação das populações, no idealismo pan-africanista que exigia a descolonização mental. A atualidade do seu pensamento é ainda maior quando toda esta região de África caiu nas mãos de líderes populistas e tirânicos e todo este espaço se tornou uma rota de droga e da ameaça do radicalismo islâmico.

Um livro feito de muita mastigação, de grande candura face ao líder admirado, talvez útil para quem nada conheça sobre a vida e a obra deste gigante do movimento revolucionário.

Amílcar Cabral no gabinete de trabalho em Conacri, do acervo fotográfico de Bruna Polimeni, com a devida vénia
O “carocha” de Amílcar Cabral, que ele utilizou no dia em que foi assassinado
A devida vénia a Didinho.org
Palestra de Amílcar Cabral em Conacri, dirigindo-se aos seus quadros, com Aristides Pereira ao fundo, do acervo fotográfico de Bruna Polimeni, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24533: Notas de leitura (1603): "Análise de Alguns Tipos de Resistência", por Amílcar Cabral; edição conjunta de Monde Diplomatique e Outro Modo Cooperativa Cultural, 2020 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24167: Notas de leitura (1566): "Guineidade & Africanidade - Estudos, Crónicas, Ensaios e Outros Textos", por Leopoldo Amado; Edições Vieira da Silva, 2013, mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Foi minha preocupação agregar a bibliografia mais significativa referente aos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959. Juntaram-se as provas documentais sobre os factos e tomam-se agora as reflexões do Leopoldo Amado para a contextualização numa perspetiva do que representou para a luta de libertação. Se algum dos confrades que gosta de estudar este período que precedeu o início da luta armada possuir mais documentação pertinente à revelação de novos factos, agradece-se penhoradamente toda a ajuda que daí vier.

Um abraço do
Mário



Mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti

Mário Beja Santos

O historiador guineense Leopoldo Amado publicou em 2013 "Guineidade & Africanidade", um acervo de estudos, crónicas, ensaios e outros textos, Edições Vieira da Silva. Desse conjunto destaco dois documentos em que o autor releva a importância dos incidentes no Pidjiquiti, não se cinge particularmente aos factos do que ocorreu nessa tarde de 3 de agosto de 1959, insere-os num ecrã político onde se entrelaçam o movimento independentista africano, a emergência dos grupos nacionalistas na Guiné, a consolidação do pensamento de Cabral quanto à condução da guerra de libertação.

Começa por nos dar um quadro da vaga de nacionalismo guineense influenciada pela independência do Gana em 1957 e pelos países limítrofes, Guiné Conacri e Senegal, em 1958 e 1959, respetivamente. Na sua permanência na colónia da Guiné, entre 1952 e 1954, Cabral apoiou a fundação de uma agremiação desportiva, que não foi autorizada, segundo Leopoldo Amado há quem lhe atribua a paternidade da criação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, que se revelou irrelevante. Participou em reuniões, isso está demonstrado. 

Como é sabido, Julião Soares Sousa contesta a presença de Cabral na reunião de 19 de setembro de 1956 em que foi fundado o PAI – Partido Africano para a Independência, inequivocamente inerme até 1959, nem um documento consta. O Movimento de Libertação da Guiné (MLG), da responsabilidade de Rafael Barbosa, aparecerá ligado à grande greve do Pidjiquiti de 3 de agosto de 1959, toda a glorificação do martírio não tem por detrás uma prova factual da mão do PAI. 

Este Movimento de Libertação da Guiné foi fundado em 1958, um conjunto de nomes de fundadores aparecerá mais tarde no PAIGC. Escreve Leopoldo Amado que as movimentações para a criação do MLG terão remontado aos princípios de janeiro desse ano. E escreve o autor: 

“Sedentos de passar à ação, o MLG tenta gizar um plano assente sobretudo numa teia coesa de ligações com um considerável grupo de guineenses emigrados em Conacri, rapidamente se predispuseram a participar na exaltante obra rumo à independência nacional”. 

O encontro crucial para pôr em andamento o PAI ocorre durante a estadia de Cabral em Bissau, entre 14 e 21 de setembro de 1959, é neste tempo que se estabelecem as linhas de atuação, uma parte da direção do PAI fica em Conacri, Rafael Barbosa conduzirá a subversão no interior da Guiné. 

Um dos mitos alimentados pela hagiografia do PAIGC é o da expulsão de Cabral quando trabalhou no recenseamento agrícola e na granja de Pessubé, Cabral deixou bem claro por carta que regressava a Lisboa porque ele e a Maria Helena estavam gravemente afetados pela malária. É completa atoarda que tenha sido forçado a ir para Angola, foi ele que escolheu ir trabalhar para uma empresa próspera, a Sociedade Agrícola do Cassequel, bem remunerado.

Voltemos ao Pidjiquiti e ao que escreve Leopoldo Amado: 

"Depois de Pidjiquiti, para além de Cabral ter optado por estabelecer em Conacri a retaguarda segura para o PAI, sucederam-se outros importantes acontecimentos que mostram inequivocamente a opção do PAI no sentido do desenvolvimento de uma guerra prolongada de libertação nacional”

E enumeram-se as diligências na cena internacional, são por demais conhecidas. E este trabalho conclui com a relação das ações subversivas que irão ser desenvolvidas em 1961 e 1962, mostrando mesmo a ascensão efémera de outros grupos de libertação que designadamente a partir de 1964 desaparecerão da cena.

Noutro estudo intitulado “Simbólica de Pidjiquiti na ótica libertária da Guiné-Bissau”, novamente Leopoldo Amado considera os acontecimentos como tributários de outros, e escreve: 

“O efeito multiplicador da atuação dos nacionalistas guineenses esteve por detrás da primeira greve dos marinheiros, ocorrida em 1957, no cais do Pidjiquiti, em Bissau, greve essa, de resto, bem-sucedida, na medida em que esses marinheiros viram satisfeitos grande parte das reivindicações, a ponto de a mesma vir posteriormente a potenciar, pelo precedente aberto (mas igualmente por ação de elementos do MLG), a grande greve que ocorreu em 1959, na qual foram mortos cerca de 50 marinheiros, tendo ficado gravemente feridos cerca de uma centena”.

E para o autor estas duas reivindicações do Pidjiquiti, nomeadamente a última, popularizaram rapidamente a ideia de uma luta comum contra o colonialismo português, seria estratégia do PAI a tentativa de eleger os seus membros no sindicato dos trabalhadores, rapidamente se apreendeu que não eram essas pequenas reivindicações urbanas que permitiam estender a luta aos menos favorecidos. 

Daí a tese de Cabral de que era definitivo conquistar o proletariado no universo agrícola, tese que irá revolucionar a doutrina da luta de classes que era proposta pela vulgata marxista leninista. Leopoldo Amado aproveita este trabalho para falar dos primórdios do fenómeno nacionalista, fala da Liga Guineense, das múltiplas recusas em pagar o imposto de palhota e em certos atos desumanos do trabalho forçado. Este seu trabalho retoma o primeiro que citámos e volta deste modo aos acontecimentos do 3 de agosto de 1959: 

“Para além do massacre do Pidjiquiti corresponder justamente ao momento em que a agitação clandestina atingia o seu ponto máximo, permitindo o seu violento desfecho, possui o condão de ter reforçado a consciência segundo a qual era necessário optar por outras formas de luta para responder com violência à violência colonial. Foi também este massacre que impulsionou, pouco depois (janeiro de 1960), a criação em Tunes da FRAIN (Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas), no decurso da Conferência dos Povos Pan-africanos".

Nestes termos, segundo Leopoldo Amado, os acontecimentos de 3 de agosto de 1959 representaram a irreversibilidade do processo nacionalista na Guiné, “ultrapassando o seu alcance político as de mera reivindicação laboral, na medida em que, a montante do processo libertário guineense, circunscreve-se como um elo importante na cadeia de acontecimentos direta ou indiretamente a ele relacionados, pelo que não é nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial”.

Dá-se por finda esta itinerância à bibliografia referente ao que se passou em 3 de agosto de 1959, persistem dúvidas quanto ao número de vítimas em mortos e feridos, a quem esteve por detrás do desencadeamento da greve, parece estar tudo claro quanto ao que aconteceu a partir do momento em que apareceu a polícia, que foi maltratada e maltratou, que regressou reequipada e depois a chegada do Exército. Não se possuem outros factos documentais para além dos citados.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24156: Notas de leitura (1565): Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: Mais bibliografia disponível (Mário Beja Santos)

terça-feira, 21 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24157: O nosso livro de visitas (218): Luís Reis Torgal, conhecido historiador e professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra: "por vezes passo os olhos pelo blogue, fui alf mil trms, Cmd Agr 2952 e COMBIS, Mansoa e Bissau, 1968/69"

1. E
m comentário de 9 de abril de 2022, a uma das páginas do nosso blogue. de que só agora demos conta, o Luís Reis Torgal, conhecido historiador e professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra, escreveu:

Por vezes passo os olhos pelo blogue, porque estive na Guiné em 1968-1969 (oficial de transmissões do Comando de Agrupamento 2952, de Mansoa, e do COMBIS), tendo regressado, a convite da embaixada de Portugal em Bissau, por duas vezes. 

Como hoje me apareceu no meu computador, desta vez sem o procurar, lembrei-me de informar os camaradas que jamais esqueci a Guiné, onde o meu filho fez 2 anos quando fui transferido para Bissau com todo o Comando, tendo mais tarde, como professor da Universidade de Coimbra, orientado a tese de doutoramento de um guineense, Julião Soares Sousa, sobre Amílcar Cabral. É considerada por muitos o melhor trabalho de investigação sobre o líder do PAIGC. Foi várias vezes publicada com o seguinte título: Amílcar Cabral (1924-1973). Vida e morte de um revolucionário africano. Lisboa: Vega, 2011 (1.ª edição).

Grande abraço
Luís Reis Torgal



2. Comentário do editor LG:

Meu caro professor e camarada Luis Torgal:

Muito nos honra a sua visita. Desconhecia de todo a informaçáo que nos dá: (i) foi nosso cmaarada em Mansoa  e Bissau, nos anos de 1968/69; (ii) e foi o orientador da tese de doutoramento do  Julião Soares Sousa (que tem no nosso blogue nada menos que 37 referèncias).

Fica desde ká convidado a integrar a nossa Tabanca Grande e assim poder partilhar as suas memórias da Guiné, que do seu tempo do C,md Agr 2952 e do Combis quer das visitas que fez depois da independência. Tem aqui um resumo do nosso livro de estilo.

Para os nossos leitores, que o não conhecem da vida académica, aqui fica um resumo curricular, retirado da Wikipedia:

Luís Manuel Soares dos Reis Torgal (Coimbra, 14 de Janeiro de 1942) é oriundo da Beira Baixa e foi um professor universitário português, lente de História da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Actualmente intervém na área de História do Estado Novo. (...)

Licenciou-se em História em 1966, doutorou-se em 1978 e tornou-se catedrático em 1987. Leccionou disciplinas de História Moderna e Contemporânea e de Teoria da História na Universidade de Coimbra.

Em 2010 declarou publicamente que a decisão do governo português abolir 4 feriados (dois civis e dois religiosos) foi muito mal organizado e uma trapalhada completa e ilegítima. (...)

É coordenador de investigação do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20). Foi director da Revista de História das Ideias e da revista Estudos do Século XX. (...)

É primo do prelado D. Januário Torgal Mendes Ferreira.

 3.  Ficha de Unidade: Comando de Comando de Agrupamento nº  2952

Identificação Cmd Agr 2952
Unidade Mob: RAL 1 - Lisboa
Cmdt: Cor Art António dos Santos Gonçalves | Cor Inf José Martiniano Moreno Gonçalves
CEM: TCor Inf Hélio Augusto Esteves Felgas | Maj Inf José Bonito Perfeito
Divisa: "Para bellum ad pacem"
Partida: Embarque em 10Jan68; desembarque em 15Jan68
Extinção: Foi extinto em 7Jan69, passando a integrar o Comando de Agrupamento de Bissau (COMBIS)

Síntese da Actividade Operacional

Em 16Jan68, assumiu a responsabilidade da zona Oeste, com sede em Mansoa, rendendo o Cmd Agr1976, com o dispositivo dos batalhões sediados em S. Domingos, Farim, Bula, Teixeira Pinto, Mansabá e Mansoa.

Desenvolveu intensa actividade operacional de comando e coordenação das forças instaladas na zona e das atribuídas de reforço, planeando, impulsionando, e controlando a respectiva actuação sobre as linhas de infiltração e bases inimigas existentes.

Em 10Ju168, foi rendido na zona Oeste pelo Cmd Agr 2951 e transferido para Bissau, onde assumiu a responsabilidade operacional da zona respectiva, então criada a nível Agrupamento e integrando o sector do BCaç 1911, com a missão de comandar e coordenar a actividade das unidades e subunidades ali existentes e garantir a defesa da ilha de Bissau e dos seus pontos sensíveis.

Em 7Jan69, o Cmd Agr 2952 foi extinto, passando os seus elementos a integrar o Comando de Agrupamento de Bissau (COMBIS), então criado por despacho do Ministro do Exército.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 123 - 2." Div/ 4* Sec., do AHM).

Fonte: Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 150
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de dezembro de 2022 Guiné 61/74 - P23887: O nosso livro de visitas (217): Pedro Galriça, filho do ex-cap art Fernando Manuel Jacob Galriça, cmdt da CART 1647 / BART 1904 (Bissau, Quinhamel e Binar, 1967/68)

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23801: Notas de leitura (1520): "Por Cabral, Sempre - Forum Amícar Cabral 2013 - Comunicações e discursos"; organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
As efemérides em torno de figuras consagradas devem merecer uma organização que permita desvelar olhares renovados sobre o pensamento e ação do dito consagrado. Este fórum Amílcar Cabral que teve lugar na cidade da Praia em 2013 tem muita parra e pouca uva, muito salamaleque e pouca visão repercutente de como o pensamento de Cabral continua a ser atual em África. Do desapontamento de tanta comunicação deslavada, com o mais do mesmo, chama a atenção a capacidade reflexiva de Carlos Lopes, a investigação cuidada do historiador Julião Soares Sousa, o mais influente biógrafo de Cabral, que desvela o realismo e a profundidade da visão do líder do PAIGC que jamais ignorou que conduzia uma luta em que não podia dar muitos exemplos edificantes do sucesso da era pós-colonial, o PAIGC alargava-se enquanto novas nações viviam atormentadas por elites cúpidas e corruptas, prometendo unidades e desunindo-se rapidamente, o historiador, bem documentado, olha para a África de hoje e pondera que o pensamento de Cabral, hoje, tem a mesma frescura que há mais de cinquenta anos atrás, lamentavelmente.

Um abraço do
Mário



Cabral, o pensamento revolucionário no mundo contemporâneo (1)

Mário Beja Santos

Por Cabral, Sempre, comunicações e discursos apresentados no Fórum Internacional Amílcar Cabral, em janeiro de 2013, na Praia, com organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016, tinha como tema central a leitura do pensamento de Amílcar Cabral à luz da contemporaneidade. Para além da sessão inaugural, das mensagens, dos discursos e dos anexos, ao longo de mais de quinhentas páginas discorre um bom punhado de oradores, lê-se tudo do princípio ao fim à busca de tratamentos inovadores, olhares refrescados sobre o líder político ainda hoje considerado como figura de pódio do pensamento revolucionário, há um travo amargo de muita parra e pouca uva, muito incenso e pouca convicção, bastante retórica e palavreado fácil, mais escória do que metal sonante. No entanto, impõem-se três nomes com comunicações que apraz registar e fazer a síntese da essência do que ficou registado: Carlos Lopes, Julião Soares Sousa e Miguel de Barros com Redy Wilson Lima.

Carlos Lopes ventilou o temário “Amílcar Cabral como promotor da ideia pan-africana”. Foi aos primórdios da ideologia pan-africanista e como esta afetou os jovens africanos oriundos das colónias portuguesas. Equiparando a pujança intelectual de Cabral com a de Frantz Fanon, escalpeliza três conceitos dominantes no seu pensamento: a definição de unidade, a falta de ideologia em África e o combate pelo lugar na História. Muito cedo os novos estados emergentes do pós-colonial, com a boca cheia de promessas de unidade, desentenderam-se e fragmentaram-se. Cabral justificava a unidade Guiné – Cabo Verde em congruência com o pan-africanismo, não ignorando a corrente refratária em Cabo Verde de um sentimento de hostilidade na Guiné, por razões históricas, em relação a Cabo Verde. Assumiu a unidade como um compromisso com o pan-africanismo, não iludindo que precisava de promover uma defesa anticolonial contabilizando aquilo que ele chamava a história em comum. Serviu-se da cultura como elemento primordial que daria no decurso da luta armada a identidade da nova nação. Pouco dado a ilusões, nunca deixou de supor que a sua luta triunfasse mas não se mentia com os tremendos riscos postos, alcançada a independência. Como observa Carlos Lopes no termo da sua comunicação:
“Desde cedo, Cabral e Mário de Andrade, alertados pelas derivas totalitárias de Sékou Touré, Nkrumah e Kenyatta, se preocuparam com a utilização identitária como forma de construção de uma ideologia travesti do pan-africanismo. Para proteger os movimentos a que estavam associados tais perigos, multiplicaram os apelos à democracia popular e direta. Esta revelou-se, porém, ser uma muito débil resposta a tendências que se revelaram fortíssimas.
A famosa chamada de atenção de Cabral para o suicídio da pequena burguesia deve ser entendida como um eufemismo para confessar a impossibilidade de conter as derivas dos movimentos nacionalistas, ou o seu aproveitamento para fins menos nobres. Na realidade, trata-se de uma confissão indireta de que o processo histórico, expressão tão usada nos anos 60, tomaria o seu rumo. Para mal do pan-africanismo e do próprio projeto nacional”
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Mais adiante, Julião Soares Sousa discreteou sobre “Os desafios da construção do Estado em África: uma releitura do pensamento de Amílcar Cabral na perspetiva da contemporaneidade". O historiador propôs-se analisar os desafios atuais da construção do Estado em África mediante uma releitura contemporânea do pensamento de Cabral. Cabral advogava uma proposta de rutura radical com a herança político-administrativa colonial, era imperativo barrar o caminho de qualquer modalidade de neocolonialismo ou criar elites negras prontas a repetir as mesmas táticas dos colonos. Daí ter sempre tratado a luta de libertação como um ato de cultura, a necessidade de o novo Estado se pautar pela autonomização económica e daí a sua permanente advertência para o desenvolvimento da agricultura, dizia repetidamente que era imprescindível a descentralização dos ministérios e que esta devia ser implementada de acordo com as necessidades das massas camponesas. Cabral também foi premonitório sobre os perigos da elite política se concentrar em Bissau, seria um íman para atrair e empolar o centro urbano em detrimento do desenvolvimento dos campos. Realista, punha em destaque os objetivos sociais e as necessidades básicas da população, atormentando assim os ideólogos de pacotilha quando asseverou: “Lembrar-se sempre de que o povo não luta por ideias, por coisas que estão na cabeça dos homens. O povo luta e aceita os sacrifícios exigidos pela luta, mas para obter vantagens materiais para poder viver em paz e melhor, para ver a sua vida progredir e para garantir o futuro dos seus filhos”. A luta armada foi crescendo enquanto África continuava à espera de uma verdadeira revolução, Cabral tinha consciência dos problemas da Nigéria, mesmo tendo sido contrário à secessão do Biafra, tinha plena consciência das diferenças gritantes entre os detentores dos cargos públicos e o povo, era profundamente crítico das novas cliques políticas que rapidamente se enriqueciam e pavoneavam com carros luxuosos, indiferente a um povo pobre e desgraçado. Igualmente se mostrava apreensivo com a má gestão dos dinheiros públicos, do mesmo modo como tecia considerações para os golpes de Estado que assolaram África entre 1965 e 1966, um caráter golpista que se prendia com o tribalismo, a ganância do poder e a tentação neocolonial. Como observa o historiador Julião Soares Sousa, foi um processo eivado de contradições em que se tentou forjar o desenvolvimento do sentimento nacional perseguindo chefes tradicionais, ficcionando tentativas de golpes de Estado, gerando estados de terror entre as populações, afastando-as de todo e qualquer sentimento revolucionário. Não era por acaso que Cabral insistia na questão da pequena burguesia e de que lado ela iria estar, ou na contrarrevolução. O historiador aborda o contexto de uma rutura epistemológica essencial dada pela crise do socialismo e pela chegada em pleno do liberalismo económico a África que acarretou novos quadros de instabilidade e a anomia do Estado. Como ele escreve, “Em África muitos Estados, nomeadamente os frágeis, não têm conseguido cumprir com alguns critérios básicos devido às fracas ou nulas infraestruturas do poder, que nem sempre penetram toda a sociedade, associadas a outras importantes dimensões internas (fraco controlo sobre o território e sobre a população e ausência de estudos e de estatísticas) e externas (excessiva dependência do exterior)”.

Em jeito de epílogo, Julião Soares Sousa pondera a pouca eficiência dos Estados, o modelo de boa governação, regressando ao pensamento de Cabral e foca diretamente o que se tem passado na Guiné: “Como a classe política tem tentado encobrir, ao longo do tempo, a sua grande responsabilidade, criando a ilusão de que de facto os reais problemas residem nas Forças Armadas. A elite política tem-se aproveitado da situação de instabilidade por ela criada para acumular riqueza proveniente das ajudas internacionais, proventos ilícitos e até submergir o Estado em negócios obscuros ou transformando-o numa autêntica máfia (…) Cabral afirmava que deveriam ser os melhores filhos a assumir a liderança do processo de reconstrução nacional na era pós-colonial. Isto é, todos aqueles que, pela sua conduta moral e política, entregassem todo o esforço, sacrifício e capacidade ao serviço do povo (…) Na sua perspetiva, o dirigente deveria ser ‘o intérprete fiel da vontade e das aspirações da maioria revolucionária e não dono do poder, o senhor absoluto que se serve do Partido e não serve o Partido. Caberia ao Partido [entenda-se Estado] expressar a vontade popular no âmbito da democracia revolucionária, isto é, as aspirações do povo livremente expressas’.”

E de seguida, iremos dar a palavra a um curiosíssimo trabalho sobre o pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo Verde.

(continua)

Carlos Lopes
Julião Soares Sousa
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23794: Notas de leitura (1519): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23410: Notas de leitura (1461): "Crónicas Soviéticas", por Osvaldo Lopes da Silva; Rosa de Porcelana Editora, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
O nome Osvaldo Lopes da Silva está diretamente associado à presença de quadros cabo-verdianos que tiveram um papel da maior importância nos derradeiros anos da luta. Leopoldo Amado já entrevistara longamente este quadro do PAIGC e do PAICV tudo a propósito da sua participação no cerco de Guileje. É um documento memorial de quem acompanhou ininterruptamente durante 28 anos a história da URSS e procurou estudar as sucessivas evoluções até à desintegração da URSS. Julião Soares Sousa saudará no prefácio a importância destes testemunhos, que são raríssimos. Atenda-se ao que ele vai escrever sobre o papel da URSS não só no apoio ao PAIGC como no relacionamento havido com outros movimentos de libertação. Não é surpresa o que ele escreve do mau relacionamento entre o aparelho dirigente soviético e o MPLA.

Um abraço do
Mário



Memórias de um quadro do PAIGC e PAICV na União Soviética

por Mário Beja Santos


"Crónicas Soviéticas", por Osvaldo Lopes da Silva, Rosa de Porcelana Editora, 2021, é uma narrativa de índole memorial centrada fundamentalmente na década de 1960 e que acompanha a vida deste quadro do PAIGC e PAICV no seu relacionamento com a URSS, até ao seu desmembramento. 

Osvaldo Lopes da Silva cursava Engenharia Civil em Portugal quando, em 1961, aderiu ao PAIGC e partiu para o exílio. Completou o curso de Economia em Moscovo, foi comandante de artilharia na luta armada na Guiné, teve papel relevante no cerco a Guileje. Com a independência de Cabo Verde assumiu as pastas ministeriais da Economia e Finanças e posteriormente dos transportes, comércio e turismo. 

É, indiscutivelmente, um ensaio histórico a ter em conta não propriamente por relato que o autor nos dá da evolução da URSS, mas do seu papel com as lutas de libertação nacional, havendo referências bem claras do apoio dado pela URSS ao PAIGC.

O autor chega a Moscovo em finais de 1961, manterá uma relação ininterrupta de 28 anos com o país. Irá recordar as vivências do estalinismo, a ascensão de Khrushchov, a crise dos mísseis, a queda de Khrushchov, a invasão da Checoslováquia, uma narrativa que se prolongará até 1989, data em que ele visita pela última vez a URSS. Considera-se testemunha privilegiada da vida da União Soviética. Fala-nos dos seus estudos em Kiev, a tentativa dos anfitriões em dar explicações para as crises da Polónia e da Hungria, a doutrina da coexistência pacífica, mas o autor vai detetando situações anómalas, um exemplo. 

“O que ainda restava da paranoia securitária da era de Estaline atingia por vezes os limites do ridículo. Os cidadãos soviéticos não dispunham de lista telefónica. Nem mesmo os da maior cidade, Moscovo, com os seus 6 milhões de habitantes. Para ultrapassar a situação, a cidade de Moscovo, que já era imensa nos anos 60, era servida por uma rede de uns 10 quiosques, não mais, cada um depositário de uma lista telefónica.”

E descreve os interrogatórios de quem estava do lado de lá do balcão, tão minuciosos que afastavam os mais afoitos. Relata a vida universitária dos estudantes de África, Ásia e América Latina, as conversas havidas com antigos presos políticos, as prisões mais arbitrárias que imaginar se possa. 

E acompanhamos as estimas e amizades que ele vai fazendo com gente que lhe fala da História da Rússia, ainda do tempo do Romanov e da ascensão do bolchevismo, dir-se-á que não há aqui elementos históricos novos, mas é uma narrativa muito bem-apresentada, 

Osvaldo Lopes da Silva disseca o estalinismo em todo o esplendor dos seus crimes, vamos perceber o ódio enraizado dos polacos contra os russos, e mesmo antes da Segunda Guerra Mundial. Temos o corolário das purgas, antes de mais dos leninistas da primeira hora até ao complô que estava a ser montado sobre médicos judeus, estava igualmente prevista uma purga de físicos mas Estaline e Béria retraíram-se quando o físico-chefe deu a saber que o fabrico da bomba atómica se baseava na teoria da relatividade e da mecânica quântica, isto quando o aparelho comunista se preparava para exorcizar a “teoria idealista” da relatividade.

A narrativa prossegue dando conta da política de Estaline durante a Segunda Guerra Mundial, dos problemas emergentes com a China, as infâmias do acordo germano-soviético de não agressão de 1939, temos depois a era de Khrushchov, inicialmente cheia de esperanças, o abalo provocado pela crise dos mísseis de Cuba, a nova liderança soviética com Brejnev à frente, um período hoje inequivocamente classificado como de estagnação e da burocracia toda poderosa.

Em finais de janeiro de 1967, Amílcar Cabral chegou a Moscovo vindo de Cuba, dá instruções a Osvaldo para partir para Conacri. Está nessa altura em preparação uma formação militar em que participaram cabo-verdianos com novo armamento destinado à guerrilha. Salta o seu relato para a separação de Guiné-Bissau de Cabo Verde e escreve o seguinte:

“Na impossibilidade em que Cabo Verde se encontrava nenhuma intervenção no sentido de alterar uma evolução política que se anunciava destrutiva, fazíamos apelo aos amigos que nos acompanharam na Luta que se aproximassem mais dos guineenses, com ajuda e aconselhamento. Foi-me assegurado que a nossa interpretação dos acontecimentos ocorridos na Guiné-Bissau tinha pleno cabimento nas análises das autoridades soviéticas e aconselhavam-nos a deles tirar uma inequívoca conclusão: o projeto de Unidade Guiné-Cabo Verde estava morto e enterrado; tentar ressuscitá-lo só podia levar à desnecessária confrontação.”

O autor dedica um capítulo ao papel da URSS nas lutas de libertação, desvela que Khrushchov era apoiante da descolonização, daí a criação da Universidade Patrice Lumumba para milhares de jovens do terceiro mundo, e concedeu uma ajuda multiforme aos movimentos de libertação nacional. 

Os soviéticos eram pragmáticos, preferiam concentrar a ajuda na formação de quadros militares qualificados e graduar o fornecimento de material bélico à medida que o movimento de libertação nacional desse provas de controlar o terreno. Não esquece o grave diferendo sino-soviético e dá-nos uma imagem dos primeiros anos da luta dos movimentos de colónias portuguesas.

“O material fornecido pela União Soviética ao PAIGC começou por ser constituído por pistolas Makarov, carabinas SKS, pistolas metralhadoras PPCha, a pachanga dos guerrilheiros, morteiros, canhões sem recuo, tudo material que abarrotava os paióis dos tempos da II Guerra Mundial e que já não tinha qualquer utilidade para as renovadas e modernizadas forças armadas soviéticas.” 

Refere o salto qualitativo de 1969 com os cursos abarcando artilharia, minas e armadilhas, o PAIGC passou a receber os mísseis terra-terra GRAD e cada vez mais AK, em detrimento de PPCha.

E recorda que o ponto mais alto da ajuda militar da URSS ao PAIGC foram os mísseis antiaéreos Strela. Essa ajuda militar dava especial atenção à formação militar, em centros de formação ou em bases navais. 

Também foi dispensado apoio à formação de pessoal de saúde, formaram-se algumas centenas de ajudantes de enfermagem. É igualmente referido que o principal interlocutor de Cabral era Boris Ponomariov, o responsável pela programação anual da ajuda soviética na luta do PAIGC. É aquando de uma dessas visitas que o autor nos relata o que pensava sobre a unidade de Guiné-Cabo Verde e as discussões havidas com Cabral. Osvaldo tinha sérias reservas, como escreve. 

“A simples constatação da existência de fortes resistências ao projeto de unidade no seio de guineenses e de cabo-verdianos, as quais tenderiam a agudizar-se depois de vencido o inimigo comum, o colonialismo português, só poderia reforçar as minhas reservas. A plataforma que eu proporia seria no sentido de salvar o que fosse possível do relacionamento entre guineenses e cabo-verdianos, apresentado abertamente a unidade como um contrato para a luta, entre partes reconhecidamente diferentes, com claro respeito pela personalidade nacional de cada uma delas.” 

E discute com Cabral, que lhe pergunta mesmo se ele pensava que queria impor a unidade pela via autoritária, se não tinha confiança nele. Ao que Osvaldo respondeu: 

“Tenho toda a confiança no camarada Cabral. Não tenho é confiança num projeto que depende, em tudo, da boa fé de um só homem.” 

O autor conclui a sua narrativa com a descrição da cooperação Cabo Verde-União Soviética.

Como observa em prefácio Julião Soares Sousa, há um mérito maior neste trabalho. 

“É que são praticamente inexistentes memórias de quadros de movimentos de libertação que, tendo feito formação na URSS ou algures.  se predispuseram a relatar as suas vivências. Não podia deixar de enfatizar a importância deste contributo de Osvaldo Lopes da Silva para a História Contemporânea.”
Osvaldo Lopes da Silva, fotografia da Infopress de Cabo Verde, com a devida vénia
Fotografia tirada na base de formação militar de Perevalnei (Crimeia), em abril de 1969. Vê-se, da esquerda para a direita: Osvaldo Lopes da Silva, Samora Machel, oficial soviético, Amílcar Cabral, Agostinho Neto e não identificado.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23401: Notas de leitura (1460): “O percurso geográfico e missionário de Baltasar Barreira em Cabo Verde, Guiné, Serra Leoa”, por Graça Maria Correia de Castro; Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 2001 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22989: Notas de leitura (1418A): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março 2019:

Queridos amigos,
Não é a primeira vez que aqui se faz referência à investigação deste universitário norte-americano. Este seu trabalho está datado de 1991, contempla uma gama de entrevistas que ele efetuou em 1975 na Guiné-Bissau e recomenda-se vivamente, para quem pretenda estudar aprofundadamente este período da luta armada, os comentários que apresenta na sua bibliografia, extensíssima, ao tempo. Há factos apresentados que investigação posterior, é essa uma das grandes dívidas que temos ao trabalho de Julião Soares Sousa, demonstradamente mitificados: a fundação do PAI em 1956 (quando a sua primeira referência em público surge no início de 1960), a ligação direta entre o PAIGC e o massacre do Pidjiquiti, nunca se provou que os Manjacos sublevados tivessem recebido qualquer influência deste partido. É notório que ainda existe uma forte mitologia, a despeito do trabalho de investigação que põe a nu acontecimentos e situações que foram forjadas ao serviço da hagiografia. Acontece assim em muitos atos fundadores.

Um abraço do
Mário



A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1)

Beja Santos

“Amílcar Cabral’s, Revolutionary Theory and Practice, A Critical Guide”, por Ronald H. Chilcote, Lynne Rienner Publishers, 1991, é, indiscutivelmente, um dos estudos mais detalhados e bem organizados sobre o pensamento de Amílcar Cabral feito por um investigador estrangeiro. É um documento de referência, Ronald Chilcote é um académico norte-americano detentor de uma apreciável obra de investigação, desde cedo que se interessou pelo império colonial português, já aqui se fez referência a uma outra obra também de consulta obrigatória, a documentação que ele e a sua equipa organizaram sobre as posições assumidas perante a descolonização portuguesa, é um histórico muito bem elaborado para qualquer consultor à escala internacional.

Chilcote trata sempre Amílcar Cabral como um dos mais importantes pensadores do terceiro mundo, resume o seu percurso curricular (Cabral e o contexto histórico), socorre-se das impressões de outros biógrafos como Patrick Chabal, Gérard Chaliand, Basil Davidson, Mário de Andrade ou Joshua Forrest, o mundo universitário de Lisboa, os seus trabalhos como agrónomo e podólogo, a formação da teoria revolucionária, o diplomata, o seu legado; dedica um capítulo à teoria do colonialismo e imperialismo, disseca as considerações de Cabral sobre a situação colonial da Guiné Portuguesa, o estado de desenvolvimento das forças produtivas; a teoria do nacionalismo revolucionário e da libertação nacional, segundo Chilcote, é original em Cabral, este era conhecedor das teses marxistas-leninistas, estava plenamente informado das diferentes correntes do nacionalismo revolucionário emergentes dos anos 1950 para os anos 1960, o seu pensamento levou-o a desenvolver a cultura popular como acompanhante obrigatório da luta de libertação nacional, é nessa observação que ele vai intuir uma teoria de libertação nacional com dados inovadores, num território sem proletariado, a chamada luta de classes forjada pelas correntes marxistas, pertenceria a vanguarda da libertação a uma pequena burguesia que em determinada fase do processo revolucionário teria que decidir um suicídio de classe, optando pela doutrina revolucionária, ou resignando-se a ser um apêndice do neocolonialismo; daí outra vertente do seu pensamento, o que ele considerava ser uma teoria de classe e luta de classes.

Partindo do conceito consagrado de que classe e luta de classes eram em si o resultado do desenvolvimento das forças produtivas em conjugação com o sistema de propriedade dos meios de produção, Cabral questionou se a imensíssima massa humana dependente da agricultura estaria habilitada a tomar como eixo mobilizador a luta de classes quando, como no caso específico da Guiné, o colonizador não possuía terra, nem indústria, era um instrumento dentro de uma colónia-feitoria, assim havia que repensar a conceção de classe e luta de classes, e de novo o líder do PAIGC enfatizava o caráter marginal dessa pequena burguesia e da sua decisão histórica de se mobilizar, ou não, para as transformações revolucionárias; também nesse contexto, Cabral tomava como objeto de estudo as divisões e contradições existentes na sociedade guineense, os grupos étnicos, a essência religiosa, as chefaturas, as alianças ou hostilidades ao poder colonial, as formas primitivas das forças produtivas, a apropriação dos meios de produção e a ausência da luta de classes, daí passando para a importância da agricultura comunitária em oposição aos processos agrários feudais, considerando, no topo de todas estas reflexões a instituição de um modelo socialista que teria como sigla libertadora do jugo colonial “a unidade e a luta”, uma unidade étnica, conjugando os povos guineense e cabo-verdiano; neste processo de análise, Chilcote procede a uma curta síntese, convocando um conjunto de autores que estudaram a realidade socioeconómica da Guiné sobre as alianças que Cabral pôde instituir e o processo ideológico em que organizou a vanguarda revolucionária.

Assim se chega à explanação de como Cabral forjou uma teoria de Estado e desenvolvimento, Chilcote destaca que Cabral não deixou uma teoria consumada, ia-se formando por etapas, nas áreas libertadas foram erguidas escolas, infraestruturas de saúde, armazéns do povo, tudo numa lógica de desenvolvimento autocentrado, montou-se um sistema de justiça popular e esquemas de participação na vida comunitária, logo através da figura dos comités de tabanca. Para solidificar a emergência do Estado, dotou-o de estruturas políticas, caso do Conselho Superior de Luta, em determinada fase considerou que estavam criadas as condições para abalar a presença portuguesa através de uma consulta popular para chegar à independência e aprovação de uma constituição. Observa Chilcote que Cabral dava grande importância à tríade dirigente, à organização militar com as FARP à frente mas custodiadas por comissários políticos. Cabral considerava que o órgão supremo do povo seria a Assembleia Nacional Popular, esta seria a trave-mestra do novo Estado.

Chilcote analisa seguidamente a transição da luta de libertação para a construção do Estado e os problemas postos quanto ao modelo de desenvolvimento, optar pela agricultura, pela descentralização política ou, pelo contrário, enveredar pelo desenvolvimento industrial, concentrar o poder em Bissau, confiar em pleno nos projetos dos doadores. Sabe-se qual o modelo de desenvolvimento centralizador seguido pelos dirigentes do PAIGC e o seu falhanço, as tensões entre guineenses e cabo-verdianos que tiveram o seu desfecho no golpe de 14 de novembro de 1980.

Em jeito de conclusão, o investigador norte-americano resume os tópicos para futuras discussões sobre o pensamento e obra de Cabral, tópicos esses que ele considera os cinco principais em análise: o líder do PAIGC entendia que a luta pela independência da Guiné-Bissau ajudaria a suprimir a História interrompida do país, essa luta contra o colonialismo era o dínamo da História contemporânea, a matriz da identidade do Estado emergente; Cabral tinha uma visão singular de um socialismo, a sua teoria de nacionalismo revolucionário e libertação nacional fazia o entrosamento entre a cultura e a condição económica, acreditava que todo aquele sacrifício e dedicação pela causa da independência induziriam uma nova consciência em todas as linhas do progresso; a teoria da luta de classes das correntes do marxismo ortodoxo não eram por ele consideradas aceitáveis, ele identificou várias classes sociais, refletiu sobre as divisões e contradições existentes na sociedade guineense e nunca se iludiu com a noção de proletariado, reservou o papel de vanguarda para uma pequena burguesia sobre a qual teceu uma terrível consideração: ou se “suicidaria” ou aderiria ao nacionalismo revolucionário, deixou em muitos escritos uma organização de participação e confiava plenamente que o Estado independente iria absorver ou assimilar as novas estruturas das zonas libertadas.

Ronald Chilcote considera que tudo quanto se vier a estudar sobre o pensamento e a ação de Cabral não pode pôr de parte dois factos históricos: ele foi, acima de toda a luta pela libertação na Guiné, o pensador que dotou o novo país de um quadro organizativo e acreditava plenamente que mesmo com a modéstia de recursos a Guiné pudesse caminhar, também com a ajuda internacional, para novas sendas do progresso, com grandes transformações da economia agrícola; Cabral manejou, graças a uma análise independente do marxismo por uma fórmula nova que pretendia imprimir à situação revolucionária que ele sonhava para a Guiné-Bissau, a despeito de certas cedências ao marxismo ortodoxo.

O estudo de Chilcote inclui um importante apêndice e uma bibliografia anotada que merecem ser verificados, o que se fará seguidamente.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22977: Notas de leitura (1418): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte III: a influência dos "calafonas"

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21245: Notas de leitura (1297): A política económica e social na Guiné-Bissau, por Carlos Sangreman, Doutor em Estudos Africanos (1974-2016) (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Maio de 2017:

Queridos amigo,
Socorro-me desta síntese de Carlos Sangreman para se fazer uma viagem à vida da Guiné-Bissau até quase aos nossos dias. São postas questões determinantes, vários autores, caso de Julião Soares Sousa, tem procurado dar resposta, mas todos nós sentimos que há um pano de fundo na trajetória democrática, na pedagogia das elites, na obrigação dos partidos políticos se sentirem minguados há uma ideologia de coesão, solidariedade e prática dos valores nacionais sobrepondo-se à raiz étnica, enfim, nos grandes valores e princípios, há algo que falta para que a nação vibre e o Estado passe de frágil a um entidade viva, por todos respeitada.

Um abraço do
Mário


A política económica e social na Guiné-Bissau (1974-2016) (1)

Beja Santos

O autor deste documento é Carlos Sangreman, doutor em Estudos Africanos, consultor internacional com missões em todos os PALOP. Logo no resumo, dá-nos conta do propósito essencial: “Que políticas económicas e sociais a Guiné-Bissau concebeu e executou ao longo de 42 anos? Que base colonial existia em 1974 que tenha sido um ponto de partida para a governação do PAIGC? Com governos e presidentes fortes e fracos, com uma imagem de instabilidade permanente, acusados de favorecer o tráfico de drogas para a Europa, mas com uma paz social relevante para uma região assolada por guerras civis, como se expressou a governação na escola de modelos económicos e sociais a partir de um ideário construído por Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Pedro Pires, Nino Vieira e outros?”.

No trabalho periodizam-se as políticas económicas e sociais em cinco períodos: as políticas coloniais até 1974; as políticas de desenvolvimento de iniciativa nacional, de 1974 a 1986; as políticas de ajustamento de iniciativa FMI/BM, de 1986 a 1998; as tendências caóticas na governação, em diferentes períodos (1998-2003, 2005-2007 e 2012-2014); e as políticas de recuperação (2004-2005, 2008-2012 e 2014-2015).

No primeiro período, recorda-se a legislação dos anos 1920 e 1930 com vista a estruturar a administração, criando ou reforçando serviços desde as alfândegas e registo civil à justiça e saúde. Os mandatos dos Governadores Velez Caroço, Vaz Monteiro e Sarmento Rodrigues revelaram-se particularmente dinâmicos. Adotaram-se medidas de apoio à agricultura, incitou-se a população a cultivar produtos que fossem comercializáveis externamente por Portugal. A política económica incidiu sobre a conceção de monopólios de comércio e produção a firmas como a Casa Gouveia (ligada à CUF – Secção África), a Sociedade Comercial Ultramarina (ligada ao BNU), Mário Lima, Ed. Guedes Lda., Aly Soulemaine, Barbosa & Comandita e aos franceses da CFAO, SCOA e Nouvelle Societé Commercialle Africaine, bem como facilidades de comércio e produção a famílias como os Nozolini, Pereira Barreto, Carvalho de Alvarenga e outros. Até ao fim da glória houve mais propostas, como as de Picado Horta, que preconizava a necessidade de integração progressiva dos setores tradicional/rural e moderno/urbano, apoiando-se em polos de desenvolvimento agroindustriais, agrícolas e industriais.

No segundo período, já na independência, o PAIGC em 1977 definiu orientações de política económica em que a reconstrução nacional assentava na agricultura, infraestruturas e pequena indústria, educação e saúde. Tal não aconteceu, a industrialização, as infraestruturas de transporte e comunicações e administração pública do país ganharam prioridade, o país parecia circunscrito em Bissau. Vasco Cabral dizia abertamente que a economia refletia o centralismo democrático, daí a centralização da governação no aparelho central do Estado, a estatização era o objetivo último. Esta política não foi interrompida com o golpe de Estado de Novembro de 1980. Mas nos anos subsequentes os desastres revelaram-se clamorosos, as empresas que compunham o setor empresarial do Estado estagnaram ou faliram, a capacidade instalada nestas empresas foi utilizada em média em 20 a 25%. Chegou-se a uma situação em que as receitas internas cobriam apenas 50% das despesas correntes do governo e uma percentagem nula das despesas de investimento. A inflação trepou astronomicamente, a dívida externa aumentou em permanência. Tentou-se uma política de alfabetização de adultos e das forças armadas.

Pretendia-se continuar a prática das escolas nas zonas libertadas. Mas tudo foi esmorecendo, quer pela falta de materiais e instalações quer porque as famílias viam no ensino uma atividade elitista, cujo calendário estava em conflito com a necessidade dos jovens participarem no trabalho agrícola. Em 1976, foi elaborado um Plano Nacional de Saúde, com farmácias de tabanca, unidades de saúde de base, hospitais de setor, assim se pretendia a cobertura do país, recorrendo à descentralização. Contou-se com a assistência técnica externa (francesa, italiana, holandesa, cubana, chinesa continental, chinesa Taiwan e soviética, com a execução de muitas ONG estrangeiras e nacionais depois de 1991). O sistema acabou por ruir, a despeito da criação de infraestruturas modelares, como a de Canchungo.

Grassou o descontentamento, e numa primeira fase atribuíram-se plenas responsabilidades a Luís Cabral. No congresso extraordinário do PAIGC de 1981 falou-se na retificação de erros e desvios da linha anteriormente aprovada. Como se disse atrás, o discurso teórico não coincidiu com a prática, a proliferação de projetos de desenvolvimento por todo o território, processou-se de forma descontrolada, desacreditou-se por si próprio.

Com Nino Vieira nada mudou com o papel dirigente do Estado seja na atividade económica seja nas áreas sociais, o que se abandono foi o objetivo de um Estado binacional. Acordou-se num programa de estabilização económica, contou-se com o apoio do FMI e do Banco Mundial. Os eixos básicos desta política económica tinham os seguintes elementos: eliminação dos desequilíbrios entre a produção e consumo, através de medidas de saneamento da situação económica e financeira; a reorganização do setor público e o impulso ao setor privado com a liberalização dos circuitos comerciais e económicos; a definição de critérios para uma melhor utilização de ajuda externa; e manutenção do controlo da economia por parte do Estado. Como o objetivo do equilíbrio orçamental mexeu-se na política fiscal procurando-se aumentar as receitas com os impostos sobre tabaco, álcool e combustíveis.

Mas tudo se agravou em 1983 para 1984, não houve qualquer progresso na via da estabilização, nada melhorou nos preços nem no abastecimento e a política cambial de desvalorização deslizante pouco melhorou o mercado paralelo de divisas. As razões de tal insucesso terão tido a ver com o atraso da conceção de fundos de ajuda externa à balança de pagamentos, com a incapacidade em recursos humanos e técnicos de levar à prática as decisões políticas do governo ou do partido. Em síntese, quatro anos depois do golpe de Estado de 14 de Novembro, a governabilidade, a incapacidade de execução das instituições públicas era referida como uma das causas centrais do insucesso no desenvolvimento do país.

(Continua)


O caju e o seu sumo, realizações viáveis
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21219: Notas de leitura (1296): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21099: Notas de leitura (1290): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (5) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2017:

Queridos amigos,
Aqui se põe um fim a uma demorada, propositadamente extensa, análise de um trabalho de leitura obrigatória para o investigadores da guerra da Guiné, obra redigida com suficiente clareza e incisão que permita todos os leigos os mais amplos esclarecimentos sobre a vida e obra de Cabral.
Julião Soares Sousa foi justamente premiado pela sua primorosa investigação. Esta edição corrigida e aumentada introduz, em meu entender, um quociente de perplexidade quanto ao maior número de hipóteses de envolvimentos em torno do assassinato. A despeito de documentação fundamental ter desaparecido, estar extraviada ou irremediavelmente perdida, factos são factos, Cabral foi assassinado por guineenses e todas as recriminações dos conjurados iam contra a unidade Guiné-Cabo Verde. É um mistério denso que se presta a imensa especulação. Porém, não se esqueça que em 1980 Nino Vieira, de colaboração íntima com combatentes guineenses e até civis, afastaram os cabo-verdianos e pôs termo a um sonho de Cabral que, comprovadamente, não tinha pés para andar.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (5)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

No aceso da luta de libertação, Cabral é confrontado com um punhado de dossiês escaldantes: as relações com os outros movimentos de libertação têm aspetos agudos, Cabral e Mondlane não têm identidade ideológica, por exemplo; procurou-se o lançamento de ações de guerrilha urbana, foram pouco consequentes mas segundo o líder importantes no plano político e psicológico; caminhou-se para a proclamação do Estado da Guiné e militarmente Cabral desenhou com um conjunto de colaboradores uma ofensiva sobre Guileje que só se concretizará em Maio de 1973; toda a problemática de Cabo Verde é forçada à hibernação, Cabral transfere para as frentes de guerra esses quadros apetrechados que se revelarão determinantes, caso de Pedro Pires, Osvaldo Lopes da Silva, Agnelo Dantas e Silvino da Luz, entre muitos outros; o ano de 1972 obriga Cabral a deslocações incessantes, embora se julgando amplamente informado do que se passa na guerrilha e em Conacri, acentuam-se as crises internas, é no regresso de uma visita à União Soviética em Novembro de 1972, onde lhe é garantido o apoio com armas modernas, como os mísseis Strela, que Cabral é alertado para a existência de graves problemas em Conacri, o mundo das informações alterara-se, não só a PIDE/DGS conseguira infiltrar informadores ao mais alto nível como dezenas de combatentes reuniam à luz do dia e havia mesmo ideias de refazer o partido, contava-se para isso com combatentes carismáticos como Osvaldo Vieira e com o antigo presidente do partido, Rafael Barbosa.

E assim chegamos ao assassinato, tema que conhece novos desenvolvimentos nesta edição corrigida. Há muitas conjeturas, o autor usa e abusa do consta, do alegadamente, do presume-se. Há versões coincidentes sobre o se passou naquela noite, Ana Cabral a tudo assistiu, ouviu as primeiras discussões, o primeiro disparo quando Cabral não aceitou ser preso, a conversa seguinte em que Cabral propunha uma discussão sobre os problemas de relacionamento entre cabo-verdianos e guineenses, sucederam-se os tiros fatais, os conjurados, seguramente de acordo com o plano previamente traçado, dividiram tarefas, prenderam Aristides Pereira e levaram-no para uma lancha com outros reféns, incluindo a mulher de Cabral; meteram na prisão um elevado número de cabo-verdianos, nem um só guineense, avisaram-nos de que seriam fuzilados ao amanhecer; e foram libertados os membros do complô, todos guineenses, que se encontravam aprisionados, punidos por rebeldia; outros dirigiram-se ao palácio de Sékou Touré, Óscar Oramas, o embaixador cubano assistiu a essa conversa, os conjurados alegaram sempre a fricção insanável entre Guiné e Cabo Verde, o presidente da Guiné Conacri mandou prender os conjurados e pediu apoio naval aos soviéticos para irem buscar Aristides Pereira. Entre as muitas pistas Julião Soares Sousa retoma algumas delas não têm base de sustentação: não há um só documento que comprove qualquer colaboração da Armada Portuguesa; não há um só documento que conduza a qualquer associação entre a PIDE/DGS e os implicados na conjura de Conacri, pelo contrário, nas horas subsequentes em Bissau Spínola deplorará a morte de Cabral, ele não tinha outro interlocutor, e o diretor da PIDE em Bissau envia para o diretor da PIDE em Lisboa um relatório que no todo ou na parte é manifesto da não implicação da polícia política portuguesa nos acontecimentos de 20 de Janeiro de 1973; continua a insistir-se na liderança de Momo Touré no assassinato, este não possuía qualificações, capacidades ou reconhecimento por parte dos altos quadros combatentes, seria, quanto muito, um cabeça de turco a executar um plano pré-combinado, não será de excluir conivências diretas de Nino Vieira e Osvaldo Vieira, que ficaram na sombra. Julião Soares Sousa carreia nova informação, caso do relatório da delegação jugoslava às cerimónias fúnebres de Cabral, ou relatório de Agostinho Neto. E centra-se nas hipóteses de cumplicidades internas e externas centradas em Sékou Touré e nas autoridades portuguesas. Para sermos francos, nada de novo. Trazer à colação a “Operação Albatroz”, bem como a “Operação Safira”, igualmente nada traz de esclarecedor, não há provas concludentes que associem tais iniciativas ao assassinato de Cabral.

As conclusões da obra recapitulam toda a evolução de um pensamento e de uma ação, podem ser encaradas como uma síntese feliz. No entanto, não se percebe o que leva o autor depois de relevar de que não se possui documentação irrefutável que leve ao reconhecimento dos autores morais a escrever que a chave do enigma se encontra na documentação da PIDE/DGS, da Aginter Press e dos Serviços Secretos de Conacri e assevera: “Acreditamos também que algum arquivo privado possa a vir resolver o mistério. Pelo menos pouco a pouco mais dados têm vindo a terreiro, ajudando-nos a reconstruir o puzzle tão complexo. Toda esta documentação sumida poderá esclarecer os meandros em que o assassinato foi orquestrado a partir de Lisboa e a maneira como algumas organizações secretas europeias penetraram o PAIGC com a cumplicidade de guineenses e de elementos da oposição ao regime de Sékou Touré”. Não nos aprece igualmente crível que Spínola tenha abandonado o seu lugar de governador por causa da proclamação unilateral da independência, Spínola sabia que a prazo o desfecho militar lhe era desfavorável, aprovara-se uma retração do dispositivo era o primeiro sinal da derrocada, preferiu ir para Lisboa preparar a derrocada do regime de Caetano, com quem se incompatibilizara.

Ao findar a análise deste importantíssimo documento, reitero a sua importância e a obrigatoriedade da sua leitura, para investigadores e todos os interessados.
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Notas do editor

Postes anteriores de:

1 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

8 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21054: Notas de leitura (1288): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (3) (Mário Beja Santos)
e
15 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21078: Notas de leitura (1289): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21078: Notas de leitura (1289): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Trata-se neste texto da evolução do pensamento de Cabral nos seus últimos anos de vida, das atividades desenvolvidas tanto no campo diplomático, na vida do partido como na atividade operacional. Cabral desenhou a manobra que conduzisse à criação do Estado da Guiné e encostasse o regime de Lisboa à parede, após o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau. Aqui também se fala nas lutas internas e nas tensões que irão desembocar no seu assassinato.
Não me canso de dizer que este trabalho é uma das maiores referências da historiografia, a despeito das discordâncias sobre certos olhares de Julião Soares Sousa. Não posso entender a importância que se atribui a Momo Touré, é para mim incompreensível que se aluda a uma vitória militar no Como, se fale em milícias para defender régulos e na exclusiva política de bombardeamentos de Schulz.
Reparo que a africanização da guerra se iniciou, sem equívocos, com Louro de Sousa, se intensificou com Schulz (basta lembrar as unidades militares que se constituíram no seu tempo no CIM, de Bolama e a formação de milícias cumpria outra lógica que a de proteger régulos). E, como direi mais adiante, as teses agora levantadas sobre o assassinato de Cabral adensam a bruma e a camuflagem sobre algo que muitos guineenses recusam como evidência: foram combatentes da primeira hora, e guineenses, que assassinaram Cabral.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (4)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

Estamos no auge da luta armada, Cabral vai se confrontado com a política de Spínola “Por uma Guiné melhor”, consigna que se traduzia em habitação, educação, saúde e alguns desafios sociais par a população guineense. Basta recordar que entre 1969 e 1973 foram construídas mais de 8 mil casas, mais de 60 aldeias melhoradas e milhares de pessoas reagrupadas dentro de uma estratégia que procurava cortar cerce a pressão de guerrilheiros, apara trocar alimentos e obter informações. Como recorda o autor, no domínio das comunicações, foram alcatroadas mais de 500 quilómetros de estradas e no setor da saúde construíram-se e recuperaram-se mais de 50 postos sanitários. As escolas primárias viram duplicar o número de alunos. Entre 1963 e 1974, de modo a proteger o arroz das águas salgadas, foram construídos cerca de 650 diques. Para encontrar uma reposta, Cabral procurou incrementar a produção do Sul e em todas as parcelas onde a presença da guerrilha e populações tivesse uma certa estabilidade e procurou denodadamente ajuda internacional para melhorar a oferta dos Armazéns do Povo.

Com a luta armada a soprar de feição, e após o abandono decidido por Spínola de várias posições, o PAIGC avançou com reformas político-militares e administrativas. Recorde-se que o abandono de Béli e de Madina do Boé fez estender a influência do PAIGC em direção à região do Gabu e ter um domínio quase total da margem direita do rio Corubal; o Corredor de Guileje passou a ser patrulhado pelas tropas especiais e o aquartelamento de Guileje passou o ser o símbolo da presença portuguesa no Sul. Aumentava o espaço de influência do PAIGC e redobravam os problemas. Cabral apostava no combate ao analfabetismo e estimulou a criação de escolas e a difusão de educação nas chamadas áreas libertadas; no domínio da saúde, apareceram postos sanitários, hospitais regionais e setoriais e clínicas ortopédicas, quer no interior do território, quer na Guiné Conacri e no Senegal.

O autor estudou atentamente não só o quadro ideológico em que evoluiu o pensamento de Cabral ao longo da luta armada, como estudou as diferentes movimentações do lado português para obter informações, contar com agentes duplos e infiltrar os seus homens. Repetidamente se ouve falar em Momo Touré como líder de insurreições. Momo era um combatente da primeira hora, foi preso e depois dado como reabilitado. Era empregado de mesa num restaurante de Bissau, o Pelicano. Continua-se sem entender como vários estudiosos falam de Momo Touré como o líder desencadeador da atmosfera envenenada que se vivia em Conacri, em 1972, e como ele preparou a insurreição que culminou no assassinato de Cabral. Tenho para mim que na ausência de provas factuais sobre a organização do complô e o que o inspirava, usa-se miticamente o nome de Momo Touré como se este tivesse dotes político-ideológicos suficientes para mobilizar quem foi mobilizado. Quanto muito, seria um cabeça de turco, tal como nos aparece Inocêncio Cani. Os investigadores continuam perplexos com a falta de provas sobre os autores morais, parece que tudo se sumiu pelo chão abaixo, os documentos dos interrogatórios, a recolha de provas a que teriam procedido as diferentes comissões de inquérito. Nesse sentido, é bem fácil especular sobre os alegados autores morais. Cabral sabia das tensões, ao modelizar a estrutura do PAIGC a partir de 1970 tentava duas coisas ao mesmo tempo: uma descentralização centralizada e livrar-se dos clichés e conotações socialistas e comunistas. Não podendo abrir uma frente de guerra em Cabo Verde, aproveitou esses quadros qualificados, virão a ter uma extraordinária importância nos acontecimentos de 1973: basta pensar nos nomes de Osvaldo Lopes da Silva, Manecas, Silvino da Luz, Agnelo Dantas, entre tantos outros. Cabral sabe que há cansaço entre os seus combatentes, desenvolve de 1971 para 1972 uma extraordinária ofensiva diplomática junto da ONU, da OUA, percorre continentes a denunciar a situação da Guiné, pede à URSS armamento moderno, difunde em todos os auditórios a originalidade revolucionária guineense. Julião Soares Sousa, bem a propósito, também nos fala da como Cabral procurava extrair lições dos graves erros ocorridos depois das muitas independências africanas, estava atento aos riscos do neocolonialismo.

Cabral fora líder incontestado na direção da luta pela libertação das colónias portuguesas. Agora a guerra evoluíra nas três frentes, as suas relações com Eduardo Mondlane estavam eivadas de tensões ideológicas, o MPLA ocupava uma posição modesta no teatro angolano. Enquanto se envolve nessa ofensiva diplomática desenha também a estratégica militar, exige aos seus quadros maior atividade operacional e propõe mesmo a guerrilha urbana. O autor lembra que de 1969 a 1971 houve ataques a Bafatá, Bissau, Bolama e Gabu, mas com consequências mínimas.

Entra-se numa nova fase, a de procurar a proclamação do Estado da Guiné, era uma etapa que segundo o líder fundador iria mudar tudo, Portugal ficaria num grande dilema: sair da ONU e ficar fora da lei ou ficar, reconhecendo a independência do país. Julião Soares Sousa também observa que Cabral pretendia levar a cabo entre Setembro/Outubro de 1972 uma esmagadora ofensiva sobre Guileje e escreve:  
“O objetivo visado era Guileje mas com manobra de diversão sobre Guidage, no Norte, e Gadamael, no Sul, de modo a atrair a atenção as tropas portuguesas e assim atingir o objetivo primordial que era a conquista de Guileje vital do ponto vista logístico e para a segurança das populações do setor de Balana. O aquartelamento de Guileje, na frente de Balana/Quitáfine, era na opinião de Amílcar Cabral, o mais bem fortificado aquartelamento português em 1972. As unidades portuguesas aí estacionadas (duas companhias e infantaria, unidades de cavalaria e artilharia) tinham por missão impedir a utilização da principal via de reabastecimento das forças do PAIGC, a partir de Kandjafra, que aparecia nas cartas militares como Corredor de Guileje. Por isso, o líder do PAIGC estava absolutamente convencido de que com a queda de Guileje tudo à volta cairia. Fazia mesmo depender a derrocada do regime colonial na Guiné de uma eventual queda deste importante campo fortificado, pois aliviaria a pressão do exército português na zona da fronteira, precipitando o desenvolvimento de ações militares e abrindo novas perspetivas para a resolução do conflito”.
Mas entendeu-se não haver condições para essa ofensiva, ela só terá lugar depois do PAIGC possuir mísseis terra-ar. Em simultâneo, na ONU fazia-se mais uma tentativa para Portugal negociar com os movimentos de libertação nacional.

Nesta fase da narrativa, o historiador introduz o novo serviço de informações a cargo de Alpoim Calvão, fala-se em alegados contactos de Cabral com a oposição ao regime de Sékou Touré e estamos agora no olho do furacão das crises internas. Assim se chega ao assassinato de Cabral em Conacri.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21054: Notas de leitura (1288): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (3) (Mário Beja Santos)